TEIXEIRA, Anísio. Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.31, n.73, jan./mar. 1959. p.78-84.

CENTRO EDUCACIONAL CARNEIRO RIBEIRO*

Senhor Governador:

Êste é o comêço de um esfôrço pela recuperação, entre nós, da escola pública primária.

Três pavilhões, três grupos escolares, vão ser hoje inaugurados por V. Ex.a, partes integrantes de um Centro Popular de Educação, a que houve por bem V. Ex.ª de designar Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em homenagem ao grande educador baiano.

A construção dêsses grupos obedece a um plano de educação para a cidade da Bahia, em que se visa restaurar a escola primária, cuja estrutura e cujos objetivos se perderam nas idas e vindas de nossa evolução nacional. Quando digo isto, Sr. Governador, não estou a aduzir um julgamento, mas, a trazer um testemunho. Há vinte e cinco anos atrás era eu o diretor de instrução do Estado em um govêrno que, como o de hoje, parecia inaugurar uma era de reconstrução para a Bahia. As escolas primárias passaram, então, por um surto de renovação e de incremento, mas, o que é digno de nota era o seu funcionamento integral, com os cursos em dois turnos, e o programa, para a época, tão rico quanto possível.

Já se podia apreciar o comêço, entretanto, de uma deterioração que se veio agravar enormemente nos vinte e cinco anos decorridos até hoje. Foi, com efeito, nessa época que começou a lavrar, como idéia aceitável, o princípio de que, se não tínhamos recursos para dar a todos a educação primária essencial, deveríamos simplificá-la até o máximo, até a pura e simples alfabetização e generalizá-Ia ao maior número. A idéia tinha a sedução de tôdas as simplificações. Em meio como o nosso produziu verdadeiro arrebatamento. São Paulo deu início ao que se chamou de democratização do ensino primário. Resistiram à idéia muitos educadores. Resistiu a Bahia antes de 30. Resistiu o Rio, ainda depois da revolução. Mas a simplificação teve fôrça para congestionar as escolas primárias com os turnos sucessivos de alunos, reduzindo a educação primária não só aos três anos escolares de Washington Luís, mas aos três anos de meios dias, ou seja ano e meio e até, no grande S. Paulo, aos três anos de terços de dia, o que equivale realmente a um ano de vida escolar. Ao lado dessa simplificação na quantidade, seguiram-se, como não podia deixar de ser, tôdas as demais simplificações de qualidade. O resultado foi, por um lado, a quase destruição da instituição, por outro, a redução dos efeitos da escola à alfabetização improvisada e, sob vários aspectos, contraproducente, de que estamos a colhêr, nos adultos de hoje, exatamente os que começaram a sofrer os processos simplificadores da escola, a seara de confusão e demagogia.

Bem sei que não é só a escola primária fantasma, que êsse regime criou, a causa da mentalidade do nosso País, mas é triste saber que, além de tôdas as outras causas de nossa singular incongruência nacional, existe esta, que não é das menores, a própria escola, a qual, instituída para formar essa mentalidade, ajuda, pelo contrário, a sua deformação.

Os brasileiros, depois de trinta, são todos filhos da improvisação educacional, que não só liquidou a escola primária, como invadiu os arraiais do ensino secundário e superior e estendeu pelo País uma rêde de ginásios e universidades cuja falta de padrões e de seriedade atingiria as raias do ridículo, se não vivêssemos em época tão crítica e tão trágica, que os nossos olhos, cheios de apreensão e de susto, já não têm vigor para o riso ou a sátira.

É contra essa tendência à simplificação destrutiva que se levanta êste Centro Popular de Educação. Desejamos dar, de novo, à escola primária, o seu dia letivo completo. Desejamos dar-lhe os seus cinco anos de curso. E desejamos dar-lhe seu programa completo de leitura, aritmética e escrita, e mais ciências físicas e sociais, e mais artes industriais, desenho, música, dança e educação física. Além disso, desejamos que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare, realmente, a criança para a sua civilização – esta civilização tão difícil por ser uma civilização técnica e industrial e ainda mais difícil e complexa por estar em mutação permanente. E, além disso, desejamos que a escola dê saúde e alimento à criança, visto não ser possível educá-la no grau de desnutrição e abandono em que vive.

Tudo isso soa como algo de estapafúrdio e de visionário. Na realidade, estapafúrdios e visionários são os que julgam que se pode hoje formar uma nação pelo modo por que estamos destruindo a nossa.

Todos sentimos os perigos de desagregação em que estamos imersos. Essa desagregação não é uma opinião, mas um fato, um fato, por assim dizer, físico, ou, pelo menos, de física social. Com efeito, muito da desagregação corrente provém da velocidade das transformações por que estamos passando. A própria aceleração do tempo de processo social produz os deslocamentos, confusões e subversões a que todos assistimos e a que temos de remediar. O remédio, porém, não é fácil, antes duro, áspero e difícil. A tentação do paliativo ou da panacéia, por isto mesmo, inevitável. E há os que, parece, estão convencidos da inevitábilidade da desagregação, pois de outro modo não se explica aceitarem tão tranqüilamente o paliativo que, no máximo, produzirá aquêle retardamento indispensável para lhes ser poupado assistir, individualmente, à debacle final. Pertenço, não sei se feliz ou infelizmente, ao grupo que acredita poder-se dar remédio eficaz à nossa crise, que é um aspecto da grande crise em que se acha tôda a humanidade. Êsse remédio é, entretanto, fôrça é repeti-lo, sob muitas faces, heróico, como heróico é o sentimento de defesa que nos leva a armar-nos diante do perigo.

Se uma sociedade, como a brasileira, em que se encontram ingredientes tão incendiáveis, como os das suas desigualdades e iniqüidades sociais, entra em mudança e agitação acelerada, sacudida por movimentos e fôrças econômicas e sociais que não podemos controlar, está claro que a mais elementar prudência nos manda ver e examinar as molas e instituições em que se funda essa sociedade, para reforçá-las ou melhorá-las, a fim de que suas estruturas não se rompam ao impacto produzido pela rapidez da transformação social.

Essas instituições fundamentais são o Estado, a Igreja, a Família e a Escola. De tôdas elas, não parece controvertido afirmar que a mais deliberada, a mais intencional, a mais dirigível é a escola. Teremos, assim, de procurar, mais diretamente, atuar nessa instituição básica que, de certo modo, entre nós, deverá suprir as deficiências das demais instituições, tôdas elas em estado de defensiva e incapazes de atender, com segurança e eficácia, aos seus objetivos.

Ora, se assim é, a escola tem de ganhar uma inevitável ênfase, pois se transforma na instituição primária e fundamental da sociedade em transformação, e em transformação, queiramos ou não, precipitada.

Por isso é que êste Centro de Educação Popular tem as pretensões que sublinhei. É custoso e caro porque são custosos e caros os objetivos a que visa. Não se pode fazer educação barata – como não se pode fazer guerra barata. Se é a nossa defesa que estamos construindo, o seu preço nunca será demasiado caro, pois não há preço para a sobrevivência. Mas aí, exatamente, é que se ergue a grande dúvida nacional. Pode a educação garantir-nos a sobrevivência? Acredito que responderão todos afirmativamente a essa pergunta. Basta que reflitamos, sôbre a inviabilidade da criatura humana ineducável. Nenhum de nós discute que o anormal débil mental só pode sobreviver com o auxílio externo, não lhe sendo possível produzir nem sequer nutrir-se sòzinho. Ora o educável ineducado repete o caso do ineducável. Não. Todos sabemos que sem educação não há sobrevivência possível. A questão começa depois. A questão é sôbre a escola e não a educação. É sôbre a escola que o ceticismo nacional assesta os seus tiros tão certeiros e eficazes. O brasileiro não acredita que a escola eduque. E não acredita, porque a escola, que possui até hoje, efetivamente não educou.

Veja-se, pois, em que círculo vicioso se meteu a nação. Improvisa escolas de todo jeito porque não acredita em escolas senão como formalidade social e para preencher formalidade de nada mais se precisa do que de funcionários que conheçam as fórmulas – e porque só tem escolas improvisadas e inadequadas não acredita que escolas possam ser as formadoras eficientes de uma ordem social. Ouviu dizer, está claro, que a Alemanha foi feita pelo mestre-escola, ouviu dizer que o Japão era uma nação medieval nos fins do século passado e se transformou em uma nação altamente industrializada; ouve falar em todo o progresso ocidental dos últimos duzentos anos, sobrelevando espetacularmente o dos Estados Unidos, filho todo êle da ciência e das escolas; ouve falar que a Rússia se transformou em vinte anos e para isto fêz da escola um instrumento de poder incalculável; mas tudo isto lhe parece longe ou remoto. Em volta de si, vê escolas improvisadas ou desorganizadas, sem vigor nem seriedade, alinhavando programas e distribuindo, de qualquer modo, diplomas mais ou menos honoríficos. Como acreditar em escolas? Tem razão o povo brasileiro. E para que não tenha razão seria preciso que reconstruíssemos as escolas. É êste esfôrço que se está procurando aqui começar, senhor governador. Todo mundo sabe o que é educação. Qualquer pai ou qualquer mãe pode vir dizer-nos que coisa difícil e precária é educar. Em nossas casas, todos estamos vendo como, dia a dia, fica mais difícil exercer influência educativa sôbre os nossos filhos, arrebatados, como nós próprios, na voragem de mudanças, mutações e transformações sociais sem conta. Estas dificuldades se alargam, chegam à Igreja, chegam ao Estado e todos se sentem diminuídos em suas fôrças e em suas respectivas autoridades. Só um educador profissional, preparado para o mister, com tempo e sossêgo, em uma instituição especial, como a escola, poderá arcar com a tremenda responsabilidade do momento e da época. Mas, está claro, esta instituição tem que contar com meios à altura das dificuldades crescentes de sua função.

Daí esta escola, êste centro aparentemente visionário. Não é visionário, é modesto. O comêço que hoje inauguramos é modestíssimo: representa apenas um têrço do que virá a ser o Centro completo. Custará, não apenas os sete mil contos que custaram êstes três grupos escolares, mas alguns quinze mil mais. Além disto, será um centro apenas para 4.000 das 40.000 crianças que teremos, no mínimo, de abrigar nas escolas públicas desta nossa cidade. Deveremos possuir, e já não só êste, como mais 9 centros iguais a êste. Tudo isso pode parecer absurdo, entretanto, muito mais absurdo será marcharmos para o caos, para a desagregação e para o desaparecimento. E de nada menos estamos ameaçados. Os que estão, como cassandras, a anunciar e esperar a catástrofe e a subversão, irão fazer as escolas que deixamos de fazer para a vitória do seu regime. Se o nosso, o democrático, deve sobreviver, deveremos aparelhá-lo com o sistema educativo forte e eficaz que lhe pode dar essa sobrevivência. A inauguração que, hoje, aqui se faz, alimenta essa esperança e essa ambição. Bem sei que a ambição é desmedida, mas que medida tem a sobrevivência democrática?

Uma palavra ainda sôbre a organização do que estamos a chamar de Centro de Educação Popular, organização em que apoiamos a nossa confiança em seu êxito.

Recordo-me que a construção dêste Centro resultou de ordem de V. Ex.ª, certa vez em que se examinava o problema da chamada infância abandonada. Tive, então, oportunidade de ponderar que, entre nós, quase tôda a infância, com exceção de filhos de famílias abastadas, podia ser considerada abandonada. Pois, com efeito, se tinham pais, não tinham lares em que pudessem ser educados e se, aparentemente, tinham escolas, na realidade não as tinham, pois as mesmas haviam passado a simples casas em que as crianças eram recebidas por sessões de poucas horas, para um ensino deficiente e improvisado. No mínimo, as crianças brasileiras, que logram freqüentar escolas, estão abandonadas em metade do dia. E êste abandono é o bastante para desfazer o que, por acaso, tenha feito a escola na sua sessão matinal ou vespertina. Para remediar isso, sempre me pareceu que devíamos voltar à escola de tempo integral.

Tracejei, então, o plano dêste Centro que V. Ex.ª ordenou fôsse imediatamente iniciado. A escola primária seria dividida em dois setores, o da instrução, pròpriamente dita, ou seja da antiga escola de letras, e o da educação, propriamente dita, ou seja da escola ativa. No setor instrução, manter-se-ia o trabalho convencional da classe, o ensino de leitura, escrita e aritmética e mais ciências físicas e sociais, e no setor educação – as atividades socializantes, a educação artística, o trabalho manual e as artes industriais e a educação física. A escola seria construída em pavilhões, num conjunto de edifícios que melhor se ajustassem às suas diversas funções. Para economia tornava-se indispensável que se fixasse um número máximo para a matrícula de cada centro. Pareceu-nos que 4.000 seria êsse número, acima do qual não seria possível a manipulação administrativa.

Fixada, assim, a população escolar a ser atendida em cada centro, localizamos quatro pavilhões, como êste, para as escolas que chamamos de escolas-classe, isto é, escolas de ensino de letras e ciências, e um conjunto de edifícios centrais que designamos de escola-parque, onde se distribuiriam as outras funções do centro, isto é, as atividades sociais e artísticas, as atividades de trabalho e as atividades de educação física. A escola-classe aqui está: é um conjunto de 12 salas de aula, planejadas para o funcionamento melhor que fôr possível do ensino de letras e ciências, com disposições para administração e áreas de estar. É uma escola parcial e para funcionar em turnos. Mas virá integrá-la, a escola-parque. A criança fará um turno na escola-classe e um segundo turno na escola-parque. Nesta escola, além de locais para suas funções específicas, temos mais a biblioteca infantil, os dormitórios para 200 das 4.000 crianças atendidas pelo Centro e os serviços gerais e de alimentação. Além da reforma da escola, temos o acréscimo dêsse serviço de assistência, que se impõe, dadas as condições sociais. A criança, pois, terá um regime de semi-internato, recebendo educação e assistência alimentar. Cinco por cento dentre elas receberão mais o internato. Serão as crianças chamadas pròpriamente de abandonadas, sem pai nem mãe, que passarão a ser não as hóspedes infelizes de triste orfanatos, mas as residentes da escola-parque, às quais competirá a honra de hospedar as suas colegas, bem como a alegria de freqüentar, com elas, as escolas-classe.

Não poderei entrar aqui em detalhes do funcionamento, um tanto complexo, do centro, nem das dificuldades naturais da constituição do seu numeroso e variado corpo docente. Consitam-me, entretanto, uma observação. A maior dificuldade da educação primária, que, por sua natureza, é uma educação universal, é a de se obter um professor primário que possa atender a todos os requisitos de cultura e aptidão para um ensino tão vasto e tão diversificado. A organização do ensino primário em um centro desta complexidade vem, de certo modo, facilitar a tarefa sobremodo aumentada da escola elementar. Teremos os professores primários comuns para as escolas-classe, para a escola-parque, os professores primários especializados de música, de dança, de atividades dramáticas, de artes industriais, de desenho, de biblioteca, de educação física, recreação e jogos. Em vez de um pequenino gênio para tudo isto, muitos professôres diferenciados em dotes e aptidões para a realização da tarefa sem dúvida tremenda de formar e educar a infância nos seus aspectos fundamentais de cultura intelectual, social, artística e vocacional.

A escola primária terá, em seu conjunto, algo que lembra uma pequenina universidade infantil. Mas, de nada menos, repito, precisamos em nossa época, para ficarmos à altura das imposições que o progresso técnico e científico nos está a impor. Queiramos, ou não queiramos, vamo-nos transformar de uma sociedade primitiva em uma sociedade moderna e técnica. Os habitantes dêste bairro da Liberdade deixam um estágio anterior aos tempos bíblicos de agricultura e vida primitiva para imergirem em pleno báratro do século vinte. Ou organizamos para êles instituições capazes de lhes preparar os filhos para o nosso tempo, ou a sua intrusão na ordem atual terá o caráter das intrusões geológicas que subvertem e desagregam a ordem existente. O problema da educação é, por excelência, o problema de ordem e de paz no País. Daí, as linhas aparentemente exageradas em que o estamos planejando.

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