TEIXEIRA, Anísio. Paris é um filho espiritual de Roma. Entrevista. A Tarde. Salvador, 30 nov. 1925.


PARIS
É UM FILHO ESPIRITUAL DE ROMA

Anísio Teixeira,
entrevista a "A Tarde", 30/11/25


O jovem e inteligente inspetor do ensino, ausente do seu cargo durante alguns meses, em peregrinação do ano santo, já está de volta e já deve ter tomado conta do seu cargo, para dar começo, afinal, mesmo durante as férias escolares, à execução da reforma do ensino, que estava à sua espera. Era natural procurarmos impressões suas, da viagem. Deu-as, na entrevista que se segue, restringindo-as, como era de prever, aos seus pontos de vista religiosos, muito absorventes.

Mas, deixemo-nos de intróitos; e vamos às impressões do simpático Dr. Anísio Teixeira. Ei-las:

"O ruído que eu ainda ouço dentro de mim dessas impressões inumeráveis que o Sr. me pede para resumir em duas colunas de jornal, se me torna a cabeça sonora como uma colmeia de abelhas, está muito longe de lhe dar a precisa tranqüilidade para escrever e muito menos para resumir.

Depois devo-lhe dizer que os meus quatro meses de ausência foram uma ronda ininterrompida pelos sítios mais delirantemente consagrados da inteligência e da literatura. Ainda há tudo a sentir em uma Itália, mas já não há quase nada a dizer.

Por outro lado os problemas de ensino, que me absorveram as últimas semanas de minha viagem, não creio que sejam o assunto mais fascinante para o seu jornal, desde que hoje, se não quisermos cair no impreciso de algumas considerações gerais, devemos, discutindo problemas pedagógicos, ferir profundamente a feição, dia a dia, mais técnica que assumem tais questões.

Resta-me dizer-lhe das correntes, que poderíamos chamar de pensamentos, sociais, políticas e religiosas que me parecem dominar ou somente agitar as gentes desses países em cujo contacto eu vivi os curtos dias de alguns meses, correntes cujas diretrizes e cuja significação se deixam trair pela observação imediata da vida quotidiana dessas nações ou pelos grandes acontecimentos sociais, exposições, congressos, etc. que resumem, por vezes, o estado presente da sensibilidade e do espírito europeus.

E se este assunto nos fixa para a nossa entrevista, darei da Europa um resumo comovente e dentro do profundo misticismo da época contemporânea, uma encruzilhada de luz onde se dão rendez-vouz todas as misérias animadas do esplendor de todas as esperanças e nos detenhamos em Roma, porque Lourdes seria mais um capítulo-epílogo da história do sentimento e da idéia na Europa, mais uma formidável conclusão, de que um fato de onde possamos fazer decorrer as nossas induções.

E nos detenhamos em Roma, neste ano santo de 1925. O jubileu e a exposição missionária dominam com tal luz a vida da cidade cuja grandeza espiritual designou de eterna, que todos os outros problemas da Itália imergem na sombra.

Liberte-se do ligeiro tom de irreverência com que se lhe poderia aparecer a minha expressão e eu lhe direi que a Igreja Católica teve em 1925, a sua mais formidável demonstração de força.

Ao se fechar o primeiro quartel de um século que prolongava a inquietude mental de uma humanidade desarticulada, na sua vida moral e espiritual, pelas correntes mais poderosas do erro e pelo mais profundo cataclismo social de todos os tempos, em que se julgou terem soçobrado todas as reservas de equilíbrio, de ordem e do sentido sobrenatural da vida, o Papa da sua cátedra de verdade fez um gesto paternal de convite: Todos os que colocavam acima das misérias as suas esperanças, viessem a Roma, numa manifestação de fé e numa manifestação de humildade, prestar a homenagem de seu coração e de sua inteligência à verdade salvadora do cristianismo.

E foi, em todo o mundo, um estranho movimento de mobilização. E o Papa, durante todo um ano, a mão erguida em sinal de bênção, assistiu ao desfile daquela impressionante multidão de fiéis cuja demonstração me aparecia, no seio da nossa civilização mecânica e econômica, como um desses grandes gestos reparadores da humanidade, um desses momentos profundamente líricos e comoventes, que pensamos já não poderem florescer em nosso tempo, em que toda uma vida de erros se desfaz num instante de fulgor.

Quando a marcha da civilização se faz, acentuadamente, no sentido material, numa época em que toda a cultura se volta para as coisas e deixa o homem, no seu sentido específico espiritual; que soberba e consoladora afirmação de humanismo fez o chefe espiritual da Igreja!

As suas forças não são da terra. Tudo em Roma era uma sugestão fortíssima para o ideal, era um apelo sereno para que todos defendêssemos esta causa santa e eternamente perdida do ideal. Quando tudo pregava o interesse, Roma pregava o desinteresse. E para dar o exemplo, abriu os salões do Vaticano para uma exposição que punha lágrimas nos olhos dos mais incrédulos.

A exposição missionária era a história de todas as missões do mundo, a começar por aquela primeira que se iniciou num estábulo de Nazaré e terminou em uma cruz no Gólgota e que foi a missão suprema até a mais modesta e comovente ramificação dessa árvore cristã, representada pela atividade do mais distante missionário da China ou da Oceania.

A bruta, dolorosa e magnífica marcha do cristianismo para conquistar a terra prossegue cheia de dificuldades, cheia de heroísmo, cheia de bênçãos, em algumas partes ainda quente de martírios.

Atravessamos as dezenas de salas do Vaticano ocupadas com a exposição, como se acompanhássemos essa marcha penosa, mas ascencional, do missionário.

E de tudo se desprende uma lição profunda e otimista de confiança no valor humano, de confiança no espírito, de confiança no bem.

A dificuldade com que essa doutrina de mansidão e de bondade conquista o mundo é o penhor de sua filiação extra-terrestre. Há uma chama divina que anima esses seculares servidores da Fé. E ninguém que ouve as palavras do Papa e percorre as salas da exposição católica deixa Roma sem essa funda impressão confortadora de que o Espírito vive mais do que nunca, dentro da mecânica desencadeadora da nossa civilização material.

De Roma passando a Paris, porque não nos queremos deter senão nas grandes cidades intelectuais do mundo, eu me atrevo a dizer, sem paradoxo, que não é tão grande como se pode imaginar a distância transposta.

Paris é a cidade das seduções inumeráveis, mas será preciso a profunda inanidade intelectual de certos viajantes para a julgarem, apenas, a cidade dos prazeres fáceis.

A minha impressão pessoal hoje é que, Paris é um filho brilhante e genial de Roma. E se uma cidade é realmente representada pelas suas mais altas inteligências, será preciso eu repetir que Maritain é, em França, um mestre incontestado da mocidade e que o pensamento do grande filósofo francês adere intimamente à doutrina de Roma?

Quando, há um ano ou pouco menos, o Dr. Caio Moura, singularmente insuspeito, porque dias antes de sua viagem à Europa ele me acusara de um século de atraso mental, como eu defendesse diante dele idéias filosóficas tomísticas, dizia, creio que nessas mesmas colunas de À Tarde que, com Maritain, se concluía em Paris, o maior acontecimento filosófico contemporâneo, que era a revivescência da filosofia do Anjo da Escola, eu não pude deixar de sorrir diante dessa confirmação, que reabilitava o meu lamentável atraso intelectual.

Se o pensamento filosófico está hoje, com o declínio sensível de Bergson, dirigido pelo seu antigo discípulo Maritain, o pensamento político tem em França a sua mais forte afirmação em Maurras. Maurras, cujo grito de guerra - Polityque d’abord - faz dele, além de um dos maiores pensadores políticos mundiais, o homem do combate quotidiano, o jornalista que distribui, diariamente, pelo inumerável de seus leitores e discípulos, uma doutrina política forte, salubre, cheia de razão e de lógica.

E Maurras, que não tem razões de fé para aderir à Igreja, submete o seu pensamento às diretrizes essenciais da doutrina romana, cuja verdade social, senão divina, a sua prédica diária proclama.

A reedição recente, quando estava em Paris, da sua formidável Enquête sur la Monarchie, teve um sucesso que se comparou ao do Contrato Social de Rousseau. Trinta mil exemplares se esgotaram em duas semanas. E a Enquête sur la Monarchie é um alentado volume de 20 francos e que está longe de ser uma obra de leitura popular.

Em volta desses dois grandes mestres do pensamento, Paris movimenta toda uma mocidade intelectual profundamente sequiosa de se libertar das correntes poderosas do ceticismo, do racionalismo filosófico ou político.

Se a geração do último quartel do século XIX e começo do século XX intentou e concluiu o processo intelectual do século XVIII, cuja influência ainda se arrasta até nós, a tarefa e a responsabilidade da geração de hoje é a de refazer a obra doutrinária desfeita em 89.

A não ser os centros, como o da "Revista dos Dois Mundos", onde dificilmente aparece a coragem da revisão de um desses lugares-comuns atrozes que o verbalismo científico ou democrático consagrou como verdades intangíveis, a não ser os meios oficiais que sustentam um regime que vive daquelas conclusões precipitadas do século revolucionário, a obra da reação é cada vez mais poderosa e mais brilhante em França.

No dia em que deixei Paris, 11 de novembro, data do armistício, Philipe Barrès, Jacques d’Arthnis e Georges Vallois haviam convidado os franceses para uma grande reunião, onde se iam lançar as bases do Faisceau. Essa reunião, cujos formidáveis anúncios enchiam todas as ruas de Paris, sucedia no momento em que se afirmava mais invencível a incapacidade do estado parlamentar de governar a França, incapacidade que se acentua de tal modo, que não seria, efetivamente, inesperada a queda do próprio regime, cuja agonia é sensível.

O Faisceau francês, como o fascio italiano, é um apelo a todas as velhas forças tradicionais da raça e do país e a sua mobilização em partido de guerra para a conquista das verdades essenciais de que nenhuma sociedade pode prescindir para viver.

Essas verdades essenciais, não julgue que evito o meu pensamento, essas verdades essenciais de autoridade, de ordem, de equilíbrio e de hierarquia se prendem indissoluvelmente às verdades religiosas e às verdades católicas e acolhem a Igreja como a mais benéfica das forças sociais. A idéia da França e a idéia do Catolicismo são idéias que não se podem separar na inteligência de uma grande parte da mocidade francesa e nos seus mais autorizados pensadores contemporâneos.

Mas estou a ver a sua objeção. A crítica e a observação sobre essas correntes de idéias é uma projeção sobre o futuro. E o seu jornal por certo estimaria muito mais alguma coisa que se estivesse a passar naqueles centros de fogo da vida moderna.

Eu, porém, percorri a Itália como um discípulo do renascimento, que procurava reconstituir para a sua formação aquele período inigualável, que já não tem, entretanto, grandes fascinações para os leitores de 1925. O próprio fascismo, que atravessava um período de tranqüilidade, foi apenas um objeto acidental de minha observação.

Na França, eu apenas trabalhei para fortificar as velhas admirações do meu espírito pela civilização e cultura francesa.

Na Bélgica, as questões de ensino me absorveram por mais de vinte dias, em visitas cheias de interesse às escolas e institutos pedagógicos.

É certo que, durante a minha estadia em França, o Congresso Radical Socialista de Nice, a Conferência de Locarno, o formidável processo "Daudet-Bajot", sobre a morte de Philippe Daudet, as crises do governo francês, a Exposição de Artes Decorativas seriam outros assuntos que estariam a pedir os nossos comentários.

Mas, tudo isto nos levaria muito longe, e as minhas responsabilidades sobre o ensino na Bahia são muito grandes, para que eu não concentre toda a atenção do meu espírito e todas as minhas energias na solução dos seus problemas."



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