TEIXEIRA, Anísio. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.23, n.57, jan./mar. 1955. p.3-27.

BASES DA TEORIA LÓGlCA DE DEWEY

Anísio Teixeira
Diretor do I.N.E.P.

Solicitado a escrever sôbre o grande e velho mestre de filosofia, do qual me fiz discípulo, e não só dêle próprio, como de tôda uma plêiade de imediatos intérpretes e seguidores, que refletiam e multiplicavam, contemporâneamente, as irradiações de seu ensino, na Columbia University – devo prevenir de antemão os meus leitores que não lhes trago um estudo completo e a fundo, a respeito de uma dileta obra filosófica, de uma viva e seguida filosofia, que, entretanto, bem está a merecê-lo. Sôbre o grande filósofo contemporâneo John Dewey – filósofo da Educação e da Democracia, principalmente, e para muitos e a muitas luzes o maior ou até o único produzido pela grande nação em que nasceu e em que professou – não me permiti e não me podia permitir, atentem bem, face a face com a magnitude do assunto, senão simples esbôço ou tentativa de ensaio. E não me permiti sequer o propósito de ir além, obviamente por fôrça de contingências muito minhas, sem falsa modéstia o afirmo, mas também, afirmo-o, por fôrça das circunstâncias que me cercam e que cercam, quase diria cerceiam minha diuturna e absorvente atividade, oficial e pública. Tais circunstâncias não consentiram tentasse ao menos a superação, no momento, daquelas contingências. Tais circunstâncias ainda, ressalvas que são quanto ao que possa estar aquém da tarefa no presente estudo, não afetam, porém, o meu persistente aprêço pelo mestre insigne, nem a responsabilidade, a que nunca fugi, de inspirar-me e inspirar sempre, tanto quanto possível, o meu trabalho de educador brasileiro no seu pensamento filosófico, com o devido respeito às contingentes diferenças de lugar e de desenvolvimento, tendo em vista mais educação, para melhor vida e maior autenticidade democrática.

Está claro que não me anima o propósito de apreciar, na extensão de um artigo, tôda a filosofia de John Dewey. Um dos seus críticos, procurando examinar os pressupostos dessa filosofia, não se arreceia de enumerar nada menos de dez – organicismo, empiricismo, temporalismo, darwinismo, praticalismo, futurismo, inteligência criadora e evolução emergente, continuidade, moralismo, educacionalismo – cada um dos quais exigiria pelo menos tôda a nossa hora para ser sumariamente analisado.

Como uma das formas de análise das filosofias seria, na verdade, a análise dos pressupostos em que se fundam e de onde partem as coordenadas do seu horizonte intelectual, para analisar tôda a filosofia de Dewey teríamos de examinar cada um daqueles pressupostos e os múltiplos ou, pelo menos, diversificados universos que, de todos aquêles pontos de vista, nela se pode divisar. Na impossibilidade de realizar tal tarefa, procurarei fazer uma exposição das "bases da teoria lógica de Dewey", examinando, assim, uma das maiores contribuições do filósofo americano, de onde justamente decorre tôda uma nova teoria da educação, que vem revolucionando, desde que foi formulada, os processos educativos de nossa época.

A filosofia, para John Dewey, é um esfôrço de continuada conciliação (ou reconciliação) e ajustamento (ou reajustamento) entre a tradição e o conhecimento científico, entre as bases culturais do passado, ameaçadas de outro modo de dissociação e estancamento, e o presente que flui, cada vez mais rápido e rico, para um futuro cada vez mais precípite e amplo, ou seja entre o que já foi e o vir a ser, de modo a permitir e até assegurar integrações e reintegrações necessárias do velho no novo, já operante quando não ainda dominante, – e isso, tudo isso, por meio de uma crítica pertinente e percuciente, que distinga, selecione e ponha em relêvo os elementos fundamentais da situação ou do momento histórico, no propósito, sempre, de formular (ou reformular) não tanto verdades como perspectivas, ou sejam interpretações, valorizações e orientações que nos guiem a aventura da civilização e da própria vida.

Não falta quem afirme vivermos em uma época de confusão filosófica, sem diretrizes unificadas, perdidos entre múltiplos caminhos. No entanto, como diz Dewey, as brigas dos filósofos são brigas de família. Todos se encontram na premissa comum, em que se firmam, de uma "realidade" superior à precariedade e contingência do universo. Divorciados, assim, do carácter essencialmente contingente e temporal dêsse mesmo universo, os filósofos, por isso mesmo e em última análise, se perdem nos particularismos dos seus respectivos temperamentos.

A filosofia de John Dewey (como a de James e a de Peirce, e na Europa, até certo ponto a de Bergson) refoge a essa comum obsessão dos filósofos e, pelo contrário, apóia-se na própria contingência e precariedade do mundo, fundando a interpretação do homem e do seu meio e o sentido da vida humana no próprio risco e aventura do tempo e da mudança. A contingência mesma do mundo faz dêle um mundo de oportunidades, um mundo em permanente reconstrução, um mundo em marcha, com suas repetições e suas novidades, cousas acabadas e cousas incompletas, uniformidades e variedades, em que o presente é uma junção entre um "teimoso passado" e um "insistente futuro". Nesse imenso processo há, ao lado do determinado, regular e irrecorrível, o indeterminado, o irregular, o recorrível; ao lado do fatal, o eventual; e daí ser possível a ação e a direção. O homem constitui um dos agentes, entre os muitos outros agentes – cósmicos, físicos e biológicos – da transformação do universo. O instrumento dessa contínua transformação é a experiência concebida como uma ocorrência cósmica. O inorgânico, o orgânico e o humano agem e reagem, pela experiência, num amplo, múltiplo e indefinido processo de repetições e renovações, de ires e vires, de uniformidades e variedades, de fatalidades e imprevistos, graças a cujo processo se tornam possíveis, de um lado, a predição e o contrôle e, de outro, a oportunidade e a aventura.

Todos os sêres vivos agem e reagem em seu meio, alterando-se e alterando o universo. E o homem exalta êsse processo de interação e experiência. Graças à linguagem, torna a experiência cumulativa e, com o auxílio do seu registro simbólico, ela mesma objeto da experiência. Essa experiência da experiência o leva à descoberta das suas leis, com o que acrescenta uma dimensão nova ao universo – a da direção da experiência, abrindo as portas a desenvolvimentos insuspeitados nas ordens e desordens, harmonias e confusões, seguranças e incertezas do mundo, que constitui o seu meio e que êle passa a transformar em seu benefício.

As leis da experiência, obtidas pela reflexão sôbre a experiência, são as próprias leis do conhecimento e do saber, que o homem traz ao mundo como um fator novo para a sua evolução. Daí dar Dewey à sua filosofia da experiência e à teoria da indagação ou da investigação – ("theory of inquiry"), que representa a lógica da experiência e da descoberta, a importância que lhe dá, considerando a sua hipótese ou teoria lógica, ou outra que a substitua com idêntica amplitude e finalidade, não o suficiente para harmonizar a casa dividida do pensamento humano, mas a condição necessária para se tornar possível a restauração da unidade e integração que, em outras épocas, teria podido o homem gozar em sua vida no planeta, então em condições simples e limitadas, agora em condições de culminante complexidade e amplitude.

A essência da hipótese ou teoria lógica de Dewey consiste, em última análise, na generalização do chamado método científico, não só a tôdas as áreas do conhecimento humano, como também ao próprio comportamento usual e costumeiro do homem.

A lógica ou teoria do conhecimento de Dewey, ("Logic – theory of inquiry ") funda-se, com efeito, no exame do processo de adquirir o conhecimento.

Como conseguimos nós o conhecimento? Não parte êle do conhecimento como um produto acabado, para indagar de sua validez ou de sua possibilidade, mas dos fatos crus da existência: que faz e como faz o homem para obter o conhecimento? Se fôr possível descrever a experiência humana do conhecimento, ai se deverão encontrar os elementos para uma teoria dessa experiência, isto é, a teoria da investigação, da busca do conhecimento, que seria a própria lógica, no seu objetivo último.

Ora, o conhecimento, diz Dewey, é o resultado de uma atividade que se origina em uma situação de perplexidade e que se encerra com a resolução desta situação. A perplexidade é uma situação indeterminada e o conhecimento é o elemento de contrôle, de determinação da situação. Se tudo, na existência, transcorre em perfeito equilíbrio, não há, propriamente, que buscar saber ou conhecer, mas, quando muito, um re-conhecer automático. Quebrou-se, porém, o equilíbrio. Ouço, digamos, um ruído estranho, ou significativo, ou inesperado. Algo sucedeu e o meu mundo se perturbou. Procuro ver o que é. Observo, indago, investigo, apuro e verifico. Sei, então, o que se deu. Restabelece-se o equilíbrio e prossigo em minha atividade. Conhecer, saber é, assim, uma operação, uma ação que transforma o mundo e lhe restaura o equilíbrio. Estou agora seguro, sei, voltei à tranqüilidade e posso dar livre curso à vida. A situação indeterminada tornou-se determinada, ficou sob contrôle, em virtude do conhecimento que adquiri. Saber, assim, não é aprender noções já sabidas, não é familiarizar-se com a bagagem anterior de informações e conhecimentos; mas, descobri-Ias de novo, operando como se fôssemos seus descobridores originais. "Tomar o conhecimento já formulado ou apontar para êste conhecimento não é, diz expressamente Dewey, um caso de conhecimento, tanto quanto tomar um formão de uma caixa de ferramenta não é fazer êste formão".

O conhecimento, pois, é o resultado de um processo de indagação. E a marcha dêste processo de pesquisa é o que Dewey chama de lógica. Vale dizer: lógica é o processo do pensamento reflexivo; "conhecimento" é o resultado dêste processo; o "já conhecido" é o "material", que usamos no operar a investigação ou a pesquisa. Mas êste material só será devidamente, adequadamente utilizado, se, no processo pelo qual o tivermos adquirido ou aprendido, tivermos operado como se êle houvesse sido descoberto por nós próprios.

Não escondo que, à primeira vista, a hipótese de Dewey chega a parecer desconcertante, de tal modo se alteram os conceitos usuais a respeito do que é saber, aprender, estudar, etc. Sempre que observamos, entretanto, alguém que sabe e como procede êste alguém, seja um grande matemático, um grande artista, ou o nosso serralheiro, veremos que sòmente sabe porque resolve – e do modo por que Dewey procura descrever – os problemas que seu campo de conhecimento lhe oferece. O seu saber significa capacidade de localizar e definir a dificuldade, capacidade de descobrir e utilizar os "dados" da situação e os conhecimentos já existentes, e de manipulá-los devidamente para chegar a conclusões fundadas, porque verificadas ou comprovadas.

Fora disso, não há saber, mas apenas hábitos, mais e menos felizes, de usar palavras, de falar sôbre as cousas, de descrever e classificar fatos e idéias, podendo levar, nos melhores casos, a certas satisfações de natureza estética, a estimular a imaginação para certos estados agradáveis de meia-compreensão. Saber, porem, no sentido da linguagem comum ou da linguagem dos sábios – que é a mesma – não haverá em tais casos. Daí não ser raro, sobretudo entre nós, considerarem-se os triunfos intelectuais como triunfos estéticos: "Saiu-se admiravelmente!", "Impressionou muito bem", "Você esteve ótimo", "Falou muito bonito", etc, etc. Há uma deliciosa ironia e uma penetrante intuição nesta nossa forma, tão popular, de se julgarem os triunfos de conhecimento sôbre as cousas, a que nos levam os hábitos da lógica tradicional, da definição e demonstração apenas.

A lógica de Dewey e sua correspondente teoria do conhecimento, pelo contrário, tornam a operação experimental essencial ao processo do conhecimento. Lógica não é a teoria do "conhecimento adquirido" nem a da sua "demonstração"; mas, sim, a teoria do "processo de adquirir o conhecimento", no qual o "conhecimento adquirido" é o têrmo limite, o têrmo final.

A filosofia, para Dewey, é um processo de crítica, isto é, de discriminação, seleção e ênfase, pelo qual se descubram os elementos e critérios de direção e orientação da vida humana, em tôda a sua extensão e complexidade. A filosofia é uma teoria da vida. E a lógica, em última análise, uma teoria da vida intelectual, isto é, uma teoria do pensamento, da experiência reflexiva.

O escolho geral das teorias filosóficas do conhecimento consiste em seleções e ênfases falazes. E é para evitá-lo que parte Dewey da análise e do processo mais primitivo da tentativa de pensar do homem – "dúvida – investigação" – e constrói, à luz desta análise, o seu sistema de "formas" e critérios lógicos. Todos os têrmos do processo lógico sofrem uma reformulação.

E esta reformulação não a reputa Dewey mais verdadeira do que outras, pois, a questão, nas teorias, como são hoje concebidas, não é de verdade, mas de plausibilidade, de validade, de eficácia. Consegue a sua hipótese cobrir todo o campo dos fatos lógicos e explicar as suas dificuldades? A realidade é que a sua teoria pode não ser explicitamente aceita, mas é efetivamente praticada tanto no processo empírico de obtenção do conhecimento, quanto no processo científico, que corresponde a um refinamento e enriquecimento do processo empírico, não havendo entre ambos senão diferenças de grau, de precisão e de segurança. Para Dewey as próprias "formas" lógicas se originam de e no processo de indagação, inquérito ou investigação. Não pré-existem ao processo de indagação; mas, formam-se no e pelo processo mesmo de indagação, e são os instrumentos de direção e contrôle dêsse processo. Foi a necessidade humana de indagar, de inquirir, de pesquisar que produziu as formas lógicas, de que nos utilizamos em nosso modo de pensar e em que nos fundamos para nos conduzir inteligentemente na vida e obter os conhecimentos e o saber.

"A teoria lógica de Dewey é a de que tôdas as formas lógicas (com as suas características próprias) originam-se da operação de investigação e dizem respeito ao contrôle dêsse processo de investigação, de modo a levá-lo a produzir asserções garantidas".

Dewey identifica, assim, a lógica com a metodologia e com o método científico. Sua hipótese é a de que o método experimental ou científico de pesquisa é a própria lógica. Esta, a hipótese que Dewey opõe às demais hipóteses ou teorias das formas lógicas. Para êle estas formas decorrem e resultam da atividade de investigação, na qual se podem encontrar os princípios e critérios necessários à direção orientada e eficaz de nossas atividades intelectuais.

A primeira objeção seria, como admite o próprio Dewey, a de que o processo de investigação pressupõe a lógica e não pode ser êle próprio a fons et origo das formas lógicas. Por menos provável que o pareça, entretanto, a realidade é que o processo elaborou e está a elaborar estas "formas" lógicas. Todo avanço no processo de obter o conhecimento proveio de auto-correção dêste mesmo processo. Todo o progresso científico moderno – "experimental" - é um progresso por auto-correção do processo de investigação. Desde o começo, o homem é o animal que pergunta, que indaga, que busca – e que responde e acha. O processo pelo qual conduziu sua busca constitui a história do pensamento humano. E tal história é também a história das formas lógicas, que não são exteriores ao processo de pensar, embora originárías e originadas da própria experiência de pensar. – Que é pensar, senão indagar e buscar a solução de um problema, de uma dificuldade? – Se a indagação é o início; o fim, como objetivo em vista e como término, é o estabelecimento de uma situação que responde à indagação, que re-solve a dúvida, dando lugar à crença e ao conhecimento, que Dewey prefere chamar "assertibilidade garantida" (warranted assertibility) ou "asserção garantida" (warranted assertion), preferindo a primeira forma, potencial, para indicar que todo conhecimento é um produto provisório de investigações competentes e não algo que exista por si e seja, por uma vez, definitivamente estabelecido. (* )

Racionalidade, razoabilidade ou razão significa apenas relação, adequação entre meios e fins, como é aliás o seu sentido usual. Transformou-se esta relação em uma faculdade – a "Razão", pela qual o homem conquistaria as verdades primeiras, os axiomas, as evidências por si mesmas. Hoje, sabe-se que tôdas as evidências são postulados, são apenas definições, nem falsas nem verdadeiras, que têm de ser julgadas em face das conseqüências que se lhes seguem ou que lhes são implícitas. Tanto em matemática quanto em física, hoje, fórmulas e postulados servem de base e deduções desenvolvidas de acôrdo com regras precisas de implicação. Mas, o valor da dedução não é determinado pela correção do método dedutivo, que se lhe aplicou, e sim pelas operações de observação experimental que vão, no final, determinar o valor científico do princípio deduzido. A hipótese de Dewey consiste na generalização da relação "meios-conseqüências", característica da pesquisa matemática e física. Todas as formas lógicas são exemplos da relação entre meios e conseqüências, orientadora da investigação adequadamente "controlada", contrôle correspondendo a métodos de pesquisa desenvolvidos e aperfeiçoados no próprio processo, permanentemente repelido e renovado, da contínua pesquisa, em que se transformou o esfôrço intelectual do homem.

Tomemos os próprios "primeiros princípios" – de identidade, de contradição e do terço excluído. Segundo Dewey, estes princípios representam tão somente condições que vieram a se estabelecer no curso imemorial da indefinida indagação humana. Práticamente, isto significa que tais princípios são os invariantes dos objetos ou situações com que lidam os processos de investigação. Teóricamente, a posição de Dewey, ao considerar tais primeiros princípios como resultados formulados do próprio processo empírico de inquérito, elimina o desconcertante "problema" da sua existência a priori ou da sua externalidade ao processo de pesquisa, e abre caminho para novos desenvolvimentos lógicos. Acompanhando Peirce, considera-os "primeiros" porque são os princípios alentadores, ou de direção. Resultaram da formulação de hábitos de operação em relação a inferências, capazes de produzir conclusões seguras no processo de pesquisa ou investigação, frutuosos para novas investigações ou pesquisas. São "princípios", porque correspondem a formulações tão amplas e gerais, que se aplicam a qualquer objeto particular, sendo por isto formais e não materiais, embora sejam formas da matéria sujeitas, em cada caso, à investigação ou pesquisa. E sua validade decorre da coerência das conseqüências produzidas por tais hábitos de inferência, de que são a expressão articulada.

Se hábitos são modos ou maneiras de agir; hábitos devidamente formulados transformam-se em "princípios" ou "leis" de ação. Não são premissas, mas condições a serem atendidas e obedecidas. O conhecimento destas condições permite orientar-nos, ter à mão um começo de direção e de prova, no tratamento dos elementos da investigação.

A hipótese de Dewey, cujos fundamentos vamos passar a examinar, faz da lógica uma ciência experimental e, como tal, progressiva, cujo objeto é determinado operacionalmente (operações com material existencial e operações com símbolos) e cujas "formas" são postulados, isto é, convenções construídas especulativamente e comprovadas pela experiência, podendo assim mudar. Sendo uma ciência natural, contínua com as teorias física e biológica, nem por isto deixa de ser social, porque lida com o humano e o humano é naturalmente social. Além disto, a lógica é uma ciência autônoma, no sentido de que suas "formas", princípios, normas ou leis decorrem do estudo da "investigação ou indagação ou inquérito", como tal, e não de algo externo, sejam intuições apriorísticas ou pressupostos metafísicos.

Não é possível, numa conferência, reproduzir todo o tratado da lógica da investigação e da descoberta, que Dewey desenvolve em seu Logic-Theory of Inquiry, fundado em sua nova hipótese. Desejamos aqui, tão somente, mostrar, seguindo o nosso autor tão de perto quanto possível, as bases naturalísticas – biológicas e culturais – da sua teoria experimental da lógica e indicar algumas de suas conseqüências na unificação dos processos usuais e científicos de investigação, ou seja da busca do conhecimento de ordem prática e do saber de natureza científica.

Todo o universo é um conjunto de processos de interação, de atividades associadas, de histórias e de história, em que há começos, operações intermediárias e conclusões, que iniciam, por sua vez, outros processos e, assim, indefinidamente. Uniformidades, variedades, seqüências e conseqüências constituem, portanto, característicos do próprio cosmos, da própria natureza. Neste mesmo universo, os sêres vivos, dotados de energia organizada, ainda mais acentuam os traços aludidos, constituindo-se em outros e novos números de ação e reação com o meio em que vivem e por que vivem. Os organismos, com efeito, não vivem em um meio – mas por meio de seus respectivos meios. Graças a uma tão sinérgica participação de uns nos outros, ambos se modificam, organismos e meios, fazendo-se e se refazendo, neste e por êste intercâmbio. E tal atividade em comum, partilhada ou conjugada, já contém, de logo seja dito, os elementos que, na vida superior, vão produzir o que chamamos de pensamento, de lógica, de razão e de inteligência, no plano humano e social.

O comportamento do ser vivo, com efeito, consiste num conjunto de atividades em série, pelas quais mantém o seu estado de adequação com o ambiente. Mesmo nos níveis mais elementares de vida vamos encontrar os elementos espaciais e temporais do processo ou norma fundamental: equilíbrio ou integração – distúrbio, tensão ou desequilíbrio – busca, manipulação ou operação – satisfação ou reintegração. Nesta seqüência, cada passo corresponde a uma situação real entre o organismo e o meio, envolvendo manipulações do meio e alterações do organismo, em interações, que redundam em uma nova relação, não simplesmente restauradora, mas re-integradora.

Dewey insiste nesse ponto, de real importância teórica, pois o ser vivo não tende nunca ao estacionário, mas a uma nova integração, contingente a um processo de desenvolvimento ou de crescimento, que, nos sêres superiores, vai transformar-se em um processo praticamente indefinido. Quando o ser vivo é de ordem superior e dispõe de órgãos de locomoção e de receptores à distância, isto é, sentidos, as suas relações com o meio se fazem cada vez mais complexas, envolvendo as funções da vida atos iniciais ou preparatórios, atos intermediários e atos finais, com alternativas, solicitações contraditórias ou mesmo antagônicas, escolha e utilização dêste ou daquêle recurso, eliminação dêste ou daquele obstáculo, enfim um comportamento, em que se prenuncia já a série - previsão, plano, experimentação, conclusão – que vamos encontrar mais tarde no homem.

O circuito do comportamento biológico compreende, assim, uma fase inicial ou "aberta", como diz Dewey, que corresponde a um estado geral de tensão do organismo, e uma fase final ou "fechada", que é a restauração da inter-ação integrada do organismo com o ambiente, com alterações reais de um e outro (pelo menos no caso dos organismos superiores); do primeiro, pela reintegração do seu equilíbrio dinâmico, e do segundo (o ambiente), pelo estabelecimento de condições satisfatórias.

A modificação operada no organismo constitui o que chamamos de hábito, que consiste em mudanças de estruturas e é a base da aprendizagem orgânica. O hábito é a aquisição pelo organismo de certa propensão ou predisposição a atuar de certo modo, para chegar mais facilmente ou mais diretamente à fase consumatória do comportamento. Não é essencialmente uma inclinação à repetição, que se dá apenas quando o ambiente se conserva idêntico. Se houver alteração no ambiente, já o hábito se apresenta como a disposição para se reintegrar na nova situação, com as alterações de reajustamento indispensáveis.

Temos, pois, na própria atividade dos sêres vivos, em geral, a matriz do comportamento lógico. A norma do comportamento biológico prefigura, segundo Dewey, a norma da atividade inquiridora que, no homem, vai-se transformar em uma atividade em si mesma, na busca, na indagação, na investigação, no processo de obter o conhecimento pelo conhecimento, sem, entretanto, deixar de ser também o seu processo usual de permanente reajustamento, de ser vivo, primeiro, e, afinal, de ser humano. A lógica da investigação ou da busca do conhecimento é, a réplica, em nível mais alto, da lógica germinal da atividade biológica. A investigação, pois, a indagação, o perguntar, a pesquisa, a "busca inquieta da verdade", como dizemos, não é algo que sucede na "mente", nem siquer no organismo, isoladamente; mas algo que caracteriza uma situação real do organismo e do meio, uma situação de desequilíbrio, indeterminação, distúrbio, dúvida ou perplexidade, e que suscita o processo de inquirição ou pesquisa, que êste é o processo pelo qual se opera a restauração do equilíbrio e a determinação da situação indeterminada que lhe deu origem.

Organismo e mundo não existem independentemente, desde que o "mundo" se faz o "meio" de um ser vivo, isto é, o conjunto de condições pelos quais êle vive. Organismo-meio constitui um todo. Os dois só existem independentemente nas fases de desintegração, que se resolvem com a re-integração, se a vida continua. Na realidade, insistimos, a estrutura e o curso do comportamento consuetudinário do ser vivo seguem um itinerário espacial e temporal, que prefigura já as fases do processo consciente de pesquisa. Com efeito, de um estado de ajustamento que entra em perturbação, nasce uma situação problemática, indeterminada, que provoca no organismo atividades de inquietação, de indagação, de busca, de exploração, de manipulação, as quais, se bem sucedidas, conduzem o organismo à sua re-integração nas condições ajustadas de vida, pela resolução da indeterminação ou satisfação da necessidade.

E a análise dêsse processo usual de reajustamento do organismo em face das exigências da vida, revela-nos pelos menos três aspectos que antecipam a configuração do processo de investigação, como o concebe Dewey, na vida humana:

Primeiro: – o curso completo do processo "necessidade – tensão – satisfação" determina sempre alguma mudança nas condições do meio especial do organismo e do próprio organismo;

Segundo: – todo o processo segue um curso seriado ou conseqüente, implicando previsão de fins ou objetivos, recordação de situações anteriores, etc., etc.

Terceiro: – as atividades e operações por meio das quais atinge o ser vivo a fase consumatória do processo são, por definição, intermediárias, instrumentais, e êste aspecto do comportamento biológico antecipa o caracter das operações de inferência e de discurso do processo de investigação ou pesquisa propriamente dito, em relação com os juízos conclusivos e finais.

A importância básica da relação serial, em lógica, está, assim, enraizada nas condições mesmas da própria vida. A atividade dos sêres vivos importa em modificação das energias do organismo e em modificações do próprio meio natural, antecipando, portanto, a aprendizagem e a descoberta. No simples processo de viver – processo biológico – há, pois, um fermento permanente, pelo qual as necessidades são atendidas de forma a que a re-integração não seja simplesmente a volta ao estado anterior, mas a criação de um novo estado ou situação, com suas novas necessidades e seus novos problemas. O que o organismo aprende coloca-o em condições de fazer novas exigências em relação ao ambiente. No complexo estágio humano, a deliberada formulação de problemas se transforma em um objeto de atividade em si mesma e, dêste modo, a investigação em uma atividade permanente e, teoricamente, indefinida ...

Admitido o postulado dessa continuidade entre interação e integração orgânica e o processo de investigação ou pesquisa, logo vemos que desaparecem os problemas do subjetivismo psicológico ou os das relações entre processos mentais e processos lógicos. O processo de investigação não é nenhum ato da mente em si e por si, mas, uma interação, ainda ou sempre, entre o organismo e o meio, tão material e física e funcionalmente em nada diferente da digestão, digamos. A psicologia é necessária ao seu estudo como a fisiologia é necessária ao estudo da digestão. E o objeto da lógica consiste em atividades de observação e de operação, em suma tão materiais, objetivas e concretas quanto os de qualquer outra ciência. Assim, como qualquer outra ciência, pode a lógica acertar e errar - pois há em tôda investigação o risco de discrepância entre a situação existente e a sua manipulação, que são o presente, e as conseqüências decorrentes, que são o futuro. Seja o comportamento biológico, seja a investigação deliberada, isto é, o processo lógico, operam corretamente na medida em que 1) as condições existentes são semelhantes às que contribuíram no passado para a formação dos hábitos existentes de ação ou de investigação e 2) em que êsses hábitos se conservam flexíveis para se readaptarem facilmente a novas condições que ocorram ou possam ocorrer.

Dêsse modo se pode ver que, no comportamento biológico, já se insinuam todos os elementos essenciais da investigação deliberada que se vai encontrar no homem, até mesmo a necessidade que os próprios hábitos organicos, como as conclusões de pesquisa humana, sejam provisórios e condicionais, exigindo constante readaptação e revisão. O comportamento, pois, dos sêres vivos, em relação com o seu meio físico, constitui a matriz biológica, repitamos, do comportamento inteligente, do ato de investigação lógica e racional do ser humano.

* * *

Os sêres humanos, entretanto, não vivem somente em um meio físico, mas, em uma "cultura", que impregna e transforma seus próprios comportamentos biológicos. Êsse meio "cultural" consiste em todo um sistema de sinais, significações, símbolos, instrumentos, artes, instituições, tradições e crenças. O físico e orgânico se fazem agora, êles próprios, sociais. E não apenas sociais, como nas formigas e abelhas, que dispõem de estruturas orgânicas para se comportarem socialmente. Mas, sociais por aprendizagem, por aquisição, por herança social. Luz, fogo e som que, no nível biológico, constituem condições, diríamos, lineares, determinando comportamentos realísticos, no nível cultural transformam-se de realidades existenciais em realidades significativas, passando a ser iluminação, aquecimento, música... As relações dos homens entre si e com o seu meio adquirem um novo nível, dominado por símbolos e "sentidos", que têm de ser aprendidos e adquiridos, para a necessária integração social.

Tal transformação importa em fazer que o comportamento biológico se torne um comportamento intelectual. E não só importa. O meio social, agora, o exige. O comportamento puramente biológico indica, antecipa operações intelectuais, mas não as exemplifica. Com a cultura, com a linguagem, o comportamento humano se faz simbólico, e não há como usar símbolos sem que o conteúdo do comportamento se faça intelectual, pois os símbolos precisam ser compreendidos de maneira comum, isto é, corrente e geral, e de maneira objetiva, isto é, impessoal. Desde que meu comportamento é geral e objetivo, o meu comportamento é intelectual.

Vejamos, com efeito, o que se passa no comportamento orgânico do homem, transformado pelo simbolismo da linguagem, em seu sentido mais amplo.

Em virtude dos novos elementos culturais que o passam a integrar, o comportamento humano já não é somente um processo de relações com o meio e com os outros indivíduos mas de associação com um sistema de símbolos e significações, de sentido e uso comum ou geral. Determina isto que os passos sucessivos do comportamento humano constituam atos partilhados pelos outros ou que tenham para os outros a mesma significação que, para o indivíduo que os pratica, o que importa em atos de compreensão comum ou objetiva e na eliminação deliberada de emoções e desejos, susceptíveis de influir nos resultados a atingir, pois êstes resultados têm de ser comuns, isto é, percebidos e, partilhados por todos. O comportamento humano é, assim, especìficamente intelectual, envolvendo objetividade, imparcialidade e, por isto que implica percepção de relações entre símbolos e significações, extra-temporalidade.

A transposição do orgânico para o simbólico, isto é, o intelectual, com as suas inevitáveis características lógicas, resulta, assim, de viverem os homens em uma "cultura", que os compele a integrar, pela aprendizagem, no seu comportamento, os costumes, crenças, instituições, significados e símbolos, que são necessàriamente gerais ou comuns e objetivos.

Nessa transformação, a linguagem, já o indicamos, tem papel singular. Com efeito, embora, sob certo ponto de vista, seja apenas mais uma instituição, é por ela que as outras, instituições e hábitos se transmitem. Dêste jeito, a linguagem faz-se a forma e o instrumento de tôdas as atividades culturais e como, além disto, tem ela própria uma estrutura característica, que constitui, por si mesma, uma "forma", a linguagem, històricamente, influiu na formulação da teoria lógica. Em rigor, a lógica se fez a lógica da linguagem, a lógica do discurso. Considerada nos seus aspectos mais amplos, compreendendo não sòmente a linguagem falada e escrita, mas os gestos, os ritos, as cerimônias, os monumentos e os produtos das belas artes e das artes industriais, a linguagem constitui não só a condição necessária, como também a condição suficiente para a existência de formas lógicas, e não apenas orgânicas, de atividade entre os homens. Pelo fato de exigir de cada indivíduo tomar o ponto de vista de outros indivíduos e passar a ver e agir de modo comum a êles, como participantes de um empreendimento entendido de maneira comum, a linguagem compele-o a um comportamento lógico, isto é, geral e objetivo. Geral, porque comum e não individual, e objetivo, porque não autístico.

A linguagem é originariamente uma forma de comunicação, e não de refletir e raciocinar; mas, para que haja "comunicação", é indispensável que os seus símbolos e significados tenham sentido existencial comum e sejam percebidos como tais em relação a atividades reais e concretas. Ora, isto não é possível sem a percepção dos significados e sentidos comuns das palavras em suas relações e conexões com as cousas e as pessoas. A palavra não é, com efeito, algo em si mesmo, mas o sinal ou símbolo de determinada operação, existencial ou possível, e de sentido comum. O seu uso, portanto, envolve a capacidade de um comportamento que transcende a direta reação ao meio físico, para responder a êste meio levando em conta relações complexas, extra-individuais e extra-temporais de símbolos, significados e sentidos. Além disto, não só a palavra é um símbolo representativo de algo mais do que ela própria, como seu sentido não depende apenas dela, mas do contexto em que estiver inserida, constituindo parcela de todo um sistema. Usar, pois, a fala é, de fato, comportar-se de um modo geral, objetivo e sistemático – características , de um comportamento lógico.

Usar a linguagem, diz Dewey, é usar um código e usar um código envolve operações do mais alto caracter lógico. A linguagem compreende sinais, ou sejam sinais naturais, e símbolos, ou sejam sinais artificiais. Os sinais naturais existem na vida animal: "isto" significa "aquilo", "disto" se infere "aquilo"; fumo significa fogo. . . Mas, os símbolos ou sinais artificiais só existem na linguagem humana. "Isto" representa, "quer dizer" "aquilo"... O símbolo importa em um novo nível, uma nova transcendência: pode ser usado sem existência material de cousa ou de fato, que simboliza ou lhe dá sentido; o que permite o discurso e libera a palavra das existências materiais. A relação sinal-significado é uma relação de inferência, de algum modo possível na vida animal. A relação "símbolo-quer-dizer" é uma relação de implicação. As duas relações são diferentes e abrem caminho para todo um mundo novo de percepção e de conceituação. O jôgo das relações dos símbolos entre si (relações), dos símbolos com existências (referência) e das cousas entre si (conexões), que permitem as inferências, vai permitir comportamentos humanos de requintada complexidade, conseqüentes as multidimensionalismo que a palavra, assim, empresta à realidade de tais comportamentos.

Nada mais natural, digamos, portanto, que o comportamento animal, concreto, prático e realístico, se tenha feito, no nível humano, um comportamento "mágico", desviando o homem por tão longas idades para os estranhos mundos de sua vida de mitos e ritos e irracionalismos. O nível simbólico do seu comportamento tanto o poderia levar para o progresso sôbre o comportamento animal, como o poderia desviar da realidade e criar-lhe um mundo fantasmagórico. O seu novo poder era, como todos os poderes, um poder de que tinha de aprender a se defender. Tôda uma série de lógicas criou êle até chegar à formulação lógica da ciência, que mais não é que sistemas controlados de proposições simbólicas relacionadas, entre si, e susceptíveis de desenvolvimento, por si mesmas, mantendo, entretanto, relações com existências, e constituindo um sistema de referências, as quais se concretizam nas operações de aplicação, em que se comprova a validez das proposições, em virtude das conexões (relações) que existem entre as cousas. Tais conexões ou relações é que justificam as inferências; estas levam, por sua vez, à descoberta de novas relações; por seu turno as novas relações conduzem ainda a novas bases para inferências ... E somente a linguagem permite jogar com tôdas essas relações em seus diferentes aspectos, de forma relativamente fácil e cômoda, determinando a elevação do comportamento animal ao nível de um comportamento intelectual, que, devidamente formulado, vem a constituir sua própria teoria lógica. A linguagem não originou o comportamento associado e inteligente, mas deu-lhe novas "formas", de modo a dar à experiência uma nova dimensão e um novo nível.

Não é difícil, em face do expôsto, admitir, com Dewey, que o ato de investigação, isto é, o ato de conhecer e sua teoria lógica, tem na cultura, que caracteriza o ambiente humano, a sua outra ou nova, matriz – sua matriz cultural. Com efeito, resumindo o argumento, podemos notar que:

1) "Cultura", em oposição a "natureza", é sobretudo uma condição e um produto da linguagem. Como por ela é que se retêm e se transmitem às gerações subseqüentes as habilidades, informações e hábitos adquiridos, é uma condição da cultura. Mas, como os significados e sentidos das palavras diferem de cultura para cultura, a linguagem também é um produto da cultura.

2) Graças à cultura, as atividades orgânicas ou biológicas, já humanas a esta altura, ganham novas características. Comer faz-se festa; buscar alimento, a arte da agricultura e da troca; o amor, a instituição da família ...

3) Sem a linguagem ou os símbolos-significantes, os resultados da experiência anterior ficariam apenas retidos nas modificações orgânicas, modificações que uma vez processadas tendem a se fixar. A existência de símbolos (da linguagem) permite recordar e esperar deliberadamente e, dêste modo, criar novas combinações dos elementos componentes da experiência, revivida sob forma simbólica ou verbal.

4) As atividades orgânicas terminam em ação, que é irreversível. Mas, se uma atividade pode ser figurada em representação simbólica, não há um compromisso final. E se a representação da conseqüência não fôr agradável, pode-se evitar a ação ou replanejá-la, de modo a evitar o resultado indesejável.

Essas transformações do comportamento basicamente biológico, graças à cultura e à linguagem, fornecem os requisitos para o comportamento intelectual do homem. O uso de símbolos nas operações de exame dos projetos ou fins em vista, como uma representação das atividades pelas quais os fins podem ser realizados, é, pelo menos, já uma forma rudimentar de raciocinar, que, uma vez instituída, é susceptível de desenvolvimento indefinido. E o ordenado desenvolvimento de símbolos, em sua relação uns com os outros, uma vez estabelecido, transforma-se em um interesse em si mesmo. Então, as condições lógicas, implícitas nestas relações, tornam-se explícitas, e alguma forma de teoria lógica aparece. Êste primeiro passo foi empreendido, quando alguém, refletindo sôbre a linguagem em suas estruturas sintáticas, lhe descobriu a riqueza dos conteúdos e significações, e de suas relações mútuas.

* * *

A linguagem e o meio cultural fazem, por fim e assim, do homem o ser raciocinante, o animal racional de que falava Aristóteles. As suas necessidades e as suas dificuldades fazem-se problemas, que são resolvidos pelas instituições, pelos hábitos, pelas crenças, pelas artes e pelos conhecimentos, que construiu e obteve no seu processo de experiência, de tal modo transformado em um processo contínuo de investigação, aprendizagem e descoberta.

Os problemas suscitados pela própria necessidade de viver não são ainda, entretanto, os problemas específicos do conhecimento pelo conhecimento, ou do saber pelo saber. São antes os problemas ordinários da vida, – embora já de uma vida social evoluída, - problemas práticos de uso e gôzo das cousas, das artes e mesmo das idéias correntes. Dewey distingue tais problemas dos problemas científicos e, conseqüentemente, a "investigação do senso comum" da "investigação do tipo científico". Tal distinção, cumpre notar, não significa dualismo. Tenha-se sempre presente que o princípio de continuidade é o grande princípio diretor do pensamento deweyano.

O comportamento dos sêres vivos superiores já é um comportamento, conforme acentuamos, que envolve situações indeterminadas e a solução dessas situações, sendo, portanto, operacionalmente, lógico, embora sem possibilidade, ainda, de qualquer formulação lógica. O comportamento humano, finalmente, –processando-se em um ambiente cultural (meio físico + cultura) de que a linguagem, repitamos, é uma condição e um produto, – faz-se então conscientemente lógico, expressando-se em têrmos de símbolos, sob a forma de problemas, de que a vida se tece e entretece, e cuja solução constitui a linha consumatória dessa própria vida. E a lógica surge, em último estágio, como resultado dessa atividade de pesquisa, sendo seus princípios e normas, fundamentalmente, os próprios hábitos bem sucedidos de operação na condução da pesquisa.

Em virtude disso, a vida faz-se, por sua natureza um processo de aprendizagem: aprendizagem orgânica nos seres vivos em geral e aprendizagem intelectual entre os sêres humanos. E intelectual porque, graças à linguagem, pode o comportamento humano ser antecipadamente representado, ensaiado verbalmente ou retardado em seu desfecho. É então e deste modo que se constitui, efetivamente, o que chamamos o "processo de inquirição, indagação ou investigação", o "processo de reflexão", o "processo de pesquisa", que evolve ao longo, no curso da vida humana, tornando-se, por fim, o processo formulado e consciente do comportamento especificamente humano.

Tal processo é a origem e a matriz dos princípios e "formas lógicas". Mas nem a lógica, repetimos, é uma estrutura do próprio mundo, que a "mente" descobre, nem é uma estrutura própria da "mente" humana, que por seu intermédio se revele... É ela, sim – mais uma vez insistimos – o próprio processo específico do comportamento humano em seu ajustamento ao ambiente, tornado formulável graças à linguagem. E uma vez formulado, faz-se, êle próprio, objeto também do processo de investigação.

Êste investigar sôbre como investigamos, êste inquirir sôbre como inquirimos vem a dar-nos os princípios e as normas do processo de inquirição, indagação, investigação ou pesquisa, e nos transforma o processo em um processo agora e para sempre progressivo, auto-corretivo e auto-perfectivel.

Podemos dizer também que surgiu, então, algo que se passou a chamar de ciência, isto é, a busca do conhecimento pelo conhecimento, do saber pelo saber e da verdade "racional" em oposição à verdade "empírica" – como uma forma nova do processo de investigação usual. Seria esta a possível origem histórica da diferenciação entre as duas formas de investigação: a investigação do senso comum, que produz as crenças e verdades do senso comum, e a investigação científica, que produz as verdades científicas. Se não são contraditórias e excludentes, como de fato não o são, – que identidade e continuidade existem entre os dois processos e até que ponto são idênticas as lógicas a que os dois processos obedecem?

Lógica é o modo de conduzir o processo de pesquisa. O processo de pesquisa ou investigação é o processo pelo qual as situações indeterminadas, que se criam nas relações entre o organismo e o meio (melhor se diria as situações indeterminadas do todo organismo-meio), se resolvem. Êsse processo compreende os seguintes passos: situação indeterminada (problemática), localização do problema, sugestão de solução, ensaio (experimentação), solução (satisfação) ou determinação da situação.

A investigação do senso comum tem, aí e assim, as condições lógicas em sua inteireza, e não é por tal que se a distinguirá da investigação científica. A distinção está no objeto da pesquisa. A investigação do senso comum visa os problemas da vida consuetudinária e dizem respeito ao uso e gôzo corrente das cousas, em suas relações entre si e com os homens. Visa a solução dos aspectos "práticos" da vida. Daí utilizar-se da linguagem e dos símbolos da vida ordinária. Tal linguagem é sistemática, como a da ciência, mas o seu sistema é prático e não teórico ou abstrato. Compreende o sistema das tradições, ocupações, técnicas, interêsses e condições estabelecidas da comunidade. Os símbolos e seus significados são os da vida usual e em relação com o uso e gôzo dos objetos, atividades, produtos – materiais e ideológicos – do mundo em torno. Por isto mesmo, todo o sistema de símbolos e significados é um sistema concreto, local que diz respeito a condições de um determinado meio cultural.

Já a investigação científica, embora obedecendo às mesmas regras lógicas, tem por objeto a descoberta da verdade teórica e não prática e daí decorrem as suas diferenças em relação à investigação do senso comum. Os seus problemas não são os do uso e gôzo das cousas, mas, os das relações entre os "significados" entre si, libertos de quaisquer ligações ou referências. Por isto é que se chama a ciência abstrata e não concreta, teórica e não prática. O concreto é o ligado diretamente ao meio, às condições existenciais das cousas e das pessoas. O abstrato é o desligado, o libertado das condições locais de cousas e pessoas.

Na inquirição científica, o objeto são as relações das cousas e dos "significados" entre si. Na inquirição do senso comum o objeto são o uso e gôzo das cousas, significados e pessoas nos seus aspectos práticos ou qualitativos. A inquirição científica elimina o qualitativo, põe tôda ênfase no não-qualificativo e "em grande parte, mas não exclusivamente, no quantitativo". A investigação do senso comum governa a vida de cada um de nós em todos os problemas práticos, praticamente comuns a todos. A investigação científica origina-se dêsses mesmos problemas práticos da vida e, em última análise, visa a solução dêles, mas constitui uma fase nova da investigação humana, tomando por objeto o problema como problema, indagando das cousas em si e de suas relações, bem como o das relações dos seus "significados" entre si, descobrindo as leis sistemáticas que as regulam.

Na investigação científica procuro conhecer por e para conhecer. Libertados de tôdas as suas ligações existenciais, estudo os objetos em si mesmos, em suas relações entre si e com os demais objetos. Como os estudos através dos símbolos da linguagem, que os representam, manipulo e investigo "êsses símbolos", descubro as relações entre êles, faço cálculos, elaboro hipóteses, imagino alternativas, deduzo conclusões, etc, etc. Todo êste trabalho, porém, note-se bem, é intermediário, mediatório e não final. Final só é a sua aplicação. E se obtive o conhecimento científico e o aplico, volto ao nível do senso comum, modifico algo na vida e esta modificação se incorpora ao cabedal do senso comum, alterando o modo dêle lidar com os seus problemas específicos e práticos.

Mas, o conhecimento de senso comum, o saber usual não é, releva notar, nenhuma constante, porque varia de povo a povo e de época a época. Não só isto. Também perde a sua função, entra em desuso, "idealiza-se", fazendo-se, às vêzes, lenda ou cultura residual, de sentido estético ou religioso. Quando isto se dá, o conhecimento de senso comum, embora prático na origem, faz-se tão remoto ou indireto em sua aplicação, que passa a constituir um conhecimento aparentemente abstrato e "superior", por motivos sociais, conforme adiante acentuaremos.

Os problemas científicos, por outro lado, nascem e se originam dos problemas do senso comum. São, até, a rigor, os mesmos problemas, libertados de suas condições concretas e existenciais e de suas finalidades interessadas, que se fazem problemas de certo modo puros ou gerais, no sentido em que um problema aritmético se liberta quando o formulamos algèbricamente. A distinção, assim, entre a inquirição do senso comum e a científica não encerra diferença epistemológica nem ontológica, mas, simplesmente, lógica, pois consiste numa formulação diversa dos problemas que, por isto mesmo, recebem tratamentos lógicos diversos ou diferenciados. São os mesmos objetos, processos e instrumentalidades do mundo do senso comum, que se constituem em problemas da ciência. A luz e a côr que a ciência estuda é a mesma luz e côr que enche a nossa vida quotidiana. No campo do senso comum resolvemos os problemas de sua função nas ocupações, nas artes e nas atividades quotidianas. No campo científico, consideramo-las (a luz e a côr) isoladamente, como cousas em si, como objetos de conhecimento per ser, estudando-lhe a causalidade, medindo o processo que as produz e estabelecendo as relações e conexões dêstes elementos em um tôdo sistemático e coerente.

Todo o conhecimento científico e teórico visa, contudo, em última análise, aplicar-se no contrôle de condições existenciais e, por êste modo, se religar ao mundo do senso comum. O conhecimento científico, portanto, é posterior ao conhecimento do senso comum, retira dêle os seus mais refinados e abstratos problemas, e a êle volta, depois, com as suas novas aplicações e os seus novos controles.

A investigação do senso comum, com seus processos práticos e empíricos, elabora, entretanto, um corpo de informações, de técnicas, de maneiras e de instrumentalidades verbais e materiais. E tais "conhecimentos" empíricos e não sistemáticos constituiram, nas suas origens, a ciência antiga. Desligados das condições em que foram elaborados, representavam produtos isolados da experiência humana, guardados e cultivados na consciência comum da espécie e, mais especialmente, por pessoas determinadas, que se faziam os seus peritos ou especialistas. A ciência e o senso comum eram, assim, a mesma cousa, constituindo ciência aquêles conhecimentos de aparência mais elaborada em virtude do seu desligamento das condições históricas que os haviam feito nascer e que os explicariam. Tudo que os antigos conheciam de astronomia, de metalurgia, de geometria e de artes, em geral, era assim conhecimento integrado nos processos de conhecimento do senso comum.

A êsse tempo, cumpre notar, certas circunstâncias sociais muito influiram sôbre a formulação dos conceitos usuais e, sobretudo, sôbre certas hierarquias falsas do saber humano. Com efeito, eram diversos os homens que lidavam com as diferentes espécies de conhecimento. Os conhecimentos necessários à vida diária dos sêres humanos pertenciam às classes inferiores, inclusive à enorme massa de escravos, e os que se referiam a direcão última da vida, aos poderes que a regiam e aos interesses dos senhores, às classes superiores. Embora uns e outros práticos e empíricos e igualmente necessários à existência humana, passaram, em virtude da sua posse por diferentes classes sociais, a serem, os primeiros, considerados "práticos ou inferiores" e, os segundos, "superiores ou espirituais".

Distinções dessa natureza é que serviram de base ao dualismo, na Grécia, entre o conhecimento empírico e o racional. Com efeito, os gregos, embora mais livres do que quaisquer dos povos antigos do contrôle eclesiástico e mesmo autocrático, fixaram, entretanto, a distinção, que herdamos, de conhecimento racional e "puro" (ciência e filosofia) e conhecimento prático e "servil" (referente a satisfação de necessidades e apetites), competindo os primeiros aos filósofos (cientistas) e aos cidadãos livres, e os outros aos artezões e à massa escrava. A divisão social veio, assim, a refletir-se no campo intelectual, criando o dualismo de prática e teoria, experiência e razão, saber empirico e saber racional, o último acabando por se considerar não sòmente supra-empírico, como supra-social, ligando os que o serviam e buscavam ao sobrenatural e ao divino.

Durante longos séculos, por isso mesmo, os produtos do avançado conhecimento grego chegaram a constituir-se em motivos impeditivos para o progresso científico da humanidade, ao invés de fatôres favoráveis como anteriormente haviam sido. Muito mais tarde, somente, já mesmo em pleno renascimento e a partir dêle é que certos homens retomaram aquêle antigo saber venerável, "clássico", e o puseram de algum modo em contacto com as experiências e realidades ordinárias da vida e, desta sorte, lhe restauraram o vigor e a fertilidade, – até que fôsse êle renovado ou substituído, e quase revolucionariamente, nos dois últimos séculos.

Rompeu-se, assim e por fim, o divórcio entre artes práticas e ciências, e todo o instrumental das primeiras passou a ser usado nas operações da segunda, embora, com objetivo diferente. O cadinho, o alambique, o filtro, etc, etc, entraram pelos laboratórios e permitiram a manipulação de matéria, não para a produção de bens para o uso de gôzos humanos imediatos, mas para o estudo, a investigação, a produção do conhecimento e do saber. Ciência e experiência, já agora incluindo experimentação propositada e orientada, se uniram, como senso comum e experiência sempre estiveram unidos.

Nessa nova manipulação, destinada a experimentar de forma controlada e com fins bem determinados o comportamento das cousas e, por tal meio, conhecê-las rigorosamente, os instrumentos usuais, fôssem os da linguagem ou os da aparelhagem das artes e ofícios, foram sendo refinados e aperfeiçoados, à vista dos novos objetivos, mais amplos e mais profundos, pelo alcance social e o novo saber que implicavam. O importante, porém, é notar que os conceitos formulados e desenvolvidos pelo discurso racional passaram a sofrer o teste da aplicabilidade às condições existenciais. Não mais eram verdadeiros por serem "racionais", porém válidos ou inválidos conforme se revelassem ou não capazes de reorganizar o material qualitativo do senso comum e de o controlar. Aquelas construções semântico-conceptuais que melhor pudessem ser aplicados na interpretação do comportamento da matéria seriam as mais verdadeiramente "racionais".

A razão passou assim a sofrer o teste da experiência e o racional a ser o experimental. Uniram-se experiência e razão, teoria e prática, como unidos sempre foram as atividades inteligentes do senso comum.

Tôdas essas considerações visam, tão somente, mostrar como – a despeito das diferenças de tratamento lógico entre o objeto da investigação do senso comum e o objeto da investigação científica – o conhecimento humano é, de certo modo, um só, diferenciando-se nas suas duas fases, científica ou teórica e prática ou de aplicação, por aspectos apenas relativos ao tipo dos problemas e não intrínsecos ou essenciais. Ressalta então o aspecto mediativo do conhecimento científico, fazendo com que êle verdadeiramente só se complete na aplicação. E não somente se evidencia assim a sua origem no senso comum, como se torna patente a necessidade mesma de voltar, em sua fase de aplicação, ao senso comum. Na aplicação e por meio dela faz o conhecimento científico a sua prova final de validade. Com êsse retôrno, as conclusões e os resultados da investigação científica (especializada e abstrata) fazem-se as novas tecnologias, ditas científicas, que vão revolucionando a indústria, a produção, a distribuição e tôda a vida social e quotidiana dos homens, em extensões cada vez mais amplas do mundo habitado.

Infelizmente, diz Dewey, essa profunda infiltração e incorporação dos produtos e resultados da ciência no mundo do senso comum não se vem fazendo de forma integrada e harmônica, como seria de desejar, mas, antes, sob forma desintegradora, produzindo o estado de confusão que caracteriza a nossa época, exatamente, porque não está aquela incorporação sendo acompanhada da mudança de atitudes, crenças e métodos intelectuais, que se faz necessária à luz dos novos níveis a que a ciência vem elevando a vida. Tal fato, de ordem social e não lógica, concorre sobremodo para que pareça "natural" a divisão, senão o conflito, que persiste e por alguns é até voluntariamente alimentada entre a lógica do senso comum e a lógica da investigação científica.

Não negamos – diz ainda Dewey – as diferenças entre a pesquisa científica e a pesquisa de senso comum; mas tais diferenças não importam em conflito, senão em tratamento diferente dos objetos diferentes da investigação, num e noutro caso.

Temos, com efeito, que a pesquisa científica, visando a descoberta de relações de grandeza e outras relações não-qualitativas, eliminou, por isto mesmo, as chamadas "causas finais", operando sòmente em têrmos de "causalidade" próxima ou, digamos, de "condicionamento e relacionamento", e ignorando os fins que não encontra na natureza. Já a investigação de senso comum, visando mais ou antes o aspecto qualitativo das cousas, seu uso e gôzo é, por excelência, teleológica. Esta diferença, que é real, não importa, porém, em oposição entre um e outro processo de investigação, um e outro saber. A pesquisa científica ignora os fins por uma questão de método, por abstração simplificadora, ligamos, e como uma condição para a investigação científica e o seu rigor, a sua exatidão.

A ciência suprimiu os "fins" chamados naturais, decorrentes da "natureza" das cousas, porque verificou os mesmos não existirem ou, caso existissem, serem irrelevantes para a sua pesquisa; mas não suprimiu os fins humanos a que não pode e não deve contrapor-se. Muito pelo contrário, trabalha – deve trabalhar – em função dêstes fins, havendo já estendido enormemente a área em que os fins humanos podem ser atingidos. A ciência, em seus métodos, ignora fins e qualidades; mas produz, como resultado, uma imensa liberação de fins e qualidades, que, em última análise, devem se destinar ao bem do homem – de tôda a humanidade.

A segunda diferença real entre os dois inquéritos, as duas modalidades de inquirição ou indagação, pesquisa ou investigação, é a da linguagem usada em cada um dos processos. A ciência opera com uma série de dados e um sistema de símbolos e significados extensivamente diferenciados dos dados e da simbolística próprios das indagações de senso comum. Mas, tal diferença, que é suficiente para que não se possa chamar a ciência de "senso comum organizado e sistematizado", não basta para indicar oposição ou conflito. Ainda é uma diferença de método de trabalho e não de objetivos. Na realidade, há tamanha aproximação de objetivos, que a ciência não sendo o simples senso comum organizado, constitui uma fôrça potencial para organizar (ou reorganizar) o próprio senso comum.

Essa utilização superadora (sem deixar de ser até recuperadora) da ciência na melhor organização do saber do senso comum, entretanto, vem sendo dificultada e bloqueada, socialmente, em virtude da crença em um imaginário conflito entre as duas ordens de conhecimento. Assim como a ciência já transformou os métodos de produção, deverá transformar os métodos de uso e consumo da mesma produção. Mas, por outro lado, a ciência praticamente ainda muito pouco pôde fazer no campo da moral, da política e da religião. Crenças, concepções, costumes e instituições anteriores ao período moderno, ocupam ainda e quiçá indisputadamente o campo. Daí, o aparente conflito parecer real, chegando a suscitar movimentos de hostilidade maior ou menor à ciência e ao espírito científico e a fomentar dúvida ou negação quanto aos seus benefícios.

A casa do senso comum é uma casa dividida contra si mesma. De um lado, conceitos, métodos, instituições que ante-datam o aparecimento da ciência; de outro, a casa é hoje o que é devido ciência. A integração não será conseguida simplesmente com uma teoria unificada da lógica, que governe um e outro campo, Isto é, o científico e o do senso comum, mas a existência de uma teoria unificada de lógica é uma condição indispensável para aquela integração. E a teoria da "lógica da investigação" de Dewey, é a tentativa de uma lógica unificadora do espírito humano para a solução, justamente, dêsse problema. Nem a lógica tradicional, insusceptível de ajustamento à lógica científica moderna, nem o atual movimento de lógica simbólica, interessada apenas na descoberta das formas linguísticas do pensamento matemático poderão resolver o dualismo senão conflito do pensamento humano científico e do senso comum.

Só uma lógica da experiência, uma lógica da investigação e da descoberta, como é a de Dewey, podem ajudar-nos a vencer as falsas divisões, dualismos e conflitos que vêm criando e nutrindo a injustificada Babel moderna.

* * *

Que devo eu dizer como conclusão, mesmo circunstancial?

A teoria lógica de Dewey, note-se, foi aqui, apenas enunciada. O seu desenvolvimento completo exigiria um curso e não um artigo. Mais não desejei, porém, do que chamar a atenção dos nossos estudiosos de filosofia para a hipótese deweyana, tão rica de frutos e de promessas, em momento, como o de hoje, em que vejo em nossas Faculdade de Filosofia ou de deslumbramento por uma redescoberta incrivelmente tardia de Aristóteles, ou a fascinação pela lógica simbólica, por certo provocante, mas tão distanciada da experiência, que não creio, com Dewey, se aplique a outra cousa senão a ela própria, ou a apenas um setor do pensamento que, em si, não é senão método de inferência, o das matemáticas

A lógica da experiência de Dewey pode ter todos os defeitos, menos o da infertilidade. É a lógica da descoberta e para a descoberta, que deve guiar as nossas atividades usuais de pensamento e de ação, as atividades de aprendizagem da educação escolar e não escolar, como já guia e ilumina as atividades da pesquisa científica em marcha para se estender aos campos da política, da moral e da própria religião, para os quais irá construir aparelhamento de contrôle semelhante ao que, nos últimos cento e cinqüenta anos, nos vem dando o domínio do mundo físico, e que, por seu turno, talvez nos possa dar o domínio pelo conhecimento do mundo social-humano.

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