TEIXEIRA, Anísio. A educação que nos convém. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.21, n.54, abr./jun. 1954. p.16-33.

A EDUCAÇÃO QUE NOS CONVÉM

Anísio Teixeira
DIRETOR DO I.N.E.P.

Nunca será demais insistir nas condições em que se começou a considerar conveniente e necessária, no curso do século dezenove, e só então, a educação universal e gratuita para todos, entre os países chamados civilizados, e as condições correntes, já nestes meados do século vinte, para empreendimento semelhante, entre os países chamados subdesenvolvidos.

Uma primeira fase do movimento de instrução para o povo, no ocidente, teve origem religiosa. Buscava tornar efetiva e generalizada a leitura da Bíblia na língua nacional ou de cada povo, bem como o livre exame e interpretação dos textos, como reivindicação da reforma protestante. A generalização, contudo, do movimento não se deu senão quando o Estado julgou ser de seu dever dar a todos um mínimo de educação, considerado indispensável à participação dos indivíduos na obra comum nacional.

A ampliação dos deveres do Estado até êsse empreendimento de natureza cultural se deu, entretanto, em período de progresso econômico e social ainda relativamente lento e, o que é mais importante, como alvo em si mesmo ou a reinvidicação máxima da época. Os povos porfiavam, em verdadeira emulação política, por essa conquista, que fornecia ao pensamento das elites e às aspirações das massas algo como uma nova mística - a mística da educação popular. As nações passaram a se classificar, entre si, tanto mais civilizadas quanto mais escolarizadas fôssem as suas populações.

A obra de educação escolar comum, para todos, se fazia, assim, tendo em vista aparelhar o homem - todos os homens - com o instrumento de esclarecimento existente na época, a leitura, a fim de habilitá-lo, por êste modo, à participação na vida cívica e cultural do seu país. Tôda outra educação escolar, além dessa comum, era especializada, fôsse a profissional, de nível médio ou superior, para alguns, pelo Estado, ou a das classes ricas pela escola secundária, quase sempre privada, especializada esta senão pelo conteúdo, pelo espírito de "classe" que a inspirava. Observamos, assim, que a educação comum não visava pròpriamente à vida econômica ou de produção do país a que servia, mas, sim, a um propósito de esclarecimento, de educação geral e, quando muito, de formação cívica, reputados, entretanto, na época, como essenciais à experiência da nação, no nível de vida em que se achavam, ou a que aspiravam.

Pouco importa que, depois, esta escola pública se tenha feito um instrumento de singular significação econômica, com o desenvolvimento da civilização industrial. Desejamos acentuar é que no início obedecia mais à filosofia humanitarista ou, quando muito, cívica.

À escola primária comum, para todos, seguiam-se escolas complementares, que, estas sim, tinham propósitos práticos e se destinavam, deliberadamente, à preparação pré-profissional ou profissional, considerando-se a continuação da cultura geral sòmente aconselhável, senão devida, para a chamada elite, que mais não era do que as classes abastadas ou semi-abastadas, que poderiam suportar o ônus de prolongar a educação dos filhos além dos anos mínimos da escola primária, sem imediato propósito prático ou econômico.

Temos, pois, até os começos dêste século, a educação popular primária como necessidade política, nas nações ditas civilizadas, e a educação pós-primária como apanágio, nelas, das suas chamadas elites, ministrada geralmente em escolas privadas, ou como modesta formação profissional complementar, considerada econômicamente indispensável, pelo Estado, para certo grupo de alunos, supostamente bem dotados, das escolas primárias, sem possível acesso às escolas secundárias, privadas, por falta de recursos.

Ao ingressarem no século vinte, essas mesmas nações se viram, assim, graças ao movimento precedente, aparelhadas com um sistema escolar, que só caberia desenvolver e ampliar, em face das necessidades novas, que os novos tempos vinham trazer-lhes. O hábito da escola havia sido estabelecido, a previsão de recursos para a sua manutenção definitivamente implantada e, o que é mais, as consequências práticas da educação escolar reconhecidas como muito mais importantes do que as previstas, antes, de simples obra humanitária de esclarecimento. O desenvolvimento de técnicas industriais de trabalho viera tornar a escola indispensável como instrumento de eficiência econômica, e não apenas política, por mais importante que esta pudesse ser.

As reivindicações populares em educação, quanto aos países a que nos referimos, se fizeram sentir, no sentido de estender a educação comum a maior número de anos e de alargar as oportunidades das classes de menores recursos, dando-lhes ingresso possível a todos os tipos de escolas existentes, por isto que a educação deixou de ser uma necessidade espiritual ou de Iuzes, para se fazer uma condição sine-qua-non da vida econômica e de trabalho da civilização industrial e moderna, a que tais países haviam chegado.

O mesmo tipo de civilização, que encaramos, por outro lado, veio impor modificações na escola em si mesma, à luz dos novos característicos do trabalho moderno, em período de progresso econômico e social já agora muito mais acelerado.

Foi isso, ao que nos parece, o que ocorreu com os países desenvolvidos.

Já nos países subdesenvolvidos, como é, de modo geral o nosso caso, a evolução das necessidades sociais foi, de certo modo, a mesma, mas, sem o acompanhamento da evolução do sistema escolar, que se encontra ainda num simples esbôço. Decorre daí que entramos em confusão e contradição, porque atingimos a consciência de necessidades equivalentes às dos povos mais desenvolvidos em nossa época, mas, desaparelhados de verdadeiras escolas, estamos a querer implantá-las com a filosofia de épocas anteriores.

A educação popular até o século dezenove era, como já dissemos, mas uma necessidade espiritual, humanitária, digamos assim, do que econômica e, portanto, podia ser ineficiente e podia se fazer de qualquer modo, como de qualquer modo se podia fazer a educação religiosa. Não digo isto em sentido pejorativo. Trata-se da natureza das cousas. Se se visa em educação apenas à ilustração, à capacidade de esclarecimento, a uma ampliação da capacidade normal das pessoas de ver e sentir as cousas, - por menos que se faça, tudo será útil, e, então, o que importa é dar a quantos se possa um pouco dêsse bem supremo, indefinido e indefinível. É a isto que chamo a concepção mística de educação, sem dúvida a dominante em todo ou quase todo o século dezenove. Escola passa a ser um bem em si mesmo, como tal sempre boa, seja pouca ou inadequada ou mesmo totalmente ineficiente. Algo será sempre aprendido e o que fôr aprendido constituirá um bem.

Tal concepção conserva-se a dominante entre nós, embora já superada nos países que primeiro a instituíram, pois êles, tendo desenvolvido as suas escolas com semelhante filosofia, já as haviam transformado no curso da própria evolução escolar, para que elas pudessem responder pelas novas necessidades de nossa época - isto é - as de atender o ensino às novas condições de trabalho e não apenas ao esclarecimento, ou ilustração, ou emancipação social.

Mas, se conservamos ainda a concepção perempta ou, se quiserem, insuficiente, do século dezenove, por outro lado, não conservamos as condições dominantes naquele século, mas, temos as mesmas necessidades dos países desenvolvidos, precisando de nos educar para novas formas de trabalho e não apenas formas novas de compreender o nosso papel social e humano. Mesmo porque - e isto é a grande novidade de nosso século - essas formas novas de compreender o nosso papel social e humano, que os povos desenvolvidos tiveram que aprender laboriosamente pelos hábitos de leitura, os povos chamados subdesenvolvidos, como o nosso, estão a aprender pelos novos processos de comunicação visual e oral que o rádio e o cinema trouxeram e, muito mais fáceis de difusão do que a escola, logo se implantaram e generalizaram.

A função pròpriamente emancipadora de que se fêz a escola popular, no século dezenove, a pioneira, está hoje, absorvida peIo rádio e pelo cinema, que prescindem pràticamente da capacidade de leitura dos indivíduos. Bem sabemos, que a comercialização dêsses dois meios de comunicação vem determinando que sua ação seja não pròpriamente "educativa", no sentido melhor dessa palavra, mas, muitas vêzes, prejudicial. Isto, entretanto, não impede que essa ação seja "socialmente emancipadora", criando a oportunidade de participação do analfabeto no debate geral e público da nação, como a imprensa o fazia, antes, para os que aprendiam a ler na escola.

O analfabetismo em face disto, já não é a famosa cegueira do século dezenove, mas simplesmente, uma inaptidão, grave sòmente quando o próprio trabalho, o próprio ganha-pão exige que seja remediada.

Daí, então, a educação - e quando falo em educação compreenda-se sempre educação escolar - precisar de ser, tanto num país subdesenvolvido quanto, hoje, nos países desenvolvidos, eficiente, adequada e bem distribuída, significando por êstes atributos: que seja eficaz, isto é, ensine o que se proponha a ensinar e ensine bem; ensine o que o indivíduo precisa aprender e, mais, seja devidamente distribuída, isto é, ensine às pessoas algo de suficientemente diversificado nos seus objetivos para poder cobrir as necessidades do trabalho diversificado e vário da vida moderna e dar a todos os educandos reais oportunidades

A educação se faz, assim, necessidade perfeitamente relativa, sem nenhum caráter de bem absoluto, sendo boa quando eficiente, adequada e devidamente distribuída. Dêste jeito, já não nos convém qualquer educação dada de qualquer modo. Esta já é a que recebemos em casa e pelo rádio e pelo cinema. A educação escolar tem de ser uma determinada educação, dada em condições capazes de torná-la um êxito, e a serviço das necessidades individuais dos alunos em face das oportunidades do trabalho na sociedade.

A contradição entre estas novas necessidades educativas e o velho conceito místico e absoluto de escola - bem-em-si-mesmo, é que está a levar o Brasil para a sua atual conjuntura educacional, de diluição e inorganicidade progressiva de suas escolas. Sob o impacto, rigorosamente idêntico, senão mais grave, que o das nações desenvolvidas, da nova consciência social das necessidades educativas por parte dos indivíduos, ricos ou pobres, estamos a enganá-los, a uns e outros, com a ampliação puramente aparente de oportunidades educativas, - multiplicando os turnos das escolas que chegamos a ter organizadas e que assim ficam desorganizadas, e improvisando escolas sem as condições imprescindíveis ao seu funcionamento e, portanto, intrìnsecamente desorganizadas. E não só isto, o que já seria terrível! Também estamos a multiplicar escolas do mesmo tipo, sem levar em conta aquela distribuição educacional de que já falamos, importando isto em educar número excessivo de pessoas na mesma cousa, com o que criaremos outro mal educacional. A relatividade do novo conceito educacional ensina-nos, com efeito, não só que a educação deve ser eficiente para ser boa, como que deve ser adequada ao indivíduo e adequada às necessidades do trabalho, sem o que longe de resolver agrava o problema que se propõe a resolver, isto é, o preparo diversificado dos indivíduos e distribuição adequada dos mesmos pelos diferentes setores do esfôrço econômico nacional.

Mas, não é sòmente essa a contradição profunda do movimento educacional brasileiro. Outra contradição, um tanto mais sutil, permeia-lhe o descaminho.

Vimos que, no século dezenove, a educação escolar assumira dois nítidos aspectos, o de educação popular mínima para todos e o de educação pós-primária para alguns. E os alguns, salvo os das poucas escolas públicas e gratuitas dêste nível, eram os das classes abastadas ou semi-abastadas, que aí recebiam uma educação que a sua "classe" reputava boa e satisfatória. Por êste fato, os indivíduos das classes não favorecidas foram levados a julgar que a educação de nível secundário os levaria automàticamente a participar das condições daquelas classes. E a reivindicação popular se vem orientando no sentido de se dar acesso a todos às escolas de nível médio e superior.

Entre os países civilizados, entretanto, assim que as escolas de nível médio e superior deixarem de ser escolas de "classe" para se tornarem escolas accessíveis a todos, logo se transformaram e passaram a obedecer a filosofia educacional totalmente diversa. Antes de tudo, diversificaram-se em currículos e métodos, no nível médio, a fim de atender à imensa variedade de capacidades e aptidões, e no nível superior se fizeram técnicas especializadas para a formação, segundo as aptidões, dos quadros técnicos e científicos de que necessitavam aquêles países. A antiga educação clássica, uniforme e literária se fêz residual e para os ricos que a desejassem, ou os poucos pobres altamente dotados, que dela pudessem viver. Sendo tìpicamente uma educação para os que já tinham com que viver, tal educação só poderia servir aos pobres quando êstes fôssem tão excepcionais, que pudessem usar a educação clássica não para o seu próprio deleite, mas para ganhar a vida. Ora, sabemos como são poucos os que a podem ganhar com o latim e o grego da educação clássica...

O mesmo não aconteceu, porém, nos países não desenvolvidos. Aqui estamos a receber em um ensino secundário de tipo intelectualista - pois não me atrevo a chamá-lo de clássico nem humanístico - uma tal massa de alunos, que, mesmo quando fôssem bem educados, não poderia ser absorvida pela nação com tão uniforme formação. E no ensino superior estamos a fazer o mesmo com escolas de pseudo-formação especializada e de incompreensível uniformidade de currículos, a despeito do aumento considerável de matrícula. Amplas camadas populares já estão entre nós a buscar o ensino médio e superior na suposição de conquistarem, por êste modo, e automàticamente, as classes mais altas e, como conservamos as escolas no seu mesmo caráter anterior de escolas de "classe", vamos mantendo o conceito, já superado entre os países desenvolvidos, isto é, o de que a educação escolar é um processo de formação para as classes de lazer ou de trabalhos leves e, conseqüentemente, de "passagem" de classe para os menos favorecidos que a conseguirem freqüentar.

A escola, é hoje, deve ser, sem dúvida, um processo de redistribuição dos indivíduos, segundo suas aptidões, pelos diferentes escalões do trabalho moderno; mas não há nenhuma escola e muito menos nenhuma escola uniforme e única, pela qual se possa passar de uma "classe" para outra. O próprio conceito de escola de "classe" desapareceu para se passar a considerar todo o sistema escolar, como um sistema contínuo, pelo qual todos se educam até o nível primário e daí, por seleção de capacidade e aptidões, alguns ou muitos prosseguem no nível médio e superior, em escolas tão variadas e flexíveis quanto possível, para atender à variedade de aptidões dos candidatos à educação, sem distinção de classe nem de situação econômica.

A educação - limitadamente humanística dada na velha escola de elite - não só não se presta para tôda essa nova população escolar, como lhe pode ser prejudicial.

Estamos, assim, nestes meados do século vinte, inspirando a nossa expansão educacional com os conceitos de educação - bem-em-si-mesmo e de educação para lazer há um século pode-se dizer superados, e daí a contradição perigosa da conjuntura atual, em que a própria educação escolar longe de resolver o problema que se propõe, está a criar um novo problema - o dela própria.

Diante de tal conjuntura, cumpre-nos, antes de tudo, se tem qualquer valor a nossa análise, uma campanha de esclarecimento, destinada a desfazer os dois conceitos errôneos, que, ao nosso ver, dominam a mentalidade contemporânea e inspiram, na realidade prática, a política educacional brasileira: a) a concepção mística, ou mágica da escola, pela qual tôda e qualquer educação tem valor absoluto e, por conseguinte, é útil e deve ser encorajada por todos os modos; b) a concepção de educação escolar como um processo de passar ao nível da classe média e ao exercício de ocupações leves ou de serviço, e não de produção. O esclarecimento impõe-se e urge porque essas duas concepções explicam, entre muitos outros, os seguintes "absurdos" de nossa realidade educacional:

1) A progressiva simplificação do ensino primário, com a redução de horários para alunos e professôres e a tolerância cada vez maior de exercício de outras ocupações pelos mestres primários;

2) A redução do currículo da escola primária a um corpo de noções e conhecimentos rudimentares, absorvidos por memorização e a elementaríssima técnica da leitura e escrita;

3) A situação incerta e imprecisa da nossa formação do magistério primário, na qual se revela uma compreensão vaga e insegura da escola primária, o que por sua vez, gera até a tolerância generalizada pelo professor leigo, reputado, às vêzes, melhor que o diplomado;

4) A improvisação crescente de escolas primárias sem condições adequadas de funcionamento e sem assistência administrativa ou técnica;

5) A perda crescente de importância social da escola primária, em virtude de não concorrer especialmente para a classificação social dos seus alunos;

6) A substituição das suas últimas séries pelo "curso de admissão" ao ginásio, buscado como processo mais apto àquela desejada "reclassificação social";

7) A procura crescente do curso secundário, a despeito da ineficiência dos seus estudos, dos horários muito reduzidos e de professôres improvisados ou sobrecarregados, em virtude das expectativas que gera de determinar a passagem para as ocupações de tipo classe média;

8) A improvisação crescente de escolas superiores, sobretudo aquelas em que a ausência de técnicas específicas permite a simulação do ensino, ou o ensino simplesmente expositivo, como as de economia, direito e filosofia e letras; a audácia dêste movimento vai ganhando terreno até mesmo no campo da medicina, em que é mais alta e melhor a nossa tradição acadêmica, e onde já se notam improvisações perigosas;

9) A complacência por campanhas educativas mais sentimentais do que eficientes, no campo da educação de adultos, da educação rural e do chamado bem-estar social;

10) A ausência de planejamento econômico e financeiro e a insinuação, implícita, de que se pode fazer educação sem dinheiro, surgindo, então, as campanhas de educandários gratuitos e a idéia ainda mais generalizada de que tôda a educação pode ser gratuita para quem quiser do nível primário ao superior, sejam quais forem os recursos fiscais e em que pese a deficiência per capita da nossa "riqueza nacional", das mais pobres do mundo;

11) Irritação social crescente contra o "custo da educação", contra o "custo de livros", contra as despesas no período escolar, como se tudo isto fôsse simples atividade espiritual que nada deveria custar;

12) Perfeita tolerância ao fato de estudar e trabalhar, com redução crescente das atividades de estudo, pois, estas, ao que parece, não podem ocupar o tempo do estudante, que tem cousas mais importantes que fazer.

Poderíamos continuar a alinhar outros fatos, ou desdobrar os apresentados em outros tantos, como, por exemplo, os relativos ao currículo secundário, reconhecidamente absurdo pela impossibilidade de ensinar tôdas aquelas matérias, mesmo com professôres ótimos, no tempo concedido, mas ainda assim tranquilamente aceito em sua ineficiência, porque a educação sempre foi isto, uma espécie de atirar-no-que-viu-e-matar-o-que-não-viu, não se concebendo que haja exigência de tempo, espaço, equipamento, trabalho e dinheiro, acima de um minimum minimorum, que torne a educação sempre possível e para tôda a gente. Sòmente a concepção de educação como uma atividade de caráter vago e misterioso é que poderia levar-nos a aceitar essa total e generalizada inadequação entre meios e fins na escola e a isto é que chamo a concepção mágica da educação, que me parece a dominante em nosso meio, como pressuposto inconsciente e base de nossa política educacional.

Não desconheço - e já o salientei - que essa concepção, em diferentes graus de intensidade, permeou muito da situação educacional do século XIX, mesmo nos países civilizados. Qual, assim, a gravidade de tal em educação? não é êste um estado de sentimento e de crença altamente interessante e capaz de dar ao movimento educativo brasileiro o seu impulso dinâmico e continuado? Começa-se assim e, depois, se aprende e se faz cada vez melhor, descobrindo-se e redescobrindo-se o processo lógico da atividade puramente espontânea e imprecisa. Assim foi em todos os países e assim também será no nosso...

Ocorre, porém, que, ao contrário dos demais países, o Brasil oficializou e legalizou êsse processo de ilusionismo ou, se quiserem, de magia educacional, cristalizando-o, assim, em um sistema institucionalizado, sancionado e cheio das mais interessantes consequências individuais e sociais. Longe de um comêço, que evoluiria, êle se tornou um fim e a sua tendência é para se perpetuar e, mais, se agravar, pois dia a dia, tomamos maior audácia para generalizar os nossos passes de magia ou fregolismo educacional.

E eis porque a posição brasileira é tão grave e perigosa. Não podemos modificar por ato de fôrça a mentalidade popular brasileira em educação, como não podemos modificar a crença de muitos no uso, por exemplo, da prece para chover; mas, já chegamos àquele estágio social em que não legislamos sôbre a obrigação de preces públicas contra flagelos climatéricos...

Em educação, há que fazer o mesmo. Tôda essa educação de caráter mágico pode ser permitida, pode ser deixada livre; mas, não deve ser sancionada com consequências legais. Êste, o primeiro passo para dar a essas tentativas o seu caráter de tentativas, o aspecto dinâmico pelo qual elas poderão vir a progredir até o estágio lógico ou científico da educação, em que meios adequados produzirão fins desejados e a escola poderá entrar no processo de evolução característico de tôdas as atividades humanas em nossa época.

A escola primária, entre nós, encontra-se, aliás, nessa situação. Não se dá ao seu diploma nenhum valor especial e, por tal motivo, chegou ela a ser progressiva. Se, hoje, está perdendo êsse caráter, é que as escolas de nível secundário não obedecem ao mesmo regime e, tendo como alto prêmio o seu diploma, estão atraindo os alunos antes de terminarem êles o curso primário, que assim se separa e se desvaloriza socialmente.

É indispensável que a escola secundária tenha a mesma finalidade geral educativa, que possui a escola primária, sem outro fim senão o dela própria. Só assim, como a escola primária, ela será, quando tentativa, uma tentativa com as vantagens e incertezas de uma tentativa, e quando organizada e eficiente, uma escola realmente organizada e eficiente, dando os frutos de sua eficácia.

Então, sim, a mentalidade mágica em educação ganhará condições para evolver para a mentalidade empírica e daí para a mentalidade lógica ou científica; então e por conseguinte, a instituição ganhará efetivamente a sua dinâmica de transformação e progresso.

Como, porém, conciliar êsse regime de liberdade de tentar e experimentar com as conseqüências legais da educação, numa sociedade em que, dia a dia, se precisa de mais conhecimento para o exercício das ocupações e profissões?

Não serei eu quem vá inventar um dispositivo para solver uma conjuntura, que, como já disse, foi também a seu tempo, a das nações chamadas desenvolvidas ou civilizadas. Temos é que ver como saíram elas de situações semelhantes à nossa de agora.

Ora, a lição que essas nações nos ministram é a de que não se pode corrigir a conjuntura senão por um processo de exames paralelos ao processo escolar, e organizado e dirigido por autoridades estranhas à escola ou autoridades de escolas de nível acima da escola examinada.

Tal processo paralelo pode evolver até um sistema de classificação das escolas, em substituição ao de exames formais, com aceitação dos diplomas pelo mérito implícito na classificação; mas, será sempre um processo paralelo e independente, pelo qual se julgam as escolas.

Êsse regime é a conseqüência lógica das condições diversas e variadas em que a escola surgiu ou tinha de surgir, ante a solicitação social da comunidade. Ou ali implantaríamos, imediatamente, uma escola perfeita - o que é, òbviamente, impossível - ou permitimos uma livre tentativa de escola e sujeitamo-la à verificação a-posteriori, por um sistema, a princípio, de exames e, depois, caso se processe a necessária evolução, de classificação das escolas pelo seu mérito e eficiência.

A solução nada tem de drástica e não falta, na própria conjuntura brasileira, bem analisada, elementos que a aconselhem e até a solicitem, a despeito das generalizadas e superadas concepções de educação-milagre e educação-diploma-de-classificação-social.

Os exames ao "Artigo 91" e os exames vestibulares ou de introdução ao ensino superior são germes dêsse regime de exames para julgamento a-posteriori do resultado da escola de nível inferior. O exame de admissão ao ensino secundário é um germe de julgamento a-posteriori da escola primária.

Os defeitos ou ineficácia, em alguns casos, de tais exames são perfeitamente explicáveis. Nos exames de admissão ao secundário, o vício congênito está na autorização indiscriminada da sua elaboração e julgamento pelos próprios interessados nos estabelecimentos em que ingressam os alunos contribuintes. Ora, tais exames, depois de devidamente elaborados, podiam ser processados nos estabelecimentos de ensino pelos seus próprios professôres, mas apenas quando o estabelecimento, pelo seu crédito, fôsse procurado por número de candidatos superior ao da matrícula possível e, em face disto, não lhe fôsse prejudicial o caráter seletivo do exame. E nos exames vestibulares, para melhorá-los, bastaria que sòmente pudessem ser êles processados nos estabelecimentos oficiais. Se, além disto, viessem a ser elaborados com melhor técnica e visassem antes a apurar o que os candidatos sabem, do que o que não sabem, a melhora seria ainda mais significativa. Não se pode é negar a relativa seriedade com que são feitos nas escolas oficiais e mesmo em algumas escolas particulares. Também os exames do "Artigo 91", depois que passaram a ser feitos nos melhores colégios oficiais, têm apresentado resultados mais interessantes.

Há, pois, já um princípio de regime de exames paralelos e independentes à escola em julgamento e que, se generalizado e aperfeiçoado, pode transformar-se no mecanismo legal pelo qual se ajuste a mentalidade popular do país, em educação, à situação do desenvolvimento progressivo a que a devemos conduzir.

Dentro de um ambiente, assim, de liberdade e estímulo à mudança, que tipo de escola devemos esperar ver formar-se, pelo desenvolvimento de tôdas as tentativas e ensaios de escolas, em condições as mais diversas, espalhadas por todo o país?

Devemos esperar que a mentalidade da nação, sob o impacto das mudanças sociais e da extrema difusão de conhecimentos da vida moderna, venha, gradualmente, a substituir seus conceitos educacionais, ainda difusos e místicos, pelos novos conceitos técnicos e científicos, e a apoiar uma reconstrução escolar, por meio da qual se estabeleça para os brasileiros a oportunidade de uma educação contínua e flexível, visando prepará-los para a participação na democracia, ideal político herdado do século XIX, e também para a participação nas formas novas de trabalho de uma sociedade econômicamente estruturada, industrializada e progressiva.

Essa educação, nas primeiras cinco séries, comum e obrigatória para todos, prosseguirá em novos graus, no nível médio, para os mais capazes e segundo as suas aptidões, visando, como a de nível primário, a sua preparação para o trabalho nas suas múltiplas modalidades, inclusive a do trabalho intelectual, mas não sòmente para êste.

A continuidade da escola - em seus diferentes níveis - vai emprestar-lhe o caráter de escola para todos, sem propósito de classificação social, dando a cada um o de que êle mais necessitar e segundo a sua capacidade, com o que melhor se distribuirá ou redistribuirá a população pelas diferentes variedades e escalões de trabalho econômico e social, de acôrdo com as necessidades reais do país em geral e de suas regiões em particular.

Êsse sistema de educação popular, abrangendo de 11 a 12 séries, ou graus, permitirá, quando completo ou integralmente organizado, que o aluno se candidate, após a última série ou grau, ao ensino superior pelo regime de concurso, mas, não visa o seu curso ao preparo para êsse exame, pois terá finalidade própria, significando, nos têrmos mais amplos, a educação da criança, na escola primária e a educação do adolescente, na escola média, para o tipo e as necessidades da sociedade em que participam e vivem.

O que será essa educação não será a lei que o vai dizer, mas, a evolução natural do conhecimento dos brasileiros relativamente à criança e ao adolescente, de um lado, e de outro, da civilização moderna e industrial em que a escola vai iniciar as crianças e, depois, os jovens brasileiros. Essa escola mudará e transformar-se-á como muda e se transforma tôda atividade humana baseada no conhecimento e no saber. Progrediremos em educação, como progredimos em agricultura, em indústria, em medicina, em direito, em engenharia - pelo desenvolvimento do saber e dos profissionais que o cultivam e o aplicam, entre os quais se colocam e muito alto os professôres de todos os níveis e ramos.

Aceitos que fôssem tais princípios gerais ou - porque não dizê-lo? - a filosofia de educação neles implícita, restaria prover a máquina administrativa para gerir o sistema de liberdade e progresso que à base dêles se instituiria. Nesta máquina, o importante será a articulação entre a consciência leiga do país, que define as suas aspirações educacionais, e a consciência profissional, que lhe indica o processo para atingí-las e sugere as revisões necessárias das próprias aspirações gerais, naturalmente difusas, embora vigorosas e sinceras.

Permitam-me que reproduza aqui as sugestões que apresentei alhures para a organização administrativa do sistema escolar brasileiro, dentro da fundamentação que venho apresentando.

"A organização da educação no Brasil está a exigir uma revisão corajosa dos meios até agora ensaiados para a sua implantação. Nenhuma sistematização rígida lhe pode ser aplicada, em virtude das proporções da tarefa e das condições profundamente desiguais a que necessàriamente está sujeita a sua execução, para ser realidade e ter eficiência, com progressividade tanto quanto possível assegurada.

Cumpre criar um mecanismo simples e dinâmico, capaz de se adaptar às contingências mais diversas e de trabalhar com os recursos mais desiguais: por isto e para isto, dotado de fôrça própria, de autonomia e de responsabilidade, a fim de se desenvolver indefinidamente. E é o que se conseguirá e só se conseguirá entregando às comunidades a responsabilidade pela educação. Em vez das centralizações, sejam federal ou estaduais, a educação passa a ser, primordialmente, de responsabilidade local.

Dir-se-á que as tradições dos nossos governos locais, entretanto, não são de ordem a nos animar nessa transferência. Dominados pela burocracia, embora de recente incremento, e pelo eleitoralismo, seria lícito admitir que não fôsse grande a vantagem alcançada. Algo mais ter-se-ia de fazer para dar à transposição de responsabilidade sua fôrça estimuladora e criadora.

Sugeriríamos, assim, a criação de pequenos Conselhos Escolares locais, constituídos por homens e mulheres de espírito público, e não pròpriamente partidário, dos munícipes.

Tais conselhos iriam administrar um Fundo Escolar municipal - outra sugestão de não menor alcance - a ser instituído com os recursos provenientes dos 20% da receita tributária do município constitucionalmente determinados, e com os auxílios estaduais e federal para a educação, a decorrerem por seu turno das correspondentes porcentagens constitucionais de aplicação exclusiva. Dotados de poder financeiro e governamental, seriam tão importantes e tão desejados quanto o poder municipal (Prefeito e Câmara), enriquecendo a comuna com um novo órgão representativo, singelo e fecundo, para expressão das aspirações locais. Os Conselhos nomeariam o administrador local da educação e os professôres, exercendo dêste modo verdadeiro poder do govêrno e tomando sôbre os ombros tôda a responsabilidade da educação local.

Na pluralidade de poderes locais, assim instituída, onde estaria a fôrça de contrôle e unificação indispensável ao mínimo de coesão e unidade da educação nacional?

Tal fôrça de controle e unificação competiria ao Estado, que a exerceria por intermédio de um Conselho semelhante aos conselhos locais e um Departamento de Educação. O poder supremo dêsse Conselho estadual seria o de regulamentar o exercício da profissão do magistério, o de distribuir os auxílios estaduais para a educação e o de manter seu sistema próprio de escolas, isto é, as de formação do magistério e as de nível superior.

Mediante a regulamentação do exercício da profissão de magistério, o Estado daria a tôdas as escolas aquêle mínimo de unidade essencial ao êxito do sistema escolar. Sòmente o Estado poderia conceder licença para o exercício do magistério. Como lhe caberia licenciar, também lhe caberia regulamentar o preparo do magistério. Com o poder, assim, de formar o professor e de lhe conceder, provisória ou permanente, a licença para o exercício do magistério, estaria o Estado armado para não sòmente impedir qualquer extravagância ou excesso local, como para orientar e estimular o poder local a fim de lhe ser possível o mais perfeito desempenho de suas funções de administrador responsável das escolas.

Poderão julgar demasiado radical essa sugestão ...

Vejo-lhe, entretanto tal fôrça renovadora, sinto-a tão criadora de estímulos novos e novas energias, descubro-lhe tamanhas virtualidades, que não me parece haver nenhum perigo em sua implantação imediata. Será a imediata multiplicação de autonomias e responsabilidades estimulantes e estimuladas, capaz de promover a mudança de clima necessária, indispensável à efetiva reconstrução educacional brasileira.

Poder-se-ia, contudo, graduar a execução, concedendo-se a autonomia sòmente aos municípios mais adiantados e condicionando-se a extensão da medida renovadora ao fato de alcançarem as rendas locais um mínimo orçamentário capaz de dotar o conselho escolar do suficiente para a manutenção de certo número de classes primárias. Desde que fôsse temporária essa limitação, poder-se-ia admitir essa prudência, que, entretanto, apenas conservaria o Estado com a responsabilidade por escolas de que difìcilmente se poderá fazer o melhor administrador.

Sou por isto mesmo favorável à implantação generalizada do novo sistema, ficando ao Estado a responsabilidade pela formação do magistério em todos os graus e seu respectivo licenciamento, pela supervisão e inspeção dos sistemas locais de educação e pela distribuição equitativa dos recursos estaduais pelos sistemas municipais de educação.

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Constituídos os órgãos de administração das escolas e dotados os mesmos dos recursos oriundos das percentagens constitucionais para a educação, quais seriam as regras fundamentais para a sua ação e desempenho de suas atribuições?

1.º) A constituição dos Conselhos - Tudo aconselha que sejam pequenos - de seis a nove membros - e gratuitos. O primeiro em cada município seria nomeado pelo Prefeito, com aprovação pela Câmara dos Vereadores e mandatos de seis anos, renováveis, pelo têrço, de dois anos. Dêste modo, os primeiros conselheiros deveriam ser nomeados para dois, quatro e seis anos de exercício. Daí por diante, o próprio conselho constituiria as listas tríplices dos nomes, entre os quais o Prefeito deveria escolher os novos conselheiros.

2.º) A administração do Fundo da Educação - Constituído pela percentagem constitucional da receita tributária municipal e pelos auxílios dos governos estadual e federal, e outros recursos, o Fundo será administrado pelo Conselho que nisto terá de obedecer a certas regras básicas, dentre as quais convém ressaltar as seguintes:

1. No custeio do serviço de educação não poderá ser despendida importância superior a 80% dos recursos anuais do Fundo, ficando 20% reservados compulsòriamente para as construções do sistema escolar, por meio de aplicação direta ou de empréstimos a serem custeados por essa percentagem.

2. Dessa verba de custeio sòmente 60% poderão ser gastos com pessoal, não podendo o gasto com pessoal administrativo exceder de cinco por cento do total do gasto com pessoal.

3. Para critério de salários e despesas outras de custeio, inclusive material, proceder-se-á do seguinte modo: Dividir-se-á o montante reservado ao custeio pelo número de crianças a educar. Êsse número compreenderá as crianças em idade escolar, que não recebem educação em casa ou em escolas particulares e que residam em àrea de suficiente concentração demográfica para poderem freqüentar escolas. O quociente obtido irá constituir o limite do que poderá ser gasto com cada criança, de modo que, somadas tôdas as despesas, o custeio de uma classe corresponda ao resultado da multiplicação daquele quociente pelo número de alunos matriculados e freqüentes. O salário do professor, o custo da conservação do prédio ou do aluguel, o material didático e os salários dos vigias ou serventes deverão corresponder àquele total, que é o limite do que poderá ser gasto por classe.

Pode-se logo ver que haverá extrema diversidade de níveis materiais de educação, mas o importante do princípio é a preeminência da criança e do seu número sôbre todos os demais elementos da escola. Primeiro, há que dar educação a todos e depois é que surgirão os problemas de salários e de níveis materiais da educação.

4. O Conselho Escolar Municipal não poderá nomear professôres ou quaisquer autoridades educacionais sem licença para o magistério ou certificado de habilitação, e um e outro só poderão ser expedidos pelo Conselho Estadual de Educação. Será por êsse meio que se assegurará a unidade da educação e a sua qualidade.

A licença para exercer o magistério deveria ser temporária, por dois, três e cinco anos e renovável, podendo sempre serem exigidas novas provas para essa renovação. Por tal meio, o professorado estará em constante aperfeiçoamento e jamais constituirá obstáculo ao progresso do ensino.

5. O não cumprimento de qualquer dos princípios acima mencionados determinará a imediata intervenção do Conselho Estadual de Educação, que evocará a si a administração do sistema local de escolas. A organização do Conselho Estadual de Educação e do seu órgão executivo - Departamento Estadual de Educação - obedecerá às normas constantes do projeto elaborado para o Estado da Bahia (Vide: "Projeto de Lei Orgânica do Ensino da Bahia", publicado na Seção de Documentação da REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS, vol. XX, n.º 51 (julho-setembro de 1953).

Como se vê, o Estado, pelo seu Conselho e Departamento de Educação, mantém o sistema de escolas normais e escolas de demonstração dos demais níveis e exerce o poder de supervisão e assistência técnica e financeira aos múltiplos sistemas locais de educação.

O Govêrno Federal exercerá atividades semelhantes à do Estado e ainda em nível mais alto. Também aí um Conselho será seu órgão supremo, competindo-lhe organizar um departamento de educação para exercer a assistência técnica e financeira aos Estados, os quais, por sua vez, as estenderão aos municípios.

Êste será o aparelho administrativo da educação. O seu funcionamento técnico dependerá do preparo que se puder dar ao professor e dos quadros especializados que se organizarem para assisti-lo.

O ensino particular será livre, sujeitos os seus alunos ao exame ele Estado, para a validez dos seus resultados."

Encaminhada, assim, a escola brasileira para a sua reconstrução gradual e progressiva, pela revisão dos pressupostos em que ainda hoje se baseia, a ser obtida pela fertilização mútua das idéias leigas e das profissionais e técnicas, das tradições conservadoras e das modernas necessidades, por atender, no jôgo de fôrças entre o conselho e o executivo técnico, em cada Municipalidade, criados os órgãos complementares de sua direção e desenvolvimento, nos Estados e na União, todos articulados e harmônicos entre si, mas perfeitamente descentralizados, - há tôda razão de esperar que se resolva o impasse de contradições educacionais em que se debate a nação e que procuramos aqui, mais uma vez, focalizar, em breve análise.

A maior contradição a meu ver consiste em que, na medida do amadurecimento da consciência nacional para as necessidades educativas, nessa medida se agrava a situação educacional, pelas facilidades e simulações com que estamos ludibriando aspirações cada vez mais vigorosas e conscientes, pode-se dizer que de todo o povo brasileiro.

Essa consciência e êsse vigor deviam ser postos à prova por meio de um regime de realismo e de verdade nas escolas, a fim de retirarmos daquela consciência e daquele vigor as energias necessárias aos esforços, sacrifícios e dispêndios indispensáveis ao êxito e ao desenvolvimento da escola. Ao invés disto, um regime de formalidades e aparências vem iludindo o povo, dando-lhe a impressão de que suas escolas, como cogumelos, podem cobrir o país de um momento para outro e surgirem logo - prontas e acabadas - dessa cabeça de Minerva que vem sendo a cabeça ‘"concessionária e equiparadora" do Govêrno Federal. As energias quebram-se, assim, ante tais facilidades e o que podia dar nascimento a um vigoroso e rigoroso movimento educacional vem gerando a degradação crescente de nosso sistema escolar.

Acredito - e o afirmo repetindo - que essa máxima contradição venha a se desfazer com o regime de liberdade e de verdade que se estabelecerá pelo plano sugerido. As escolas criadas nas condições do possível passariam, de início apenas a aspirar competir, entre si, para a formação dos seus alunos, que seriam julgados perante examinadores especiais ou de escolas de outro nível. Pouco a pouco tais exames iriam permitir classificar as escolas, pelo grau de eficiência atingido, e dar-lhes autonomia para o próprio julgamento e avaliação dos seus alunos.

A liberdade do ensino e o julgamento de sua eficácia por organismos independentes não deviam ficar sòmente nisso. O próprio ensino superior não poderia ou não deveria dar o direito ao exercício profissional. Diplomados os brasileiros, mesmo em escolas superiores, deveriam passar por um regime de exames perante os órgãos da direção das respectivas profissões, para conquistar o direito final de exercício da profissão, - como a concursos já se submetem para ingresso nos cargos públicos correspondentes aos seus diplomas, que, entretanto, para isso não são julgados bastantes.

No momento em que o país impõe, por todos os modos, a ampliação de oportunidades educativas, o meio único que vejo de não coarctar justos anseios mas de impedir as suas perigosas conseqüências - é êste de restaurar a liberdade de iniciativa educacional, mas, ao invés de lhes dar qualquer privilégio ou direito, submetê-las ao teste eficaz do julgamento a-posteriori dos seus alunos e, ainda depois disto, não lhes dar o direito ao exercício profissional senão depois de um segundo e novo julgamento pelos seus pares, nos órgãos de classe.

Liberdade e responsabilidade em vez de regulamentação e privilégio é a minha sugestão para a conjuntura educacional em que nos debatemos.

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