TEIXEIRA, Anísio. Interpretação do artigo 15 da Lei de Diretrizes e Bases. Documenta. Rio de Janeiro, n.81, fev. 1968. p.3-9.

INTERPRETAÇÃO DO ART. 15 DA LEI DE DIRETRIZES
E BASES

(Cons.º Anísio Teixeira)

Julgo susceptível de reexame a jurisprudência do Conselho relativa ao art. 15 da Lei de Diretrizes e Bases. Com efeito, no art. 9º dispõe da Lei de Diretrizes e Bases que ao Conselho Federal de Educação compete: letra a) decidir sôbre o funcionamento dos estabelecimentos isolados de ensino superior, federais e particulares; e letra b) decidir sôbre o reconhecimento das universidades, mediante aprovação dos seus estatutos e dos estabelecimentos isolados de ensino superior, depois de um prazo de funcionamento regular, no mínimo, dois anos. Depois, no art. 14, dispõe que é da competência da União reconhecer e inspecionar os estabelecimentos particulares de ensino superior. Logo a seguir, no art. 15, dispõe: "Aos Estados que, durante cinco anos, mantiverem universidade própria, com funcionamento regular serão conferidas as atribuições a que se refere a letra b do art. 9º, tanto quanto aos estabelecimentos por êle mantidos, como quanto aos que posteriormente sejam criados".

No art. 9º, § 2º dispõe ainda: "A autorização e a fiscalização dos estabelecimentos estaduais isolados de ensino superior caberão aos Conselhos Estaduais de Educação na forma da lei estadual respectiva".

Em face dêsses dispositivos da lei, compete aos Conselhos Estaduais a autorização e fiscalização dos estabelecimentos estaduais isolados de ensino superior. Se já compete aos Estados a autorização e fiscalização dos estabelecimentos estaduais isolados, independentemente de possuirem ou não universidades, a transferência de competência que se faz pelo art. 15 da lei para os Estados que possuem universidade perderia tôda razão de ser, se a transferência se limitasse aos próprios estabelecimentos estaduais.

A redação do art. 15 não é, na realidade, das mais felizes, pois ao mesmo tempo que transfere ao Estado que mantém universidade a competência prevista na letra b do art. 9º, encerra o artigo com um "tanto quanto como quanto" que, se por um lado significa desejo de ampliar a transferência, por outro lado é obscura, pois deixa de tornar explícito a que estabelecimentos se refere. Se o "tanto quanto" inclui expressamente os estabelecimentos mantidos pelo Estado, o "como quanto" refere-se aos estabelecimentos que "sejam criados". Se êsses estabelecimentos são os mantidos pelos Estados, o "como quanto" aos estabelecimentos que sejam criados torna-se perfeitamente dispensável, pois "os estabelecimentos por êles mantidos" no dispositivo legal inclui, por si mesmo, o presente e o futuro, tanto mais quanto a redação do artigo já está todo êle no futuro. A obscuridade ainda é maior, devido à forma passiva "sejam criados" em vez de venham a criar, para indicar que se refere ao próprio Estado a quem é transferida a competência.

Essa obscuridade se desfaz, entretanto, se compreendermos a expressão "como quanto aos que posteriormente sejam criados como incluindo os estabelecimentos de ensino superior tanto públicos estaduais quanto particulares.

O disposto na letra a do art. 9º e no art. 14 constitui a regra geral, de que o art. 15 é a exceção. Essa interpretação não só esclarece melhor a redação do art. 15, como, por outro lado, se harmoniza com o espírito da lei, que tem como uma de suas diretrizes a criação dos sistemas estaduais de educação, compreendendo o ensino primário e médico em todos os Estados e o primário, médio e superior, nos Estados que mantenham durante cinco anos "universidades próprias com funcionamento regular".

Compreende-se a intenção do legislador ao restringir a competência para autorizar a reconhecer o ensino privado superior em todo o país à União, pois, cabendo-lhe dispor sôbre o exercício de profissões de nível superior e achando-se o país em situação econômica e cultural de grandes contrastes, tôda prudência é necessária para se evitar a possível deterioração de padrões quanto à habilitação ao exercício daquelas profissões. A exceção aberta pelo art. 15 esclarece e confirma êsse propósito, transferindo a competência apenas aos Estados que tenham mantido por cinco anos com funcionamento regular universidade própria. Só tais Estados oferecem à união a necessária segurança para a transferência em questão. Ao mesmo tempo, a prescrição dessa exceção marca a fidelidade da lei à sua diretriz fundamental: a descentralização do ensino para órbita dos Estados.

Sòmente aquêles, cujo desenvolvimento se encontre em fase avançada e possuam recursos para manter as próprias universidades em funcionamento regular, por mais de cinco anos, é que, nas condições da lei, podem receber a competência originàriamente privativa da União.

Esta é, a nosso ver, a interpretação da lei no seu espírito e na sua letra, se quisermos explicar coerentemente a redação imperfeita do art. 15. Se voltarmos agora os olhos para o Estado de São Paulo e considerarmos a sua Universidade e as condições estabelecidas pelo seu Conselho Estadual de Educação para a autorização de estabelecimentos de ensino superior, veremos confirmadas as expectativas do legislador brasileiro. A Universidade de São Paulo é, sem contestação, a primeira e, até agora, a única em todo o Brasil, a lançar as bases da universidade de tempo integral para o professor e para o aluno. Os seus padrões de ensino superior constituem um orgulho para o Brasil, que nêles vê o modêlo para o país, quando todo êle houver chegado ao nível de seu desenvolvimento econômico. Os outros dois Estados que mantêm universidades são o da Guanabara e o de Minas Gerais, ambos também em marcha para padrões de ensino que estão francamente à altura dos que a União vem conseguindo em suas melhores escolas. Não direi em tôdas as escolas federais, porque a União, mantendo seu sistema de ensino em tôda a extensão do país, não pode lograr completa homogeniedade de nível de eficiência, devido aos contrastes econômicos e culturais dos diversos Estados brasileiros.

Cabe agora examinar as conseqüências práticas da dualidade de jurisdição quanto ao ensino superior nos Estados que mantêm universidade, que a interpretação ora corrente da Lei de Diretrizes e Bases - art. 15 - gerou em face de lhes ser apenas transferida a competência para autorizar e reconhecer o ensino superior por êles mantido. Parece haver isto criado a preferência para caracterizar as próprias instituições mantidas pelo poder público - geralmente municipal - como instituições privadas, a fim de cairem sob a jurisdição federal. Há repetidos casos em São Paulo - como êste que examinamos no processo em causa - em que governos municipais vêm criando escolas que procuram caracterizar como particulares mediante o artifício da fundação, que julgam poder ser privada, a fim de escaparem à jurisdição estadual.

Tal preferência difìcilmente poderia obedecer ao propósito de procurar os critérios mais rigorosos, que deveriam ser os da União. É evidente que buscam a jurisdição federal por julgá-la menos exigente quanto a padrões, o que, aliás, se explica por ter a União que considerar as necessidades das regiões tôdas do país e não ser fácil estabelecer padrões diferentes entre os Estados. Sòmente os Estados mais desenvolvidos é que o poderão fazer para o próprio território, e isto é que vem, no caso, fazendo São Paulo, para orgulho de todo o país.

A transferência, portanto, que faz a lei dessa competência em relação ao ensino superior para os Estados que mantêm universidade própria não é uma transferência para padrões inferiores, mas, exatamente, para padrões mais altos, que os Estados mais desenvolvidos podem vir a fixar antes que o possa fazer a União, obrigada que se vê a levar em conta tôda a extensão do país, com seus grandes contrastes econômicos e culturais. O sistema que implantou a Lei de Diretrizes e Bases, para a organização do ensino no país, dentro do espírito de descentralização que o distingue, não visa senão isto: permitir que entre os diversos estados se estabeleça uma saudável emulação, fixando cada um o mais alto padrão que possam permitir os seus recursos. A autonomia dada pela lei ao Estados mais do que tudo procura impedir que os mais desenvolvidos se sintam forçados ao padrão médio de todo o país, quando as suas situações já lhe permitem elevá-lo. A descentralização é o recurso para a elevação de padrões, que seria difícil se não impossível se os padrões fôssem rìgidamente uniformizados pelo poder central, o qual, dadas as condições diferentes das regiões, necessàriamente teria de fixá-lo em nível viável para a média da situação nacional.

A reação, que a tôda hora se manifesta contra qualquer veleidade de elevação de padrões, prova à sociedade quanto essa elevação de padrões requer condições econômicas e de desenvolvimento mais avançados.

Se para alguns puder isto ser considerado otimismo, permitam-me que os tranqüilize. Pelo sistema da Lei de Diretrizes e Bases, todo o ensino brasileiro de todos os Estados e da própria União se encontra sob a jurisdição do Conselho Federal de Educação, que lhe fixa suas condições fundamentais de funcionamento. A descentralização é mais do que tudo de execução e administração. No caso de abuso de qualquer Estado, o recurso e mesmo a iniciativa própria do Conselho é sempre possível para a correção, a revisão ou a redireção. A liberdade que se estende aos Estados pela transferência de competência que faz a lei é, na letra e no espírito, a liberdade para se fazer melhor o que, centralizadamente, só se poderia fazer se não pior, indiscutìvelmente com maior dificuldade. Nenhuma dessas liberdades é liberdade para se fazer o que quiser, mas para se fazer o melhor possível dentro de diretrizes e bases que são as da lei de que o Conselho Federal é o guardião, o intérprete e o vigilante promotor. A lei é uma só, vários são os executores, nenhum porém pode esquecer a normas mínimas que lhe fixa o Conselho.

Neste espírito é que julgo se deve interpretar a lei e a ação do Conselho. Não consigo vislumbrar qualquer vantagem na dualidade de jurisdição federal e estadual, dentro do mesmo Estado. O Conselho Estadual é um executor da política do Conselho Federal dentro de cada Estado. Quando a competência para essa execução atinge o ensino superior, o Conselho Federal deve delegar ao Conselho Estadual tôda a sua competência, procurando acompanhar-lhe os passos e emprestando-lhe o seu apoio para a elevação gradual dos padrões de ensino superior.

Manter a dualidade de jurisdição em qualquer dos Estados é, em essência, voltar à situação anterior à Lei de Diretrizes e Bases que, acima de tudo, buscou dar unidade à educação nacional dentro da variedade dos Estados. Há, entre o Conselho Federal e os Conselhos Estaduais uma situação de hierarquia, mas nunca de duplicação de autoridades. O intercâmbio entre êsses órgãos, saudàvelmente iniciado pelo Conselho Federal, deve prosseguir, sendo de tôda conveniência que se institucionalizem essas relações com a prática de troca de informações, de consultas e relatos periódicos das atividades desenvolvidas e dessas estimulantes transferências de autoridade que a lei consagra e que, em verdade, constituem delegações da autoridade central e suprema do Conselho Federal.

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