TEIXEIRA, Anísio. Escola pública é o caminho para a integração social. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.52, n.95, jul/set. 1964. p.210-213.

ESCOLA PÚBLICA É CAMINHO

PARA INTEGRAÇÃO SOCIAL

Anísio S. Teixeira

O público não é algo de total e de constante, mas "grupos" de interessados, que surgem, ampliam-se, restringem-se ou desaparecem, conforme as irradiações, retrações e expansões da convivência humana. Sempre que certas transações humana passam a interessar de maneira importante não sòmente aos que as praticam, mas a terceiros, surge o público. Se as conseqüências daquelas transações não afetassem a terceiros, essas transações seriam privadas. A educação foi, por muito tempo, e mesmo depois do estabelecimento do regime democrático, considerada um interêsse privado. Admitia-se certo dever do Estado de promover as letras, as ciências e as artes, mas daí a reconhecer qualquer direito individual à educação ia distância enorme. A caracterização da educação como direito individual, assegurado pelo Estado, isto é, como interêsse público, é coisa relativamente recente e apenas neste século devidamente generalizada. Cumpre salientar, nos primórdios do estabelecimento da educação como interêsse público, o fato de ser a educação considerada urna necessidade individual e não apenas uma vantagem. Duas tradições, com efeito, surgem com a Reforma religiosa e com o Renascimento no XVI. Ambos os movimentos acompanham o desaparecimento do homem medieval e o nascimento do homem moderno, animado de nova confiança em si mesmo, ante a descoberta do passado e das possibilidade do futuro. Mas enquanto o homem da Reforma religiosa pensa em têrmos de um nôvo indivíduo, com novos direitos e nova participação em seu destino, o homem da contra-reforma continua ligado a uma forma autoritária de crença e saber.

LIBERDADE E EDUCAÇÃO

- O livre-exame - declara a seguir - importa necessàriamente na educação escolar individual e a contra-reforma católica numa educação coletiva, que bem poderia continuar a ser dada na forma oral e ritual das cerimônias religiosas da Idade Média. É diante disto que o saber - a grande paixão da época - do lado protestante se faz uma necessidade individual e, do lado católico, uma necessidade coletiva, social. Surgem, assim, as duas tradições: a do saber como direito do indivíduo e a do saber como necessidade social, a ser cultivado por poucos, que, por isto mesmo, se fariam privilegiados e distintos. Tôdas estas esperanças do Renascimento se perdem depois com os terríveis conflitos religiosos que se seguem, sòmente vindo a renascer no século XVIII, com a espécie de nôvo Renascimento que é o aparecimento da idéia democrática pròpriamente dita. Sòmente, então, o direito à educação de todos e cada um se põe diante do homem, como uma reivindicação fundamental. Mas nem por isto o direito à educação se faz efetivo. Outras fôrças, a que já nos referimos, contribuíram para transformar o nôvo "individualismo" em uma estranha teoria de auto-suficiência do indivíduo, pela qual bastaria deixá-lo "livre" para que, sòzinho, atingisse a felicidade, isto é, o saber, o poder e a riqueza. Essa noção de liberdade como algo de negativo, como simples ausência de restrições e constrangimentos exteriores, era uma novidade no mundo. O homem livre grego não era êste homem. Não seria, assim, concebida a liberdade nem entre os romanos nem na Idade Média. Essa nova liberdade fundava-se numa teoria psicológica falsa, pela qual a mente era algo de absoluto e capaz de existir por si e de por si abrir o seu caminho.

INDIVÍDUO E SOCIEDADE

- Voltamos a conceber a liberdade como algo que se consegue - acrescenta - se forem dadas ao homem as condições necessárias e suficientes. Um mínimo de oportunidades iguais é indispensável para que as capacidades, melhor diríamos as potencialidades, do organismo biológico humano venham a desenvolver-se, produzindo inclusive o que chamamos de mente e inteligência, que, rigorosamente, não é algo de inato, mas um produto social da educação e do cultivo. O suposto "sêr racional" dos gregos e o suposto "indivíduo" de Stuart Mill são dois produtos altamente elaborados, não sendo inata senão a possibilidade de determinado organismo humano se fazer um e outro, se a sua história, as suas experiências, as pessoas com que conviver e se agrupar, ou seja, a sua educação, a isto o ajudarem. Todos os homens dessa época do século dezenove sabiam que uma sociedade selvagem produz o selvagem. Que uma sociedade "pré-lógica" cria uma mente "pré-lógica". Imaginavam, então, que uma sociedade racional criaria uma mente racional. Mas, onde estava a sociedade racional? Os poucos homens que chegavam a essa vida racional, só eram racionais em certos aspectos e em condições muito especiais. O mito do "animal racional" e o mito da "soberania" do indivíduo, como algo de inato e espontâneo, desfizeram-se, assim, por entre as obscuridades e as luzes da nova psicologia do século vinte.

CIVILIZAÇÃO TECNOLÓGICA

- O nôvo tipo de sociedade - democrática e científica - não podia - esclarece o professor Anísio Teixeira - considerar a sua perpetuação possível sem um aparelhamento escolar todo especial. Os velhos processos espontâneos da educação já não eram possíveis. Com o desenvolvimento tecnológico da sociedade, a mesma se faz, com efeito, tão complexa, artificial e dinâmica, que todo o laissez-faire se torna impossível e um mínimo de planejamento social, ajudado por um sistema de educação intencional, ou seja, escolar, de todo indispensável. Na grande sociedade, o problema da educação do homem se faz algo de espantoso. Nenhuma complacência se faz mais possível. É devido a isto que vemos os Estados Unidos elevarem, em muitos Estados, a educação obrigatória até aos dezoito anos, a Inglaterra, até aos quinze e dezesseis e assim por diante ... E nada disto será bastante, pois não se trata tão-sòmente de atendê-Ia, mas de reconstrui-Ia, de dar-lhe nôvo sentido, de descobrir meios e modos de ensinar o que ainda não foi ensinado, isto é, a pensar com segurança, precisão e visão, em meio a uma civilização impessoal, dinâmica e extremamente complexa. Pode-se agora perceber quanto é notório o nôvo interêsse, a nova necessidade da educação. Haverá, por certo, educação privada. Será mesmo conveniente que não desapareça do todo um esforço, que se somará ao do Estado, na grande experimentação educacional do presente e do próximo futuro. Mas o empreendimento se irá fazer tão dispendioso e tão amplo, que em sua maior parte será inevitàvelmente público.

ESTADO PLURALISTA

E DEMOCRÁTICO

- E a defesa - afirma encerrando as suas declarações - estará na concepção do Estado pluralista. Para nós, o público e as formas pelas quais o Estado o representa são coisas relativas e plurais, dotadas as formas do Estado de extrema flexibilidade de organização. Nenhum outro interêsse público exigirá forma tão especial do Estado quanto o da Educação. As escolas deverão ser, assim, organizações locais, administradas por conselhos leigos e locais, com o máximo de proximidade das instituições que venham a dirigir e com o máximo de autonomia que lhes fôr possível dar. Essa relativa independência local permitirá torná-las, tanto quanto possível, representativas do meio local e indenes aos aspectos impessoais das grandes organizações centrais. Serão públicas, mas nem por isto perderão o contato com o meio ou a saudável diversidade que lhes irão dar a variedade e multiplicidade dos órgãos locais de contrôle.

O Estado pluralista e democrático é, por natureza, contrário ao espírito monolítico e uniformizante do Estado não-democrático. O mêdo ao Estado como Estado ainda é uma sobrevivência das teorias do século XIX, do Estado mal-necessário. O Estado de hoje é apenas o representante dos interêsses dos diversos "públicos", sempre que tais interêsses se fazem suficientemente importantes para passar a exigir o contrôle dos agentes públicos, puros delegados êstes daqueles seus representantes. A escola pública é o instrumento da integração e da coesão da grande sociedade, e se deve fazer o meio de transformá-la na grande comunidade. O Estado democrático não é, apenas, o Estado que a promove e difunde, mas o Estado que dela depende como condições sine qua non do seu próprio funcionamento e de sua perpetuação.

Correio da Manhã,

Rio, 8-9-1964

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