TEIXEIRA, Anísio. Condições para a reconstrução educacional brasileira. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.18, n.49, 1953. p.3-12.

CONDIÇÕES PARA A RECONSTRUÇÃO

EDUCACIONAL BRASILEIRA

Anísio Teixeira.

Diretor do I.N.E.P.

A educação de um povo sòmente em parte se faz pelas suas escolas. Compreendida como o processo de transmissão da cultura, ela se opera pela vida mesma das populações e, mais especìficamente, pela família, pela classe social e pela religião. A escola, como instituição voluntária e intencional, acrescenta-se a essas outras instituições fundamentais de transmissão da cultura, como um refôrço, para completar, harmonizar e tornar mais consciente a cultura, em processo natural de transmissão, e, nas sociedades modernas de hoje, para habilitar o jovem à vida cívica e de trabalho, em uma comunidade altamente complexa e de meios de vida crescentemente especializados.

Quanto mais estável a vida cultural e mais regulares os seus processos de mudança, mais simples seria, assim, a função da escola. Sòmente com a Reforma e o Renascimento, vemo-la, em nossa civilização ocidental, ganhar certa importância, mas, ainda então, se reduzia à transmissão daqueles traços mais especializados da cultura - ler e escrever e a educação intelectual e profissional superior - a pequenos grupos aptos da sociedade, destinados a constituir o seu quadro consciente e, sob certos aspectos, dirigente.

Assim foi a escola de nossa civilização até, em rigor, os começos do século XIX, quando as duas revoluções - a industrial e a política - já iniciadas desde o século XVIII, entraram a acelerar e diferenciar as mudanças sociais, tornando mais difícil e precário o processo de transmissão direta e natural da cultura e impondo tremenda expansão, em quantidade e em qualidade, à escola, sôbre cujos ombros institucionais passaram a repousar a estabilidade e a continuidade de uma sociedade em processo acelerado de mudança econômica e social.

Dos princípios do século XIX em diante, com efeito, uma nova revolução, a tecnológica, decorrente da aplicação cada vez mais crescente dos resultados da ciência à produção e à vida social, veio acrescentar-se às outras duas revoluções, a político-democrática e a industrial, para acelerar ainda mais o processo de mudança social.

Êstes últimos cento e cinqüenta anos corresponderam, assim, a um período de profundas transformações, em que a transmissão da cultura se viu altamente perturbada e em grande parte impedida, não sòmente por se achar a própria cultura em mudança cada vez mais rápida e assim se tornar extremamente difícil a sua transmissão, como também por haverem as próprias instituições transmissoras da cultura, a família, a classe e a religião, entrado elas próprias em mudança e até em desagregação, deixando de cumprir ou não podendo mais cumprir a sua função normal de órgãos da continuidade e estabilidade sociais.

Foi êsse o período em que a escola, como órgão intencional de transmissão da cultura, se viu elevada à categoria de instituição fundamental da sociedade moderna, absorvendo, em parte, funções tácitas ou tradicionais da família, da classe, da igreja e da própria vida comunitária, e passando a constituir, na medida de sua expansão e eficácia, a garantia mesma da estabilidade e da paz de uma sociedade em transformação, a segurança da relativa correção ou harmonia dos seus rumos e impecilho de sua desagregação violenta.

Vimos, com efeito, nos últimos cinqüenta anos, sòmente sobrevirem às convulsões e guerras da nossa época, conservando a paz social, as nações que chegaram a organizar os seus sistemas escolares com o mínimo de universalidade e de eficiência, indispensáveis a uma relativa continuidade de suas culturas em mudança.

Tôdas as demais nações, as dependentes e coloniais inclusive, ou entraram em transformação violenta, com o comunismo, ou se mantêm em fase instável e de profunda inquietação social, assegurados certos aspectos de ordem pelo reflexo daquela parte estável, isto é, em transformação pacífica, do mundo ocidental, cuja órbita se encontram.

A escola, pois, já não é, hoje, uma instituição para assegurar, apenas, como se pensava no século dezenove, o "progresso", mas a instituição fundamental para garantir a estabilidade e a paz social e a própria sobrevivência da sociedade humana. Já não é, assim, uma instituição voluntária e benevolente, mas uma instituição obrigatória e necessária, sem a qual não subsistirão as condições de vida social, ordenada e tranqüila.

No Brasil, a escola passou pelas contingências da evolução nacional, refletindo até os meados do século passado as condições, primeiro, de nossa vida colonial e, depois, retardatàriamente, com a independência, a das nações de civilização ocidental. Até aí, entretanto, não tendo a instituição a importância essencial, que depois veio a ter, há um certo equilíbrio no desenvolvimento brasileiro, podendo-se falar de uma relativa equivalência de cultura entre as nossas condições, nas camadas sociais superiores, e as do resto do mundo considerado civilizado, por isto mesmo que parte de nossas elites era formada ou aperfeiçoada em universidades européias e a vida de produção econômica não entrara, ainda, em sua fase técnica e científica.

O retardamento do nosso desenvolvimento começa a evidenciar-se, exatamente, a partir do momento em que a escola se faz o instrumento necessário da marcha normal da sociedade moderna, em rápida transformação política, econômica e tecnológica.

Não nos faltou quem nos dissesse o que devia ser feito, o que se estava fazendo em nações então de progresso mais ou menos equivalente ao nosso, sobressaindo, entre todos, o documento absolutamente ímpar, pela lucidez e caráter exaustivo, que foram os pareceres sôbre o ensino primário e secundário de Rui Barbosa.

A nação, entretanto, deixara-se habituar ao desenvolvimento reflexo, passivo, por fôrça das circunstâncias, por isto mesmo que a vida sempre lhe fôra, senão fácil, sem maiores exigências, nos desmedidos dos seus grandes espaços físicos e na rarefação de seus habitantes sem competidores.

Enquanto as demais nações, sob o impacto das novas condições, empreendiam o esfôrço pela educação universal, com o ímpeto e a deliberação de um movimento político, senão religioso, criando, ràpidamente, um sistema popular de escolas mais amplo que o de suas igrejas e capelas e um professorado mais numeroso que o seu clero, para cuidar das novas exigências da transmissão de uma cultura em mudança e, acima dêste sistema popular, um conjunto de escolas médias e superiores capaz não só de continuar, como de promover o desenvolvimento e a harmonização da cultura nascente, diversa e complexa, - o Brasil se deixou ficar com as suas escolas tradicionais para uma diminuta e dispersa elite literária e profissional.

Data e decorre daí o nosso retardamento. Acompanhamos, de certo modo, a transformação política do mundo; vamos acompanhando, mal ou bem, a sua transformação econômica e técnica, pelo menos na utilização de seus inventos e novos instrumentos; mas, não acompanhamos a sua transformação institucional, que foi, sobretudo, uma transformação no campo educacional, a transformação escolar.

Ora, se essa transformação em nações de velhas culturas, como as da Europa, exigia, como exigiu, um esfôrço deliberado e custoso, que não se fêz sem luta e sem sacrifícios de tôda ordem, impondo à sociedade um ônus econômico só equivalente ao da defesa e da guerra - o que não teria de ser ela no Brasil, cujas condições sociais eram as de uma sociedade apenas saída do regime patriarcal e escravocrata, em processo de reajustamento difícil e penoso às condições novas de uma sociedade igualitária e democrática?

Compreende-se como haveriam de estar em situação constrangedora de pregar no deserto os nossos educadores mais lúcidos dessa época. Um conjunto de circunstâncias dificultava que o país tomasse consciência da nova situação e sentisse a necessidade de integração, que se impunha para um esfôrço básico qual o de criar um novo aparelhamento institucional para a sobrevivência e a marcha normalizada.

À medida que deixávamos de cumprir a nossa obrigação nacional de viver à altura das nações congêneres, de que copiávamos as instituições políticas e sociais, fomos desenvolvendo o clássico "complexo de inferioridade", que não possuíamos antes, nem podíamos possuir, pois éramos uma nação nova, transplantada para uma região nova, cheia de orgulho das nossas facilidades.

Sòmente depois da independência, com efeito, e ainda mais depois da república, é que viemos a elaborar, conscientemente, êsse complexo de inferioridade, que é uma conseqüência direta e não têrmos acompanhado as demais nações no processo de integração e de educação sistemática de tôda a população para a sociedade igualitária e progressiva dos tempos modernos.

E foi isso que nos lançou no grupo de nações subdesenvolvidas do globo e criou o supremo paradoxo, que partilhamos com as demais nações latino-americanas, de sermos, simultâneamente, jovens, pois a terra é nova e a população, em grande parte, decorrente de transplantação, e velhos pelo atraso em que os deixamos ficar e pelo complexo de impotência e irremediabilidade, que acabamos por formar em face da nossa derrota ante o desafio das condições e da época.

Depois de independentes é que viemos a fracassar cada vez mais em nossos deveres para com a nação jovem e promissora, recebida das mãos de nossos colonizadores, que, bons ou maus, nunca deixaram de crer na civilização nova e mais feliz que aqui se poderia estabelecer.

* * *

De um modo, porém, ou de outro, o ímpeto das convulsões e transformações sociais dêste século acabaram por nos atingir, promovendo algum progresso material, incerto e descompassado, mas suficientemente amplo para criar em limitados grupos um novo estado de espírito, pelo qual se vem substituindo o antigo complexo de inferioridade por um senso nascente de orgulho nacional, algo confuso, mas bastante vigoroso para permitir uma visão realista das dificuldades e uma resposta mais séria ao seu desafio.

Êste é o momento brasileiro. O real divisor de águas entre as duas mentalidades que se defrontam no Brasil é o dêste sentimento. De um lado, estão os que, explícita ou implìcitamente, não acreditam no Brasil, considerando-o uma nação de terceira ordem, que, jamais, resolverá pelos seus próprios meios os seus problemas básicos - o que é essencial para se fazer numa ação orgânicamente civilizada - e de outro, os que, retomando os deveres abandonados pelas gerações frustradas do império e da república, acham que a nação se pode constituir, que o seu elemento humano só é o que é por lhe haver faltado o que tiveram os outros, isto é, a educação e formação sistemática moderna, e que a terra, com a aplicação do desenvolvimento científico dos nossos dias pode vir a mostrar-se tão rica e própria à civilização, quanto os melhores trechos temperados do globo.

Esta mentalidade que já se manifesta de todos e por todos os modos, no país, precisa evolver de um confuso estado sentimental e romântico, ou de um desabrido espírito de especulação e demagogia para uma sóbria e segura lucidez.

Depois da fase de introspecção, análise e crítica, que, de algum modo, caracterizou os últimos vinte e cinco a trinta anos da nossa vida intelectual, e de que resultou o que há de lúcido na mentalidade nova do Brasil, entramos, agora, na fase de elaboração e de plano, competindo à inteligência brasileira definir os novos deveres, os novos esforços e as novas jornadas, que cumpre empreender para que o renascente sentimento de segurança e orgulho nacional frutifique na real construção do futuro brasileiro.

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Nenhum outro dever é maior do que o da reconstrução educacional e nenhuma necessidade é mais urgente do que a de traçar os rumos dessa reconstrução e a de estudar os meios de promovê-la, com a segurança indispensável para que a escola brasileira atinja os seus objetivos.

Os problemas que suscita essa reconstrução são de duas ordens. O primeiro, político e financeiro, constitui o problema da comunidade brasileira em geral e importa em se dispor essa comunidade, pelas três categorias dos seus governos, federal, estadual e municipal, e por tôdas as suas fôrças coletivas e particulares, a empreender a educação sistemática de todo o povo brasileiro, como uma obra de extrema urgência e, verdadeiramente, de salvação nacional. É problema político, porque é de govêrno e importa em uma deliberação que deverá atingir tôda a nação e todos os indivíduos, galvanizando as vontades e impondo os sacrifícios necessários à execução do empreendimento. É problema financeiro, e por isto mesmo mais essencialmente político, porque estará a depender de recursos e medidas, de amplitude nacional, devidamente conjugados pelas diferentes órbitas de govêrno, para lastrear a realização do grande plano de desenvolvimento da educação nacional.

Assentadas estas bases político-financeiras, levanta-se o problema - pròpriamente profissional - de se saber como devemos organizar eficientemente a escola brasileira.

Só aquelas bases preliminares constituem problema de legislação, devendo ser equacionado pela chamada lei de diretrizes e bases, complementar à Constituição federal, e pelas leis suplementares dos Estados e dos Municípios. Não foi sem razão, que a Constituição anterior falava em plano nacional de educação e não em diretrizes e bases. Trata-se, com efeito, de indicar o planejamento fundamental da educação e, sobretudo, de assegurar flexibilidade e prover os recursos para que tôda a nação se lance ao imenso esfôrço de vencer um atraso de quase cem anos, na obra de incorporação definitiva de todos os brasileiros à sociedade igualitária e democrática do estado moderno.

O segundo problema é um problema profissional, a ser resolvido pelos educadores e professôres brasileiros, em um ambiente de liberdade e responsabilidade, de experimentação e verificação, de flexibilidade e descentralização, para que se crie a escola brasileira, diversificada pelas regiões, ajustada às condições locais, viva, flexível e elástica, com a só unidade de se sentir brasileira na variedade e pluralidade de suas formas. Êste segundo problema é o problema para sempre irresolvido do melhoramento e aperfeiçoamento indefinidos das instituições escolares brasileiras. Para que se encaminhe, entretanto, a sua solução gradual e progressiva, é indispensável que se organize a liberdade de experimentar, tentar, ensaiar, verificar e progredir, na escola brasileira.

A organização dessa liberdade de progredir é um dos aspectos da solução legal do problema da educação. A lei deve estabelecer as condições e os mecanismos pelos quais se irá promover o progresso escolar, isto é, prover a administração e direção da educação de órgãos capazes de elaborar as soluções ou de promover o aparecimento dessas soluções e de acompanhar-lhes a execução, verificar-lhes a eficácia e aprová-las ou modificá-las.

Tudo está em que tais órgãos não sejam apenas executores de soluções rígidas e uniformes previstas na lei, mas possuidores de real iniciativa para planejar, experimentar e executar no campo escolar tudo que seja lícito e aconselhável, nos têrmos da prática e da ciência educacionais existentes.

Bastará que se legisle em educação, como se legisla em saúde pública ou em agricultura, de modo que não continuemos estrangulados numa camisa de fôrça legal, graças à qual alterar a posição de uma disciplina no currículo ou diminuir-lhe ou aumentar-lhe uma aula seja considerado uma "reforma de ensino", com todos os corolários que atribuímos a essa "catástrofe". É "catástrofe" exatamente porque, havendo sido até hoje tôda a nossa legislação do ensino, dada a sua minúcia, uniformidade e rigidez, uma "camisa de fôrça" geralmente deformadora, sabemos que se a mudarmos será para nova "camisa de fôrça" e ainda pior, porque estaremos desabituados à nova prisão.

Ora, tudo isto é absurdo. A escola é uma instituição servida por uma arte complexíssima, que é a de educar e ensinar em todos os níveis da cultura humana. Essa cultura e a arte de a transmitir estão a sofrer, constantemente, progressos e revisões, precisando o professor de autonomia para poder estar, constantemente, a ajustar o seu trabalho individualizadamente aos alunos e às necessidades de tôda ordem do progresso social e do progresso de sua arte. Não quer dizer isto que o professor seja livre de ensinar o que quiser. Êle não tem de modo algum essa liberdade absoluta. Cumpre-Ihe ensinar o que deve ensinar e por algum método aprovado. Mas nem aquêle deve nem êste aprovado são questões a ser resolvidas pela lei, mas, pelo consenso profissional, porque são de prática usual e corrente entre os mestres da profissão, ou de inspiração renovadora partida de outros mestres igualmente autorizados.

Todos os problemas e aspectos da organização escolar, compreendidos neste conceito a definição dos objetivos específicos da escola e os meios de atingi-los, dentro dos objetivos gerais que poderão ser definidos pela lei, devem ficar sob a exclusiva autoridade da consciência profissional, que se manifestará por meio de planos e instruções, baixados por autoridades que possuam os requisitos necessários para serem consideradas expressões daquela consciência profissional.

Tôda esta parte do problema sofrerá, é certo, as vicissitudes de nossa cultura especializada em educação e arte de ensinar; mas, não haverá outro meio de progredir senão êste que é, aliás, o mesmo pelo qual progredimos em medicina, engenharia ou direito...

Não podemos é continuar sem a possibilidade de progredir, nem, na realidade, sequer de tomar conhecimento dos problemas escolares de teoria e prática de ensino, porque tudo se acha disposto na lei e não pode ser alterado. Questões de currículo, de seriação, de programa, de número de aulas, de duração da aula, de disposição da matéria, de métodos e de processos de ensino não podem ser discutidas e resolvidas, porque ou tudo se acha disposto na lei, ou se acham ali disposições que impedem qualquer modificação de processo ou de método.

Uma das mais remotas, mas nem por isto menos grave conseqüência de tal estado de coisas, é o desinterêsse pelo estudo dessas questões específicas de educação e ensino. Por que estudá-Ias, se a lei é que as resolve e uma lei, como é natural, é algo que ninguém pode pensar em mudar do dia para a noite e mesmo de ano para ano?

A imposição legal do que se deve ensinar e de como se deve ensinar vem tornando ocioso o próprio estudo da educação e do ensino, e a inacreditável deficiência de pessoas devidamente especializadas para diretores de educação, diretores de colégios, inspetores de ensino e profissionais de educação, em geral, provém, em grande parte, da inconseqüência dêsse preparo em face de não passarem, hoje, tais autoridades, de executores passivos de leis pseudo-pedagógicas.

Há pois, dois problemas em relação à reconstrução educacional do país: um - político-financeiro - é o de nossas leis de educação que se devem limitar a prover recursos para a educação e criar os órgãos técnico-pedagógicos, autônomos, para dirigi-Ia, e outro - técnico-pedagógico - o do aperfeiçoamento permanente e progressivo de nosso ensino e nossas escolas, a ser obtido pelo constante incremento de nossa cultura especializada e pelo preparo cada vez mais eficiente do nosso magistério.

Recolocada, assim, a educação escolar nas suas verdadeiras bases de processo de vida e de transmissão de cultura, governado por teorias e práticas sempre postas em dia pelos estudos especializados na universidade e pelos estudos levados a efeito pelos próprios professôres nas escolas, - teremos estabelecido as condições de liberdade e de empreendimento indispensáveis para o progresso indefinido da educação.

Por outro lado, liberada a educação do minucioso disciplinamento legislativo, descentralizada administrativamente pelos Estados e, quando possível, ao menos em parte, pelos municípios, e restituída também a liberdade ao ensino particular de competir com o público e manter cursos diversificados e ensaios renovados, teremos criado no país as condições mínimas para um intenso trabalho de reconstrução educacional e para uma possível mobilização de esforços à altura do empreendimento de edificar, pela educação, a nação brasileira.

* * *

Para se avaliar a grandeza da tarefa, bastará lançar um golpe de vista sôbre a presente situação educacional, pelos seus diferentes níveis.

A educação elementar comum tem sido compreendida, entre nós, como um curso primário de cinco anos, com o mínimo de 200 dias letivos e o dia letivo de seis horas. Embora deva ser isto, teòricamente, na realidade consiste em um curso de dois a três anos, com o dia letivo reduzido, em geral, a quatro horas e, em muitos casos, a duas horas e meia, e o número anual de dias letivos a 150 (no próprio Distrito Federal, no ano passado). Nesse ensino primário, assim reduzido e rarefeito, estudam apenas 3 milhões de crianças, de um total de oito milhões existente entre os 7 e 12 anos de idade, sendo aprovadas sòmente cêrca de 2 milhões. Um milhão de matriculados perde o ano, pagando dêsse modo o congestionamento da escola em dois e três turnos, e cinco milhões não chegam sequer a conhecer a escola.

A educação secundária média, compreendidos aí todos os estudos post-primários, é ministrada a cêrca de 600 000 alunos, isto é, 20% da freqüência média da escola elementar, o que representa uma tremenda expansão. Mas, como o primário, é ministrado em escola de dois e três turnos e reduzido o seu programa a um ensino abstrato e livresco, sem maior capacidade formadora ou educativa.

O ensino superior é, presentemente, ministrado a cêrca de 46 000 jovens, isto é, cêrca de 8% do total de alunos matriculados nos cursos secundários e médios e cêrca de 13% dos matriculados nos cursos secundários.

Esta é a escola existente, tôda ela de pura instrução ou ilustração, desde o nível primário até o superior. Para fazê-la também capaz de formação e educação, cumpre, antes do mais, suprimir o regime de turnos, o que corresponderá à duplicação, - pelo menos, - de prédios e de professorado. Serve isto para medir a grandeza do esfôrço a ser feito. Basta lembrar que o próprio Estado de São Paulo, com o maior sistema escolar no Brasil, terá de duplicar o seu sistema escolar para atender ao mesmo número de alunos. Pode-se ver, então, como o problema é, antes de mais nada, de recursos. Mas êstes recursos terão de aparecer, se realmente reconhecermos que são indispensáveis.

A extensão, profundidade e variedade do sistema escolar a ser desenvolvido no país para a educação comum de cêrca de oito milhões de crianças de 7 a 12 anos, para a educação de nível médio de, pelo menos, vinte por cento dessa massa e, para a educação em nível superior de, pelo menos, dez por cento da matrícula nos cursos médios, exigem que o empreendimento seja tentado como um imenso esfôrço cooperativo e livre de todos os governos, tôdas as organizações sociais e até de indivíduos. A disciplinação dêsse imenso e livre esfôrço se fará pela preparação do magistério, a que o Estado se deverá devotar com o ímpeto e o espírito de realização que poria no recrutamento de um exército de salvação nacional.

Os estudos universitários dos métodos, problemas e técnicas de educação, como arte e como ciência social, e a formação do magistério, pelos mais eficazes processos existentes, seriam as duas grandes fôrças de direção do grande movimento de expansão escolar que, assim, por certo, se haveria de deflagrar em todo o país.

E o contrôle da eficácia do rendimento escolar, para efeitos de consagração oficial e pública, se faria, principalmente, pelo processo de exame de estado, que atuaria como um saudável preventivo contra qualquer veleidade mistificadora, tornada, assim, de todo inútil.

Direção, disciplinação e contrôle seriam, dêste modo, conseguidos por meios indiretos, não se constrangendo nenhuma iniciativa e se estimulando, pelo contrário, todos os esforços e empreendimentos honestos e criadores.

Decidida a nação ao grande esfôrço - e esta é que é a grande decisão política - a ação se terá de desenvolver com a liberdade que aqui recomendamos, resultando a sua organicidade do jôgo daquelas influências indiretas, aludidas, particularmente o preparo do magistério e o exame de estado.

A complexidade do problema educacional é uma complexidade semelhante à da própria vida humana, mas, assim como não devemos arregimentar nem uniformizar a vida não podemos uniformizar nem arregimentar a educação. A unidade da educação nacional, como a unidade da vida brasileira, decorrerá da conciliação que soubermos estabelecer entre os seus dois aspectos fundamentais de organização e liberdade, responsabilidade e autonomia.

A conciliação se encontra na subordinação à verdade, e verdade é o que fôr reconhecido pela ciência ou pelo corpo organizado dos que a servem. Essa a conciliação que propomos para o problema do livre desenvolvimento do ensino no país, a fim de que o seu sistema escolar, expandindo-se e aperfeiçoando-se, possa cumprir a grande tarefa de que depende nada menos do que a sobrevivência nacional.

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