TEIXEIRA, Anísio. Aspectos da reconstrução da Universidade Latino-Americana. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.47, n.105, jan./mar. 1967. p.55-67.

Aspectos da Reconstrução da Universidade Latino-Americana *

Anísio Teixeira

I. Autonomia universitária na América Latina

Impressiona os estudiosos a ênfase com que as universidades latino-americanas afirmam a sua autonomia, o que parece indicar quanto essa conquista é recente e em parte incompleta.

De modo geral, as universidades são universidades de Estado e, como tais, fortemente dependentes dos recursos que lhes concede o Govêrno cada ano. Além dessa dependência orçamentária, o Estado legisla sôbre ensino superior e mediante tais leis restringe o autogovêrno da universidade e intervém na constituição de seus quadros dirigentes e docentes.

A ênfase, portanto, em autonomia da universidade latino-americana decorre de ainda se estar a lutar pela sua concretização e expansão. O problema deve ser examinado em face da natureza das próprias universidades e das condições da sociedade latino-americana.

Considerando que os Estados, que as fundaram e mantêm, reconhecem hoje como suas funções a transmissão da cultura, a formação de profissionais, a expansão, pela investigação, do conhecimento humano e a prestação de serviços ao País em estudos, assistência técnica e extensão universitária - é óbvio que o exercício de tais funções requer um grau considerável de autonomia, sem a qual a universidade não poderia sequer pensar em desempenhar adequadamente o alto ministério cultural, científico e técnico que lhe é confiado. Se a autonomia é reconhecida como indispensável para o simples profissional, que dizer de uma instituição destinada a formar êsse profissional e expandir a própria cultura humana? A autonomia da universidade não é, portanto, uma concessão do Estado mas decorrência lógica da natureza de suas funções.

Originàriamente, o problema da autonomia das universidades não chegava a se pôr, de vez que a forma de sua constituição, como corporação ou guilda, trazia implícita a idéia de autogovêrno em sua própria carta de fundação.

Não se encontra, assim, entre as universidades da Europa e do mundo anglo-saxão o "problema" da autonomia. Esta era sempre algo de constitucionalmente adquirido no ato mesmo de criação da universidade e condição de seu funcionamento.

As circunstâncias que tornam a autonomia universitária um "problema" e, por vêzes, crítico, na América Latina, originam-se mais da própria instabilidade e insegurança da sociedade latino-americana do que da universidade pròpriamente dita.

Com efeito, a sociedade latino-americana continua a ser fundamentalmente uma sociedade baseada na "autoridade" e não no consenso e coesão de sua população. Daí, os hábitos de govêrno centralizado, a extraordinária amplitude da área de decisão incorporada a textos de lei, o caráter uniforme, rígido e inflexível de sua burocracia, a natureza despótica e policial do exercício da autoridade em muitos setores. Em tal sociedade, qualquer exercício de autonomia é sempre algo de precário e, com maior razão, o exercício da autonomia universitária, salvo quando esta é concebida como um "privilégio" outorgado por lei.

Como a autonomia foi assim conseguida, a universidade faz-se pela própria natureza do seu trabalho e pela igualdade de privilégios dos membros de sua comunidade - professôres e estudantes - uma instituição realmente aristocrática, mas, dada sua composição social, também uma instituição de experiência e prática democrática, concebida esta como prática de autogovêrno e oportunidade de desenvolvimento em liberdade da personalidade de cada um dos seus membros.

Por isto mesmo, a universidade acaba sendo a parte mais sensível da sociedade latino-americana, refletindo-se nela as mudanças sociais em curso e a resistência ou apoio a essas mudanças. O exercício da autonomia pela universidade pode então constituir-se o espelho da situação da sociedade em sua lenta adaptação aos hábitos democráticos e, às vêzes, até a área mais avançada dessa adaptação ou da luta por essa adaptação.

A observação generalizada de que a universidade latino-americana é mais politizada do que as de outros países só é verdade neste sentido, ou seja porque ela se constituiu naturalmente no setor da sociedade mais sensível e aberto à transformação democrática, por que está passando a sociedade latino-americana.

Sob esta luz, o que aparece como problema ou mesmo crises de autonomia universitária são apenas sintomas de problemas e crises da própria sociedade. A universidade só podendo exercer suas funções em liberdade e com plena autonomia acaba por se constituir um campo de experiência e de prática democrática, num regime de autogovêrno e de responsabilidade.

Mas se esta é a situação, é evidente que a autonomia universitária é uma experiência nova para a própria universidade, que encontra junto dela resistência à autonomia e hábitos do regime de autoridade também nela reinante anteriormente, quando sua missão era de simples transmissão passiva da cultura do passado.

A reforma universitária na América Latina, que tanto relêvo deu à conquista da autonomia, refletiu a convicção de que essa autonomia era indispensável para conduzir a transformação da universidade tradicional na universidade moderna, devotada à produção do conhecimento e não apenas à transmissão da cultura existente.

Com efeito, sòmente com a mudança ocorrida quanto à natureza do conhecimento humano, devido ao método científico experimental e à progressiva generalização da atitude científica em relação aos problemas humanos em geral, é que se faz a universidade o centro de atividade organizada e planejada, capaz de transmitir a cultura em mudança, de treinar profissionais em dia com uma ciência em progresso acelerado, de formar cientistas para a descoberta e a invenção de conhecimentos e técnicas novas e de estudar e resolver os problemas, que lhe forem submetidos, de uma sociedade em transformação.

Nada disto poderia ela fazer sem autogovêrno e ampla liberdade de tentar, experimentar e organizar e, além disto, julgar e avaliar seu próprio esfôrço. A autonomia faz-se assim a própria condição da vida universitária. Na medida em que a universidade se desenvolve e transforma seus métodos de trabalho e seus programas de ensino, a fim de ajustar-se aos novos conhecimentos e à nova demanda social, maior se faz sua necessidade de autonomia e de liberdade de ação.

O problema de sua autonomia deixa de ser um problema doutrinário ou técnico para se fazer concreto e prático, de cuja solução depende a eficácia de seu esfôrço. As soluções irão pouco a pouco sendo achadas e aplicadas e a universidade passará, cada vez mais, a se integrar nos métodos de organização, trabalho e eficiência a que será de adaptar para cumprir a sua missão de centro de produção de conhecimentos e técnicas e de preparo de profissionais, cientistas, pensadores, escritores e artistas, em dia com os avanços mais recentes do conhecimento humano.

A descansada e contemplativa instituição honorífica de culto ao saber, que era a universidade tradicional, ter-se-á então transformado numa laboriosa, complexa e superorganizada fábrica de conhecimentos, descobertas e invenções a exigir um grau de autogovêrno, iniciativa e liberdade fora de qualquer têrmo de comparação com a antiga universidade de tranqüilo saber clássico e devoção ao passado.

Na prática dessa autonomia, com que a investirá o Estado, seu fundador e mantenedor, terá a universidade de aprender não só a utilizá-la, como a estendê-la em amplas delegações de poder dentro de seus próprios muros, visando em última análise a constituição de uma comunidade em que todos se governam a si mesmos e tenham na vida universitária a oportunidade de se desenvolverem tão completamente quanto possível em suas inteligências, aptidões e capacidades. Dêste modo a autonomia não é a prerrogativa de um grupo de privilegiados mas a condição mesma pela qual a comunidade universitária vai se constituir o exemplo de cultura e prática democráticas.

Se a missão da universidade é contribuir para o desenvolvimento econômico da sociedade, o exemplo de sua organização e de seu método de trabalho, autônomos e responsáveis, será a sua grande contribuição à reconstrução democrática dessa mesma sociedade. A autonomia da universidade é assim, repetimos, a própria condição para a eficácia do seu esfôrço, e, além disso, a oportunidade para se fazer uma escola de prática de autogovêrno que é a própria essência da democracia.

II. A Universidade do Chile e sua Expansão

Por suas origens, funções e até por seu nome, a Universidade do Chile sempre foi uma instituição nacional, com sede em Santiago, e não uma instituição local. Sem dúvida alguma, o pensamento dos seus fundadores foi o de confiar-lhe, além da missão própria de universidade, a própria função docente do Estado.

Passados cento e muitos anos, depara-se esta Universidade em plena expansão, distribuídas as suas atividades pela sede central, com ramificações nas principais cidades do País. Neste momento, em que seu crescimento a está convocando para uma tomada de consciência e a fixação de uma política de desenvolvimento de longo alcance, um dos problemas que sua atual situação suscita é o de sua política de expansão. Deverá a Universidade do Chile, ante a extrema complexidade da universidade moderna, concentrar-se em Santiago e deixar que os demais centros universitários nascidos em sua volta se emancipem e se constituam em universidades independentes? Ou, pelo contrário, aceitar, em sua maior latitude, a responsabilidade pelo ensino superior chileno e aprofundar e desenvolver o que já é sua própria história, ou seja, a realidade de uma universidade nacional cobrindo tôda a área do País, com um "campus" central em Santiago e centros universitários nas principais regiões do País, que poderão crescer até se constituírem em outros "campus", mas sendo todos a Universidade do Chile, em atuação nas diversas regiões?

Sempre que estas duas perguntas foram feitas, ouvimos a resposta afirmativa quanto à segunda alternativa. A escolha, pois, parece que já foi feita e o que nos cabe aqui é analisar as virtualidades dessa opção por uma universidade organizada sob a forma de uma constelação de universidades, com um "campus" mais antigo e, nesse sentido, central, o de Santiago, e vários outros "campus", a princípio expansões do "campus" matriz, mas gradualmente se emancipando pelo desenvolvimento próprio, como "campus" autônomos, conservando contudo o sentido unitário de Universidade do Chile. Assim como a nação chilena é uma república unitária, a Universidade do Chile é uma universidade unitária, desdobrada em vários "campus" pelo País, numa afirmação de unidade e diversidade no seu mais legítimo sentido. Dizemos isto, para deixar claro que não é uma federação de universidades mas uma universidade, descentralizada em diversos "campus" , todos com autonomia suficiente para desenvolver seus programas e suas excelências, mas unidos por uma só política em tudo que disser respeito aos objetivos da universidade e aos métodos de alcançá-los. Daí ser a mesma a política de admissão em todos os "campus", a mesma a política de escolha do magistério, a mesma a divisão estrutural para o desempenho de suas missões de cultura geral ou propedêutica, cultura profissional e pesquisa, a mesma a política de extensão e de serviço. Unidade de fins e métodos e diversidade de experiência em alcançá-los e praticá-los.

Em nosso próprio continente, no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, já existe, com a Universidade da Califórnia, uma experiência inteiramente similar à que vem desenvolvendo o Chile. Não há pois nenhuma impraticabilidade quanto ao projeto, que vem emergindo espontâneamente da história da Universidade do Chile.

O escolho único a evitar é o da centralização, dada a tradição centralizadora do País e de tôda a América Latina. A Universidade do Chile, desde seus primórdios, foi uma experiência. Não repetiu o modêlo tradicional das universidades anteriores fundadas ao tempo da Colônia, mas escolheu seu modêlo, ampliando sobremodo suas próprias funções. Em seu desenvolvimento, constituiu uma inovação no que diz respeito à formação do magistério secundário e ao desenvolvimento do pensamento educacional e, recentemente, mais uma vez inova na criação dos centros universitários e da hoje quase-universidade de Valparaízo. Também inova quanto às carreiras profissionais, que incorpora à Universidade. É uma instituição complexa mas vigorosa, sabendo conciliar o sentimento tradicional de sua história já longa com as exigências e as imposições de renovação do meio e da cultura contemporânea.

Terá, assim, também de inovar nos métodos com que buscará concretizar a concepção dêsse sistema unitário de ensino superior que será ela, como universidade. O ponto crucial estará nas relações entre a sede, ou "campus" central da universidade, a Universidade do Chile em Santiago e os demais centros. Tôdas as políticas fundamentais da Universidade serão as mesmas em todos os locais da Universidade, mas a operação e execução dos serviços serão autônomos e coordenados pela Universidade central mediante reuniões e um constante intercâmbio, sem autoridades supervisoras ou fiscalizadoras. Um estatuto da Universidade do Chile fixará a organização dêsse sistema universitário e preverá as modalidades em que se estruturará o poder na Universidade central em Santiago e o dos demais centros e futuros "campus".

Sem desejar entrar em detalhes, pode-se imaginar como funcionaria o sistema. O Conselho Universitário da Universidade do Chile em Santiago conservaria a autoridade suprema da Universidade. O reitor seria o reitor de tôda a Universidade, cabendo a vice-reitores ou chanceleres a administração dos diversos "campus" inclusive o do Centro. Essa estrutura asseguraria a unidade de tôda a Universidade e a diversidade seria obtida pelo grau de autonomia que daria o reitor aos seus vice-reitores ou chanceleres. Num regime assim descentralizado, o reitor seria a mais alta autoridade sem poder (pois êsse poder estaria delegado por êle próprio aos seus vice-reitores ou chanceleres), devendo exercer sobretudo as funções de mediador-coordenador, por meio de reuniões constantes dos conselhos, comissões e grupos de trabalho, que instituiria para estimular e guiar o grande e complexo esfôrço do seu sistema de universidades. Unidade de política e diversidade de programas quanto às funções da universidade e uniformidade de método de trabalho (não de normas, a não ser quando essas normas fôssem por todos aprovadas) e completa autonomia de execução, quanto à operação da universidade, seriam os princípios centrais dessa nova e inovadora experiência de um sistema unitário de universidades dentro da variedade dos seus diversos "campus", que está em caminho de ser a Universidade do Chile.

III. A Expansão da Universidade do Chile e as Inovações que seu crescimento sugere

A Universidade do Chile foi criada como uma das instituições centrais, senão a instituição central, da sociedade chilena. Confiou-lhe o Estado, além de sua missão própria, a responsabilidade pelo sistema educacional e pelo desenvolvimento intelectual e cultural do País. Escapou, assim, ao tradicional espírito de isolamento das universidades e se fêz, desde suas origens, neste aspecto de integração ao seu tempo e de serviço à Nação, uma universidade moderna.

Por isto mesmo, pela sua vocação de servir ao presente e futuro e não apenas ao passado, deixou se levar pelas pressões e exigências sociais e se expandiu da forma que se poderá ver nos números que se seguem. Entre 1940 e 1960, passaram de 6.000 a 15.000 os alunos, de 8 a 12 as faculdades, de 16 a 39 as escolas, de 3 a 60 os institutos de pesquisa e de 26 a 65 as carreiras universitárias. Presentemente, todos êstes números já estão excedidos. Não se trata pois apenas de crescimento de matrícula mas de transformações da própria Universidade, com reflexos em suas estruturas, na ampliação de objetivos e em seu sistema de relações internas e externas.

A Universidade do Chile já não é assim a antiga e singela universidade das carreiras clássicas profissionais, mas uma vasta e complexa corporação, distribuída por 92 locais diferentes, com quase duas centenas de organismos diversos, distribuindo-se os seus cursos por mais de sessenta distintas carreiras e os trabalhos de pesquisa por outros sessenta institutos de pesquisa. O corpo estudantil excede 25 mil, e os serviços de extensão são ricos e variados, sobretudo no campo das artes.

Tôda essa imensa expansão não obedeceu a planejamento ou previsão mas veio se desdobrando em uma espécie de laissez-faire da administração, do professorado e até dos alunos, mergulhados no dinamismo da sociedade chilena em mudança.

Crescimento dessa natureza produz inevitàvelmente confusão e perda de eficiência, tanto mais quanto consiste, muitas vêzes, em simples multiplicação de unidades, em vez de desdobramentos orgânicos dessas unidades para enfrentar os novos desenvolvimentos. De qualquer modo, contudo, o crescimento não é puramente vegetativo. Há germes e indícios de processos de inovação, que importa localizar, a fim de se examinar a possibilidade de fortalecê-los, pois aí estão as linhas de reforma, em gestação, no seio mesmo da instituição universitária em processo de mudança.

Não é só a Universidade mas todo o sistema educacional chileno que passa por um processo de expansão e mudança. Alterações ocorridas em uma parte do sistema refletem-se nas demais partes. Assim é que o aumento de matrícula nos cursos secundários, sobretudo os de liceu, mais ligados à Universidade, vem determinando quebras de padrão nesses cursos, que vão refletir-se na Universidade. Não é só o aumento do número de candidatos mas uma certa deterioração de sua qualidade. Ambos os fatos exigem modificações nos trabalhos e cursos da Universidade. Mas não é só isto. Cresce o número de alunos, por um lado, mas, por outro lado, crescem também os conhecimentos humanos e as aplicações do saber e, conseqüentemente, alteram-se, e também crescem em número as profissões e ocupações de nível universitário. A Universidade, sob os dois desafios, o do aumento da matrícula e o do aumento do saber, não pode jamais crescer por simples multiplicação do seu trabalho. Considerando-se que as funções da universidade são as de transmitir a cultura, criar conhecimentos novos e treinar profissionais antigos e novos, a universidade, nos dias de hoje, está a mudar em cada uma dessas áreas e podemos acompanhar na Universidade do Chile tais mudanças. O crescimento em número de faculdades e de escolas reflete a ampliação do saber e a multiplicação dos campos de sua aplicação, o crescimento dos institutos de pesquisa reflete a expansão da sua nova missão de aumentar o saber humano e a sua aplicação, o aparecimento dos colégios e dos centros universitários regionais e dos cursos introdutórios aos cursos profissionais reflete, pelo menos em germe, a consciência de estar a Universidade com uma nova função, originàriamente do ensino secundário, ou seja, a função de educação geral, de educação propedêutica, e de treinamento para carreiras técnicas curtas, que não estão ou já não podem ser desempenhadas pelo ensino médio, seja secundário ou profissional.

Parece, com efeito, que a Universidade, em face da explosão do saber e da transformação progressiva do ensino secundário em ensino para todos e, embora diversificado, ensino comum, retorna à função de educação geral, além da de treinamento de profissionais e de formação do scholar e do cientista. Quatro níveis de educação marcariam então as fases do ensino superior:

a) nível de educação geral acadêmica, ou de educação propedêutica a carreiras profissionais longas, ou de treinamento profissional para carreiras curtas (bacharelato);

b) nível profissional de carreiras longas ou nível acadêmico de especialização (licenciatura) ;

c) nível de doutorado ou de aperfeiçoamento, profissional ou acadêmico (Ph. D);

d) nível de pós-doutorado ou de retreinamento de profissionais de carreiras longas.

A Universidade do Chile, cuja atividade dominante é a dos cursos profissionais de carreiras longas, agora altamente diversificadas (letra b), está a iniciar-se nos cursos introdutórios, propedêuticos ou de carreiras curtas e nos cursos da escola pós-graduada (c;d). Com seu extraordinário aumento de matrícula e a diversificação das carreiras profissionais, a expansão dos centros universitários regionais, a criação da Faculdade de Ciências, a ampla formação do magistério secundário e dos especialistas de educação ou carreiras pedagógicas e a proliferação de institutos de pesquisas estão evidentemente acelerando e consolidando sua marcha para a verdadeira universidade moderna. O período de auto-análise que está atravessando deverá conduzi-Ia a se encontrar consigo mesma, sentir a necessidade de reformar-se e proceder aos reajustamentos que sua presente situação está a indicar. Êstes reajustamentos compreenderiam a incorporação dos centros regionais à própria Universidade com a sua criação também em Santiago, passando a constituir o primeiro degrau a nova universidade, oferecendo três diferentes programas de educação, ou sejam um de educação geral acadêmica, outro de formação especìficamente propedêutica às carreiras profissionais longas, e o terceiro profissional para as carreiras curtas. Tais cursos, ao fim de dois ou três anos de estudo, dariam direito ao grau de bacharel, que, com a extinção do atual bacharelato, passaria a ser grau universitário e se conferiria com a indicação de menção acadêmica, ou propedêutica, ou profissional.

Os bacharéis, que desejassem continuar os estudos, pois muitos poderiam buscar logo vida de trabalho, ingressariam, conforme a menção, nos cursos para as carreiras longas profissionais ou nos cursos acadêmicos para a especialização e, depois de três ou mais anos de estudo, se graduariam como profissionais ou licenciados. Dentre os graduados se faria, então, a seleção para a escola de graduados, cujos cursos de pós-graduação corresponderiam aos de preparo de pesquisador e professor de ensino superior e do profissional de alto nível, capaz, igualmente, da pesquisa.

Como se vê, a Universidade não inovaria nada que já não estivesse em seu processo de crescimento. Diante do aumento considerável de alunos, passaria a oferecer-lhes, primeiro, um período de estudos gerais, que, além da cultura básica fundamental, lhes permitiria adiar a escolha definitiva dos seus estudos longos, aumentando assim a flexibilidade da seleção para o ingresso. Por outro lado, diante do aumento do saber e das exigências que impõe (êsse aumento) à universidade, os cursos e os professôres passariam a se distribuir por três níveis - básico, profissional, pós-graduado - o que corresponderia a uma distribuição qualitativa dos estudos, com nova flexibilidade para todo o complexo programa universitário moderno. Sem que a Universidade perdesse nenhuma das vantagens atuais, a organização ora proposta evitaria a rigidez dos estudos, em programas longos e lineares e, tanto ao estudante quanto ao professor, passaria a oferecer três oportunidades de níveis e estudos, com opções independentes na terminação de cada um.

Além disto, a organização proposta abriria a grande oportunidade de se constituir definitivamente a escola pós-graduada, destinada não apenas ao aperfeiçoamento profissional, mas efetivamente à formação do professor-pesquisador e do pesquisador. Esta seria a nova dimensão da Universidade. A escola pós-graduada iria superar gradualmente a atual escola profissional e se fazer, como queria Flexner, "o coração da universidade". Com êste núcleo, realmente devotado à busca do saber, a escola graduada estenderia sua influência aos cursos básicos, aos cursos profissionais e de especialização e aos próprios cursos pós-doutorais, que aliás se realizariam em seu próprio âmbito, e seriam o centro de criação do saber, de produção do saber, sem, entretanto, deixar de formar também seu próprio pessoal e o pessoal da docência universitária.

A essa escola pós-graduada deviam integrar-se os institutos, que, só excepcionalmente, fariam apenas pesquisas, pois como órgãos universitários deveriam ensinar e pesquisar, fazendo com que todos os que na pesquisa trabalhassem, estivessem, simultâneamente, pesquisando e aprendendo, o que, aliás, é quase pleonástico.

Com a criação definitiva da escola pós-graduada, a Universidade estenderia sua ação à educação geral, através da educação profissional e a da especialização acadêmica, iria até os mais altos níveis do estudo, da pesquisa e do saber, formando nesses três níveis os quadros diversíssimos de profissionais, de intelectuais, de pensadores e pesquisadores nos campos das ciências e das humanidades, conforme exige e requer a sociedade moderna.

Tal expansão e reestruturação abre oportunidades para todos os que hoje trabalham e estudam na Universidade, oferecendo novos caminhos, novos níveis e novas especializações - sem abandono do único caminho antigo, que era o do ensino profissional - para as preferências, aptidões e vocações de cada um. Ao monismo linear antigo dos cursos rígidos e uniformes se oporiam o pluralismo e a diversificação que exige e impõe o nôvo mundo do conhecimento em expansão e constante revisão. Assim como a nova política de admissão é uma tentativa de abertura de novas possibilidades para o corpo sempre crescente de candidatos ao ingresso na universidade, a nova política de reestruturação dos níveis contínuos de estudos da universidade, não sendo mais que reorientação, reorganização e divisão do que já existe em forma confusa e inadequada, importa em plano de virtualidades evidentes. Graças a êle, a atividade universitária de professôres e alunos se distribuirá num spectrum de cultura, cujo foco será a escola pós-graduada, centro de busca pelo saber, onde se concentrarão os velhos prestígios da Universidade, que vão projetar sua influência por tôda a comunidade universitária, impregnando com o seu espírito de pesquisa e de imaginação os cursos básicos de introdução à cultura e os cursos regulares de transmissão da cultura e da formação profissional.

A Universidade do Chile está em condições de vir a ajustar-se perfeitamente à definição de Flexner e ainda expandir-se até mesmo, talvez, à "multiversidade" a que se refere Clark Kerr, ao descrever a nova universidade americana.

IV. A Expansão da Universidade do Chile e a Necessidade de uma Política de Admissão

1. Como, de modo geral, tôdas as universidades contemporâneas, a Universidade do Chile defronta também o problema do número crescente de candidatos à admissão e o da expansão cada vez maior dos conhecimentos humanos e da sua aplicação à vida. Ambos os problemas constituem o que se vem chamando a crise da Universidade, ou seja, sua necessidade de transformar-se e expandir-se.

2. O crescimento da Universidade do Chile, sem dúvida extraordinário, nos últimos vinte e cinco anos, constituiu esfôrço para se pôr à altura dos dois desafios: o da demanda de ensino para a massa crescente de candidatos e o do desenvolvimento e diversificação dos estudos para responder ao aumento surpreendente e constante dos conhecimentos humanos e sua aplicação à nova civilização industrial de nossos dias. Os dois fatos têm manifestamente as mais estreitas relações. Não seria possível o acolhimento da massa crescente de candidatos, se os estudos, as profissões e as novas ocupações de nível superior não se estivessem multiplicando de forma imperiosa. E essa multiplicação de atividades de nível universitário, por sua vez, não se poderia dar sem a chamada explosão dos conhecimentos humanos e a conseqüente explosão tecnológica, ou seja, a expansão da aplicação dêsses conhecimentos ao desenvolvimento humano.

3. O aumento crescente do número de estudantes não constitui, assim, um simples crescimento vegetativo, mas, o resultado da transformação da Universidade, sob o impacto do desenvolvimento do saber, que ampliou de tal modo o âmbito dos estudos superiores e a sua importância nos negócios humanos, que a Universidade se sente impelida não apenas a aceitar a invasão dos seus portões pela massa dos que a procuram, mas a buscar novos e mais numerosos candidatos para as ofertas aumentadas e extraordinàriamente diversificadas dos seus cursos e trabalhos. O saber já não é necessidade aleatória de ilustração e prestígio, mas o fator talvez mais importante do próprio desenvolvimento humano.

4. Em face dessa transformação e conseqüente expansão da Universidade, impõe-se a adoção de uma nova política de admissão que, sem perder de vista que a Universidade é, por sua natureza, seletiva, abra, ao mesmo tempo, as portas do ensino superior a todos os que se qualifiquem para êsses estudos, dos quais depende o próprio desenvolvimento do país. O fato de se impor a adoção de uma política de admissão, ao mesmo tempo seletiva e expansionista, o que poderia parecer contraditório, força-nos a uma pequena digressão a fim de esclarecer quanto o princípio seletivo na sociedade aberta ou seja democrática constitui oportunidades e não de eliminação e oportunidades e não de eliminação e discriminação social.

5. O caráter, seletivo da educação, após a educação básica a todos ministrada e, portanto, não seletiva, determina que sua continuação nos níveis seletivos se faça um processo de promoção-social, de elevação de status, quando se trata de uma sociedade aberta em mudança. Se se tratar de uma sociedade fechada, isto é, de rígida estratificação social, o caráter seletivo da educação se constitui processo de discriminação social. No primeiro caso, o sistema faz-se a escada educacional para a promoção social do indivíduo, num regime de igualdade de oportunidades, que visa, a longo alcance, a constituição de uma sociedade baseada no mérito. No segundo caso, há uma educação para cada classe.

6. É evidente que o critério de seleção e a qualidade da educação a ser atribuída aos selecionados são diferentes em cada um dos sistemas. No caso da seleção pela classe social, não há competição pròpriamente dita entre os elementos da classe para a admissão, que, pràticamente, é oferecida a todos que a desejem, e a qualidade da educação resulta das necessidades e preferências da classe, não havendo processos competitivos de caráter eliminatório. Os que interrompem e abandonam a educação fazem-no voluntàriamente.

Já no sistema de seleção por competição de mérito, em igualdade de condições, a escola procura ignorar o sistema de classes existente e abre as suas portas para todos os que puderem se qualificar para os seus estudos. O processo seletivo continua, após a admissão, em todo o correr do curso e a qualidade e eficiência da educação se fazem cada vez mais acentuadas. A escola faz-se um aparelho de classificação de inteligências e aptidões para objetivos de eficiência social, sejam de caráter acadêmico, sejam de caráter profissional.

7. De modo geral, pode-se dizer que os sistemas públicos modernos de educação, após a educação destinada a todos e que hoje está a se estender até ao nível secundário, mantêm escolas para poucos, ou seja, escolas seletivas, subordinando porém o caráter seletivo da admissão a condições objetivas de qualificação intelectual e vocacional, em regime de igualdade de oportunidades e buscando dar a tais estudos e cursos um alto grau de eficiência se não de excelência. Como essa educação seletiva, em que sobressai a Universidade, se tornou extremamente importante para o desenvolvimento da sociedade, tais escolas não fazem da necessidade de seleção um espantalho para afastar candidatos mas, pelo contrário, toma a respeito uma atitude positiva de buscar os candidatos e de atrair, por todos os modos, os elementos mais capazes para os seus cursos. Na presente situação, a maior competição entre as universidades é essa da escolha dos seus estudantes, a acompanhar de perto a luta pela escolha dos professôres.

8. A Universidade do Chile, em sua presente expansão e diante da transformação por que está a passar a caminho de se constituir numa universidade moderna, devotada à busca e incremento do saber e ao desenvolvimento nacional, constitui, hoje, um caso específico dessa nova política de admissão. Cabe-lhe prever a demanda de ensino, de pesquisa e de serviço que lhe faz a sociedade chilena e, como universidade do Estado, preparar-se para atendê-la ampla e completamente.

9. A política, até o presente, da Universidade tem sido a do numerus clausus. Indica, cada ano, a Universidade o número de vagas em cada escola e, mediante uma série de processos mais eliminatórios do que seletivos, reduz o número de candidatos ao número de vagas disponível para a aceitação. O número de vagas fixado obedece ao critério das disponibilidades da escola quanto a professôres, espaço e equipamento. Não se discute nem a necessidade da sociedade nem a capacidade do aluno. Educa-se o número que a escola comporta, não se considerando o número de que a sociedade estaria precisando nem, o que é mais grave, o valor dos candidatos, que se perdem.

10. Parece-nos que tal política de admissão é incompatível com o período de desenvolvimento da sociedade chilena e com o nôvo conceito da importância da educação como fator humano para a marcha dêsse desenvolvimento. A nova política de admissão deve ter como objetivo garantir e assegurar a oportunidade de educação superior para todo e qualquer estudante chileno que se revela devidamente qualificado para êsse nível de estudos. Fixados os padrões de qualificação, a Universidade do Chile se preparará para aceitar todos os candidatos que se qualificarem, dentro da percentagem que lhe couber no sistema de ensino superior chileno, tendo em vista a capacidade de absorção de candidatos do restante do sistema no campo privado e público.

11. É evidente que esta nova política de admissão envolve o levantamento da demanda educacional em face da necessidade de recursos humanos da sociedade chilena e da própria Universidade. Por outro lado, que seja a mais ampla possível, dentro das previsões dos recursos necessários, a oferta de oportunidade de estudo por campos e por níveis de ensino. O corpo de candidatos à Universidade devidamente qualificado terá assim uma grande e diversificada área por que se distribuir conforme a inteligência, aptidões e vocação de cada candidato. Um serviço de aconselhamento e orientação acompanhará todo o processo de seleção e redistribuição dos candidatos.

12. Os padrões de qualificação a serem estabelecidos poderiam ser os seguintes:

a) Aprovação no último ano da escola secundária acadêmica ou profissional;

b) Aprovação em exame standard nacional, a ser organizado pelo Ministério da Educação, que avaliaria a maturidade intelectual do estudante para seguir cursos superiores e indicaria, quando possível, a adequação ou deficiência do seu preparo para os diversos campos de estudos da universidade;

c) As duas aprovações habilitariam o candidato a apresentar-se à matrícula no sistema universitário chileno. Dentro dêsse sistema, a Universidade do Chile responsabiliza-se pela percentagem de alunos que, por seu plano, lhe deveria caber, parecendo legítimo que possa indicar a preferência da Universidade pelos candidatos que tenham ocupado determinada faixa na escala das notas dos exames referidos, digamos os primeiros 50% entre os aprovados, caso tenha decidido receber 50% dos candidatos aprovados; além disto, poderá também exigir que cada candidato apresente em ordem decrescente a sua preferência por três das variedades existentes de estudos. Caso se aprove a nova estrutura dêsses cursos, indicaria em ordem decrescente a sua preferência por estudos acadêmicos, propedêuticos ou profissionais (carreiras curtas);

d) Todos os estudantes assim qualificados passarão a ser examinados e entrevistados por orientadores para sua distribuição pelos cursos de sua escolha ou outros e para a sua classificação, do ponto-de-vista de suas promessas intelectuais, em estudantes excepcionais, bons ou regulares e deficientes ou remediáveis. O primeiro grupo constituiria a classe dos estudantes de honra, que teriam oportunidade de estudos de maior exigência, como ainda de dar maior velocidade ao curso; o segundo seguiria o curso regular oferecido pela Universidade e o terceiro seria aceito condicionalmente, cumprindo-lhe fazer, além do curso regular, os estudos complementares necessários a remediar as deficiências encontradas em seu preparo;

e) Um serviço de bôlsas e empréstimos adequado asseguraria que nenhum candidato deixasse de estudar por falta de recursos financeiros.

Todo o espírito da nova política é a do interêsse da Universidade pelos alunos que a procuram e o de uma busca sincera dos valôres que entre êles se encontram. Por isto, o processo de qualificação deve iniciar-se com suficiente antecedência para se poder examinar a vida anterior do estudante, as notas e os relatórios dos seus professôres e diretores das escolas que freqüentou. O processo de seleção será uma busca real de talentos e capacidades e não um conjunto de estratagemas, mais ou menos hábeis, ou pedantes, de eliminação. Buscará apurar o nível de inteligência e, quanto a conhecimentos e preparo, mais o que sabe do que o que ignora.

O Método pelo qual se processa a escolha dos candidatos para os centros regionais representa um modêlo digno de tôda atenção, ao se elaborarem as instruções para nôvo processo de admissão à Universidade do Chile.

Terminados os cursos básicos, a Universidade continuará o processo de seleção com a escolha dos candidatos para os cursos profissionais (carreiras longas) e os acadêmicos e, depois dêstes, para as escolas pós-graduadas, de modo que todo o período de estudos na Universidade seja um longo processo de seleção de valôres para os quadros mais altos da cultura chilena.

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