ÚLTIMA HORA. Por trás do substitutivo Lacerda: dinheiro das escolas para negócios particulares. Última Hora. Rio de Janeiro, 11 mar. 1959.

Por Trás do Substitutivo Lacerda:

DINHEIRO DAS ESCOLAS PARA NEGOCIOS PARTICULARES

A OPINIÃO DE ANÍSIO TEIXEIRA

No momento em que a Nação inteira sente a necessidade de, uma vez por tôdas, situar em seu plano o problema da escola pública e o dever do Estado em promover e assegurar a educação "para todos", cabe deixar bem claro que o substitutivo do Sr. Carlos Lacerda mistura propositadamente a questão da liberdade da educação com o fato de ser a educação privada ou pública.

A máscara com que se apresenta o projeto é a da liberdade da educação. Mas é só máscara. Essa liberdade, com efeito, consistiria em entregar a educação aos interesses privados dos proprietários de colégios dotados repentinamente de revelação pedagógica. O "negócio" do Senhor Carlos Lacerda nem se refere aos pais. Retira-se 25 bilhões de cruzeiros em nome da "família" brasileira para entregá-los aos "mandatários" fantasmas dessa mesma família, o que não passa, na verdade, de uma grosseira tentativa de transformar o Brasil numa "república privada".

Para falar sobre êste momentoso assunto trazemos a palavra, hoje, do professor Anísio Teixeira, considerado unânimemente como uma das maiores capacidades brasileiras em matéria de ensino.

Eis o que diz a respeito:

A LEI

"O debate em tôrno da lei de Diretrizes e Bases da Educação vem-se derramando desde 1946, mas, com tantas e tão longas interrupções, que constitui antes uma série de começos e recomeços do que uma extensa e profunda análise do problema.

Nenhuma lei de educação visa eliminar as controvérsias educacionais. Diferenças de opinião são inevitáveis em matéria de tanta importância. Por isto mesmo, a lei nacional de educação não deve ser algo que esgote o assunto mas, tão sòmente, um estatuto que disponha a respeito dos deveres do Estado em relação à educação formal dos cidadãos.

O Estado democrático, ao intervir no amplo processo social pelo qual o homem se educa e assegura a sobrevivência da sociedade, não pretende absorvê-lo nem esgotá-lo, repitamos, mas organizar serviços educativos que julgue indispensáveis para o funcionamento menos acidental da sociedade.

A lei em educação não é, em rigor, uma lei de educação mas sôbre educação. O Estado legisla sôbre educação como legisla sôbre saúde, sôbre agricultura, sôbre indústria. Como o interêsse pela educação se fêz público, isto é, transformou-se em interêsse dominante de tôda a sociedade, o Estado é convocado a estabelecer as bases e diretrizes, dentro das quais vai intervir no processo e assegurar que as oportunidades educativas se desdobrem regularmente, obedecendo certas condições de justiça e com a eficiência necessária para que todos delas se possam aproveitar.

O fato da educação se ter feito um interêsse público tem conseqüências óbvias. A educação tanto se pode fazer para atender interêsses privados, interêsses de grupos, interêsses de filosofia e de religião quanto para atender os interêsses da sociedade em geral. A lei regula a educação pública e, com relação à privada, que deve continuar livre, pode dispor quanto às condições necessárias para a eventual sanção pública de alguns dos seus resultados,

Isto levou os pensadores liberais do século XIX a caracterizar a educação pública como uma educação doutrinàriamente neutra e apolítica. A experiência democrática das últimas décadas reviu essa posição. A educação pública não pode ser tão neutra quanto se pensava. A sua doutrina e a sua política não podem ser, porém, senão a da Constituição do País. Com a constituição democrática, a educação pública tem de promover a ideologia democrática, dentro dos princípios estabelecidos pela Constituição. A matéria não é de controvérsia mas de interpretação competente, salvo se se deseja reformar a constituição. Daí ser a lei de educação não uma lei de pedagogos mas uma lei constitucionalista. É uma lei de direito público no sentido mais exato da palavra.

SERVIÇOS

Afastada, pois, a difícil questão dos princípios, que seria resolvida pelos intérpretes mais autorizados da constituição, a lei nacional de educação faz-se uma lei organizatória dos serviços educacionais a serem oferecidos pelo Estado, nas três ordens da Federação: a União, o estado, o município.

Pode-se ver, à luz dessas considerações, como a lei se tornaria viável, constituindo-se pura questão de estudo sincero e esclarecido e não de debates intermináveis e impossíveis.

As diretrizes da educação seriam o desenvolvimento do que já se acha contido na Constituição e as bases importariam na fixação das competências e poderes educacionais da União, dos estados e dos municípios, dos órgãos pelos quais êsses poderes se exerceriam e dos recursos a serem aplicados no desenvolvimento dos serviços públicos de educação.

Para achar o caminho para soluções razoáveis e plausíveis de tais problemas, teríamos de levar em conta as condições do País, extensas e desiguais, e a sua organização política, federativa e democrática. A isto, acrescentaria as novas condições de comunicação, que os tempos modernos nos oferecem e que diminuem substancialmente os perigos de uma descentralização corajosa e de larga delegação de autonomia.

A minha sugestão, por isto mesmo, seria a de uma lei federal que fixasse as condições pelas quais a União e os Estados delegassem a função de administrar as escolas, no nível primário, a órgãos locais, na órbita municipal, e às próprias escolas no nível secundário e superior, mediante um sistema de financiamento triplo – da União, dos Estados e dos Municípios – graças ao qual se garantiria à União e aos Estados êsse contrôle dos sistemas escolares sem, entretanto, chegar a impedir a experimentação, o crescimento e a liberdade.

ESQUEMA

Essa sugestão, que tenho repetidamente exposto, pode ser apreciada sumàriamente no conjunto de artigos abaixo, em que lhes dei forma articulada:

1. Anualmente, a União reservará menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos, para manutenção e desenvolvimento dos serviços públicos de educação e cultura.

A importância assim atribuída à educação será votada nos orçamentos municipais e estaduais e no federal em dotação global, automàticamente registrada no Tribunal de Contas, onde houver, e posta à disposição no Tesouro para ser paga, mensalmente, aos órgãos de administração.

2.Tais recursos constituirão a fonte principal de renda para o Fundo Federal de Educação, os Fundos Estaduais de Educação e os Fundos Municipais de Educação, que, desde já ficam criados, sem prejuízo de outras fontes de recursos já existentes ou que se estabelecerem por lei. Os recursos do atual Fundo Nacional, do Ensino Primário se integrarão no Fundo Federal de Educação.

3. Os Fundos de Educação serão administrados por Conselhos, organizados nas órbitas federal, estadual e municipal e aos quais caberá a elaboração dos orçamentos especiais da educação, nas três ordens do govêrno federativo, obedecendo às seguintes normas gerais:

I - Os recursos do Fundo Municipal de Educação serão anualmente, divididos pelas crianças em idade escolar do Município e que possam receber educação.

II - A quota-por-aluno constituirá a medida do sistema escolar a ser mantido pelo Município, nela se incluindo obrigatòriamente, as despesas com o professorado, a administração das escolas, o material didático e o prédio e a sua conservação, em percentagens que forem julgadas adequadas.

III - Os recursos do Fundo Estadual de Educação serão, anualmente, separados em duas partes, uma para cobrir as despesas com as obrigações que o Estado tenha se reservado nos serviços de educação e outra para ser dividida pelas crianças matriculadas nas escolas municipais, a qual constituirá a contribuição por aluno do Estado às escolas municipais.

IV - Essa quota do Estado se integrará no Fundo Municipal de Educação, sujeita à aplicação dêste recurso suplementar às condições que o Estado, por convênio, estabelecer com o Município.

V - A primeira parcela dos recursos do Estado se destinará, obrigatòriamente, ao preparo do magistério, cujo licenciamento será dêle privativo, bem como o de todos os demais servidores do ensino e a um serviço de planejamento, orientação e assistência à educação em todo o Estado, e facultativamente, à manutenção do ensino médio e superior.

VI - Os recursos do Fundo Federal serão divididos em duas parcelas, a primeira para custeio do sistema federal de ensino, e a segunda para o desenvolvimento de sua ação supletiva que se exercerá principalmente, sob o aspecto de assistência financeira e técnica aos sistemas locais de educação, com o objetivo de promover e estimular o desenvolvimento geral da educação no país, numa adequada articulação dos esforços municipais e estaduais com o esfôrço federal.

VII - As parcelas dos recursos dos fundos municipais e estaduais reservadas a inversões em prédios e equipamentos poderão conforme planos estabelecidos pelos Estados, ser utilizados de modo a se constituírem fundos de financiamento de empréstimos públicos ou particulares para a construção de prédios escolares e seu equipamento.

VIII - A União poderá igualmente promover tais planos de financiamento de inversões nos sistemas locais de ensino e assumir, solidàriamente, com o Estado ou os Estados e os Municípios, a responsabilidade do lançamento e pagamento dos empréstimos necessários.

UNIDADE

Dispersada a neblina pedagógica e ideológica que nos impede, há onze anos, de elaborar uma lei de bases e diretrizes da educação nacional, passaríamos a votar uma lei de meios e de podêres, à maneira das leis tão revolucionárias que vimos votando no campo fiscal e financeiro, e nos lançaríamos à imensa experimentação educacional em um país grande como um continente e que constitui na América do Sul, o mais amplo laboratório de democracia de todo o hemisfério.

O Estado democrático não é o Estado totalitário. O pluralismo municipalista, o pluralismo estadual (estado-província), o pluralismo institucional constituíram um conjunto de fôrças criadoras, embora contidas dentro dos princípios amplos da Constituição, que mùtuamente se fertilizariam e se disciplinariam em busca de uma unidade na diversidade, antes conquistada do que imposta. Esta, a diferença entre o mecânico e o vivo. O sistema escolar brasileiro teria a unidade dos corpos vivos, a unidade como resultado e não como imposição".

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |