TEIXEIRA, Anísio. A universidade americana em sua perspectiva. Revista Brasileira de Estudos Pedagógios. Rio de Janeiro, v.36, n.84, out./dez. 1961. p.48-60.

A UNIVERSIDADE AMERICANA EM SUA
PERSPECTIVA HISTÓRlCA *

ANíSIO TEIXEIRA
Diretor do I.N.E.P.

É um privilégio e uma honra achar-me, pelo vosso convite, associado como americano-brasileiro aos americanos norte-americanos, na celebração dos primeiros cem anos dêste extraordinário grupo de jovens universidades do mundo de hoje - os Land-Grant Colleges e State-Universities dos Estados Unidos.

Foi a sua juventude, comparada com os sete séculos de existência da Universidade, que permitiu à universidade americana libertar-se da tradição européia e nascer sob a inspiração da nova tradição que a América elaborava neste nôvo Continente.

As universidades, nascidas em pleno período da Escolástica, a despeito de aparente independência, surgiram como fiéis e submissas guardiães do saber já feito, que lhes incumbia aperfeiçoar, aprimorando definições e classificações, entre universais que eram dados ao pensamento e particulares que eram dados à percepção, limitando-se o esfôrço intelectual à descoberta das conexões pelas quais o particular se ajusta ao universal.

Dir-se-ia que para guardar e aperfeiçoar tal saber, bastaria a classe sacerdotal. O fato de a Igreja aceitar e conceder a autonomia à nova corporação, composta, é bem verdade, em sua quase totalidade de eclesiásticos, iria, entretanto, dar lugar à formação de uma classe independente de letrados.

Lembremo-nos que a cultura dos antigos deve a sua vitalidade ao fato de se terem os intelectuais gregos emancipado da tutela de uma classe sacerdotal. Apesar de suas teorias estáticas da Realidade como um todo acabado e completo e do saber como a integração no Ser, a independência do intelectual grego deu a sua descoberta um toque de fascinante aventura mental. Estático no mundo das essências, a sua autonomia mental e a vitalidade e curiosidade de seu espírito lançaram-no em especulações filosóficas, sociais e políticas a respeito do homem e do seu destino. Seu imobilismo parecia ser antes teórico do que prático. Haviam os gregos descoberto a reflexão sôbre a própria reflexão e elaborado harmoniosa teoria do discurso humano a que identificaram a teoria da própria natureza. Mas o espírito de descoberta e de autonomia tinha fôrça própria, o que lhes permitiu uma formulação da experiência humana, pela especulação filosófica e pela observação histórica e política, que muitos até hoje reputam, sob certos aspectos, sem rival.

Já os escolásticos da Idade Média foram mais literais em sua lógica e, ao instituírem a universidade, não pensaram na Academia de Platão nem no Liceu de Aristóteles, mas numa casa de ensino para a guarda e a transmissão do saber eterno, revelado à mente humana e a ser indefinidamente desenvolvido nas sutilezas de suas definições e classificações, destinadas a demonstrar a natureza e não a descobri-Ia.

Essa tradição do saber revelado à mente pela própria estrutura do pensamento, a estrutura do discurso, ou expressamente revelado pela própria palavra de Deus, completo e eterno, a ser apenas desdobrado pelo esfôrço intelectual, marca a universidade em sua origem e dá-lhe o rígido caráter de cristalizadora do saber e, por isto mesmo, o espírito de resistência à mudança, com o qual vem, através dos séculos, mantendo a sua identidade, com fôrça de inércia difìcilmente ultrapassada por qualquer outra instituição.

Tal fôrça de inércia é que lhe permitiu atravessar quase seis séculos sem alteração profunda, conservando a fidelidade a si mesma e a hostilidade ao nôvo saber, ao saber experimental, formulado desde o século dezesseis, até o limiar do nosso século ou, pelo menos, até a segunda metade do século dezenove. Não cabe aqui traçar a história da universidade, mas constitui lugar-comum observar que tôda a evolução do moderno conhecimento humano nos seus aspectos experimentais e científicos se fêz à margem de sua influência, senão apesar de sua hostilidade.

Embora o século XVI nos tenha dado o método experimental do conhecimento e teòricamente alterado a filosofia do saber, transformando-o em saber todo êle hipotético, sujeito à comprovação da sua eficácia, e não ao teste de sua harmonia com postulados a priori, destinado à descoberta e não apenas a demonstração, empenhado na transformação da natureza e não em sua contemplação - a universidade manteve-se inexpugnável ante os assaltos do nôvo saber. Nem se diga que faltou quem lhe formulasse o método e as perspectivas, pois Francis Bacon pràticamente antecipou as suas conquistas, mas os muros da universidade não se deixaram abater.

A evolução das universidades na Inglaterra, na França, na Alemanha e na América conta-nos a história dessa fidelidade à cultura clássica que lhes havia feito a grandeza na Idade Média e em que se enclausuraram no período moderno, buscando na cultura do passado o meio de se conservarem idênticas a si mesmas, alienadas aos tumultos da época, à fragmentação das línguas vernáculas, ao empirismo do progresso industrial e prêsas à suposta universalidade do saber clássico.

O pensamento humano, a despeito dessa resistência institucional, continuou entretanto sua marcha. Ao Renascimento e à Reforma, sucedem o esplendor do século XVII, o tumulto do século XVIII, com sua devoção à razão, e o despertar científico e tecnológico do século XIX.

Sòmente na segunda metade dêsse século, ao encerrar-se na Europa o período de restauração napoleônica e despertada a Inglaterra da complacência vitoriana, com a renovação científica do Continente e sacudida a América do Norte pela guerra de integração social, que foi a sua guerra civil, é que as universidades vêm a aceitar o saber científico e restaurar a sua antiga natureza humanística, com a incorporação do nôvo universalismo da ciência e da tecnologia moderna.

Os caminhos que seguiram, nessa evolução, os quatro grupos de universidades a que nos referimos não foram de modo algum uniformes. Entretanto, todos êles estão hoje se reencontrando na mesma concepção complexa e rica da universidade para a formação do intelectual e do profissional, para a formação do homem liberal, para a difusão cultural e os serviços de extensão.

* * *

Rompida a unidade cultural da Idade Média, no século dezesseis, inicia-se a nossa Idade Moderna com o renascimento da cultura clássica e as novas fôrças do nacionalismo e da reforma. O redespertar intelectual cedo deu lugar entretanto a um nôvo pensamento, o pensamento científico, que, no século seguinte, transforma, em menos de duas gerações, todo o arcabouço intelectual do homem ocidental. É êste nôvo pensamento que se defronta com a Universidade e a leva à difícil adaptação que talvez se venha concluir em nosso século. Passam-se, entretanto, o século XVII, todo o século XVIII e sòmente no XIX é que a batalha verdadeiramente se trava dentro da cidade universitária e apenas no século XX pode-se falar de vitória e de adaptação e, nesta segunda e última metade do século, de integração e consolidação da ciência dentro das fortificações intelectuais da universidade.

Embora já nos fins do século XVIII e começos do século XIX queimasse a ciência a imaginação dos homens de lazer da aristocracia ou da nascente classe média, com os enciclopedistas e a Academia de Paris, na França, os laboratórios privados, as sociedades científicas ou para-científicas e as conferências populares na Inglaterra, o nascente espírito não de experiências mas de pesquisas na Alemanha (Wissenchaft), e os liceus americanos junto com o espírito prático de invenção e indústria, na América, as universidades ignoravam superiormente a ciência e se mantinham, com seu singular vigor de inércia, encerradas em suas tradições e no obstinado amor à cultura antiga.

Não se pode dizer em qual grupo de universidades essa atitude de inércia foi mais profunda. No Reino Unido, sòmente as universidades escocesas ensinavam na primeira metade do século XIX alguma ciência e ainda assim em nível de meninos de escola. Cambridge e sobretudo Oxford fechavam-se na cultura clássica. Newton ensinara em Cambridge mas duzentos anos depois do seu nascimento ainda não se podia dizer que a ciência conquistara a velha sede de saber.

O pensamento científico, que em 1800 já tinha seus fundamentos estabelecidos em física e química, faltando apenas os da biologia, que iam ser lançados por Darwin, e que conquistara a imaginação do público em geral, não chegara a tocar as universidades inglêsas que interrompiam os estudos nas alturas do quadrivium e se constituíam, na frase de Mathew Arnold, "lugares em que os jovens de classe superior prolongavam até idade bem longa e sob admiráveis influências, por certo, a sua educação escolar... eram de fato escolas".

Em 1830, podia-se afirmar, como o fêz Brewster, que "não há hoje (1830) um só homem nas oito universidades da Grã-Bretanha empenhado em qualquer trabalho de pesquisa original".

Não fôsse o desafio lançado contra a Inglaterra pelo espírito de Wissenchaft, já por essa época reinante na Alemanha, e pela vigorosa aceitação da ciência no Continente, espetacularmente revelado na exposição industrial francesa de 1867, e o prestígio científico da Inglaterra de Bacon e de Newton talvez não se tivesse recuperado.

Por que foi a Europa continental e não a Inglaterra que percebeu a gigantesca significação do trabalho de Newton e das idéias de Bacon? Pensa Ashby que na França, por certo, concorreu o fato de possuir uma organização para a pesquisa científica sistemática, a Academia de Ciências criada no século XVII e consolidada por Luis XIV, enquanto a Inglaterra dependia da Real Sociedade de Londres, cujos recursos se reduziam às doações dos seus membros. Ainda no século XVIII, Paris já era a indisputada capital do pensamento científico na Europa. A revolução francesa coroou com a Escola Politécnica êsse sistema científico. Fêz-se assim a França a implantadora da pesquisa organizada em larga escala e a primeira nação a compreender a necessidade de propagá-la e difundi-Ia.

Já na Alemanha foram a pluralidade dos Estados, a conseqüente liberdade para a pesquisa, a oportunidade para associação entre os mestres guiados pelo espírito de Wissenchaft, que permitiram, nos princípios do século XIX, a aceitação da ciência. As Universidades fundadas e mantidas pelos estados independentes constituíam uma associação sem paralelo de intelectuais e professôres em tôda a Europa. Os alunos circulavam de uma universidade para outra e a liberdade de ir e vir criava o estimulante clima de liberdade de que precisa para viver a pesquisa científica.

A renascença intelectual alemã se iniciara no século XVIII, com Kant em Koenisberg e com as universidades de Halle e Gõttingen, que marcaram um nôvo modêlo de universidade. As universidades medievais germânicas compreendiam as faculdades tradicionais de filosofia, teologia, direito e medicina. A de filosofia apenas preparava os alunos para as faculdades profissionais. Em Halle e Göttingen a faculdade de filosofia passou a buscar o conhecimento como um fim em si mesmo. Renasciam a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, o domínio da razão e não do dogma, a especulação filosófica e o estudo dos textos, à luz do nôvo método de Wissenchaft, o estudo crítico e objetivo, que não era ainda a ciência mas já o "espírito" da ciência. Com a análise objetiva dos clássicos e depois da língua (filologia) e depois da história, com a abordagem empírica do saber processou-se por meio de humanistas e de humanistas dentro da universidade a verdadeira transição da universidade medieval para a universidade moderna. E por isso mesmo, quando a ciência transbordou da França para o Reno, pôde ela transbordar para as universidades. Não é que não tenha havido resistência. A resistência inglêsa fundava-se no conceito de "educação liberal"; a da Alemanha, na mística de Naturphilosophie. Influenciada por Schelling e Hegel, rejeitavam certas universidades alemãs a abordagem experimental e se apegavam à Naturphilosophie, a certa especulação obscura, que as levava a considerar fútil a busca de dados. Mas o método experimental acabaria, pela sua eficácia, por vencer. Sob a influência de Gay-Lussac, Liebig abre o primeiro laboratório de pesquisa química sistemática na Universidade de Giessen e o espírito de Wissenchaft e o de experiência, iniciado êste na França, transforma as universidades alemãs em centros apaixonados da busca do saber pelo saber. Até aí foram os alemães. Não chegaram à aplicação da ciência à tecnologia, que baniram para as Technische Hochschulen. Também excluíram a idéia de educação para a vida, e com isto os serviços de extensão e de popularização da ciência. A universidade é um centro de pesquisa pelo método de aprendizado: esta a contribuição alemã. Em 1862 Helmholtz podia afirmar:

"Quem, na busca da ciência, procura a imediata utilidade prática, pode ficar certo que a procura em vão. Tudo que a ciência consegue é o perfeito conhecimento e a perfeita compreensão da ação das fôrças naturais e das fôrças morais. Cada estudante deve contentar-se com a recompensa de se alegrar com as novas descobertas como novas vitórias da mente sôbre a relutância da matéria; de se alegrar com a beleza de um campo ordenado de saber, em que a conexão, a filiação de cada detalhe faz-se clara para o espírito e em que tudo revela a presença de uma inteligência ordenadora; deve satisfazer-se com a consciência de que contribuiu algo para o crescente patrimônio do saber, pelo qual se reforça o domínio do homem sôbre as fôrças hostis à inteligência... Em conclusão, diria, que cada um de nós deve julgar-se não alguém que busca satisfazer a sua sêde de saber, ou promover qualquer vantagem particular, ou buscar brilhar - mas simples companheiro de trabalho no grande esfôrço comum em prol dos mais altos interêsses da humanidade. . . "

Dominadas pelo espírito da busca do saber pelo saber, as universidades alemãs lideravam, nos meados do século XIX, a pesquisa no mundo. Ao hábito francês do pensamento claro e exato acrescentavam a profundidade, a paciência, o sentido do exaustivo. Com a centralização do Estado napoleônico, ofuscaram-se os esplendores da ciência francesa do século XVIII. A Alemanha fêz-se a atração do mundo. Americanos e inglêses não terminariam sua educação sem um semestre de universidade alemã.

Daí é que irradia o espírito científico para o Reino Unido. A Universidade na Inglaterra era um centro de difusão do saber e não de descoberta. A ciência se fazia fora dos seus muros, nas dissenting academics, dominadas pelo espírito de utilidade e não de busca do saber pelo saber. A própria Universidade de Londres, mais moderna do que as universidades clássicas, não fazia pròpriamente pesquisa e se fertilizava apenas com o neo-humanismo germânico do século XVIII. Em 1826, era uma aliança de Wissenchaft com Bildung, de Scholarship com educação liberal. Esta vai ser a mais característica contribuição inglêsa: a da educação liberal.

Se a Ciência na Alemanha teve de lutar contra o reacionarismo da Naturphilosophie, na Inglaterra, teria de lutar contra o espírito utilitário. Na França, a ciência, cultivada pelos aristocratas, constituía fina atividade de lazer. Na Inglaterra, o artesão e as classes modestas é que buscavam a ciência. Na França, a ciência estava na moda e na Inglaterra era apenas popular. "A fortaleza da literatura deve apoiar-se nas classes superiores da sociedade e a ciência, na sua classe média", dizia Lyon Playfair.

Pouco a pouco, no entanto, a idéia de que a ciência não era apenas útil porém a mais fascinante das aventuras intelectuais toma corpo. O exemplo da Alemanha fêz-se contagiante. Em 1870, quatro universidades inglêsas haviam recuperado a sua posição na comunhão universitária. A ciência triunfara. Começara com Bacon, Harvey, Boyle e Newton. Renascera na França, cruzara o Reno para a Alemanha, sob a inspiração da Wissenchaft, frutificara na idéia de pesquisa pela Universidade. E daí passara para a Inglaterra - onde se completou com a idéia utilitária e os princípios do liberalismo. O espírito científico venceu o dogmatismo da velha universidade medieval, abriu a Universidade à descoberta e à pesquisa e democratizou-se com os princípios do utilitarismo e da educação liberal. O saber passou a ser um sistema aberto, de indagação e de tolerância. A universidade busca a verdade. Não tem a verdade. Renasce o antigo cosmopolitismo. A revolução científica restaura a unidade da Europa e afinal do mundo civilizado, fazendo da universidade uma instituição supranacional.

Mas há diferenças entre a França, a Alemanha e a Inglaterra. Na França, a ciência é aristocrática e intelectual. Na Alemanha, é ciência-pesquisa. Na Inglaterra, a ciência começa como utilidade, para as classes modestas e daí é que ascende à Universidade, que, aceitando a tecnologia, a fecunda com o espírito liberal. O conceito da educação como fôrça liberalizante, como forma de preparar o homem livre, o homem do renascimento, não morre na Inglaterra ante o pesquisador. Os ideais liberais permanecem. A ciência é uma fôrça humanizante. A universidade é científica, é utilitária ou prática e é humanista. Na Alemanha o saber conserva certo aristocratismo de espírito. Na Inglaterra, a idéia prática e a idéia liberal mantêm o humanismo da ciência. Abrem-se as portas do estudo superior de tecnologia. Pouco a pouco, a tecnologia - como a ciência - consegue seu lugar nas universidades e nos colégios. No Continente, a tecnologia fica fora da Universidade: Technische-Hochschulen na Alemanha, Écoles des Arts et Metiers e des Ponts et Chaussées, na França. Na Inglaterra, a educação tecnológica faz-se responsabilidade também da universidade.

Evolução de algum modo paralela mas completamente inovadora foi, entretanto, a que se processou nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX. Até 1800, os colégios vindos da Colônia eram todos denominational ou de inspiração religiosa e bem assim os que se vieram a fundar até 1850. Harvard por essa época ensinava filosofia, teologia, as línguas mortas e matemática. O ensino era tão dogmático quanto o da Inglaterra. Já no segundo quartel do século XIX (1826), dizia Thomas Clemson não haver "uma única instituição científica neste Continente em que se possa receber educação científica... Os que desejam cultivar a ciência têm que se dirigir a instituições mantidas pelos governos monárquicos da Europa".

O Troy's Institute de Steven Van Rensseleer, em 1824, é uma inovação profética. Não é tanto o ensino da ciência quanto o da sua aplicação que se vai experimentar. A ciência já estava então em grande parte estabelecida e de certo modo alterando a vida com as invenções e a nova tecnologia. Mas as universidades, na América, como na Europa, a ignoravam.

Não partiu, com efeito, das classes educadas a compreensão de que o rápido progresso já em marcha se baseava na descoberta científica. É verdade que Yale em 1846 cria duas cadeiras de química e Harvard em 1847 abre a sua Lawrence School of Science, mas até então a ciência seria quando muito estudada, como a literatura, mas não usada. Seu uso estava sendo feito pelos não educados.

Creio não ser exagêro afirmar que foi o fato de não serem pròpriamente scholars os que promoveram o grande desenvolvimento universitário americano, que levou a universidade a constituir-se na América a mais revolucionária de tôdas as universidades. O movimento pelos Land-Grant Colleges foi muito explícito no seu propósito de criar uma nova universidade, capaz de dar educação liberal e prática ao próprio povo e não apenas às classes profissionais então servidas pelo saber clássico e acadêmico.

Não faltou aos precursores e promotores do movimento por essas novas universidades a consciência até exaltada de que estavam fazendo algo de completamente nôvo. Vejamos como se expressava Jonathan B. Turner:

"No wonder such educators have ever deemed the liberal culture of the industrial classes an impossibility; for they have never tried, nor even conceived of any other way of educating them, except that by which they are rendered totally unfit for their several callings in after life. How absurd would it seem to set a clergyman to plowing and studying the depredations of blights, insects, the growing of crops, etc., in order to give him habits of thought and mental discipline for the pulpit; yet, this is not half as ridiculous, in reality, as the reverse absurdity of attempting to educate the man of work in unknown tongues, abstract problems and theories, and metaphysical figments and quibbles".

Estamos diante de uma posição completamente nova. Turner percebia que a universidade da civilização industrial em surgimento iria alargar as classes profissionais da velha sociedade até que tôda ela fôsse profissional. Não eram apenas o clero, os médicos, os literatos, os advogados, que precisavam de educação universitária mas também os agricultores, os mecânicos e os comerciantes, que êle chamava de "classes industriais". O que estava contido na sua pregação era a compreensão de que tôda a sociedade ia fazer-se uma sociedade educada, tôdas as atividades tinham de ser intelectualizadas e o homem devia ser preparado para elas com educação a mais completa.

Os Land-Grant Colleges surgem assim como uma mutação no evolver das universidades. Tanto Turner como Morril Smith são visionários, pressentindo o tipo do espírito acadêmico e prevendo uma agricultura científica, um comércio superorganizado e técnico, uma indústria que se iria fazer a mais exata e mais científica das atividades e, até, um lar a ser presidido pela mulher transformada em mistura de técnico de laboratório e de dona de casa.

Nada disso podia sequer ser imaginado no contexto da cultura européia, dividida visceralmente entre o mundo da cultura acadêmica e profissional e o mundo do trabalho material e usual. O dualismo da sociedade e da cultura européia não poderia conceber a universidade para tôdas as vocações e atividades da vida.

Veja-se entretanto o que diziam, nos Estados Unidos, os promotores da nova idéia. Justin Smith Morril define o objetivo de sua primeira lei: "the endowment, support, and maintenance of at least one college in each State where the leading object shall be, without excluding other scientific or classical studies, to teach such branches of learning as are related to agriculture and the mechanic arts. . . "

Trata-se de colleges a serem fundados, como bases de futuras universidades, em que ao lado dos estudos clássicos, acadêmicos e profissionais, se iria estudar a ciência, em todos os seus aspectos, as atividades práticas de tôda natureza e, além disto, difundir os conhecimentos nos mais amplos serviços de extensão jamais sonhados.

Na Europa, a incorporação da ciência aos estudos universitários resulta de prolongado esfôrço, e a aplicação da ciência ficou, salvo na Inglaterra, relegada a escolas separadas. A América do Norte, na altura dos sessenta, lançava as bases de uma universidade destinada à formação diversificada de profissionais de tôda sorte, aos estudos liberais clássicos e modernos, à pesquisa e aos mais amplos serviços de extensão até hoje concebidos. Foi, pois, aí que a verdadeira universidade dos tempos de hoje foi concebida e realizada.

Ainda em 1867, a Universidade de Cornell assim formulava essa nova política educacional:

"Every effort will be made that the education given be practically useful. There is to be University liberty of choice. Several courses carefully arranged will be presented, and the student; aided by friends and instructors, can make his choice among them ... There will be no fetichism in regard to any single studies ... All good studies will be allowed their due worth ... Historical studies and studies in Political and Social science will be held in high honor, and will have more attention than is usual in our higher instructions of learning ... Student will be able to "Seek knowledge for knowledge’s sake " ... The Cornell University, as its highest aim, seeks to promote Christian civilization. But it cannot be sectarian... By the terms of the charter, no trustee, professor or students can be accepted or rejected on account of any religious or political opinions which he may or may not hold."

Não cabe aqui contar os anos de luta entre 1863 e 1900 em que a nova Universidade, a princípio, não sabendo o que ensinar, nem como ensinar, nem com quem ensinar, acabou por fazer triunfar o nôvo conceito de educação geral universitária, os princípios de co-educação, de eletividade dos estudos, de estudos científicos e práticos, de educação da mulher e de não-sectarismo.

Em 1900 já os Land-Grant Colleges eram proclamados pelo Presidente McKinley "as more really in accordance with the genius of the growing development of the American people than any other branch of higher education". Os Land-Grant faziam ciência pela pesquisa, educação, pela formação do profissional e do homem comum, e difundiam o conhecimento pelo mais extraordinário serviço de extensão jamais empreendido, servindo assim à juventude, aos agricultores, à indústria, aos lares, a tôda a nação.

Na epopéia americana, essa nova universidade, hoje modêlo para qualquer universidade moderna, cooperou de forma essencial para dar ao país, a sua avançada agricultura, seu rico, eficiente e moderno lar, seu comércio, sua indústria, dinâmicos e progressivos, orgulhos não só dos Estados Unidos mas de todo o mundo.

Chegados à maturidade de hoje, desenvolvida a civilização tecnológica até o seu ponto atual e inaugurando a ciência nova fase de descoberta, é natural que olhemos para John Hopkins como a universidade americana em que se iniciou a sua mais alta formação científica, a mais próxima, pelos padrões, das grandes universidades européias. Mas a revolução educacional não foi John Hopkins quem a fêz, porém o elective principle e os Land-Grant Colleges, com sua idéia do valor do conhecimento superior em todos os campos da atividade humana e seu plano de levar êsse conhecimento a tôda a sociedade, a todo o povo.

A universidade como fonte matriz de cultura, de formação e de orientação de tôda a sociedade não apenas de um dos seus segmentos, devemo-la aos Turner e Morril que nos sessenta souberam fundar os Land-Grant Colleges.

Recapitulemos o progresso realizado. Até o século XVIII a marcha do progresso material não dependia da ação nem do pensamento do meio universitário. Compunha-se êste de profissionais ou intelectuais no exercício de suas profissões, ou de pensadores e escritores nos campos das letras e da história, devotados aos estudos da cultura clássica e à elaboração dos novos documentos da cultura literária vernácula de sua época e de suas nações. A própria ciência, quando não era feita fora da universidade, era estudada como a literatura, para ser conhecida ou comentada mas não aplicada. A maior parte das invenções, que marcaram tão significativamente o período moderno, só começa a depender essencialmente dos cientistas profissionais a partir, talvez, dos fins do século XIX.

Por isto mesmo, a universidade na Europa mantém até o século XIX o caráter de instituições de saber clássico e literário, conservando sua identidade e resistindo à mudança.

Na França, na Holanda e na Alemanha é que se inicia, ainda no século XVIII, uma fermentação filosófica, com a reformulação e sistematização dos conhecimentos existentes, que acaba por produzir o florescimento da "Wissenchaft" na Alemanha e da pesquisa científica na Holanda e na França.

Em todo êsse período, a Universidade, embora ensaiando os passos da ciência, conserva sua atitude de desprendido alheamento ao tumulto social e material. Na França, guarda o caráter de instituição intelectual, devotada à inteligência teórica e à literatura, na Alemanha faz-se a instituição de pesquisa (Wissenchaft), histórica e filosófica, resistente ainda ao impacto da ciência experimental, na Inglaterra refugia-se na formação liberal e no ideal da cultura como formação do gentleman.

A incorporação da ciência experimental a essas universidades só vem a ser efetivada em fins do século XIX e princípios do século XX.

Temos aí a Universidade, sem perda de sua identidade, alargando seu âmbito até a elaboração do saber e não apenas à sua transmissão, até a formação dos profissionais com a diversificação dos novos tempos, incluindo em seu seio o cientista e o especialista.

Faltavam porém, ainda, as grandes funções da aplicação da ciência e da difusão do conhecimento científico pelos serviços de extensão, com o que a Universidade iria recuperar sua missão de instituição matriz da cultura global da sociedade moderna.

Parece-me esta a contribuição especial da América do Norte. Com os Land-Grant Colleges é que se completa a imensa transformação, integrando-se na Universidade, a exemplo de Bolonha e Salermo, a função de formação profissional - a exemplo de Oxford e Cambridge - a da formação do gentleman, do estadista e do administrador; a exemplo de Gõttingen e Berlim, a formação do Scholar e do pesquisador; a exemplo de Charlottenburg e Zurich, a formação do especialista; e, a exemplo dos Land-Grant Colleges, da aplicação da ciência e da difusão do saber, do espírito de serviço. Tôdas essas cinco funções estão hoje aceitas pelas universidades, em cujo seio buscam harmonizar-se. De um lado, a atitude de desprendida devoção à cultura, de busca do saber pelo saber; de outro, contribuição mais específica da América, o sentimento de urgente obrigação para com a sociedade, de fazer da universidade meio de seleção de talentos para o mais completo e variado treino, centro para dirigir a marcha e o progresso de tôda a sociedade.

Chegados a êsse julgamento dos últimos cem anos de esfôrço e de trabalho, não é possível evitar uma indagação sôbre o futuro. Nestes cem anos a ciência se desenvolveu de tal modo que já não é the practical mind que domina a cena mas the specialized mind. Como fazer que o especialista, agindo tantas vêzes sôbre campo que não conhece, não se faça fôrça de ruptura mas de integração?

Êste parece-me o grande problema dos próximos anos. Como especializar o conhecimento e ainda assim dar ao especialista o conhecimento dos campos aliados que o seu saber vai modificar. Não é só o problema de estabelecer as conexões interdepartamentais e interdisciplinares, por certo, extremamente necessárias. É também o de dar ao especialista um conhecimento básico dos demais campos. Esta será a tarefa de um nôvo mestre, o "generalista" dos conhecimentos em cada campo. Êste nôvo professor será, no futuro, tão importante quanto o especialista. Não é um filósofo, mas alguém que tenha, em seu campo, adquirido experiência tão grande e tão longa que esteja em condições de formular a parte essencial de seus conhecimentos que toca e atua em todos os demais campos. Êsse generalizador especializado será um dos homens chaves da universidade de amanhã, fundada no saber especial mas preocupada com inseri-lo nos demais campos do saber especializado e no campo comum do uso dêsse saber.

O especialista não especialista substituirá no futuro o homem de visão prática que dominou os primeiros cem anos. Serão êles que continuarão a dar alma e espírito a êsse imenso empreendimento humano que são as universidades do povo dos Estados Unidos da América.

Originando-se de um conceito baconiano do saber, essa universidade americana, a despeito de sua extrema diversificação, acaba por incorporar tôdas essas funções: é o centro desinteressado da busca do saber pelo saber; é o centro da formação liberal do homem pelos estudos humanísticos e intelectuais; é o centro da formação do profissional e do especialista para tôdas as atividades humanas; é o centro dos estudos dos problemas sociais e práticos da sociedade; é o centro da popularização e difusão do saber humano. É por isto mesmo a mais "desinteressada", a mais "prática" e a mais "popular" das instituições.

Os Estados Unidos da América, a mais revolucionária das nações do mundo, não podiam deixar de fabricar a mais revolucionária das universidades. Neste limiar do segundo século de seu nascimento, os votos de um brasileiro, aqui presente por extrema bondade de todos vós, é que ela continue a sua revolução, a revolução de uma sociedade aberta e progressiva, em marcha para um futuro de mudanças que não conhecem outro limite que o do saber humano em permanente desenvolvimento.

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