TEIXEIRA, Anísio. Falando francamente. Entrevista. Programa de TV. 1958.

FALANDO FRANCAMENTE *

ANíSIO TEIXEIRA

Diretor do I.N.E.P.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Hoje vamos ter em nosso programa um ilustre educador brasileiro, pessoa competentíssima, o Professor Anísio Spínola Teixeira. O Professor Anísio Teixeira tem sido alvo de comentários e debates nesses últimos tempos e têm recebido por parte dos homens da cultura brasileira as maiores provas de solidariedade. Da Universidade de São Paulo centenas de personalidades se manifestaram pró-Anísio Teixeira. Da Universidade da Bahia; do Professor Cesar Lattes; aqui no Distrito Federal mais de 500 professôres e líderes católicos o apoiaram; o Sr. Hamilton Nogueira, o Sr. Afrânio Coutinho, alguns sacerdotes, bispos, todos lhe têm sido solidários nesse debate em tôrno do Professor Anísio Teixeira.

Dr. Anísio Teixeira, o senhor está diante dos telespectadores. Poderá cumprimentá-los se assim o desejar. O senhor aqui está, não para falar do seu caso; o senhor vai falar sôbre a educação no Brasil, sôbre aquêle tema tão bonito pelo qual se bate, que é a educação para todos e não para uma elite. Agora, Professor Anísio Teixeira, gostaria de saber por que o senhor é tão combatido?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Devo declarar que não sou eu o combatido. Os grandes problemas sociais acabam por se refletir nos domínios da cultura e da educação, que se constituem, assim, campos de batalha dos conflitos em curso na sociedade. Possìvelmente sou objeto de debate, por me achar em posição de assumir responsabilidade, de tomar partido em meio dos grandes embates sociais da época em que vivemos. Como bem diz o Professor Whitehead, um choque de doutrinas é sempre uma oportunidade. São tais choques que permitem, pelo debate, o esclarecimento. Devemos procurar, pela discussão, iluminar os problemas e as alternativas de decisão, a fim de permitir que o Brasil encontre soluções lúcidas e razoáveis para suas perplexidades mais graves. Não sou eu que sou combatido, senão certas posições ante tais conjunturas.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Dr. Anísio Teixeira, o senhor defende a tese da educação para todos os brasileiros e não apenas para uma elite, para uma camada. Acha isso possível em tempo próximo, ou acha uma utopia, um sonho, que talvez daqui a muitos anos possa ser realizado?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Utopia ou não, possibilidade ou não, o objetivo consiste na expansão da educação, até hoje privilégio de poucos, aos muitos, senão a todos, e isso como urgente e absoluta necessidade. O problema da educação para todos é um problema legal, isto é, de singelo cumprimento do preceito constitucional. Desde que estabelecemos que a educação é um direito - e foi o que fizemos em nossa Constituição - a expansão da educação para todos se fêz um dever do Estado no Brasil.

Não se trata, porém, hoje, de um dever platônico, de um generoso voto inscrito na Carta Magna. O povo passou a exigir o cumprimento dêsse dever. Há no País verdadeira fome de educação. Assim como há filas nos açougues, há filas para se conseguir lugar na escola. São imensos os grupos de crianças, jovens e adolescentes, que batem às portas das escolas pedindo educação. O problema educacional brasileiro está-se revelando muito mais tremendo do que se podia supor, e o crescimento e expansão do sistema escolar correspondem a uma modificação de estrutura da sociedade brasileira.

Se Arnaldo Nogueira me permite continuar ...

SR. ARNALDO NOGUEIRA - Pois não.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - ... diria que o fenômeno impõe exame mais profundo. Tôda sociedade humana, para sobreviver, precisa de um mínimo de educação que lhe assegure a transmissão indispensável da cultura até ali existente. Isso se realiza pela educação dos filhos dos já educados. Até a altura de 1930 estávamos mais ou menos satisfeitos com a situação educacional: as escolas pareciam suficientes às necessidades do Brasil. Por quê? Porque a estrutura da sociedade, a nossa antiga e tradicional estrutura, era dual, bifurcava a sociedade em uma grande massa de ignorantes e uma elite letrada e ilustre, destinada esta às funções de govêrno. Enquanto a situação conservou a estabilidade indispensável para êsse mínimo de educação assegurar a sua sobrevivência, não houve pregação que acordasse o País de sua estagnação educacional. Ainda em plena monarquia, Rui Barbosa traçou o mais lúcido dos quadros de nossa necessidade potencial de educação. De nada valeu. Continuamos o nosso imenso sono escolar. Os ignorantes continuavam ignorantes, e a pequena elite de qualquer modo se renovava com os recursos do escasso sistema escolar, sòmente a ela destinado...

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Ainda hoje sentimos e vivemos nessa dualidade, uma pequena elite educada e uma enorme massa deseducada, esmolando, sem meios de cultura para vencer na vida.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Evidentemente. Ainda hoje persiste a situação. Com uma diferença, entretanto. Estamos a estender a educação de elite a número bem maior que o anterior. Recusamo-nos a compreender que é de uma nova educação que precisa hoje o Brasil. A educação ministrada anteriormente destinava-se sistemàticamente a educar alguns poucos para governar ou exercer funções públicas em uma sociedade constituída de elite ilustrada e massa ignorante. A produção - diminuta e escassa - era confiada a artesãos, que se preparavam pelo aprendizado direto, e à grande massa inculta, dos camponeses e lavradores. Assistimos ao desaparecimento dessa sociedade. A industrialização e a crescente urbanização estão a criar uma sociedade nova, com as funções de produção e de serviços não só aumentadas mas extremamente diversificadas. A antiga educação para elite governante não lhe basta. Nem lhe basta nem lhe é já agora adequada. Não havendo, porém, outra, o novo despertar social provocou-lhe a expansão. E o que vemos hoje é a luta, a ansiedade dos trabalhadores por escolas secundárias acadêmicas, e por escolas superiores, que se estão difundindo por tôdas as partes do Brasil. O povo brasileiro busca nas escolas uma ilustração absolutamente ineficaz nos dias de hoje. Nem as escolas primárias ministram ensino pròpriamente útil. Reduzem-se, como antigamente, a preparar os alunos para entrarem no ginásio, e êstes a prepará-los para o colégio, que, por sua vez, os prepara para o ingresso no ensino superior. Temos hoje em dia no ensino superior mais de 800 cursos com cêrca de 80.000 alunos. O mesmo número que possui a Inglaterra. Enquanto na Inglaterra, com tôda a sua infância e adolescência educada até os 15 e 16 anos, apenas 80.000 alunos chegam à escola superior, entre nós com menos de 10% de nossa infância no quarto ano primário, e menos de nossa adolescência na escola secundária, temos o mesmo número de alunos nas escolas superiores. É que a educação, continuando, apesar de expandida, a ser uma educação de elite, só se completa com a escola superior. É necessário mudar tudo isso. É necessário que a escola primária se faça uma escola útil por si mesma. E o mesmo se dê com a escola média. Uma e outra escola devem habilitar o aluno, acima de tudo, a trabalhar e a ganhar a vida. Os excepcionais, dentre êles, os que podem ganhá-la com o trabalho intelectual ou o trabalho profissional de nível superior é que devem ingressar no ensino superior.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Não há uma certa desorientação nas escolas de ensino superior?

O Professor Darci Ribeiro, que é mineiro e que visitou uma região pecuária de Minas Gerais, disse, na palestra aqui proferida, que, naquela cidade que visitou, só encontrou advogados, médicos e engenheiros, e não encontrou agrônomos, isto é, pessoas que tivessem feito o curso para a especialidade da região pecuária.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Há mais do que desorientação, há ineficiência e inadequação. Mas se tôda educação é apenas preparatória para tais cursos superiores, não oferecendo outros fins senão os de um possível ingresso para êsse mandarinato social, que podem fazer os alunos senão buscar, cada vez com maior aflição, êsses tais cursos superiores? A realidade, repito, é que urge uma transformação muito importante dos próprios objetivos da educação. A educação para poucos podia resumir-se na formação de uma classe ilustrada, capaz de discretear elegantemente sôbre coisas e pessoas, interessante no convívio e habilitada de fato tão-sòmente a consumir a vida ou a realizar tarefas de govêrno e liderança. A educação para muitos e, no final de contas, para todos, não pode ser essa. É educação para produzir, em uma sociedade transformada, em que o trabalho já não pode ser entregue ao ignorante e de onde desapareceu o labor individual do artesanato. Para essa nova sociedade faz-se indispensável uma nova educação.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - O senhor, como Diretor do INEP, que faz em prol dessas suas idéias?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Dirigindo o INEP e sentindo profundamente a gravidade do problema, a minha primeira iniciativa foi a de criar - poderá parecer paradoxal - um Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, que se desdobra por cinco outros centros regionais de pesquisas educacionais, destinados a estudar êste tremendo problema e a encontrar as soluções adequadas para uma escola brasileira adaptada à nova situação de um Brasil em mudança.

Os centros compreendem duas divisões de estudos, uma de pesquisas sociais e outra de pesquisas educacionais, um serviço de documentação pedagógica e uma divisão de aperfeiçoamento do magistério e de escolas experimentais. A sua missão principal é a de estudar a sociedade brasileira e diagnosticar-lhe as necessidades educacionais. Escola e sociedade terão de encontrar-se e de entender-se, a primeira servindo e renovando a segunda.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Já estamos recebendo perguntas pelo telefone 46-9411. Quero avisar ao nosso público que, se desejar fazer alguma pergunta, poderá telefonar, que dentro de alguns minutos o Professor Anísio Teixeira responderá.

Eu gostaria de saber o que pode ser feito pela educação dentro do sistema educacional atual do Brasil para terminar com essa completa confusão da família brasileira, da delinqüência social e dêsses problemas que estão afetos à educação.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Este problema é o grande problema moral da sociedade moderna. Não esqueçamos que estamos passando por grandes transformações sociais, saindo de uma sociedade linear e homogênea para uma nova sociedade complexa, vasta, heterogênea, em acelerado processo de industrialização e urbanização. Antes, todos nos conhecíamos na pequena sociedade de bons vizinhos, e o problema moral era infinitamente mais simples e natural. Entre conhecidos e amigos é menos fácil proceder-me mal. Hoje, vivemos, é certo, numa grande proximidade física, uns dos outros, mas não nos conhecemos. A sociedade especializada e complexa criou uma multidão de planos de contato. Somos uma porção de pessoas, conforme o grupo em que nos achamos. Estamos todos perto uns dos outros mas vivemos como anônimos. As relações humanas ganharam tamanha especialização e complexidade que o problema moral se fêz confuso e difícil, necessitando-se de muita cultura para percebê-lo. Tais novas condições da sociedade, em conseqüência do progresso moderno, criaram para o homem a necessidade de educação muito mais demorada para poder êle atingir a verdadeira maturidade moral. O que estamos a ver no Brasil hoje em dia e em todo o mundo são as conseqüências dêsse estado de desagregação da sociedade, em virtude da sua divisão em grupos, cada vez mais numerosos, mais vastos e mais incoerentes. Somos próximos fìsicamente, mas estamos cada vez mais distanciados uns dos outros; vivemos entre estranhos e todos sabemos quanto se pode ser indiferente ao estranho. O caráter é uma conseqüência da convivência, do conhecimento, do amor entre os homens. Se não nos amarmos, não poderemos ser bons uns para os outros. Já houve quem dissesse que o caráter é um fenômeno geográfico: tem-se um caráter para cada lugar. Ora, a sociedade moderna é uma multiplicação de lugares, sem precisar sair do mesmo espaço físico. Pode-se, assim, imaginar quanto se faz menos fácil o comportamento uniforme e íntegro de outrora. Ainda aí o problema da educação se faz mais importante e mais grave.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Pode esclarecer aqui o que disse ao Professor Hamilton Nogueira, um aluno: "Educação é complexo de inferioridade"? Isso foi dito por um jovem da nova geração.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Creio poder interpretar o que êsse jovem queria dizer: sua frase importa em uma crítica sarcástica a certa forma de educação: a educação para as boas maneiras.

As boas maneiras são o que há de essencial à boa convivência humana; como disse um grande educador, são como o óleo, que diminui e remove o atrito entre os homens. Evidentemente, para êsse rapaz que se está a educar, as boas maneiras são muito recomendáveis. Mas o fato é que já não bastam essas boas maneiras para as condições em que se vive hoje. A educação deve buscar atingir finalidade ainda mais alta, deve levá-lo a um esclarecimento mais preciso da situação em que vive, a fim de habilitá-lo a uma tomada de consciência do seu meio e à integração em sua comunidade.

A realidade é que o homem se sente na nova sociedade, múltipla e diversa, muito mais livre, com mais liberdade física e moral. A mulher, igualmente, passa por uma transformação que talvez seja a maior dos nossos tempos. Talvez venha a nossa época a ser chamada a época da emancipação feminina. Ora, nenhuma dessas emancipações se concretiza sem graves perigos para certos comportamentos, certas condutas estabelecidas pelo meio social. Êsses novos jovens, essas novas mulheres, êsses novos homens encontram-se em condições extremamente mais difíceis do que as dos seus pais e de seus avós, para se comportarem como êles se comportaram. Há necessidade de se lhes dar educação muito mais desenvolvida, e de lhes fornecer um esclarecimento intelectual muito maior, se desejamos que nossa grande sociedade se faça a grande comunidade, com a mesma integridade moral da pequena sociedade antiga.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Que diz da educação para o desenvolvimento dos grandes problemas? Por exemplo, no caso do Brasil, a educação para encaminhar êste País aos caminhos certos, polìticamente falando?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Devo dizer, antes que tudo, que a educação para todos, no sentido restrito de educação escolar, torna-se a condição mesma para iniciar o que se chama de civilização moderna. E vale aqui a referência à primeira lei que, talvez, no mundo e, por certo, na América se promulgou relativa à educação universal e gratuita.

Em 11 de novembro de 1646, antes da revolução francesa, que digo, antes das revoluções inglêsa e americana, a colônia de Massachussets, na Nova Inglaterra, votava a sua lei de educação, a que chamou a "Lei do Grande e Velho Enganador Satanás". Vejamos o considerando que precede a lei: "Sendo o principal propósito do velho enganador, Satanás, manter os homens afastados do conhecimento das escrituras, conservando-as nos tempos antigos em uma língua desconhecida e nos últimos tempos persuadindo-nos a não saber ler nem escrever a nossa, de modo que o verdadeiro sentido dos originais possa ser toldado por falsas glosas de enganadores aparentemente santos... etc. Resolve que cada comunidade de 50 casas estabeleça uma escola a ser paga pelos pais ou por uma taxa levantada em tôda vila". Há mais de 300 anos, portanto, a tradição protestante criou a escola universal.

A nossa tradição não poderia vir de tão longe. Mas, assim que estabelecemos a democracia, com a participação de todos no govêrno, deveríamos ter estabelecido também a educação universal e obrigatória.

É êsse velho problema que estamos agora ainda a tentar resolver. Não se trata apenas de ensinar a ler, mas, já agora, de preparar tôda a população para formas de trabalho, em que o uso das artes escolares é indispensável e para forma de govêrno que exige participação consciente, senso crítico, aptidão para julgar e escolher. Está claro que tal educação comum não pode consistir em um curso atropelado, numa escola congestionada, a funcionar em turnos, que chegam a ser de menos de duas horas.

Creio que o telespectador sabe que, na Capital do grande Estado de São Paulo, 25% dos grupos escolares funcionam em quatro turnos com uma hora e meia para cada turno! A realidade é que o ensino primário vem perdendo a sua função primordial de preparar o cidadão comum de nossa democracia, para se fazer apenas preparatório, e deficiente, ao ensino secundário acadêmico. Aqui está um gráfico da atual situação escolar brasileira comparada à situação norte-americana:

Vejamos o que nos diz êste gráfico. Enquanto nos Estados Unidos tôda a população, pràticamente, até os 18 anos se encontra na Escola e 30% dos de mais de 18 se encontram na Universidade, entre nós apenas 3O% dos alunos de 10 anos têm escola. Todo o nosso sistema de educação popular não chega a dar três anos de estudos para tôda a população. Na educação de nível médio, mal chegamos a ter cinco por cento dos alunos dêsse nível de idade. Terminam o ensino médio cêrca de 10% dos que concluem o primário, e dêsses 10%, nada menos de metade prossegue os estudos no nível universitário.

Chega a ser um milagre a nossa sociedade sobreviver com êsse mínimo de educação escolar. A gravidade não está, porém, sòmente na escassez de educação. Está, sobretudo, na sua qualidade. Continua, a despeito de tudo, a ser uma educação seletiva, não melhorando pròpriamente o nível geral da vida brasileira, mas preparando alguns para o gôzo dos privilégios de ser educado dentro de uma massa de deseducados. Êsse fato de a educação ser ainda um privilégio em nosso País, facilita o seu formalismo, senão a sua simulação e lhe retira as sanções sociais, que lhe seriam totalmente infligidas, se fôsse ela bem de todos, a ser julgada pela sua eficácia e qualidade.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Que acha o senhor do papel desempenhado pelos missionários, pelos sacerdotes, na educação dos jovens brasileiros?

SR. ANíSIO TEIXEIRA - Evidentemente o Brasil se desenvolveu à sombra de Ordens Religiosas e, dentre essas, nenhuma foi mais extraordinária do que a Companhia de Jesus. Essa Companhia, entretanto, dedicou-se, em todo o mundo, à educação das elites. Nas Constituições da Companhia se diz expressamente: "Nenhum dos que sejam empregados pela Companhia para o serviço doméstico tem que aprender a ler ou escrever... porque para êles é suficiente servir com tôda simplicidade e humildade a Nosso Senhor Jesus Cristo". Entretanto, essa Companhia, tão diversa em sua filosofia educacional dos povos simples e puritanos da Nova Inglaterra, fêz em terras da América a sua única exceção: ocupar-se com a a educação elementar dos índios. Os seus famosos colégios não eram, contudo, para os índios, mas para a elite nascente brasileira. O êxito dêsses colégios de elite se comprova pelo fato de um Antônio Vieira poder ter-se formado no Brasil.

São velhas as origens de nossa educação para a elite, ou para a formação dos quadros de govêrno e da burocracia. Vou ler aqui um documento profundamente expressivo da orientação educacional de um passado quase recente, pois dos começos do século passado. Trata-se do capitão-mor Domingos José Vieira, que, em mensagem de 5 de março de 1820, lembra ao Governador de São Paulo a "urgente necessidade" que têm os povos da Vila de Itapetininga da "Arte das primeiras letras"; que a distância, o mau estado do caminho e a pobreza dos moradores os impedem de procurar, em Sorocaba, "êstes meios de fazerem felizes os seus descendentes"; e pede um Mestre Régio de primeiras letras, pois que "havendo precisão de um vassalo para o R.S. não se pode nomear para qualquer emprêgo pela falta daqueles conhecimentos que distinguem aos indivíduos, pois que não obstante tenham qualidades de seus nascimentos contudo faltam aquelas que mais realizam seus caracteres. . . "

Já em 1835, em discurso pronunciado perante a Câmara, o Prefeito de ltapetininga, Francisco Xavier de Araújo (natural de Portugal e genro de Domingos José Vieira, atrás citado), entre as observações que julgava "adequadas ao andamento da Civilização dêste Município, e ao bem público", colocou, em primeiro lugar, a referente à falta de um mestre de primeiras letras e chamou a atenção para "quantos Cidadoens já se acham ocupando cargos honrosos que adquirirão com o ensino do primeiro Mestre", bem como para "quantos Cidadoens probos existem neste Município, e privados dos cargos públicos, por falta dos primeiros conhecimentos por causa de não saberem ler, e nem escrever, e para evitar uma tal escuridão deveis exigir quanto antes do Exmo. Govêrno medidas, ou providências enérgicas ao suprimento de uma tão necessária Ciência para a mocidade do País..."

No mesmo discurso, sugere o prefeito que, precisando a Vila de dois avaliadores, dois partidores e um "Contador dos Juízos" e "como hajam poucos homens para preencher os cargos públicos por falta dos primeiros conhecimentos", dois cidadãos probos (e instruídos) sejam nomeados avaliadores e partidores, ao mesmo tempo, e um dêles exerça, ainda, o cargo de contador, por não serem os cargos incompatíveis..."

Aí estão dois documentos a atestar na primeira metade do século XIX a função da educação no Brasil: formar a elite ou, então, os funcionários para o Govêrno. A idéia de educação popular para todos nem sequer se vislumbra.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Pergunta um telespectador que acha o senhor da recente manifestação do Papa Pio XII a respeito da educação?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Creio que o telespectador se refere à recente manifestação do Papa Pio Xll sôbre a educação privada. Trata-se de discurso de S.S. o Papa Pio XII feito ao receber os membros do magistério privado, por ocasião do I Congresso Internacional de Ensino Privado, em 11 de novembro de 1957, recentemente publicado na Revista Eclesiástica Brasileira. Êsse discurso é uma declaração de princípios com a qual estou, em boa parte, de acôrdo. S. S. o Papa Pio XII, recebendo os diretores de colégios particulares, acentua que, acima de tudo, o que importa defender não são tantos subsídios à escola privada, quanto a independência dessa. Entre nós, o doloroso é que a escola particular, não quer ser particular, quer ser detentora de concessão de serviço público, aceitando com extrema docilidade a intervenção do Estado em troca do poder de emitir diplomas oficiais e contar com a sanção do Estado. Julgo que os diretores de escolas privadas no Brasil devem meditar muito nesse discurso de S. S. o Papa Pio XII.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Mais uma pergunta: que acha da campanha negativa que lhe fazem certos religiosos do Rio Grande do Sul?

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Não sei ao certo que objetivos visou a manifestação do arcebispado do Rio Grande do Sul a meu respeito. A nossa cooperação com o ensino privado e confessional nesse Estado tem sido a mais larga. Ainda anteontem, por solicitação do Arcebispado de Pôrto Alegre, assinava-se, no INEP, um convênio concedendo Cr$ 1.500.000,00 a uma escola normal dessa Diocese.

Não posso compreender, de maneira alguma, que alguém julgue esteja o ensino privado no Brasil sob ameaça, porque pessoas como eu, se batam pela obrigação do Estado de manter escolas para todos. Sendo livre a freqüência à escola privada, esta sempre existirá, convindo mesmo que exista, em competição com a pública, para que esta e aquela, em virtude dessa competição, se façam ambas melhores.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Aqui temos outra pergunta: que fim teve o anteprojeto que o Professor Anísio Teixeira preparou, no Govêrno Mangabeira, para a reforma do ensino na Bahia?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Fui Secretário de Educação na Bahia, no Govêrno Mangabeira, e considero que constituiu uma grande vitória da Assembléia Legislativa da Bahia estabelecer um capítulo na Constituição baiana, pelo qual se assegura à educação, aos serviços educacionais do Estado, uma situação de autonomia e independência, que considero essencial para que a educação esteja sob a responsabilidade mais da Sociedade do que do Estado. Êste, aliás, é que é o ponto de vista importante para ser examinado. Precisávamos, para isto, não de um ambiente de equívocos e falsas controvérsias, mas de um amplo e largo debate, cheio de boa-fé e de espírito de conciliação, em que se buscassem as soluções do problema educacional brasileiro, com a mobilização de tôdas as fôrças vivas da nação. Lamento profundamente estarmos vivendo numa situação tão confusa e propícia a equívocos e a falsos problemas, como êste de conflitos imaginários entre escola pública e particular, que nos impede de unir-nos e tomar sôbre os ombros o nosso próprio destino na busca de uma solução adequada para a educação nacional.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Mais uma pergunta: que acha do Sr. Capanema, que foi responsável, tantos anos, pelo ensino no Brasil, adotando um "sistema arcaico"?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - O Ministro Capanema dirigiu a educação no período ditatorial e, como tal, não podia fazer senão o que fêz; é claro que, com a filosofia do Estado Novo, não podia realizar obra diferente da que realizou. Entretanto, tem essa obra aspectos significativos e não sou eu que vou reputá-lo responsável pessoalmente pelas sobrevivências arcaicas no nosso sistema escolar.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Temos outra pergunta: como vê o professor Anísio Teixeira, que foi Secretário de Educação no Distrito Federal, a situação atual do ensino primário aqui?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - O ensino primário no Distrito Federal, como em todo o Brasil, está sofrendo as conseqüências de uma grande expansão da classe média brasileira. Como essa classe antes se contentava com a educação primária e agora exige a secundária, todo prestígio social, antes bastante razoável, da própria escola primária, passou ao ginásio e ao colégio. A escola primária vem-se fazendo, para a classe média, uma escola preparatória ao exame de admissão e para o povo uma má escola popular. Infelizmente, entre nós, a escola que se faz do povo não tem o mesmo prestígio que a escola mais seletiva da classe média e da superior. A crise da escola primária brasileira concretiza, a meu ver, todo o problema educacional brasileiro. É a transição entre a educação de poucos e para poucos e a educação de muitos e para muitos.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Qual a verba anual constante do Orçamento para o Ministério da Educação?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - O Ministério da Educação tem hoje, mais ou menos, uma verba de nove bilhões de cruzeiros. Pela primeira vez, parece, o Orçamento consigna os 10% da obrigação constitucional para os serviços de ensino. Até antes, sempre fôra inferior aos 10%, que é o mínimo determinado pela Constituição para ser despendido pela União, na obra da educação brasileira.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - É autêntica a sua tese de que deve haver a socialização no campo do ensino?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Educação significa socialização. As crianças se educam por um processo de "socialização". Não tem o têrmo nenhum sentido socialista. A pergunta é interessante, porque não só aqui, mas, na América, no período do macartismo, a palavra chegou a ser banida dos livros escolares. Os processos de socialização, no sentido educacional, são, sobretudo, importantes no jardim de infância. Afinal, o homem é um ser social e socializá-lo é integrá-lo em sua sociedade, é habilitá-lo a viver com os outros, a conviver, isto é, a viver, pois não se vive senão com os outros.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Pergunta um telespectador se o senhor está pregando o monopólio estatal do ensino. Se está no INEP desde 1951, por que, então, só agora faz essa pregação?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Eu nunca preguei o monopólio estatal. Creio que, no Brasil, poucos serão os educadores a favor do monopólio estatal. Êsses poucos terão, porém, que reformar a Constituição para fazer valer a sua idéia. Se o telespectador conhecer o meu trabalho, verá que defendo uma escola, quer seja pública, quer seja privada, autônoma em face do Govêrno e subordinada antes à Sociedade que ao Estado. Na realidade, dirigida pelo magistério, compreendido como uma das profissões chamadas liberais. Quem dirigiria a educação em todos os setores seria o professor, como quem dirige a medicina é o médico. Acredito que a educação se venha transformar em uma profissão tão importante quanto qualquer outra profissão liberal existente no mundo. Quem dirige o Direito, a Medicina ou qualquer ciência, são os seus próprios titulares. A educação chegará também um dia a essa autonomia. Está claro que os educadores são os delegados da sociedade e a ela servem.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Diz um telespectador: como um dos autores da reforma do ensino industrial é capaz agora de reconhecer que o projeto a respeito não passa de um mostrengo?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Colaborei nesse projeto e o reputo um dos melhores projetos até hoje apresentados ao nosso Congresso. Êsse projeto restitui exatamente ao magistério o poder de planejar e realizar a educação. Dá à escola uma autonomia tal que ela se dirige por si mesma. É um dos melhores projetos, a meu ver, apresentado ao Congresso.

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Em cruzeiros, de quanto precisaríamos para adotar o sistema que julga o ideal para a educação brasileira?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Isto não poderá ser respondido. Hoje o tipo de educação primária que damos é, infelizmente, muito deficiente. Gasta-se, em média, Cr$ 1.200,00 por ano, por aluno. A expansão dêsse ensino para todos poderia ser obtida conseguindo-se mais quatro a cinco bilhões de cruzeiros, com o que a população de 7 a 14 anos poderia estar na escola. Em 1953, fizemos com a educação despesas em relação à renda global do país, correspondentes a 2,8%, dessa renda global. Gastamos em 1958 apenas 2%; se gastássemos o mesmo que em 1953, teríamos o necessário para resolver o problema da escola primária brasileira. Essa expansão se dará fatalmente, assim que reconhecermos sua necessidade essencial; não estão faltando recursos para uma grande expansão do ensino superior e do ensino secundário. Faltam para a escola primária para todos, porque os "todos" têm muito pouco prestígio no Brasil.

É preciso que alguém se levante para falar em nome dos não-educados, porque êles, infelizmente, por isso mesmo que não são educados, são pràticamente mudos ...

O SR. ARNALDO NOGUEIRA - Dr. Anísio Teixeira, queremos agradecer a sua honrosa presença ao nosso programa. Agradecemos ao público telespectador que tão bem atendeu ao nosso apêlo e tanto se interessou pelo programa mandando as suas perguntas. Fizemos o possível para divulgá-las e tôdas foram respondidas pelo Prof. Anísio Teixeira, na medida das possibilidades.

Não gostaria de encerrar nosso Programa sem manifestar-me sôbre duas senhoras telespectadoras e um telespectador. As duas telespectadoras nos felicitam pela brilhante palestra proferida pelo Dr. Anísio Teixeira. Um telespectador diz que ficou realmente encantado ao ouvir o Dr. Anísio Teixeira defender a brilhante tese esposada pelo Papa Pio XII, o maior homem do século XX, em seu discurso pronunciado sôbre a educação, em novembro do ano passado.

Várias felicitações foram enviadas ao Dr. Anísio Teixeira e várias perguntas sôbre os Bispos do Rio Grande do Sul.

O programa foi anotado pelas nossas taquígrafas que aqui estão e aquêles que desejarem esta palestra e outras aqui pronunciadas e a se pronunciar, poderão escrever para êste programa. Logo que terminarmos esta série de palestras, faremos os livretos com as mesmas e colocaremos ao dispor do público que os desejar.

Muito obrigado, senhoras e senhores. Boa noite.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |