TEIXEIRA, Anísio. Mais uma vez convocados. Educação e Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.4, n.10, abr. 1959. p.5-33.

Mais uma vez Convocados
Manifesto ao povo e ao govêrno

Se nem todo o momento será julgado oportuno para dizer a verdade, sobretudo se amarga e dura, não se poderá esperar ocasião para restabelecê-la, que é dever de todos, quando desfigurada, proclamá-la sem rebuços e meias palavras. Mas também sem veemência e brutalidade, que dêsses recursos homens de espírito não seriam capazes de utilizar-se nem necessitam as verdades para serem sentidos ou restauradas na plenitude de sua fôrça. É, pois, num estado de espírito, limpo de paixões e de interêsses, que lançamos êsse novo Manifesto ao povo e ao govêrno. Os que porventura pensam ou pensarem de maneira diferente, hão de reconhecer-nos, por amor ao princípio de liberdade, que são os primeiros a invocar, o direito que nos assiste e temos por um dever indeclinável, de apresentar e submeter ao julgamento público os nossos pontos de vista sôbre problemas da gravidade e complexidade com que se apresentam os da educação. A verdade impõe-nos a consciência dizê-la inteira, com sinceridade radical, serena energia e ardor lúcido, sem trazer, porém, o debate a que fomos convocados, a terreno inconveniente, sem lhe imprimir o caráter polêmico, de antagonismos pessoais, a que, em circunstância alguma, deveriam descer, como infelizmente já desceram, as discussões em matéria de tamanha magnitude. No esfôrço para a reconstituição dos fatos e a inteligência das novas condições de vida, não nos sobressaltam os fantasmas do mêdo e da ameaça que vagueiam nessa cerração, feita de confusões, intencionais ou inconscientes, e que, tocada por ventos fortes de um ou outro ponto do horizonte, se adensa cada vez mais à volta de nós, tentando subtrair-nos aos olhos as necessidades e tendências reais da educação no mundo contemporâneo.

Esta mensagem, decorridos mais de 25 anos da primeira que em 1932 nos sentimos obrigados a transmitir ao público e às suas camadas governantes, marca nova etapa no movimento de reconstrução educacional que se procurou então desencadear, e que agora recebe a solidariedade e o apoio de educadores da nova geração. Outras, muito diversas, são as circunstâncias atuais que naturalmente reflete êste novo documento, menos doutrinário, mais realista e positivo, na linha, porém, do pensamento da mesma corrente de educadores. O que era antes um plano de ação para o futuro, tornou-se hoje matéria já inadiável como programa de realizações práticas, por cuja execução esperamos inutilmente, durante um quarto de século de avanços e recuos, de perplexidades e hesitações. Certamente, nesse largo período, tivemos a fortuna de constatar numerosas iniciativas do maior alcance, muitas delas de responsabilidade direta ou sob a inspiração de alguns dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Mas foram elas ou largos planejamentos, parcialmente executados, ou medidas fragmentárias, em setores isolados da educação ou de influências regionais, sem as conexões indispensáveis com as diversas esferas do aparelhamento escolar, cuja estrutura geral não se modificou, mantendo-se incongruente e desarticulada em suas peças fundamentais. Não negamos nenhum dos princípios por que nos batemos em 1932, e cuja atualidade é ainda tão viva, e mais do que viva, tão palpitante que êsse documento, já velho de mais de 25 anos, se diria pensado e escrito nestes dias. Vendo embora com outros olhos a realidade, múltipla e complexa, – porque ela mudou e profundamente sob vários aspectos, – e continuando a ser homens de nosso tempo, partimos do ponto em que ficamos, não para um grito de guerra que soaria mal na boca de educadores, mas para uma tomada de consciência da realidade atual e uma retomada, franca e decidida, de posição em face dela e em favor, como antes, da educação democrática, da escola democrática e progressista que tem como postulados a liberdade de pensamento e a igualdade de oportunidades para todos.

Um pouco de luz sôbre a educação no país e suas causas

A despeito de iniciativas e empreendimentos de primeira ordem, do govêrno federal e de Estados, que importam em reais progressos no campo educacional, surgem por tôda a parte críticas severas a vários setores da educação no pais, as quais, avolumando–se, tomam as proporções de um clamor geral. A organização do ensino é má, arcaica e, além de antiquada, deficiente a tantos respeitos, todos o afirmam; que a educação pumária, em dois, três ou quatro turnos, se reduziu a pouco mais do que nada, que são em número extremamente reduzido as escolas técnicas e baixou o nível do ensino secundário, ninguém o contesta; que se agravaram desmedidamente os problemas de edificações e instalações escolares, é outra afirmação que caiu no domínio comum e já não precisa, por sua evidência, nem de pesquisas para pô-la à prova dos fatos nem do refôrço de pareceres de autoridades na matéria. O professorado de ensino primário (e mesmo o do gráu médio), além de, geralmente, mal preparado, quer sob o aspecto cultural quer do ponto de vista pedagógico, é constituído, na sua maioria, por leigos (2/3 ou 3/4 conforme os Estados); não tem salário condizente com a alta responsabilidade de seu papel social nem dispõe de quaisquer meios para a revisão periódica de seus conhecimentos. Com a proliferação desordenada, sem planejamento e sem critério algum (a não ser o eleitoral), de escolas superiores e, particularmente, de Faculdades de Filosofia, já se podem calcular as ameaças que pesam sôbre êsse nível de ensino, outrora com as poucas escolas tradicionais que o constituiam, e apesar de suas deficiências, um dos raros motivos de desvenecimento da educação nacional. Se se considerar ainda que ultrapassa de 50% da população geral o número de analfabetos no país e que, de uma população em idade escolar (isto é, de 7 a 14 anos) de 12 milhões de crianças, não frequentam escola senão menos da metade ou, mais precisamente, 5.775.246, nada será preciso acrescentar, pois já se terá, com isso, um quadro sombrio demais para lhe carregarmos as côres e desolador demais para nos determos na indagação melancólica de outros fatos e detalhes.

Mas fabricar com todos êsses ingredientes opinião contra a educação pública, como se ela, a vitima, fosse responsável pelo abandono a que a relegaram os governos, é realmente de pasmar. Pois as causas da lamentável situação a que se degradou, por um processo de desintegração de que sòmente agora se dão conta os seus detratores, saltam aos olhos de qualquer cidadão esclarecido e disposto a refletir um pouco sôbre os fatos. Na impossibilidade de alongar-nos na análise de cada uma delas, bastará apontá-las. O rápido crescimento demográfico, nestes últimos trinta anos; o processo de industrialização e urbanização que se desenvolve num ritmo e com intensidade variáveis de uma para outra região; as mudanças econômicas e sócio-culturais que se produziram, em conseqüência, são alguns dos fatôres que determinaram êsse desequilíbrio e desajustamento entre o sistema de educação e as modificações surgidas na estrutura demográfica e industrial do país. Processou-se o crescimento espontâneo da educação, pela própria fôrça das cousas, e tanto mais desordenadamente quanto, em vez de se ampliar, se reduziu a ação coordenadora do poder público, federal e estadual, que não se dispuzeram também a dominar e a canalizar as fôrças sociais e políticas libertadas pelas mudanças que se operaram na estrutura econômica e industrial. A extraordinária expansão quantitativa, provocando um rebaixamento de nível ou qualidade do ensino de todos os graus; a extrema deficiência de recursos aplicados à educação (e, como já escreveu um de nós, "não há educação barata como não há guerra barata"); o excesso de centralização; o desinterêsse ou, conforme os casos, a intervenção tantas vêzes perturbadora da política; a falta de espírito público, o diletantismo e a improvisação conjugaram-se, nesse complexo de fatôres, para criarem a situação a que resvalou a educação pública no país. Freqüentemente, também no plano educacional, "os que não deviam ter a incumbência de nada (para lembrar a frase de Sieyès), encarregaram-se obstinadamente de tudo"; e os políticos, em vez de "marcharem à frente dos acontecimentos, como um general à frente de suas tropas", conforme aconselhava Demóstenes; em vez de "determinarem antecipadamente as medidas capazes de provocar o acontecimento", esperaram, infelizmente, "pelos acontecimentos para assentarem as medidas a serem adotadas".

Não foi, portanto, o sistema de ensino público que falhou, mas os que deviam prever-lhe a expansão, aumentar-lhe o número de escolas na medida das necessidades e segundo planos racionais, prover às suas instalações, preparar-lhe cada vez mais solidamente o professorado e aparelhá-lo dos recursos indispensáveis ao desenvolvimento de suas múltiplas atividades. As aperturas financeiras em que sempre se debateu o conjunto educacional, na variedade de suas instituições, não podiam deixar de poderosamente contribuir para embaraçar, retardar senão tolher os seus progressos. Mas êste não é mais do que um dos graves aspectos da questão. Problemas como êsses, eminentemente técnicos, enredam-se, por um lado, no plano administrativo, de dificuldades inextricáveis para quem não possa aspirar aos foros de cousa alguma em matéria de ensino e não tenha adquirido, no estudo e na prática diuturna, conhecimentos especiais e experiência na administração. Não é possível, por outro lado, pretender resolvê-los ou pô-los em via de solução enquanto não se difundir na opinião pública e nas assembléias políticas ou não se lhes incutir na maioria a consciência da importância primordial, da complexidade dos problemas de educação e da irreparabilidade de suas conseqüências. Para responder ao terrível desafio que nos lançam as sociedades modernas, numa fase crítica de reconstrução e de mudanças radicais, o de que necessitaria o país, antes de tudo, é de governos e de câmaras legislativas que se preocupassem em maior medida com a política a longo prazo e cada vez menos com interêsses partidários e locais. Não se trata, pois, agora de apurar responsabilidades que afinal se repartem, em graus diferentes, por todos os setores da vida social, mas de fazer uma oração perante o povo e, particularmente, perante a mocidade, – uma oração em que o mea culpa preceda o sursum corda, o ato de contrição ao ato de esperança.

Deveres para com as novas gerações

Precisamos convencer-nos, uma vez por tôdas, que o futuro do Brasil não está na sobra dos conlúios nem no tumulto das assembléias, mas no milagre eterno da sua juventude, nas mãos de nossos filhos. Êle brilha, sobretudo, na profundeza de sua alma, na claridade de seu espírito, no ímpeto de seu idealismo, na chama de seu olhar, – a aurora dos tempos modernos. Ela representa, para cada nação, e em cada geração que surge, uma fonte inesgotável de energias, das quais a maior parte inexploradas, entre nós, e as que são trabalhadas pelo esfôrço do homem, criminosamente desperdiçadas. Não ignoramos a que ponto a juventude atual, em cuja educação se deveria concentrar o máximo de nossos esforços, sem deixar fora das influências educativas nenhuma fração dela, se deixa seduzir pela idéia de liberdade, pela consciência do seu direito à educação e pelo sentimento de revolta contra a falta de escolas e o abandono a que se relegaram as existentes, – escolas não para todos mas para privilegiados na massa enorme da população em idade de frequentá-las. Não é como um favor, mas como um direito que ela exige a educação com altivez e tantas vêzes com energia e veemência. Nenhum sacrifício, no entanto, se tem feito pela nossa mocidade e nenhum govêrno ainda elevou ao primeiro plano de suas cogitações êsse problema fundamental. Que o país pelos seus órgãos competentes não tenha cumprido os seus deveres para com as novas gerações, sistemàticamente esquecidas e entregues, em grande parte, à sua própria sorte, não há sombra de dúvida. Os fatos aí estão para atestá-lo com uma evidência agressiva. Nós mesmos, os que mais por elas temos lutado e exaustivamente temos cuidado dessa questão em vidas inteiras dedicadas ao seu estudo e às suas soluções, não temos escapado, da parte dos que só agora despertaram, estremunhados, para discuti-Ia, às suas críticas e acusações. Cremos, porém, que não temos traído, em momento algum, à nossa missão e não nos cabe a mínima responsabilidade no estado, desolador e inquietante, a que chegou a educação no Brasil. Dos educadores que assinaram o Manifesto de 32 e êste também subscrevem, apoiados nos da nova geração, nenhum, de fato, teve nas mãos, com autoridade ministerial, o poder e os instrumentos para uma ação de larga envergadura e, quando dêles um ou outro dispôs por períodos curtos e para uma obra de âmbito nacional ou circunscrita a êsse ou aquêle Estado, foi sem desfalecimentos e sob a inspiração dos mesmos ideais que se empenharam em reformas profundas e em realizações que ficaram. No entanto, não desejamos de forma alguma, também, nós, esquivar-nos à confissão pública de culpa, onde porventura a tenhamos tido, por ato, negligência ou omissão.

O Manifesto de 32 e o projeto de Diretrizes e Bases

É nesse mesmo Manifesto, tantas vêzes incompreendido e mal interpretado, que foi lançada a idéia que se procura agora concretizar no projeto de lei de Diretrizes e Bases da educação nacional, em discussão na Câmara de Deputados. Vale a pena de desenterrar os fatos mais significativos dessa pequena história que já tem pouco mais de um quarto de século e é afinal um dos episódios do próprio movimento de reconstrução educacional de que tiveram alguns de nós a iniciativa e por que vimos lutando sem descanso, entre incompreensões e hostilidades. Mas, antes de irmos aos fatos, é do maior interêsse lembrar um dos trechos dêsse documento, referentes à matéria. "A organização da educação sôbre a base e os princípios fixados pelo Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas e sócio-culturais do país e a necessidade de adaptação da escola aos interêsses e às exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe diversidade. Por menos que pareça à primeira vista, não é, pois, na centralização mas na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora que temos de buscar o meio de levar a cabo, em tôda a república, uma obra metódica e coordenada, de acôrdo com um plano comum, de grande eficácia, tanto em intensidade quanto em extensão. Ao Distrito Federal e aos Estados, nos seus respectivos territórios, é que deve competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios gerais fixados na nova Constituição que deve conter, com a definição de atribuições e deveres, os fundamentos da educação nacional. Ao govêrno central, pelo Ministério da Educação, caberá vigiar sôbre a obediência a êsses princípios, fazendo seguir as orientações e os rumos gerais estabelecidos na Carta Constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde haja deficiência de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural dos Estados e intensificando por tôdas as formas as suas relações espirituais". O texto é claro e positivo, e é dêle, como do programa da política educacional extraído do Manifesto, que provieram os textos respectivos de duas Constituições, na elaboração dos quais participaram alguns de seus signatários.

Em defesa da idéia sustentada nêsse documento e mais claramente definida no número I, letra b do programa educional que dêle se extraiu, sairam a campo os educadores e escritores que o subscreveram. Na 5ª Conferência Nacional de Educação que se reuniu em Niterói em janeiro de 1933, retomamos a questão nos têrmos em que a colocamos no Manifesto. Foi dos debates travados sôbre o assunto em comissão especial e, a seguir, no plenário, que saiu o primeiro anteprojeto, traçado em suas grandes linhas, das diretrizes e bases da educação, de acôrdo com o referido Manifesto. A Constituição de 1934 acolhera a idéia num dispositivo constitucional, depois de entendimentos com um grupo de Deputados à Assembléia Constituinte, promovidos pela Associação Brasileira de Educação que, teve parte realmente importante nesse trabalho. A Carta Constitucional outorgada em 10 de novembro de 1937 o suprimiu, em conformidade com as idéias centralizadoras que voltaram a dominar, ao ser instaurado no país o Estado autoritário. Restaurado o regime democrático, a Constituição de 1946 restabeleceu a disposição que consagra o princípio de descentralização e manda proceder, por lei complementar, à fixação das diretrizes e bases da educação nacional. No governo do Marechal Eurico Dutra, o Ministro Clemente Mariani constituiu em 1947 uma Comissão de 15 professôres, por êle escolhidos e designados, para elaborarem o projeto de lei que, aprovado pelo Ministro que de perto acompanhou êsses trabalhos com alta compreensão dos problemas educacionais e uma firmeza e dedicação exemplares, e encaminhado ao Presidente da República, foi por êste submetido em 1947 à apreciação da Câmara de Deputados. Está claro que, decorrido mais de um decênio de sua elaboração, o projeto primitivo deveria ser reexaminado, – e efetivamente o foi com alto critério pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara, para o melhorar e ajustá-lo às condições atuais. As modificações que comportava, foram introduzidas sem lhe desfigurarem a estrutura e, particularmente, – o que prevalece a tudo, – sem o desviarem dos dispositivos constitucionais e dos princípios que os inspiram.

A escola pública em acusação

Quando, porém, o Congresso se dispunha a iniciar a discussão dêsse projeto de lei que ali passara por um dilatado período de hibernação, desencadeia-se inesperadamente uma ofensiva contra a escola pública, em nome da liberdade de ensino. Não precisamos olhar de perto demais essa estranha concepção de liberdade, defendida em documento público que tem tido ampla divulgação. Receiamos muito que ela não suporte bem a análise, em tôdas as suas implicações econômicas, religiosas e políticas. Todavia, cremos entender bem o que querem dizer; e um manifesto de educadores não poderá esquivar-se a atacar de frente as questões que envolve e é preciso distinguir e destacar, para esclarecer a nossa posição, ainda que nos custe essa sinceridade dissabores e incompreensões. A luta que se abriu, em nosso país, entre os partidários da escola pública e os da escola particular, é, no fundo, a mesma que se travou e recrudesce ora nesse, ora naquele país, entre a escola religiosa (ou o ensino confessional), de um lado, e a escola leiga (ou o ensino leigo), de outro lado. Êsse, o aspecto religioso que temos o intuito de apenas apontar como um fato histórico que está nas origens da questão, e sem a mais leve sombra de desrespeito aos sentimentos que somos os primeiros a reverenciar, da maioria do povo brasileiro. Ela disfarça-se com freqüência, quando não se apresenta abertamente, sob o aspecto de conflito entre a escola livre (digamos francamente, a educação confessional) e a escola pública ou, para sermos mais claros, o ensino leigo, a cujo desenvolvimento sempre esteve històricamente ligado o progresso da educação pública. Mas, continuando a decomposição do problema em seus elementos principais, implica essa campanha contra a escola pública, se não é um dos fatores que a desencadearam um aspecto econômico: é praticamente uma larga ofensiva para obter maiores recursos do Estado, do qual se reclama, não aumentar cada vez mais os meios de que necessita o ensino público, mas dessangrá-lo para sustentar, com o esgotamento das escolas que mantem, as de iniciativa privada. O grave documento a que acima nos referimos, "apresenta, de fato, como suas linhas mestras (nas palavras, insuspeitas e autorizadas, d’"0 Estado de S. Paulo") êstes três princípíos fundamentais: 1) o ensino será ministrado sobretudo pelas entidades privadas e, supletivamente, pelo poder público; 2) o ensino particular não será fiscalizado pelo Estado; 3) o Estado subvencionará as escolas privadas, a fim de que estas possam igualar os vencimentos dos seus professôres aos dos professôres oficiais. É, como se vê (conclui o grande diário), a instituição no Brasil, do reinado do ensino livre: livre da fiscalização do Estado, mas remunerado pelos cofres públicos" ... (1)

O aspecto político de que se procura enredá-la, é outro não menos importante dessa questão, complexa demais para não termos o cuidado de a desemaranhar, restabelecendo-a em seus dados históricos e suas possíveis implicações atuais. A direita apoia, em geral, a escola livre, e a esquerda, a escola pública, e, por ter sido freqüentemente assim, a tendência é de deslocar uma questão que se devia pôr em têrmos de interêsse geral e acima de partidos, para o terreno de uma luta religiosa, devido às suas implicações confessionais, – o que é preciso evitar por tôdas as formas, – ou de uma luta entre grupos políticos, igualmente prejudicial ao debate do problema que temos o dever de examinar em face da Constituição Federal e conforme os princípios que regem as instituições democráticas. Pois, em primeiro lugar já por várias vêzes direita e esquerda se aliaram na defesa da escola pública e, em segundo lugar, não falamos em nome de partidos, mas sob a inspiração e em defesa daqueles princípios. Em matéria religiosa, somos pela liberdade de culto e de crenças e erguemo-nos, com o Père J. Henri Didon, dominicano e notável orador sacro, contra todos aqueles que "querem fazer da religião um instrumento da política (instrurnentum regni)" e contra todos aqueles que "querem fazer da política um instrumento da religião". Eu tenho a observar (escreveu o grande dominicano) "que nada na fé católica, nada na autoridade eclesiástica se opõe a uma opinião liberal, republicana, democrática. Chegou a hora talvez em que o Catolicismo deve demonstrar por fatos públicos que sua larga idéia de universalidade não é uma palavra vã e que há nêle lugar para tôdas as opiniões políticas desde que elas respeitem a verdade, a justiça e a virtude." (2) Ora, somos todos os que assinamos êsse Manifesto, educadores republicanos e democráticos, fiéis aos mais altos valores da tradição liberal. E, quando se trata de problemas como os da educação, entendemos que essa é "uma das questões em cujo terreno (as palavras são de Rui Barbosa) são intrusas as paixões políticas, questão a que devemos todos concorrer com a consciência limpa de antagonismos pessoais e de que se deve banir o gênio da agitação, como mau companheiro da ciência e, nestes domínios, perigoso inimigo da verdade". (3)

Violentas reações a essa política educacional em outros países

Essa política educacional, armada em nome de uma "liberdade total" no ensino, já foi proposta na Itália, em 1947, e, ainda êste ano, voltou a agitar os meios escolares na França, em que os partidários da escola livre, no grande Congresso que se reuniu em Caen, reabriram a questão. No documento que aqui pretendeu consagrá-la, não há, pois, nenhuma invenção nova, nenhuma nova idéia. O programa que apresenta, nada tem de revolucionário. É velho e revelho no estrangeiro e em nosso próprio país. Em 1947, na Itália, quando se discutia o projeto da Constituição (lembrava "0 Estado de S. Paulo" em uma de suas excelentes notas, já citada), as bancadas mais próximas da Santa Sé propuseram que à nova Carta se incorporasse o pacto de Latrão, convencionado em 1929 entre o Vaticano e Mussolini. No tocante ao ensino, isto equivalia a uma política educacional idêntica à que foi sugerida para o Brasil, – ensino livre não fiscalizado, mas subvencionado pela Nação. Uma onda de protestos ergueu-se em todo o país, encabeçada pelas mais altas figuras da intelectualidade peninsular. Benedetto Croce que foi dos mais ativos no combate, escreveu: "será a nossa renúncia às grandes conquistas do século dezenove (...). A despeito do clamor dos intelectuais, a proposta passou. Mas a vitória foi aparente, e não real. A mesma Constituição que no art. 7º adotou o pacto de Latrão, inscreveu depois, em dois tópicos do art. 33, dispositivos que limitam as prescrições daquele pacto. Um dêles assegura "às entidades e aos particulares" o direito de manter escolas e institutos de educação, mas "sem ônus para o Estado", e o outro estabelece o exame de Estado para a admissão às várias ordens e graus de ensino, para a conclusão dos cursos e para a habilitação ao exercício profissional. A Itália, portanto, não parece ter renunciado às conquistas do século XIX, tanto que Guido Gonella, Ministro da Instrução Pública, em 1950, pôde escrever, a respeito das relações entre o Estado e a educação, que das três posições admissíveis, – a de monopólio, a de liberdade total e a de liberdade disciplinada, fôra escolhida esta última: "na solução que poderemos chamar orgânica, isto é, de liberdade disciplinada pelo Estado, as entidades e os particulares têm o direito de criar escolas, mas dentro do quadro das normas gerais fixadas pelo Estado, ao qual compete o poder de intervir, em defesa do bem comum, na atribuição dos títulos escolares legalmente válidos para a vida social. A nossa Constituição (concluiu o Ministro), – com o instituto da equivalência e do exame do Estado, – prevê exatamente essa terceira solução".

A batalha que se travou na Itália há pouco mais de dez anos entre os partidários da liberdade total e os da liberdade disciplinada, entre os do ensino livre e os do ensino público, com a vitória afinal dêstes, já se anunciou na França com um ímpeto inicial que prometia graves conflitos e parece ter-se esmorecido. "0 govêrno sentiu perfeitamente o perigo" diante das fôrças contrárias que ràpidamente se mobilizaram e se dispunham para a luta. "Os partidários da escola livre (observa Gilles Lapouge, em nota para "0 Estado de S. Paulo", e o confirma o semanário "L'Express", de Paris) tinham a impressão de que o espírito laico estava regredindo na França e, por isso, não seria muito grande a resistência dos partidários da escola pública. Foi êsse, sem dúvida, o seu êrro, pois, imediatamente o outro campo mobilizou, como por encanto, suas fôrças e lançou no país uma contra-ofensiva extremamente severa". Ela representa uma violenta reação contra a perigosa tentativa de se renegar, na França, ainda que temporàriamente, uma dessas "grandes conquistas do século XIX", a que se referia Benedetto Croce, e que é a escola pública. Se se considerarem a campanha que teve de sustentar Jules Ferry quando, Ministro da Instrução Pública de 1879 a 1882, empreendeu a reforma de legislação de ensino, e a agitação considerável que levantaram então suas propostas, provocando o choque entre os partidários do ensino religioso e os defensores da instrução leiga, poder-se-á avaliar, em tôda a sua extensão e gravidade, a oposição que já suscitou, com a recrudescência da crise que traz no bôjo, a nova ofensiva contra a escola pública nesse país. Pois, há perto de oitenta anos, por iniciativa de Jules Ferry, com quatro projetos de lei, em que se encontravam ali disposições extremamente duras, é que se tornaram as funções pedagógicas independentes do exercício do culto, se estabeleceram a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino primário e se assegurou a restituição da colação dos graus do Estado.

As duas experiências brasileiras de "liberdade de ensino"

Também entre nós o mesmo regime de liberdade total já foi não só proposto mas experimentado e com tal insucesso que o govêrno teve de recuar logo do caminho em que se aventurou, – o que veio mostrar mais uma vez como são falíveis as soluções extremas. A "novidade" inventara-se então para uso do Brasil e em condições muito diferentes daquelas em que agora se repete: sociedade mais estável, fundada na economia rural, de organização patrimonialista e pouco diferenciada nos seus quadros, – naquela época; sociedade, hoje, baseada na economia industrial, de estrutura complexa, cada vez mais diversificada sob a ação dinâmica do processo de industrialização e, urbanização. Aparelhamento escolar, ainda muito simples e medíocre, então, constituído de dois sistemas superpostos e desarticulados: o popular (ensino primário, normal e o de ofícios), cujas bases apenas se começava a lançar; e o de formação de elites, pelas escolas secundárias e superiores, de número restrito; conjunto educacional de estrutura de todos os graus e tipos e em face crítica de crescimento e reorganização. Pois bem, "as duas experiências brasileiras de "liberdade de ensino" (observa com tôda razão "0 Estado de S. Paulo" em nota já por duas vêzes citada) foram profundamente nefastas para a educação da juventude e só contribuíram para desmoralizar ainda mais o ensino do país. Cada uma delas teve fisionomia particular. A de 1879, do Ministro Leôncio de Carvalho abusou demagògicamente da expressão "ensino livre", a fim de captar o apoio da mocidade acadêmica que naquela época constituía uma verdadeira potência. O que vigorou, da decantada reforma, foi a dispensada, dada aos alunos, de assistir às aulas, e a proibição, imposta aos professares, de chamar os alunos à lição. Ficaram desertas as Academias; ninguém mais estudou; formaram-se, às dezenas, bacharéis e médicos "elétricos", até que a própria Câmara Federal, em 1895, impressionada com a iminência do "naufrágio do ensino superior brasileiro", reagisse para repor as cousas nos devidos lugares. A outra experiência ocorreu no quatriênio Hermes da Fonseca mediante a reforma Rivadávia que arrastou o Estado (como pretende o substitutivo de agora) para o caminho da abstenção e que (também como o substitutivo) instituiu a liberdade sem contrôle e a ampla autonomia dos institutos oficiais. Foi uma catástrofe sob todos os aspectos, inclusive o moral, como o demonstrou, em corajoso relatório, o Ministro Carlos Maximiliano. Tudo isso (conclui "0 Estado de S. Paulo") nos leva a encarar com grande apreensão a ameaça dessa terceira experiência, muito mais perigosa que as anteriores, porque envolve também os combatidos recursos financeiros do país".

Em face da Constituição, já não há direito de escolha

Supondo, pois, gravitar para a liberdade, os projetos que querem instaurá-la sem limitações, gravitam mas é para a desordem e a anarquia na educação. Pretendendo subtrair ao Estado os deveres que a Constituição lhe atribuiu, e que alcançam é largar o ensino a tôda espécie de influências de grupos de pressão, divergentes e contraditórias. Mas a verdade é que entre as três posições que se podem tomar em face do problema, – a do monopólio do Estado, a de liberdade total e a de liberdade disciplinada, não nos resta mais o direito de escolha: a Constituição Federal já a adotou, em têrmos positivos. O documento a que aludimos, inverte totalmente êsses têrmos; o que é principal (ensino público) na Carta Constitucional, passa a ser, nêle, supletivo, e o que supre, completa ou substitui, isto é, a iniciativa privada, toma o lugar às funções ou ao papel que ao Estado atribuiu. Senão vejamos os dispositivos constitucionais e demos a palavra a quem tem autoridade para proferi-la, quando se trata de questão de direito, – a um jurista, seja, por exemplo, o dr. Jayme Junqueira Ayres que os aponta com admirável lucidez em parecer sôbre a matéria. "Um dos princípios firmemente assentes na Constituição Brasileira é o de que "o ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos poderes públicos, e é livre a iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem (Art. 167)". Não caberá aqui (pondera o ilustre jurista) relembrar que êste princípio é uma conquista da idade moderna e contemporânea: corre ao poder público o dever de ministrar a educação popular. O que sobretudo cumpre e importa, é observá-lo mais do que louvá-lo. E cumpre, por igual, observar o da liberdade à iniciativa particular, de ministrá-Ia, respeitadas as leis respectivas". E acrescenta, em outra passagem, com sua reconhecida autoridade: "Muito importa, pois, o que está escrito no art. 171: "Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino". Com o dispositivo acima ou sem êle, tal poder seria igualmente dos Estados. Mas o fito da Constituição, no caso, não foi só o de reconhecer um direito, mas sim de incumbir um dever. Daí, a ênfase. É não só franquia, mas ônus ou obrigação de cada Estado organizar o seu sistema de ensino. Cada Estado deve ter seu sistema local, e dêle não pode demitir-se. E nenhuma ênfase se dirá mais justa e necessária do que esta que proclama a indemissibilidade dos Estados de seu dever de "ministrar" ensino ao povo brasileiro. Tão decididamente interessada está a Constituição em que os Estados mantenham e desenvolvam seus sistemas como principais que ao sistema particular da União deu o caráter supletivo, destinado a suprir as deficiências locais, e obrigou a União a cooperar pecuniàriamente para o desenvolvimento daqueles sistemas estaduais". (4)

A educação, – monopólio do Estado?

A vista dos termos da Constituição de 1946 e do projeto n.º 2.222-B/57, que fixa as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, quem poderá afirmar a sério que o que consagrou aquela e êste estabeleceu, tenha importado ou importe em erigir em monopólio do Estado a educação nacional? O parecer em que se procurou discriminar o que é constitucional do que não o é, e se recorda que "corre ao poder público o dever de ministrar a educação" e que a escola pública é uma conquista da idade moderna, poderá porventura ser suspeitado, quando interpreta a rigor os dispositivos constitucionais, de pretender transferir para o Estado a exclusividade monopolisante da educação? Onde a prova em defesa da tese reacionária de que o Estado coage os pais e a liberdade de pensamento e de escolha das instituições em que prefiram educar os filhos, quando e só porque fornece o ensino público? E, quanto a nós, quem nos ouviu advogar a causa da educação como privilégio exclusivo do Estado e, portanto, a supressão às entidades privadas da liberdade de abrir escolas de quaisquer tipos e graus, respeitadas as leis que regulam e tem, no interêsse comum, de regular a matéria? Quem nos encontrou, em alguma trincheira, pugnando pelo monopólio do Estado ou nos pode acusar de, em qualquer escrito ou de viva voz, ter procurado impor ou mesmo indicar à mocidade escolar ideologia dêsse ou daquele partido, como política estatal da educação? Porque não nos dispomos a fanfarrear nas festas do ensino livre, nessa orgia de tentativas e erros a que resvalaria a educação no país, não se segue nem se há de concluir que pregamos o monopólio do Estado. Pela liberdade disciplinada, é que somos. Monopólio só existiria quando a educação funcionasse como instrumento político e ideológico do Estado, como um instrumento de dominação. Que não existe êle entre nós, estão aí por prova a legislação do ensino que abre à iniciativa privada amplas possibilidades de exploração de quaisquer domínios da atividade educacional, e o número crescente de escolas particulares de todos os graus e tipos que por aí se fundaram e funcionam, não sob o ôlho inquisidor e implacável do Estado, mas com uma indulgência excessiva dos poderes públicos em face de deficiências de tôda ordem e de ambições de lucro, a que, salvo não poucas e honrosas excepções, devem tantas instituições privadas de ensino secundário a pecha de "balcões de comércio", como as batizou Fernando de Magalhães há mais de vinte e cinco anos, numa crítica severa de nosso sistema educacional.

Se, na esfera do ensino fundamental comum, certamente menos lucrativo, dos 5.775.246 alunos matriculados, não frequentam escolas particulares senão 720.746 (e, por isso mesmo, pela preponderância da escola pública, o que temos de melhor, apesar de tôdas as suas deficiências, é o ensino primário), atinge a 80% o ensino secundário entregue a particulares, – e daí exatamente decorre tôda a grave crise em que se debate êsse grau de ensino no país. Onde, pois, como se vê, cumpriu o Estado com mais zêlo os deveres que lhe impôs a Constituição, progrediu o ensino, – é a parte referente à educação fundamental e superior; e onde dêle se descuidou, descarregando suas obrigações às costas de entidades privadas, como no caso do ensino secundário, é o que de pior se exertou no sistema geral de educação. O dia em que êsse grau de ensino (o "secundário", que passou a sê-lo no sentido pejorativo da palavra) tiver dos poderes públicos a atenção que requer, e se inverter, em consequência, pela expansão do ensino público, a referida porcentagem, alcançando o Estado mais 40 ou 60% dos 80 que cabem agora a instituições particulares, o ensino de nível médio, na diversidade de seus tipos de escolas (sobretudo secundárias e normais), tornará o impulso que adquiriu o ensino primário, com tôdas as suas deficiências de escolas e instalações, e entrará numa fase de reconstrução e de progressos reais. A educação pública, por tôda a parte, está sujeita a crises periódicas, mais ou menos graves, e a bruscos e passageiros eclipses. Ela atravessa, entre nós, agora, por causas conhecidas e outras por investigar, uma dessas fases atribuladas. O que se propõe, porém, para superar a crise que a aflige e tende a agravar-se, segundo todos os indícios, não são providências para resolvê-la, mas uma liberdade sem praias em que acabará por submergir tôda a organização de ensino público que, desde os começos da república, se vem lentamente construindo e reconstruindo, peça por peça, através de dificuldades imensas.

Pela educação liberal e democrática

Essa nova investida que irrompeu contra a interferência do Estado em matéria de ensino, e com ares de reação contra um suposto monopólio, parece ignorar que a educação pública, – grande conquista da democracia liberal no século XIX, já adquiriu tal prestígio e solidez em todos os países e, entre nós mesmos, com mais de um século de tradição, que, se fôr desmantelada, será para ressurgir mais cedo mais tarde, com maior fôrça de expansão. De fato, (permitam-nos recorrer, ainda uma vez, à mesma e importante nota de "0 Estado de S. Paulo"), "foi no decurso do referido século que o Estado moderno veio chamando a si, progressivamente, a iniciativa de criar e manter escolas de todos os graus e, principalmente, de estender de ano em ano a rêde escolar primária, destinada a formar, ainda que de modo incipiente, o cidadão das comunidades nacionais, – comunidades que se expandiam e se diversificavam em todos os sentidos e que, por isso mesmo, precisavam apoiar-se sôbre uma base afetiva e cultural comum, se quisessem viver em paz e governar-se democràticamente". Tôda a história do ensino nos tempos modernos é a história de sua inversão em serviço público. É que a educação pública é a única que se compadece com o espírito e as instituições democráticas, cujos progressos acompanha e reflete, e que ela concorre, por sua vez, para fortalecer e alargar com seu próprio desenvolvimento. Não há outro meio de subtrair a educação aos antagonismos e conflitos de grupos de pressão que tendem a arrastá-la dessa para aquela ideologia, dêsses para aqueles interêsses, que êles representam. A escola pública, cujas portas por ser escola gratuita, se franqueiam a todos sem distinção de classes, de situações, de raças e de crenças, é, por definição, contrária e a única que está em condições de se subtrair a imposições de qualquer pensamento sectário, político ou religioso. A democratização progressiva de nossa sociedade (e com que dificuldades se processa ao longo da história republicana) exige, pois, não a abolição, – o que seria um desatino, – mas o aperfeiçoamento e a transformação constante de nosso sistema de ensino público. A escola e, particularmente, a escola pública estende e tende a estender cada vez mais, queiram ou não queiram, o seu campo de ação na medida em que a família retrai o seu, por suas novas condições de vida e por ser o ensino cada vez mais especializado, e em que a sociedade se diferencia e se complica, na sua estrutura, com o desenvolvimento do processo de urbanização e industrialização.

Mas a educação pública por que nos batemos, ontem como hoje, é a educação fundada em princípios e sob a inspiração de ideais democráticos. A idéia da educação pública, – conquista irreversível das sociedades modernas; a de uma educação liberal e democrática, e a de educação para o trabalho e o desenvovimento econômico e, portanto, para o progresso das ciências e da técnica que residem à base da civilização industrial, são três teses fundamentais defendidas por educadores progressistas do mundo inteiro. A educação tornou-se uma função ou caiu "sob a ingerência e direção do público", pela extensão, gravidade de suas consequências e sua qualidade de irreparáveis; e ao Estado que tem um papel social de assimilação, que estabelece "a solidariedade entre as diversas partes da comunidade nacional, as associa a uma vida comum, solda a dependência entre as gerações", nas palavras ele Félix Pécaut, compete, promovendo a educação pública, promover a convergência e a harmonia dos esforços humanos lá onde aqueles que olham de baixo não vêm senão luta e competição de grupos. A escola pública concorre para desenvolver a consciência nacional: ela é um dos mais poderosos fatores de assimilação como também de desenvolvimento das instituições democráticas. Entendemos, por isso, que a educação deve ser universal, isto é, tem de ser organizada e ampliada de maneira que seja possível ministrá-la a todos sem distinções de qualquer ordem; obrigatória e gratuita em todos os graus; integral, no sentido de que, destinando-se a contribuir para a formação da personalidade da criança, do adolescente e do jovem, deve assegurar a todos o maior desenvolvimento de suas capacidades físicas, morais, intelectuais e artísticas. Fundada no espírito de liberdade e no respeito da pessoa humana, procurará por tôdas as formas criar na escola as condições de uma disciplina consciente, despertar e fortalecer o amor à pátria, o sentimento democrático, a consciência de responsabilidade profissional e cívica, a amizade e, a união entre os povos. A formação de homens harmoniosamente desenvolvidos, que sejam de seu país e de seu tempo, capazes e empreendedores, aptos a servir no campo que escolherem, das atividades humanas, será, num vasto plano de educação democrática, o cuidado comum, metódico e pertinaz, da família, da escola e da sociedade, todo o conjunto de suas instituições.

Educação para o trabalho e o desenvolvimento econômico

Não ignoramos que a nação é uma "realidade moral"; mas, se a educação não pode, por isso mesmo, desconhecer nenhum dos aspectos morais, espirituais e religiosos dessa realidade, rica de tradições e lembranças históricas, ela deve igualmente fazer apêlo a tôdas as fôrças criadoras para pô-las a serviço dos interêsses coletivos do povo e da cultura nacional. A educação pública tem de ser, pois, reestruturada para contribuir também, como lhe compete, para o progresso científico e técnico, para o trabalho produtivo e o desenvolvimento econômico. A reivindicação universal da melhoria das condições de vida, com tôdas as suas implicações econômicas, sociais e políticas, não pode permanecer insensível ou mais ou menos indiferentes a educação de todos os graus. Se nesse ou naquele setor, como o ensino de grau médio e, especialmente, o técnico, a precária situação em que ainda se encontra a educação, está ligada ao estágio de desenvolvimento econômico e industrial, ou, por outras palavras, se dêste dependem os seus progressos, é legítimo indagar em que sentido e medida a educação, em geral, e em particular, a preparação científica e técnica pode ou deve concorrer para a emancipação econômica do país. Os povos vêm demonstrando que "o seu poder e sua riqueza dependem cada vez mais de sua preparação para alcançá-los ". Não há um que desconheça e não proclame a importância e a eficácia do papel da educação, restaurada em bases novas, na revisão de valores e de mentalidade, na criação de novos estilos de vida, como na participação do próprio progresso material. Se insistimos neste ponto e lhe damos maior ênfase, não é sòmente pelas conclusões a que nos leva a análise da civilização atual e de suas condições especiais, como também por ser êsse, exatamente, em nosso sistema de ensino, um dos aspectos mais descurados. A educação de todos os níveis deve, pois, como já se indicou em congressos internacionais, "tornar a mocidade consciente de que o trabalho é a fonte de tôdas as conquistas materiais e culturais de tôda a sociedade humana; incutir-lhe o respeito e a estima para com o trabalho e o trabalhador e ensiná-la a utilizar de maneira ativa, para o bem estar do povo, as realizações da ciência e da técnica", que, entre nós, começaram apenas a ser socialmente consideradas como de importância capital.

A revolução industrial, de base científica e tecnológica que se expande por tôda a parte, em graus variáveis de intensidade; as reivindicações econômicas ou a ascensão progressiva das massas e a luta para melhorar suas condições de vida (pois a riqueza está evidentemente mal distribuída e, como tantas vêzes já se lembrou, "não devemos pensar que podemos impunemente continuar a enriquecer enquanto o resto da população empobrece"); e, finalmente, a expansão do nacionalismo pelo mundo inteiro, são fatos sumamente importantes a que não nos arriscamos a fechar os olhos, e cujas repercussões, no plano educacional, se vão tornando cada vez mais largas e profundas. O nosso aparelhamento educacional terá também de submeter-se a essas influências para ajustar-se às novas condições, e só o Estado, pela amplitude de, seus recursos e pela larguesa de seu âmbito de ação, poderá fazer frente a tais problemas e dar-lhe soluções adequadas, instituindo, mantendo e ampliando cada vez mais o sistema de ensino público e estimulando, por todos os meios, as iniciativas de entidades e particulares. A inteligência racional e o espírito e métodos científicos, que não obtiveram os seus primeiros e grandes triunfos senão no século XIX, denunciam a sua difusão, por igual, nas sociedades capitalistas e socialistas, pela aplicação crescente das novas técnicas em todos os domínios, pelas crises e rupturas de organização econômica e social que provocaram, modificando profundamente os modos de vida e os estilos de pensamento. Além de intelectuais e estudiosos, cada vez mais competentes espíritos criadores, nos domínios da filosofia, das ciências, das letras e das artes, "temos que preparar (observou com razão um de nós) a grande massa de jovens para as tarefas comuns da vida, tornadas técnicas senão difíceis, pelo tipo de civilização que se desenvolveu em consequência de nosso progresso em conhecimento, e para os quadros vastos, complexos e diversificados das profissões e práticas, em que se expandiu o trabalho especializado. Mudaram, pois, os alunos, – hoje todos e não apenas alguns –; mudaram os mestres, – hoje numerosos e nem todos especialmente chamados pela paixão do saber; e mudaram os objetivos da escola, hoje práticos, variados e mais profissionais e de ciência aplicada do que de ciência pura e desinteressada". É o que mais ou menos já propugnava Rui Barbosa, no alvorecer deste século, quando mostrava a necessidade de "limitar as superabundâncias da teoria, de robustecer científica e profissionalmente, a um tempo, o ensino, saturando-o de prática, de trabalhos investigativos, de hábitos experimentais".

Para a transformação do homem e de seu universo

E aqui ferimos um ponto que é da maior importância, sôbre o qual nos temos detido muitas vêzes e escreveu Luis Reissig uma página excelente, em que analisa a técnica, como fator revolucionário na educação. O fato de, na apreciação dêsses problemas, coincidirem com frequência os pontos de vista de pensadores e educadores de países diferentes, é um dos sinais mais característicos da semelhança que apresentam, na civilização industrial, as situações concretas que ela vem criando por tôda a parte e que impelem às mesmas reflexões. Antes das descobertas científicas e suas extraordinárias aplicações técnicas, que abriram o campo às três grandes revoluções industriais, "o principal papel do ensino consistia em dotar o homem de conhecimentos e instrumentos para a apropriação e uso de seu ambiente e, em seguida, para a transformação e evolução dêste; mas, quando as condições de seu meio pareciam manter um recalcitrante estado de fixidez, como no caso da economia agro-pecuária, – a tendência da escola era procurar que o indivíduo se adaptasse e se submetesse ao seu ambiente, como por exemplo a adaptação à vida rural, quando êsse tipo de vida aparecia em forma predominante, renunciando assim a estimular uma característica singular e valiosa do homem: a iniciativa para as mudanças. Para o homem da era tecnológica êsse ensino adaptativo chega a ser pernicioso, pois o universo tem de ser para êle, cada vez mais, um campo de experiência e de renovação. A era tecnológica marca a fim do processo de ensino para a adaptação e o comêço do processo de ensino para a evolução do homem e de seu universo, partindo de condições técnicas criadas exclusivamente por êle. Já não deve preocupar tanto o homem (as palavras ainda são de Reissig) o tipo do ambiente em que esteja vivendo, para ajustar a êste o seu sistema de ensino, embora deva relacionar ambos, pois está em caminho de mudar radicalmente tôda a classe de condições que sejam dadas. Antes havia de aceitá-las e aproveitá-Ias o melhor possível (...); mas agora não há nada impossível, em princípio, para o homem, no que toca à transformação das condições de seu ambiente, favoráveis ou adversos".(5) Daí, a necessidade de uma preparação científica e técnica que habilitará as gerações novas a se servirem, com eficácia e em escala cada vez maiores, de todos os instrumentos e recursos de que as armou a civilização atual.

A história não avança por ordem ...

As profundas transformações operadas em consequência "da preponderância da economia industrial sôbre as formas economicas que a precederam", determinam, de fato, e tem de determinar, nos sistemas de ensino, grandes mudanças que permitam "ampla participação de todos os estudos e práticas, desde a escola primária completa até os mais altos níveis de estudos superiores". Já se vê, mais uma vez, que essa participação, com a amplitude que deve ter, para colher tôda a população em idade escolar, não pode ser senão obra do Estado, pela escola universal, obrigatória e gratuita, e uma sucessão de esforços ininterruptos, através de longos anos, inspirados por uma firme política nacional de educação. Ela significará, na justa observação de Reissig, "a maior revolução educacional de todos os tempos, porque será a primeira expressão popular da capacidade da maioria para administrar, organizar e governar, como só até agora tem podido fazê-lo as elites". A tudo isso, como a qualquer plano de organização, em bases mais sólidas e democráticas, da educação nacional, opõem-se abertamente as fôrças reacionárias, e nós sabemos muito bem onde elas se encontram e quais são os seus maiores redutos de resistência. Na luta que agora se desfechou e para a qual interêsses de vária ordem, ideológicos e econômicos, empurraram os grupos empenhados em sustentá-la, o que disputam afinal, em nome e sob a capa de liberdade, é a reconquista da direção ideológica da sociesdade, – uma espécie de retôrno à Idade Média, e os recursos do erário público para manterem instituições privadas, que, no entanto, custeadas, na hipótese, pelo Estado, mas não fiscalizadas, ainda se reservariam o direito de cobrar o ensino, até a mais desenvolta mercantilização das escolas. Serão desvios e acidentes no processo histórico de desenvolvimento da educação no país: a história, porém, não avança por ordem ou dentro de um raciocínio lógico, e o problema é antes saber através de qual das desordens, criadoras ou arruinadoras, procuraremos, chegado o momento, encaminhar a nossa ordem, que é a que a Constituição Federal estabeleceu e consulta os supremos interêsses da nação. Em todo o caso, esperamos reconheçam o nosso desprendimento, desinterêsse pessoal, devoção constante ao bem público e à causa do ensino. "Todos os violentos, escreveu Rui, fizeram sempre, a seu favor, o monopólio do patriotismo. Todos êles têm o privilégio tradicional de patriotas por decreto próprio e patriotas com exclusão dos que com êles não militam. Não queremos crer que o nosso ilustre inpugnador esteja neste número. Mas, a não ser nas mãos do fabricante, muito receio temos de que essa máquina de filtrar se converta em máquina de oprimir". (6) E nós, patriotas também, – mas não exclusivamente, – e educadores que nos prezamos de ser, temos não só o direito mas o dever de lutar por uma política que possa acudir "à sêde incoercível de educação nas massas populares", a que já se referia Clemente Mariani, e de opor-nos a tôdas as medidas radicais que, sob as aparências enganadoras de liberdade, tendem forçosamente a conduzir-nos ao caminho perigoso da anarquia senão das pressões ideológicas, abertas ou dissimuladas.

Fernando de Azevedo
Júlio Mesquita Filho
Antônio Ferreira de Almeida Júnior
Anísio Spínola Teixeira
A. Carneiro Leão
José Augusto B. de Medeiros
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Raul Bittencourt
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Joaquim de Faria Góes Filho
Arthur Moses
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Paulo Duarte
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Sérgio Buarque de Holanda
Nelson Werneck Sodré
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Florestan Fernandes
Pedro Gouvêa Filho
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Fernando Henrique Cardoso
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Carlos Lyra
Joaquim Pimenta
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Maria lsolina Pinheiro
Rui Galvão de Andrada Coelho
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