AYRES, Jayme Junqueira. Esbôço de um perfil. Tribuna da Bahia. Caderno 3. Salvador, 3 abr. 1971.

ESBÔÇO DE UM PERFIL

Hermes Lima insiste para que eu escreva uma série de perfis de homens públicos que conheci. A generosidade dêsse velho e grande amigo quer fazer de mim um "perfilista", sem levar em conta que o perfil é um dos gêneros literários mais difíceis. E bem sabe êle que se eu tivesse de escrevê-los, o primeiro seria o de Anísio Teixeira, a maior figura de nossa geração, e, sob certo aspecto, ímpar na história do pensamento político brasileiro, homem público é sempre uma soma de qualidades, ou de defeitos. Entre aquelas, algumas há que podemos chamar de qualidades mestras, pois são a tônica de uma personalidade.

Não é fácil dizer quais eram as qualidades mestras em Anísio, por serem muitas e peregrinas. Mas, ainda que a título de exemplo, citarei duas:

A primeira era uma tal irradiação de espírito que, ao contacto com outra inteligência, logo a seduzia, arrastava-a, como que a siderva e subjugava para sempre.

Foi assim com o padre Luiz Gonzaga Cabral, um dêsses jesuítas visceralmente apóstolos que, desde Nóbrega, Portugal tem dado ao Brasil. Anísio era uma criança tão insciente do mundo que, aos 11 ou 12 anos, quando veio de Caitité, onde nasceu, para a Capital e para Colégio Antônio Vieira, ao ver em Machado Portela a locomotiva e ao ouvir o berro espavorido, embarafustou pela catinga a dentro, espantado com aquele monstro que vomitava fogo. O Padre Cabral tomou-o aqui sob sua direção desde a primeira hora. Confessaria mais tarde à seus alunos, em aula, que muitos haviam sidos os sacrifícios para os jesuítas retornarem ao Brasil, mas considerava-os todos pagos pelo fato de haverem encontrado no Brasil um Anísio Teixeira.

Foi assim com vários professôres da Faculdade de Direito da Bahia, onde cursou o 1o e 2o ano jurídicos. Cito exatamente entre êsses professôres um deles, excelente advogado, homem franco e justo, um tanto ríspido e pouco simpático a estudantes: Guerreiro de Castro, Catedrático de Direito Público Constitucional. Feitas as provas escritas de junho, Guerreiro, depois de corrigí-las, trouxe-as consigo para a aula com as respectivas notas, e sôbre cada uma teceu seu comentário por vêzes severo, e sempre com franqueza. Quanto à de Anísio, deixou-a por última:

- O sr. é uma inteligência já formada. Vejo no sr. uma bossa de jurisconsulto. É muito raro eu dizer isto, mas tenho agora o prazer de dizê-lo. E daí em diante sublinhava sempre a admiração com que cercava o jovem calouro.

Foi assim com Calmon, que iniciava o seu gôverno, quando veio de Caitité. Anísio, bacharel recém formado, com carta do Pai, o velho Dr. Diocleciano Teixeira, sôbre política sertaneja.

Goés Calmon foi uma das inteligências mais intensamente irradiantes, e, ao mesmo tempo, mais intensamente receptivas que já conheci. Advogado, banqueiro, homem de larguíssima influência, era no fundo um professor, alma autêntica de mestre e iniciador, que amava formar e incentivar jovens. Sabia conhecê-los. A descoberta do jovem Anísio maravilhou-o. Não menos maravilhado ficou o nôvo discípulo por haver encontrado tal mestre. Acreditavam muitos que o nôvo bacharel de 23 anos retornaria logo ao sertão como promotor de uma comarca sertaneja. Com surprêsa geral, viu-se nomeado Inspetor Geral do Ensino, logo mais Diretor Geral do Ensino, e bem dizer Secretário de Estado, incumbido da maior e mais larga reforma de ensino primário, normal e profissional que já houve no país, marco decisivo, até hoje, na história educacional do Brasil. Goés Calmon, "professor de Govêrno", como o chamou o próprio Anísio, dera ao Brasil a figura que faltava à galeria dos seus estadistas: a do estadista educador.

O mesmo ocorreu com Pedro Ernesto, quando interventor na Cidade do Rio de Janeiro, após a Revolução de 30. Dizia Octávio Mangabeira, com aquela graça tão sua, que, apesar de tôdas as suas restrições a Pedro Ernesto, a êle fazia a mesma justiça que os historiadores costumavam fazer à D. José, rei de Portugal, em cuja mediocridade houve um rasgo de gênio, quando entregou todo o poder ao Marquês de Pombal e nada reservou para si, senão a fôrça de sustentá-lo e apoiá-lo. A mesma cousa fôra feita com Anísio Teixeira, no Rio, e a obra que ali deixara era motivo de orgulho para o próprio Brasil.

De vários homens públicos brasileiros e estrangeiros ouvi sempre a mesma observação: a faculdade miraculosamente instantânea que possuia Anísio Teixeira de siderar, ao primeiro impacto, a inteligência de seu interlocutor, não raro de seu opositor, de conquistá-la para sempre. Isto mesmo ouvi de Afrânio Peixoto, de Monteiro Lobato, de Paulo Carneiro, de tantos outros. Charles Wagley, professor da Universidade de Columbia, me deu certa vez as razões da indiscutível e instantânea capacidade de liderança intelectual do Anísio, que êste exercia mesmo sem querer: 1ª - porque tudo o que o Anísio dizia ou fazia era indiscutìvelmente o melhor, o mais eficaz, e no tempo mais oportuno, sem que nisto ninguém o pudesse exceder; 2ª - porque sendo Anísio tão impessoal e tão despido de todo e qualquer sentimento de vaidade, e tão humilde de coração, logo o interlocutor ou opositor se sentia também impedido de qualquer sentimento de emulação, e isto já era o caminho da rendição incondicional e da adesão. Junte-se a isto aquela capacidade ilimitada de admirar, e admirar sem reservas e fervorosamente, tudo o que lhe parecia merecedor dessa admiração. Não conheci um homem com tamanha e tão generosa capacidade de admiração como Anísio Teixeira.

E foi assim com Mangabeira, quando governador da Bahia. Octávio Mangabeira era um ignorante de gênio. Uma das características de seu talento político era a de saber descobrir e reverenciar as pessoas que conheciam com verdade e sem intrujice as coisas que êle ignorava. Homem de espírito como poucos, pronto à sorrir de si mesmo e a manejar contra si próprio a ironia, disse-me bem antes de assumir o Govêrno:

- Vou lhe dar uma grande notícia: o Anísio vai ser o Secretário da Educação, com carta branca, o verdadeiro Governador da Instrução Pública. Êle vai ter os poderes mais completos. Mas é claro que eu não poderia ficar atrás do Pedro Ernesto...

Outra qualidade de Anísio Teixeira, na sua devoção constante e militante à causa pública, era a de que nesta devoção, tudo no seu pensamento ressumava a ação e se dirigia retilìnicamente à ação. Napoleão dizia de si próprio que seu braço não estava ligado ao seu ombro, mas diretamente à sua cabeça. A mesma coisa podia Anísio Teixeira confessar de si mesmo. O meio em que nasceu, a índole de sua família e sua índole própria, a férrea disciplina interior que aprendeu com os jesuítas e com seu mestre admirado, o Padre Cabral, fizeram dêle, como de nenhum outro brasileiro, o que se pode chamar um "intelectual da ação". Muitas vêzes o "intelectual da ação" se torna um intolerante, um espírito rígido ou estreito. O admirável em Anísio é que tanto mais ele se afirmava um intelectual da ação, quanto mais seu espírito se alargava e superava e vencia, por seu desdobramento, qualquer dogmatismo. Na sua paixão pelo diálogo e pela dialética, parecia estar sempre à procura de um dogma, que afinal lhe bastasse. Mas a todos sobrepujava, e passava além.

De Hamleto se disse que era um sonhador constrangido à ação. De Anísio Teixeira pode-se dizer o contrário: que era um homem de ação constrangido a teorizá-la. Não são comuns os estadistas educadores, e os países que os possuem veneram-nos. O Brasil tinha um, por sinal de projeção universal: Anísio Teixeira. Mas fêz questão de afastá-lo da direção de sua política educacional. Porque êste país - convém repetir sempre - tem muitas singularidades. Aprimorou-se então o doutrinador em escrever sua doutrina tôda energia, músculos e ação.

Não sei qual o maior legado de Anísio: se a sua obra de administrador e homem de govêrno, se a sua doutrina política de educador visceralmente democrático. Creio que a sua doutrina, porque imperecível. O pensamento político de Anísio, como educador, procura o povo e para êle se dirige. Tem sido moda dêste século o que podemos chamar de democratismo e o que chamam de populismo. Conforme sua desgraçada filosofia, é necessário grosseirizar, política, arte, literatura, filosofia e tudo mais para o povo, incapaz como é de se elevar a um clima mais alto. A lição de Anísio é uma veemente e constante condenação desse inferiorismo. O povo tem direito AO MELHOR, e portanto, À MELHOR EDUCAÇÃO. O povo é capaz de tôda a sensibilidade, tôda a inspiração, todo o gênio. Mais capaz, por vêzes, que elites, aristocratas e classes dominantes. Muitas críticas e restrições a Anísio Teixeira lhe advieram por alimentar esta convicção foi sempre, na sua peregrina ortodoxia, a de todos os pensadores democráticos, em todos os tempos, maxime neste último século, nascidos da Renascença e do ideal de dignificação do homem, na sua vida terrena, como homem.

Morto Anísio, alguém com certeza tomará os seus livros para difundir bem claramente para os tempos futuros, na sua pátria, sua fecunda e sinceríssima doutrina.

JAYME JUNQUEIRA AYRES

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