TEIXEIRA, Anísio. Discurso de posse do Professor Anísio Teixeira no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. v.17, n.46, 1952. p.69-79.

DISCURSO DE POSSE DO PROFESSOR ANíSlO
TEIXEIRA NO INSTITUTO NACIONAL DE
ESTUDOS PEDAGÓGlCOS

Com a presença de altas autoridades, de destacadas figuras dos meios educacionais do país, professôres e parlamentares, realizou-se, em 4 de julho, a solenidade de posse do professor Anísio Spínola Teixeira no cargo de Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, em substituição ao dr. Murilo Braga de Carvalho, que pereceu em trágico acidente aéreo. O professor Anísio Teixeira pronunciou então significativo discurso, que "REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS" tem a oportunidade de publicar a seguir.

Cumpre-me reconhecer, antes de mais nada, Senhor Ministro, a honra que me fizeram o Senhor Presidente da República e Vossa Excelência confiando-me a responsabilidade do Instituto Nacional dos Estados Pedagógicos, quando êste perde o seu jovem e diligente diretor, o Dr. Murilo Braga, vitimado em lamentável catástrofe aérea, no cumprimento de missão do seu cargo.

Devo declarar, entretanto, que aceito o encargo, acima de tudo, como uma imposição do dever. Sou dos que pensam que estamos vivendo uma hora de aguda premência e de grandes exigências da vida nacional, em que nenhum de nós pode e deve recusar a investidura para que o convoquem as circunstâncias, de vez que se nos reconheçam (ou presumam) condições de especialização e experiência para o seu desempenho. E aqui estou, convocado pela amizade com que me distingue Vossa Excelência, pela confiança com que se dignou de honrar-me Sua Excelência o Senhor Presidente da República e pelos longos anos de preocupação que tenho dedicado aos problemas de educação - no Brasil.

Épocas, como a nossa, já têm marcado a humanidade, nas suas transformações históricas; mas, não creio que, em nenhuma delas, como na atual, tenha havido uma consciência tão viva de transição e perigo.

Esta consciência de perigo está ameaçando imobilizar-nos numa posicão de apatia, ante a vastidão e complexidade das mudanças em curso e é contra isto que se ergue a nossa própria noção de dever, para obrigar-nos a aceitar o pôsto – seja qual fôr – na batalha sem fim pelo desenvolvimento, vale dizer, pela integração e recuperação, nos seus novos aspectos, dos valores morais e espirituais de nossa civilização.

* * *

Estamos, com efeito, a fazer, agora, a nossa revolução industrial, melhor, diriamos, tecnológica, com o seu ról de conseqüências em nosso modo prático de viver, na divisão do trabalho, no surgimento da produção em massa, no enriquecimento nacional e na crescente urbanização da vida brasileira.

Entre as mudanças da ordem tradicional ocorridas, como efeitos de tal causa, em nações avançadas no caminho dessa ampla e intensiva industrialização, nem tudo, convém notar, foi e esta sendo progresso moral, progresso social, em proporção dos progressos materiais realizados e do aumento de poder alcançado. Certos inconvenientes são manifestos e não devem ser desprezados, numa observação imparcial, para que os evitemos, se possível, ou, ao menos, os atenuemos: a perda de senso de comunidade, a exaltação dos propósitos individuais ou de grupos, a indiferença ou descaso pelos códigos morais, o gôsto pela excitação vazia, senão prejudicial – em detrimento dos valores mais finos e altos da civilização.

Mas, enquanto, alguns dêsses povos avançados, começando mais cedo, ainda nos vagares do século dezenove, que, a rigor, se estendem até 1914, puderam realizar a imensa tarefa da educação popular pela escola, deparando-se, agora, com o problema da revisão, redireção e refinamento dessa instituição, não chegamos nós a criar um sistema comum e sólido de educação popular, e já as contingências de crescimento nos estão a pedir medidas e instituições como as das leis do trabalho urbano e rural – que deviam assentar em um robusto e consistente sistema de educação pública. Temos, assim, de realizar, simultâneamente, as "reformas de base", inclusive a reforma agrária, e o sistema universal de educação que não chegamos a construir até hoje, já no meado do século vinte.

Uma das conseqüências dessa evolução, unilateralmente acelerada, da vida nacional vem sendo a incorporação, sem o devido preparo, das massas do campo e das pequenas cidades ao operariado dos centros industriais e o crescimento vertiginoso das grandes cidades, com os resultados já conhecidos da urbanização intensiva, agravada pela heterogeneidade e ausência de formação dos novos elementos transplantados.

Se êsse fenômeno, em nações de sólida estabilidade, tem-se revelado causa de profundos desequilíbrios, que não poderá verificar-se aqui, com essa súbita concentração da população ineducada nas cidades em crescimento e a onda de mobilidade a percorrer todo o país, desperto, pelos novos meios de comunicação material e mental, para uma nova e indisfarçável inquietação?

Todos estamos a ver ou sentir o estado de confusão e de crise em que estamos imersos, que não é só o da crise geral de todo o mundo, mas esta mesma crise, já de si séria, tornada mais grave pela tenuidade de nossas instituições e pela impaciência insofrida com que as estamos expandindo, sem cuidar da reconstrução do existente nem de dar, ao novo, as condições de eficiência ou eficácia que os novos tempos estão a exigir.

* * *

Tudo isso vem resultar na imposição ao sistema de educação nacional de novos deveres, novos zelos, novas condições e novos métodos. Com efeito, não podemos olhar para a escola, hoje, como se fôsse ela apenas aquela pacífica e quieta instituição, que crescia, paralelamente à civilização, nas mais das vezês com um retardamento nem sempre prejudicial sôbre as suas mudanças, mas, sempre, cheia de vigor e rigor moral e até, não raro, excessiva em sua preocupação de formar e disciplinar o futuro homem. Hoje, no atropelado do crescimento brasileiro e no despreparo com que fomos colhidos pelas mudanças, a própria escola constitui um mau exemplo e se faz um dos centros de nossa instabilidade e confusão.

O tumulto de fôrças, deflagradas pelas nossas transformações sociais, fêz, com efeito, do campo educacional o campo preferido para a projeção de sua ação desordenada e contraditória, com a exacerbação de certos defeitos crônicos do ensino nacional, a supressão dos freios e resistências, que antes nos impediam improvisações demasiado perigosas, e o envolvimento de tudo em certa simulação técnico-científica, muito característica do período confuso em que vivemos – simulação que, no fundo e na realidade, não passa de uma rígida e pouco inteligente burocratização.

* * *

Examinemos, com efeito, embora ràpidamente, o panorama de nosso ensino.

O ensino brasileiro, por isto mesmo que era um ensino quase que só para a camada mais abastada da sociedade, sempre tendeu a ser ornamental e livresco. Não era um ensino para o trabalho, mas um ensino para o lazer.

Cultivava-se o homem, no melhor dos casos, para que se ilustrasse nas artes de falar e escrever. Não havia nisto grande êrro, pois a sociedade achava-se dividida entre os que trabalhavam e não precisavam educar-se e os que, se trabalhavam, era nos leves e finos trabalhos sociais e públicos, para o que apenas requeria aquela educação.

Quando a educação, com a democracia a desenvolver-se, passou a ser não apenas um instrumento de ilustração, mas um processo de preparação real para as diversas modalidades de vida da sociedade moderna, deparamo-nos sem precedentes nem tradições para a implantação dos novos tipos de escola. Cumpria criar algo em oposição a tendências viscerais de uma sociedade semi-feudal e aristocrática, e para tal sempre nos revelamos pouco felizes, exatamente por um apêgo a falsas tradições, pois não creio que se possa falar de "tradições" coloniais escravocratas, feudais num país que se fêz livre e democrático.

De qualquer modo, a nossa resistência aos métodos ativos e de trabalho sempre foi visível na escola primária, que, ou se fazia escola apenas de ler, escrever e contar, ou descambava para um ensino de letras, com os seus miudos sucessos de crianças letradas. No ensino chamado profissional, entretanto, é que mais se revelava a nossa incapacidade para o ensino prático, real e efetivo. Êste ensino, porque não podia confiar-se ao livresco e verbalístico, não vingava e constituía um espetáculo penoso de instituições murchas e pêcas. Só o ensino secundário prosperava, porque aí as tendências nacionais julgavam poder expandir-se, sem a consciência penosa de uma frustração. O ensino superior, embora todo êle de objetivos profissionais, mascarava o seu real academicismo com umas fantasias experimentais menos concretas do que aparatosas.

Todo o ensino sofria, assim, dessa diatese de ensino ornamental: no melhor dos casos, de ilustração e, nos piores, de verbalismo ôco e inútil.

* * *

A luta contra êsse tipo de ensino sempre foi, entretanto, vigorosa, mesmo ainda no tempo da monarquia, recrudescendo vivamente na república. Uma parte culta e mais lúcida do país tinha perfeita consciência do fenômeno e, nos centros que mais se adiantavam, como em São Paulo e no Rio, o esfôrço por uma verdadeira escola primária, por escolas profissionais autênticas e por escolas superiores eficientes e aparelhadas, chegou a alguns resultados apreciáveis. Não esqueço nunca a saudável impressão que me causou, em São Paulo, ver ginásios decadentes e escolas profissionais vivas e prósperas.

Nos fins da década de 20 a 30, parecia, assim, que estavamos preparados para a reconstrução de nossas escolas. A consciência dos erros se fazia cada vez mais palpitante e o ambiente de preparação revolucionária era propício à reorganização. O país iniciou a jornada de 30 com um verdadeiro programa de reforma educacional. Nas revoluções, como nas guerras, sabe-se, porém, como elas começam mas não se sabe como acabam.

A primeira fase daquela jornada caracterizou-se por ímpeto construtivo e por um esfôrço singular nela recuperação da escola, sem perda da prudência, que uma longa consciência de nossa pobreza em recursos humanos nos haviam inculcado. Menos do que expansão quantitativa, lutamos por melhorar a qualidade de nossas escolas. Todo o movimento era pela reforma de métodos e pela implantação de novos tipos de educação. Surgiu a universidade. Ensaiou-se um ensino médio flexível, com a integração do ensino geral com o técnico no Distrito Federal. A escola primária recuperou prestígio e deu-se início à reforma dos seus objetivos e processos de ensino. A vinda de professôres estrangeiros para as novas escolas superiores, em São Paulo e no Rio, era uma nota corajosa e promissora.

Em meio a tudo, o país crescia, aumentando as exigências em matéria de educação e tornando mais difícil a resistência às tendências improvisadoras, que se avolumavam em face da própria expansão nacional.

Numa segunda fase, a reação e um confuso tradicionalismo infiltraram-se, com pertinácia e não sem êxito, trazendo para a educação resultados paradoxais. O estado de espírito defensivo, que se apoderou da sociedade brasileira, interrompeu aquêle ímpeto renovador. Afrouxaram-se as suas resistências ao que, embora aparentemente tradicional, já se mostrava à melhor consciência do país prejudicial à,sua formação e ao seu progresso. Houve uma espécie de livre passe indiscriminado para tudo que fôsse ou se rotulasse de tradicional e uma vigorosa hostilidade a tudo que fôsse ou parecesse ser novo. E a educação – que fôra sempre o setor mais sensível para a luta entre o novo e o velho – constituiu-se o grande campo para a derrota do que já havia de melhor no país em resistência e espírito de reconstrução. Entramos em uma fase de condescendência para com os defeitos nacionais, que raiou pela inconsciência. Confundimos dissolução com expansão.

Na escola primária – que era a melhor escola brasileira, apesar de todos os pesares – a redução dos horários e a volta aos métodos tradicionais transformaram--na em má escola de ler e escrever, com perda sensível de prestígio social, eficiência e alcance, decorrente de não se haver articulado com o ensino médio e superior e de não mais satisfazer às necessidades mínimas de preparo para a vida.

A escola secundária multiplicou-se, quase diríamos ao infinito. Como escola de passar de uma classe social para outra, fêz-se a "escola" brasileira. Aí é que a exacerbação de uma falsa filosofia de educação e todos os velhos defeitos de nossa pedagogia passaram a reinar discricionàriamente. Como a primária, organizou-se em turnos, reduzindo o período escolar a meio dia e, à noite, a um têrço de dia. Improvisou professôres. Sem sequer possuir a modesta pedagogia da escola primária, não a inquietou nenhuma agulhada de consciência na prática dos métodos mais obsoletos de memorização, da simples imposição de conhecimentos inertes e do formalismo das notas e dos exames. Fêz crescer uma indústria de livros didáticos fáceis e fragmentados, "de acôrdo com o programa" e reentronizou o passar no exame como finalidade suprema e única da tortura, meio jocosa meio trágica, que é o nosso atual ensino secundário. Num país em que a iniciativa privada foi sempre reticente ou apática, para tudo que custa esforços e não renumera amplamente, fêz-se do ensino secundário um dos campos prediletos dessa iniciativa.

Mas, não fica aí a conseqüência da nossa perda de resistência aos imediatismos de povo sem verdadeiras e firmes tradições educacionais. Passamos agora a "facilitar" o ensino superior, estamos dissolvendo-o, que a tanto importa a multiplicação numérica e irresponsável de escolas dêsse nível. Temos mais de 200 escolas superiores, mais de vinte faculdades de "filosofia", ciências e letras" e outras tantas faculdades de "ciências econômicas", isto para sòmente citar escolas de que não possuíamos nenhuma experiência até uns quinze anos passados. E os processos de "concessão" continuam, tudo levando a crer que o episódio do ensino secundário se vai repetir, no campo mais alto do ensino superior. O espírito é o mesmo que deu em resultado a inflação do ensino secundário: o espírilo da educação para o exame e o diploma, do ensino oral, expositivo, com o material único dos apontamentos, nosso ridículo sucedâneo das sebentas coimbrãs.

Está claro que tal educação não instrui, não prepara, não habilita, não educa. Por que, então, triunfa e prospera? Porque lhe restam ainda duas saídas, sem esquecer a singular versatilidade brasileira, que nos torna capazes de passar por cima de deficiências educacionais as mais espantosas.

As duas saídas têm sido e são ainda: a alargada porta da função pública e as oportunidades também ampliadas da produção brasileira, uma e outras sem maiores exigências ou padrões de eficiência. Com êsse aumento quantitativo das chances de emprêgo, público e particular, e o baixo índice de produtividade do brasileiro, em qualquer dos dois campos, pagamos a nossa ineficiência, senão simulação educacional. É por aquêle preço – parasitismo do emprê go público e baixa produtividade, isto é, alto custo da vida – que conseguimos fechar o ciclo e impedir, dêste modo, a rutura do equilíbrio. Enquanto o nosso crescimento quantitativo se fizer com a aceleração presente e a aceitação de elementos de qualquer ordem para o preenchimento das nossas necessidades impedir a exigência de melhores requisitos, os serviços educacionais brasileiros continuarão a ser o que são, ajudados pela válvula de segurança do emprêgo fácil para os seus produtos de segunda ordem.

Há, entretanto, sinais de que estamos chegando a um momento crítico. O número de pseudo-educados já está transbordando das possibilidades de absorção. Isto já se evidencia, claramente, nos exames vestibulares das escolas superiores e nos concursos para cargos públicos e privados. Por outro lado, a produção, o comércio e as atividades técnicas superiores começam a dar mostras de inquietação. Há sintomas de uma mudança de atitude, que se revela, pelo menos, por três aspectos, a se refletirem na própria educação. No ensino secundário, pelo aperfeiçoamento voluntário e espontâneo de instituições que, escapando ao tipo corrente de competição, conseguem alunos e recursos suficientes para oferecer um dique ao desejo de educação fácil e formal. Tal não seria possível se também os pais não estivessem a sentir que já há vantagem numa educação de melhor qualidade. No ensino superior, por iniciativas sérias, tanto no ensino oficial quanto no particular, para a instauração de regimes novos, como em São Paulo e São José dos Campos, de tempo integral para professôres e alunos, e o início de um verdadeiro ensino universitário. Nada disto seria possível, nos moldes da atual burocratizacão do ensino, se as necessidades nacionais não se estivessem fazendo a tal ponto gritantes que só cumprir as exigências de uma fiscalização burocrática não basta, impondo-se tentames que em muito já as superam.

Do ponto de vista da indústria, assistimos a fenômenos dos mais impressionantes e esclarecedores. Está ela tomando a si o problema de formar o trabalhador qualificado e especializado, com um sistema de ensino paralelo ao oficial e isento dos seus defeitos maiores.

* * *

Mas não nos iludamos. Todo êsse mundo de candidatos reprovados nos vestibulares das escolas superiores e nos concursos de cargos públicos e de organismos paraestatais e privados constitui um mundo ludibriado pelas nossas escolas, que injeta na sociedade o veneno de suas decepções ou dos seus desajustamentos. São os frutos amargos do imenso sistema de frustração em que o ensino oficial e oficializado se vem constituindo.

Teremos, pois, de dar início a um movimento de reverificação e reavaliação de nossos esforços em educação. E é com êste espírito, Senhor Ministro, que aceito a investidura com que me honra o Govêrno da República.

O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos tem de tentar uma tomada de consciência na marcha da expansão educacional brasileira, examinar o que foi feito e como foi feito, proceder a inquéritos esclarecedores e experimentar medir a eficiência ou ineficiência de nosso ensino.

Não podemos continuar a crescer do modo por que vamos crescendo, porque isto não é crescer, mas dissolver-nos. Precisamos voltar à idéia de que há passos e etapas, cronològicamente inevitáveis, para qualquer processo. Assim é que não podemos fazer escolas sem professôres, seja lá qual fôr o nível das mesmas, e, muito menos, ante a falta de professôres, improvisar, sem recorrer a elementos de um outro meio, escolas para o preparo de tais professôres. Depois, não podemos fazer escolas sem livros. E tudo isto estamos fazendo, invertendo, de modo singular, a marcha natural das coisas. Como não temos escolas secundárias por nos faltarem professôres, multiplicamos as faculdades de filosofia, para as quais, como é evidente, ainda será mais frisante a falta de professôres capazes. Se não podemos fazer o menos, como havemos de tentar o mais? Para reslabelecer o domínio dêste elementar bom-senso, em momento como o atual, em que a complexidade das mudanças impede e perturba a visão, são necessários estudos cuidadosos e impessoais, de que o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverá encarregar--se com o seu corpo de técnicos e analistas educacionais, mobilizando ou convocando também, se preciso e como fôr possível, outros valores humanos, onde quer que se os encontre.

Está já em curso no Congresso a lei complementar à Constituição, que traçará as diretrizes e bases da educação nacional. Essa lei básica não poderá deixar, dentro dos princípios constitucionais, de proceder a uma ampla e indispensável descentralização administrativa da educação, graças à qual êste Ministério poderá retomar as suas altas e difíceis funções de liderança estimuladora e criadora da educação ao invés da atuação restritiva e rígida com que cerceia e dificulta, hoje, o desenvolvimento e a expansão das iniciativas e experiências novas, e limita e empobrece a fôrça vivificadora da autonomia e do senso de responsabilidade. No novo regime, a ser implantado, de descentralização e liberdade com responsabilidade, dentro do quadro das bases e diretrizes da educação nacional, os instrumentos de contrôle e coordenação passam a ser os delicados instrumentos das verificações objetivas, dos inquéritos reveladores, da troca de informações e esclarecimentos, entre os educadores, nas conferências educacionais. Será um regime de sanções mais de opinião pública e de consciência educacional, a se criar no país, do que de atos de autoridade .

As funções do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverão ganhar, em a nova fase, amplitude ainda maior, buscando tornar-se, tanto quanto possível, o centro de inspirações do magistério nacional para a formação daquela consciência educacional comum que, mais do que qualquer outra fôrça, deverá dirigir e orientar a escola brasileira, ajudada pelos planos de assistência técnica e financeira com que êste Ministério irá promover e encorajar todos os esforços úteis e tôdas as iniciativas saudáveis, que as energias insuspeitadas da liberdade e da autonomia irão fazer surgir em todo o Brasil.

Os estudos do INEP deverão ajudar a eclosão dêsse movimento de consciência nacional indispensável à reconstrução escolar.

A educação nacional está sendo, todos os dias, por leigos e profissionais, apreciada e julgada. Os métodos para êstes julgamentos resumem-se, entretanto, nos da opinião pessoal de cada um. Naturalmente, os julgamentos hão de discordar, mesmo entre pessoas de tirocínio comprovado. Temos que nos esforçar por fugir a tais rotinas de simples opinião pessoal, onde ou sempre que desejarmos alcançar ação comum e articulada. Sempre que pudermos proceder a inquéritos objetivos, estabelecendo os fatos com a maior segurança possível, teremos facilitado as operações de medida e julgamentos váliados. Até o momento, não temos passado, de modo geral, do simples censo estatístico da educação. É necessário levar o inquérito às práticas educacionais. Procurar medir a educação, não sòmente em seus aspectos externos, mas em seus processos, métodos, práticas, conteúdos e resultados reais obtidos. Tomados os objetivos da educação, em forma analítica, verificar, por meio de amostras bem planejadas, como e até que ponto vem a educação conseguindo atingí-los.

Cumprir-nos-á, assim e para tanto, medir o sistema educacional em suas dimensões mais íntimas, revelando ao país não apenas a quantidade das escolas, mas a sua qualidade, o tipo de ensino que ministram, os resultados a que chegam no nível primário, no secundário e mesmo no superior. Nenhum progresso principalmente qualitativo se poderá conseguir e assegurar, sem, primeiro, saber-se o que estamos fazendo.

Tais inquéritos devem estender-se aos diferentes ramos e níveis de ensino e medir ou procurar medir as aquisições dos escolares nas técnicas, conhecimentos e atitudes, considerados necessários ou visados pela escola.

Enquanto assim não procedermos, não poderemos progredir nem fazer recomendações para qualquer progresso, que não sejam de valor puramente individual ou opinativo. Êste trabalho, pois, não será nenhum trabalho remoto e distante, mas parte integrante e preliminar do programa de reconstrução de nossas escolas e revisão dos seus métodos. Não será por leis, mas por tais estudos, que daremos início à reforma do ensino, que todos anseiam mas temem, com fundado receio de que se transforme em mais uma experiência frustra de alteração de nomes ou de posição dos elementos no complexo da situação educacional.

Se conseguirmos, porém, os estudos objetivos que aqui sugerimos, e sôbre êles fundarmos diagnósticos válidos e aceitos, não será difícil a elaboração dos métodos de tratamento e a indicação dos prognósticos. Os métodos de tratamento surgirão nos guias e manuais de ensino para os professôres e diretores de escolas, os quais constituirão livros experimentais de sugestões e recomendações, para a condução do trabalho escolar. Em complemento, deveremos chegar até o livro didático, compreendendo o livro de texto e o livro de fontes, buscando integrar nestes instrumentos de trabalho o espírito e as conclusões dos inquéritos procedidos.

Com tal planejamento, estaremos prosseguindo ao estudo objetivo da educação e lançando as bases de nossa ciência da educação. Uso esta palavra – ciência – com extremo cuidado, porque, entre nós, dela se vem abusando, como não menos, da palavra técnica.

Esforçar-nos-emos por aplicar métodos objetivos e, quando possível, experimentais, mas tudo conduziremos com o sedimento profundo do caráter provisório do conhecimento, mesmo quando ou, talvez, sobretudo, quando científico. A ciência não nos vai fornecer receitas para as soluções dos nossos problemas, mas o itinerário de um caminho penoso e difícil, com idas e voltas, ensaios e verificações e revisões, em constante reconstrução, a que não faltará, contudo, a unidade de essência, de fins e objetivos, que estará contida não só na lei de bases e diretrizes, como na consciência profissional, que pouco a pouco se irá formando entre os educadores. Será por êste modo que o Instituto pensa se deixar conduzir pelo método e espírito científico.

* * *

Temos um imenso campo de estudos, mas o terreno de há muito vem sendo amanhado. Além dos levantamentos estatísticos e das descrições externas das unidades escolares, há procedentes de investigações mais séras e o comêço de elaboração de certas medidas. O primeiro período do INEP foi o de uma instituição de pesquisas sob a experimentada orientação de um dos nossos maiores profissionais de educação, o Dr. Lourenço Filho.

A maior parte, contudo, das práticas educacionais brasileiras está a reclamar maiores estudos. Quase todos os instrumentos de medida estão por ser elaborados.

A tarefa é grande. Mas, para tarefas dessa ordem, os ingredientes são a humildade e a fé. E isto creio que teremos todos os que já trabalham e os que vamos trabalhar no Instituto, pois a humildade advem-nos da precariedade de nosso conhecimento real das coisas do ensino no Brasil e a fé, de nosso amor por êle.

| Scientific Production | Technical & Administrative Production | Literature about the Educator |

| Journal articles | Chapter of book | Speeches | Pamphlets |
| Books | Prefaces and Postfaces | Text in book flaps |
| Unpublished papers | Conference papers | Translations |