TEIXEIRA, Anísio. Resenha do livro "Uma escola diferente". Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.51, n.113, jan./mar. 1969. p.145-148.

EBOLI, Maria Terezinha de Melo - Uma escola diferente, São Paulo, Ed. Nacional [1969] 229 p. (Cultura, sociedade, educação, 17).

Êste livro é o registro de uma experiência escolar, como nunca se fêz no Brasil. Uma escola primária, sob a direção de uma educadora baiana de imaginação e competência, que realizou, com as suas colegas professôras da Bahia, durante seis anos, uma experiência de educação elementar, com cêrca de 350 crianças, entre os 7 e 14 anos, recrutadas nas classes populares mais modestas de Salvador. O projeto da escola inspirou-se na teoria de educação pela experiência, envolvendo estrutura completamente nova da escola, nova organização das classes, dos programas, do currículo e do método de ensino. Partindo da experiência possuída pelas crianças, a escola, durante seis anos, conduziu essa crianças a um esfôrço de organização de suas próprias experiências para lhes assegurar não sòmente uma vida rica e feliz, como ainda um crescimento em inteligência, em capacidade executiva e em convivência humana de alta complexidade social.

Para quem de há muito acompanha as idéias modernas de educação e conhece as dificuldades de se conduzir a experiência de educação fora dos moldes enraizados, que a separam da vida corrente das crianças e tornam a escola apenas uma preparação para atividades adultas, a experiência baiana constitui um caso raro, que merece tôda atenção.

O que marca a experiência documentada por êsse livro é a originalidade - creio não ser exagerado usar o têrmo - de se conduzir a organização da experiência infantil pela institucionalização social de cada idéia ou saber nôvo da criança. Não se tratou apenas de tornar a escola uma comunidade, de levar as crianças a viverem coletivamente a sua nova vida escolar, o que, aliás, foi plenamente conseguido. Trata-se de mais do que isto. As crianças foram levadas a organizar a sua comunidade em sociedade, dotando-a de tôdas as suas instituições organizacionais e as do trabalho, comércio, recreação, arte e saber, acabando a escola como uma cidade, com tôda a sua complexa combinação urbana moderna. Neste sentido, a escola faz-se uma experiência de socialização das mais completas que conheço.

Tôda escola foi um experiência de individualidade e de sociedade, passando a criança por uma experiência de participação, que não foi só a de participação na atividade em que se empenhava, mas de participação na construção da própria sociedade humana, criando, uma por uma, as instituições que lhe dão corpo e organização.

Uma sociedade é um complexo grupo humano vivendo dentro do sistema da língua e dos saberes, costumes, hábitos e atitudes, dentro de um quadro de instituições que ligam e corporificam todo êsse denso e complexo contexto social.

A mais radical alienação da educação praticada pela escola está em considerar-se ela uma instituição destinada a cultivar a língua e os saberes da sociedade, considerado êsse cultivo algo de isolado, como fim em si mesmo, e destinado a uso posterior, quando a criança fôr adulta. Essa alienação já fica muito corrigida quando o ensino se faz ativo e prático, procurando-se mostrar o uso imediato da língua e dos saberes. A experiência baiana nessa escola, que êste livro procura documentar, vai mais longe e aí vejo a sua originalidade.

Não visou apenas um ensino eficiente porque ligado à experiência infantil real, consciente e vivida, mas levá-la a viver a própria experiência da organização social da vida. A sua existência individual fica logo concretizada em registro de nascimento, em identificação pessoal e em registro eleitoral, mediante as instituições sociais que a escola recria em sua comunidade nas condições mais reais possíveis. Ler e escrever, como hábitos de comunicação é também logo socializado pelos hábitos da correspondência, dos registros, dos jornais, do correio-telégrafo, da biblioteca, da tipografia, da edição de livros, da livraria e da rádio-escola. O número e a arte de contar faz-se logo contabilidade, comércio e banco, e a instituição do dinheiro fica organizada e operante. Tudo aliás que é aprendido faz-se imediatamente, não apenas prático, mas social. Os hábitos de fazer são aprendidos para produzir, para beneficiar o produto, para vender e logo surgem as instituições de agricultura e horticultura, da fábrica, da loja e das exposições. As atividades artísticas logo também se transformam em produção, apresentação, comércio artístico e em museus. Tôda experiência e todo saber do grupo entram, assim, em operação no microcosmo criado pelas crianças. A escola, com os seus grupos-classe, faz-se uma cidade, com as ruas, bairros, mercados, teatros e as suas atividades complexas e extensas, a sua divisão de trabalho, todo o seu mundo institucional, e até o seu govêrno que, também, é aprendido numa experiência de govêrno municipal institucionalizado. As crianças na escola são indivíduos, membros de seu grupo, empregados de tôda ordem, líderes e autoridades, operários e chefes, sem deixar de ser pessoas, colegas, filhos, irmãos, amigos e, sempre, cidadãos.

Tratou-se, assim, de uma experiência de socialização, no mais amplo sentido possível, da língua e dos saberes que cabia à escola cultivar. A leitura da relação das aquisições infantis em saberes, hábitos e atitudes cobrem tôda a gama das atividades humanas.

E que foram os saberes cultivados nessa escola admirável? Vê-se desde o primeiro ano crescer a experiência infantil a partir dos rudimentos organizacionais da sociedade, as atividades agrárias e comerciais, a iniciação industrial e por fim a ciência, como agência do conhecimento, seguida logo de sua aplicação e depois da fatura de instrumentos científicos, terminando com o maravilhamento ante a eletricidade e elaboração de alguns dos seus aparelhos de produção e uso.

A leitura das atividades em que se empenharam as crianças é todo um curso de civilização, que vai dos estudos do índio até a vida moderna científica, tecnológica e industrial de hoje, sem esquecer nenhuma das instituições intermediárias da sociedade legal, mercantil, política anterior ao nosso tempo.

Sabemos como a própria linguagem nos isola da realidade. Para uma idéia ou conhecimento não ser apenas algo de verbal que sucede em nossa mente, grande é o trabalho a se fazer para dar vida às abstrações e evitar que sejam apenas aquelas idéias inertes de que nos fala Whitehead. As idéias e conhecimentos continuam, contudo, fôrças apenas individuais, que sòmente se fazem realidade social quando se institucionalizam e passam a dar expressão e dirigir as nossas vidas. O notável dessa experiência baiana é que nenhuma idéia ou saber foi ensinado apenas verbalmente, nem mesmo apenas de modo ativo e prático para incorporá-las ao indivíduo. O método de aprendizagem foi mais longe: buscou levar as crianças a institucionalizá-la e dar-lhe o equivalente da fôrça de uma realidade social. Ora, não temos conhecimento de que uma só das muitas experiências de escola nova, ou ativa, ou progressiva tenha jamais feito isso. Neste sentido, repito, é que a experiência é realmente original. Pouco importa que as professôras sublinhem a capacidade imaginativa das crianças, a capacidade de fazer de conta, com que modestamente apresentam a sua experiência como uma dramatização social. Mas não é também uma dramatização tôda nossa real vida social? Não é o homem êsse criador de idéias e instituições com que dá ordem e estrutura à sua vida, que de outro modo se perderia no báratro do seu invencível mistério? Whitehead, em um dos seus lampejos de penetração, lembra que o problema humano não é o de adaptar as nossas idéias ao mundo mas o mundo às nossas idéias. As crianças, habitantes da Cidade da Alegria, estavam a fazer essa experiência. Seu mundo era tão imaginário, como imaginária é a nossa organização social.

Se considerarmos que as crianças, que viveram essa experiência eram crianças vivendo em extrema pobreza, em condições sociais as mais precárias, com experiência social dolorosamente limitada, senão maléfica, e que, ainda assim, puderam erguer-se, pela escola, até as alturas das experiências que se faziam na escola em 1960 e 61, a experiência que se conta neste livro não é, apenas, algo admirável e válido por si mesmo, mas também uma confirmação de que se pode fazer a educação não sòmente o meio de sobrevivência social, mas o meio de direção social, o meio de promover o desenvolvimento, o meio de construir a ordem, o preparo social e a boa sociedade de amanhã.

A modéstia e o silêncio com que se processou essa experiência entre 1956 e 1961, no isolamento de um bairro periférico de Salvador, na Bahia, não nos devem impedir de ver nela mais que uma experiência pedagógica. O fato de ter-se realizado em um meio extremamente pobre, com crianças que seriam consideradas marginais pelos padrões ordinários de julgamento, dá à experiência um valor muito mais amplo, não só em relação às potencialidades da educação, como em relação às possibilidades do desenvolvimento social brasileiro.

Para quem conhece as dificuldades quase invencíveis com que em nosso grande vizinho do norte, os Estados Unidos, está-se a lutar pela recuperação dos grupos segregados dos homens de côr, a leitura dêsse registro da experiência escolar da Bahia parece nada menos do que inacreditável. Pode-se apenas notar uma discreta nota de resistente paternalismo na atitude infantil sempre penhorada e agradecida e no hábito, tão nosso, de pedir as providências (veja-se a correspondência das crianças). De modo constante e geral, entretanto, as crianças, apesar de verdadeiros párias sociais, revelam-se cândidas, abertas, otimistas, cheias de frescura e energia e perfeitamente capazes de ser transformadas pela escola para os novos incentivos da sociedade industrializada de manhã.

As professôras que conduziram a experiência escreveram diários dos seus trabalhos. A reprodução dêsses diários compreenderia vários volumes. A autora, Terezinha Eboli, selecionou e resumiu a substância de tais relatórios para poder contê-los dentro das proporções dêste livro. Fêz trabalho consciencioso e difícil, mas não podia deixar de lhes retirar o sentido de experiência vivida e sentida. Precisamos para ler a documentação não esquecer o quadro de referência em que tôda a experiência se insere. Para isto, aconselharia que se lesse primeiro o capítulo "As crianças e suas famílias", a fim de sentir a experiência social e presente das crianças acolhidas na escola e o contraste entre suas vidas e a experiência da escola. A despeito de tudo isto, salvo pequenas exceções, as crianças transformam a escola na "Cidade da Alegria".

A pequena e inevitável aparência paternalista é apenas um sintoma da bondade substancial, bondade no sentido de saúde moral, no sentido de esperança, como virtude teologal, que penetra e impregna a admirável e sofredora infância brasileira, que assim reflete a energia jovem e otimista desta Nação.

A nota verdadeiramente triste do relato está na última parte. "Os ex-alunos. Vê-se aí com clareza meridiana a trágica ironia da renovação educacional sem a renovação da sociedade. A experiência escolar termina vazia. A sociedade não acolhe as crianças que deixam a escola com nenhum quadro organizado de trabalho e emprêgo, ou de continuação da educação.

Os meninos deixam a escola com a sua ordem, a sua esperança e a sua riqueza humana, mais criaturas humanas do que antes, apenas para serem esmagados pela fria indiferença social que pesa sôbre sua classe e seu baixo escalonamento social. Apenas uma menina - Estela - emerge da avalancha que as força a continuarem derrotadas e abatidas. Terezinha Eboli a ergue, como um símbolo. Preferia vê-la como uma testemunha que, amanhã, quem sabe, D. H. Lawrence, poderá comunicar à sociedade a mensagem da experiência da sua classe, para a edificação de todos nós, igualmente culpados da iniqüidade de nossa sociedade.

ANÍSIO TEIXEIRA

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