CORREIO DA BAHIA. De olho no futuro. Correio da Bahia. Caderno Correio repórter. Salvador, 9 jul. 2000. p.3-5, 7-10.

De Olho no Futuro

Anísio Teixeira adotou princípios construtivistas meio século antes do 'boom' atual.

Por trás de um baiano de porte baixo e franzino, se esconde um dos mais nobres pensadores e administradores da educação brasileira. O nome, Anísio Teixeira. Um homem que inaugurou no país a "escola nova", adotou princípios construtivistas meio século antes do boom da proposta no Brasil, criou o primeiro curso superior para professores de séries iniciais mais de 60 anos antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) obrigar a formação universitária para docentes. Irrefutavelmente, um educador que pensava e agia de olho no futuro, cujo centenário de nascimento é celebrado na próxima quarta-feira.

Aliás, unir pensamento e ação é o diferencial, a principal marca do intelectual verde-amarelo, que arrancou aplausos dos norte-americanos, conquistou a Unesco (organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura), foi rotulado de comunisfa, perseguido pelas ditaduras de Getúlio Vargas (1937-45) e militar (1964-85) e, contraditoriamente, odiado por esquerdistas. Polêmico, amadureceu com o tempo sem perder de vista a bandeira da educação pública, gratuita e universal. Um quase jesuíta que provocou a ira da Igreja Católica por defender o fim do subsídio público para escolas privadas e do ensino religioso obrigatório.

Entusiasta do estilo de vida americano, Anísio teria desistido da carreira jesuíta a partir da convivência com o literato nacionalista Monteiro Lobato, a quem conheceu durante sua estada nos Estados Unidos nos anos 20. Criador do personagem Jeca Tatu e do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o homem que reivindicou a indústria do petróleo para o Brasil seria um dono de bar mundano, enquanto o baiano, um homem recatado e com vida pautada pela fé. "Lobato foi o responsável pela passagem de Anísio da fase religiosa para a mais agnóstica", diz o professor universitário João Augusto de Lima Rocha, estudioso da obra anisiana.

Vanguarda até na economia

Anísio virou vanguarda. Rompeu com o estabelecido, inovou em todas as áreas em que atuou. Quando perseguido pelo Estado Novo, ficou dez anos numa espécie de exílio na Bahia e deixou a sua marca na economia baiana, criando o cimento a base do calcário de conchas marinhas. A abundância do molusco na Baía de Todos os Santos teria barateado o produto no Nordeste e influenciou na expansão urbana de Salvador, segundo Lima Rocha, um doutor em engenharia, apaixonado pelo trabalho de Anísio.

Mais tarde, aplicou os princípios da escola-nova para criar o centro popular de educação, com a Escola Parque, e aumentou a oferta do ensino ginasial, fundando unidades anexas ao Colégio da Bahia (Central) em bairros populares e de classe média. Fez história na área médica. Como secretário de educação e saúde, do governo Octávio Mangabeira, investiu no combate à mortalidade materno-infantil e de doenças como tuberculose, além de impulsionar a pesquisa.

"Anísio procurava ser autêntico. Ele dava tudo de si para cumprir sua missão", comenta o médico Paulo Duarte, amigo do educador baiano. "Anísio prendia qualquer pessoa. Assim como as mulheres têm sex appeal, ele tinha mental appeal", brinca, elogiando a oratória e a personalidade do compadre a quem conheceu ainda na infância no município de Caetité. Hoje, 29 anos após a sua morte trágica no poço de um elevador, aquele homem franzino virou unanimidade até entre os acadêmicos.

Jardim de sonhos em Salvador

Escola Parque inaugura, nos anos 50, uma nova fase na educação da Bahia.

Imagine um espaço público e gratuito onde crianças têm aulas de disciplinas escolares, fazem esportes, dançam, tocam, cantam e interpretam, lêem e aprendem na prática a lidar com dinheiro e até a cuidar do próprio corpo. Um lugar com jornal atuante, rádio comunitária, padaria, grêmio, agência de correios, além de loja para venda de produtos fabricados pela garotada e. um banco para guardar as suas economias. Tudo coordenado por profissionais capacitados. Uma escola enfeitada por obras de artistas consagrados como Carybé e Mário Cravo, e com alimentação, fardamento e atendimento médico-odontológico assegurados às crianças. Parece impossível, mas existiu. E na Bahia.

Em 1947, Anísio Teixeira surpreendeu Salvador ao começar a projetar o centro de educação popular, com quatro escolas-classes e uma escola-parque, numa das áreas mais pobres da capital. Três anos depois, foi inaugurado o Centro Educacional Carneiro Ribeiro (CECR), na Invasão do Corta Braço, na região da Liberdade. Nos planos do educador, seria o primeiro dos nove ou dez complexos que garantiriam educação integral para a maioria das crianças com mais de 7 anos.

Os alunos tinham aulas de português, aritmética e outras disciplinas nas escolas-classes e se deslocavam para a Escola-Parque, um ambiente lúdico que facilitava o cultivo de sonhos, o convívio social e educava para o exercício da cidadania. Conforme o professor Felippe Serpa, a mudança de espaço evitava a "exploração" pela instrução formal. "A sala de aula é inadequada para a vivência", opina. O CECR havia sido ensaiado no Rio, nos anos 20, quando Anísio - então secretário de instrução supriu a falta de área de lazer dos colégios, construindo um jardim para cada grupo de escolas.

Lá, se aprenderia a cuidar da higiene, por exemplo. Crente que a garotada apreendia pelo modelo e poderia ser multiplicadores em casa, Anísio teria exigido a criação de um dispositivo para que não faltasse sabonete nos 160 banheiros, além de construir lavanderia capaz de garantir fardas sempre limpas para quatro mil alunos. "Aqui nós vamos dar, no parque, toda a parte educativa. O menino vai ser um cidadãozinho capaz de ter uma idéia completa da vida", teria dito o educador a Diógenes Rebouças, arquiteto da Parque. Previa-se até a implantação de internato com 200 vagas na área, mas isto nunca saiu do papel.

Sempre na vanguarda

Menina dos olhos de Anísio, o projeto significava mais do que a simples chance de ascensão social das crianças da periferia. Era a concretização da "escola nova" com valorização das atividades práticas e de lazer, anunciada em 1932 no Manifesto dos Pioneiros do qual o baiano era um dos idealizadores e signatários. Era uma escola pública de qualidade, um modelo, uma ameaça ao sistema educacional vigente dominado pelas escolas religiosas e particulares.

O centro popular era uma reação à simplificação da educação primária, sob a justificativa de que os recursos deveriam ser canalizados para a universalização do ensino básico. Já no seu discurso de inauguração do CECR, Anísio pregou o ensino integral e argumentou que, cerca de 25 anos antes, as escolas já tinham "os cursos em dois turnos e o programa, para a época, tão rico quanto possível". Entretanto, se ensaiavam mudanças.

Com em média um profissional para cada 20 alunos, o complexo entusiasmou a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), instituição que ainda hoje o considera uma das melhores soluções educacionais do Século XX. Influenciou o sistema de ensino de Brasília - lá existem escolas-classe e escoIa-parque em funcionamento -, Israel e até da Pensilvânia (Estados Unidos). Inspirou iniciativas como Centro Integrado de Educação Pública (Ciep), Centro Integrado de Atividades Culturais (Ciac) e complexos polivalentes da Bahia.

Época de ouro

"Sou privilegiada. Recebia do sapato à alimentação. Se não tivesse a Escola Parque - o centro todo é mais conhecido assim -, minha mãe não teria condições de sustentar isso", diz a professora Claudinéia Cerqueira, uma das caçulas de uma família de oito irmãos, aluna do Carneiro Ribeiro nos tempos áureos e hoje pós-graduada em Metodologia de Ensino e Pesquisa. "Foi uma época de ouro", sintetizam as professoras Célia Silva e Nair de Souza, contemporâneas de Anísio.

Ainda hoje, Claudinéia lembra chorando que Carmem Spínola Teixeira, irmã do educador e dirigente do CECR por anos, a socorreu após um corte na testa e até lhe levava lanches em casa durante a sua recuperação. Seu caso não é exceção. Não raro D. Carmita, como é conhecida, visitava os alunos faltosos em casa para averigüar as causas da ausência. Apesar da fama de durona, ela era amável com as crianças. "Às vezes, repreendia o professor por causa do aluno", lembra Claudinéia. Lúcida, a mulher que manteve vivo por anos o sonho anisiano, atualmente se nega a comentar o assunto, em protesto contra a "destruição" do centro.

Em geral, a criançada não tinha motivos para evadir. Além da alimentação e assistência de saúde, podia transitar entre atividades artísticas (instrumento, coral, teatro, dança), esportivas (futebol, basquete, vôlei, ginástica rítmica, entre outros), e oficinas de trabalho (cerâmica, madeira e metal, costura, tapeçaria, bordado branco e diverso, bonecas, pintura, alfaiate, cestaria, sapataria, etc.). Tudo ministrado por profissionais da comunidade e professores especializados no centro regional de pesquisas do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), onde aliás funcionava a Escola Experimental com ambientes que simulavam a estrutura de uma cidade.

Por obrigação, os estudantes do CECR freqüentavam todas as unidades e deveriam dedicar uma hora por semana à leitura. Caso não se adaptassem a nenhuma das opções, passava pelo Serviço de Orientação e fazia atividades socializantes, como o jornal e o rádio. "O aluno era muito ouvido. A aptidão dele era pesquisada. Se fazia o rodízio para o menino despertar por algo", relembra, emocionada, Claudinéia, que voltou à Parque já como professora de cerâmica. Hoje, decepcionada com o seu esvaziamento, atua como vice-diretora da Escola-classe II.

Reforma estrutural

A Escola Parque entra em obras no ano do seu cinqüentenário. O estado deu início em maio ao trabalho de revitalização e adequação da unidade à realidade atual. Somente a intervenção física deve consumir R$ 2,5 milhões. O projeto para a reabertura e o funcionamento da Parque a partir de 2001 está em discussão numa comissão especial da Secretaria da Educação, mas a educação integral não será implantada na Bahia como política pública nos próximos anos.

"É uma semente importante e um dia, chegaremos a ter esse modelo. Várias dessas experiências afoitas - Cieps e Ciacs - não deram certo. Primeiro, temos que corrigir algumas distorções", diz o secretário de Educação, Eraldo Tinoco, após citar como prioridades a universalização da educação básica prevista pela Constituição Federal e a incompatibilidade entre idade e série dos alunos. A dissociação entre os projetos de universalização e educação integral vai na contramão do que previa Anísio. O mesmo Anísio, entretanto, também criticava a falta de planejamento.

Está prevista a recuperação física das instalações da Escola Parque, restauração das obras de arte (murais e painéis de baianos), retomada de setores e atividades anteriores, implantação do Centro de Qualificação de Aprendizagem com laboratórios e oficinas. Não há previsão de reforma das quatro escolas-classe (Pau Miúdo, Caixa d'Água e Pero Vaz), onde era ministrado o ensino formal. A promessa é de manutenção, pelo menos, do princípio de valorização das atividades práticas e de lazer, resultado da influência do filósofo pragmático norte-americano John Dewey sobre o educador baiano. E absoluto estímulo à criação.

Conforme a SEC, os princípios anisianos como a educação para o trabalho e a valorização da cultura e do esporte - serão preservados, apesar das atividades e da rotina sofrerem "adaptações" à demanda atual. Por exemplo, ao invés de oficina de sapataria, deve ser instalada uma de informática. A preparação para o trabalho não vai reimplantar pura e simplesmente as oficinas de 1953. Uma das principais mudanças, no entanto, deve ser a abertura das portas da Escola Parque para o grande público. Qualquer estudante, matriculado em escola formal, poderá integrar as turmas de artes, esportes e trabalho. Não se sabe ainda quantas crianças serão atendidas. Antes, para assegurar a educação integral, apenas cerca de quatro mil alunos das escolas-classe freqüentavam regularmente a Parque. As oficinas, antes ministradas por professores treinados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), agora podem ser coordenadas por organizações não-governamentais ou subsidiadas por empresas privadas. Banho após as aulas de educação física, almoço diário, assistência médico-odontológica provavelmente vão ficar no passado.

Complexo definha

Com unidades concluídas inclusive após a inauguração oficial (só três escolas-classes foram abertas em 50), o complexo começou a definhar após o afastamento de Anísio da direção do Inep em 64, pela ditadura militar. As unidades eram mantidas com verba federal. Os centros regionais do Instituto financiavam pesquisas, obras e também a capacitação de professores. Com a mudança, o estado passou a ser responsável pela manutenção do complexo, por exemplo, enquanto a União lotou professores atuantes na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O projeto anisiano colhia bons resultados, mas exigia irrigação contínua por dinheiro. Como escola de período integral, o centro requeria o dobro de funcionários. As múltiplas atividades e os seus objetivos demandavam por profissionais capacitados, com salários maiores do que a média. A área extensa - só o pavilhão de trabalho tinha 3.000m2 edificados exigia manutenção contínua. "A escola decaiu porque foram retirados recursos financeiros e humanos. Não se pode fazer educação de qualidade barata", afirma Hildérico Pinheiro, membro do Conselho Estadual de Educação e chefe do Setor de Construção do Inep, assegurando que ainda hoje o custo por aluno no Brasil (R$ 315 anuais) está aquém das necessidades.

Nos anos 80, a construção da Escola ÁIvaro Augusto da Silva, de ensino médio, no terreno da Escola-classe II, no Pero Vaz, e a utilização da estrutura da Escola Parque para aulas de educação física teriam também prejudicado o funcionamento da instituição. A medida teria gerado demanda extra por um espaço planejado para somente quatro mil alunos. Até pouco tempo, ainda eram mantidas oficinas laborativas, inclusive por iniciativa de voluntários. Distribuído apenas aos mais carentes, o almoço era um arranjo, com merenda escolar e vegetais da horta escolar.

O projeto definhava cada vez mais. Hoje, a escola abriga cursos de aceleração dos ensinos fundamental e médio. "Um dos setores, o socializante, dos mais abrangentes: com banco, jornal, correio, rádio, grêmio e loja, realizando atividades que levavam às crianças a comunicação e socialização, atualmente com funcionamento diverso, transforma hoje a escola em lugar comum", escreve Zélia Bastos, estudiosa da obra de Anísio.

Segundo a professora Rivanda Mendonça, ex-estagiária do Inep e administradora do complexo entre 1990 e 96, "o maior problema é que a escola não tinha caixa. Então, não poderia se manter sozinha. A gente fazia feiras (dos produtos fabricados pelos alunos), mas o dinheiro pela lei tinha que entrar, na conta geral do estado". Ela garante que antigamente parte a arrecadação servia para manter as atividades. Se assim for, com a criação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef) e dos conselhos de administração escolar, resta uma esperança. Quem sabe, de alguma forma, se reviva o ideal de Anísio. Aquele Anísio polêmico, idealista, ativo, preocupado acima de tudo com a formação do homem-cidadão.

Visionário de causas práticas

Leis de vanguarda têm origem em propostas adotadas pelo educador.

Sem exageros, quase todas as atuais ações educacionais do país guardam um pouco do ideal do baiano Anísio Teixeira, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), do programa nacional de escolarização Toda Criança na Escola, dos Ciacs. Pautado pelo pragmatismo norte-americano, já nos anos 20, ele trabalhava por princípios da legislação vigente ainda hoje considerados inovadores.

Fez nascer no maior bairro popular de Salvador, a Liberdade, nos anos 50, o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, mais tarde consagrado como referência na educação integral. Reunião do ensino formal com esporte, cultura, arte e formação para o trabalho, e em especial para a cidadania, a experiência serviu de exemplo, para unidades no Brasil, em Israel e até nos Estados Unidos. Um modelo bem sucedido da "escola nova". Construiu no interior cerca de 80 unidades escolares modulares, que poderiam ganhar novos cômodos com o crescimento da demanda.

"Anísio revolucionou os métodos de organização do sistema educacional e das atividades intra-escolares", afirma Roberto Benathar em Lugar e posiçãoo de Anísio Spínola Teixeira na pedagogia brasileira. "Fiel ao postulado de que a educação é um tripé indissociável escola-biblioteca-museu, procurou criar na escola o ambiente que existe na própria vida social", completa, lembrando que ele também propunha a regionalização do currículo, da ciência e das atividades pedagógicas. Tudo para "entregar às comunidades os destinos da educação de seus habitantes".

O educador havia previsto que o município seria responsável pelo ensino fundamental (1ª a 8ª); o estado, pelo ensino médio (antigo 2º grau); a União, pelo ensino superior. A descentralização virou uma realidade a partir da LDB de 96. O setor já é municipalizado. Cada escola deve ter um conselho para acornpanhamento da gestão da unidade. Todos on níveis seriam custeados por um fundo de recursos financeiros.

Precursor do Fundef

Considerado pela comunidade uma inovação, o Fundef não é novidade para quem conhece a obra de Anísio. "O Fundef é uma idéia nascida na cabeça dele. A semente surgiu na década de 30 e a operacionalização está sistematizada, pelo menos, desde os anos 60", diz o engenheiro Hilderico Pinheiro, membro do Conselho Estadual de Educação e presidente da Academia Baiana de Educação, além de seu amigo, colaborador e estudioso.

O fundo deveria ser composto por verbas orçamentárias e tributos sobre herança, por exemplo, e administrado por conselhos locais. Conforme outro especialista, o professor João Augusto Rocha, a Bahia foi pioneira na constituição do conselho com gerenciamento total do fundo e responsável, inclusive, pela contratação de professores. O órgão teria sido previsto pela Lei Orgânica da Educação, do governo de Lomanto Júnior.

Um dos colaboradores de Anísio, mais tarde eleito senador, Darcy Ribeiro incluiu o fundo no projeto original de LDB, com algumas alterações. Com a lei sancionada em 96, após tramitação por anos no Congresso Nacional, foi instituido pela União. Estados e municípios recebern R$ 315 anuais por criança matriculada apenas no antigo primário e ginásio. Na proposta anisiana, o valor pago para manutenção de cada aluno variava de acordo com o nível. No entanto, caso faltasse verba para o município, o estado deveria cobrir os custos, e assim sucessivamente.

Pesquisa aplicada

O fundador da pesuisa aplicada em educação no país também pregava que o aprendizado deveria ser acompanhado sistematicamente. Caso o desenvolvimento não fosse satisfatório, as estratégias deveriam ser mudadas de imediato. Na direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), nos idos de 50 e 60, o baiano editou obras científicas da área social, principalmente, e criou cinco centros regionais de pesquisa, depois definhados pelos governos militares.

Em Salvador, os pesquisadores fizeram estudos socioculturais e históricos de comunidades como Feira de Santana, enquanto em Belo Horizonte foram mais exploradas a pré-escola, a linguagem e as dificuldades na leitura e escrita. São Paulo se dedicou à análise do rendimento em aritmética nas séries iniciais. Recife, às questões regionais do Nordeste e ao desenvolvimento, social da criança. Já Porto Alegre fez um mapa da educação primária e pré-escolar. Singular por conciliar teoria e prática, o baiano criou ou participou ativamente da inauguração de instituições como o Programa de Capacitação de Pessoal do Nível Superior (Capes), os conselhos locais de educação, a Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC) e a pioneira Fundação Baiana para o Desenvolvimento da Ciência.

Pai da pré-escola

A pré-escola, para crianças com menos de 7 anos, virou uma realidade pelas mãos do mesmo Anísio que enriqueceu atuando como comerciante, durante o período em que esteve refugiado no sertdo. O segmento foi incluído na reforma educacional do Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro), em 1931. Um pioneirismo. Somente em 96 o ensino infantil foi reconhecido pela União como nível educacional. A lavra de Anísio perpassa por todos os estágios educativos. Ainda hoje, as instituições públicas de ensino superior brigam pela autonomia pedagógica e administrativa. A dependência das verbas orçamentárias é um impedimento. De olho na liberdade, o baiano idealizou a Fundagdo Universidade de Brasilia (UnB) em 61, junto com Darcy Ribeiro.

A UnB inovou tanto na possibilidade de captar recursos próprios (com aluguel de imóveis, por exemplo) quanto na infra-estrutura e organização acadêmica. Com acomodações para abrigar estudantes e docentes forasteiros, tinha como um dos pilares a promoção de seminários com especialistas de várias áreas. Anisio chegou a ser reitor da UnB, de 62 a 64. Antes, em 35, já havia inovado com a inauguração da Universidade do Distrito Federal, uma entidade municipal. Após o seu afastamento da Diretoria de Instrução Pública, ela foi incorporada pela Universidade do Brasil. O homem que aprendeu a arte de aplicar a teoria ao cotidiano com o filósofo John Dewey, expoente do pragmatismo norte-americano, também tem participado na implantação da pós-graduação no país, corn o objetivo de incrementar a formação do docente.

Capacitar e especializar professores, aliás, estiveram entre as suas preocupações mais freqüentes. Com cerca de um ano na Diretoria Geral de lnstrução da Bahia, elaborou a lei que previa a passagern dos educadores pela Escola Normal Superior, mas a idéia não decolou. Anos depois, concretizou seu plano no Rio, criando uma unidade no Instituto de Educação. Os futuros mestres aprendiam a arte de ensinar dança, teatro, música, etc. Nas suas duas passagens pelo governo baiano, construiu ainda escolas normais no interior. A da sua terra natal, Caetité, foi a primeira fora da capital, segundo alguns estudiosos.

Igualdade no ginásio

Brigou para unificar o curso ginasial, então dividido em acadêmico (para as classes abastadas e preparatório para ingresso na universidade) e de ofícios (dirigido aos pobres e apenas profissionalizante). Considerava que o ginásio deveria ser único e pluricurricular, com acesso irrestrito. Hoje, alguns educadores consideram um retrocesso o atual ensino seqüencial - formador de mão-de-obra e não de bacharéis -, criado a partir da sanção da atual LDB.

O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova do qual Anisio foi um dos articuladores e signatário, em 32, indicava, que a escola secundária deveria ser unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais. Para os manifestantes, as escolas primária e profissionalizantes da época serviam à classe popular, treinando apenas mão-de-obra, enquanto a classe média tinha condições de progressão intelectual em cursos ginasiais ou do 3º grau.

Como secretário de educação, de 47 a 51, iniciou a expansão do ginásio em Salvador, com a criação de unidades anexas ao Colégio da Bahia (Central) em bairros populares e de classe média. Segundo a professora titular da Universidade Federal da Bahia Iracy Picanço, surgiram então o Duque de Caxias (transformado a partir de uma escola primária), na Liberdade; o João Florêncio Gomes, em Itapagipe; o Severino Vieira, em Nazaré.

Manifesto do construtivismo

Com mais de meio século de antecedência, o manifesto também evoca a busca do conhecimento pelo estudante, um dos pilares da proposta pedagógica do construtivismo. Constituída a partir de estudos sobre o desenvolvimento cognitivo de autores como Jean Piaget e L. Vigotsky, a proposta chegou a ser apontada como uma revolução na educação, mas está sendo constatada, em geral, por falta de sustentação prática. Entretanto, o estímulo à criação e pesquisa deve vingar. Segundo o manifesto, a escola deveria substituir o conceito estático de ensino pelo dinâmico, e trocar a simples transmissão de informações pelo fomento à "atividade criadora".

Anísio deve ter lido, pelo menos, obras de Piaget - o educador Lauro Lima, difusor do construtivismo no Brasil, tem artigo no livro A escola secundária moderna, prefaciado pelo baiano. No entanto, sua fonte inspiradora foi mesmo o norte-americano Dewey, defensor do chamado construtivismo social. Quando administrava pela primeira vez a educação na Bahia, nos anos 20, o baiano conheceu Dewey, cujos propósitos lhe deram subsídios para soluções de casos educacionais com os quais convivia. Ainda tentava convencer o pai fazendeiro para ser jesuíta, quando começou a reconstruir suas idéias a partir do pragmatismo.

Änísio afirmava que Dewey era sua plataforma de lançamento, por isso apropriou-se dele de uma maneira longa e múltipla", diz a professora titular aposentada Clarice Nunes, pesquisadora associada da Universidade Federal Fluminense e autora da tese Anísio Teixeira: a poesia da ação. Foi principal na Escola Parque que ele colocou em prática seus sonhos. A criança aprendia fazendo. Lia, para criar. Só ia construir um brinquedo ou um banco depois de fazer o projeto do produto.

Apropriação indébita

Como se vê, em especial, a partir da morte trágica de Anísio, em 71, não foram poucas as iniciativas de resgate da sua doutrina e obra, declaradas ou não. Entretanto, é preciso separar dos seus princípios democráticos, com roupagem e significados novos. "A atual LDB, as regulamentações complementares que lhe seguem, as emendas constitucionais e outros dispositivos criam um arcabouço jurídico que legitima uma reforma da educação em moldes completamente opostos aos da reforma proposta pelo pensamento liberal", avalia Nunes. Enquanto a avaliação anisiana pretendia diagnosticar as falhas e facilitar a solução imediata da questão, hoje se faz um ranking de escolas que pode instalar uma competitividade desnecessária entre elas.

Segundo Clarice Nunes, "no pensamento liberal-democrcático, reforma significa transformações sociais para diminuir e eliminar privilégios e desigualdades. Hoje, reforma significa o oposto, ou seja, mudanças nas instituições e estruturas para manter privilégios e desigualdades". Sem dúvida, permanece vivo o homem que saiu de Caetité e, sem exageros, conquistou o mundo. Preocupa, como disse o ex-prefeito de Salvador Jorge Hage, "é que ele permaneça, ainda hoje, à frente do nosso tempo". Se não fossem os contratempos, as ditaduras, a interrupção das atividades cunhadas pelo educador, talvez o Brasil tivesse a educação no patamar do Chile - país latino mais avançado no setor apesar do atraso econômico -, por exemplo. Fica, então, a lição.

Cruzada em defesa da escola pública

Anísio Teixeira foi peça fundamental para a universalização da educação e consolidação da escola pública e gratuita no Brasil. Um homem que aliou reflexão e ação, uniu teoria e prática, apesar das retaliações das ditaduras getulista (1937-45) e militar (1964-85). Chegou a abrir mão da administração de uma mina de manganês que lhe faria milionário, para voltar à administração da educação na Bahia e construir o seu primeiro centro popular de educação. No percurso, irritou simultaneamente direita e esquerda, e até teve um de seus livros censurados pela lgreja Católica.

O bom baiano nunca se limitou a refletir. Trabalhava até 14 horas por dia, lia diariamente, assurnia posiçõees sobre assuntos cotidianos contrárias às suas somente para exercitar a oratória. "A discussão, em Anísio, não era forma de chegar à verdade. Tampouco uma disputa, mas, tão-somente, a maneira de exercitar a inteligência verbalizada. Era pacto mútuo ( ... ), espécie de ginástica mental", diz o senador Artur da Távola, seu amigo e ex-genro.

Anísio nasceu reacionário mas amadureceu, defendendo a educação pública, gratuita, universal e de qualidade desde que assumiu a diretoria geral de instrução na Bahia, em 1924. A bandeira é um sonho ainda para os dias de hoje, em que crianças, após pelo menos seis anos de escolarização, não dominam as quatro operações matemáticas básicas nem escrevern uma frase completa inteligivel. Debatedor nato, discutiu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 61, defendeu a elaboração de uma política pública para o setor, tirou do papel a concepção de "escola nova" com a inauguração da Escola Parque, em 50.

Diferenças entre rico e pobre, branco e negro, católico e protestante desaparecem nas escolas públicas de caráter inclusivo, segundo o educador. "Obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la confiada a particulares, pois estes somente poderiam oferecê-la aos que tivessern posse (ou a protegidos) e daí operar antes para perpetuar as desigualdades sociais do que para removê-las", dizia no livro A educação não é privilégio (1957), talvez o mais polêmico da sua trajetória.

Rival da Igreja

Foi com declarações em defesa da escola pública que ganhou um dos seus rivais mais ferozes: a lgreja Católica. Apesar de sua formação em escolas jesuíticas - Instituto São Luiz Gonzaga, em Caetité, e Colégio Antônio Vieira, em Salvador - e de quase ter ingressado na Companhia de Jesus, pregava a extinção do ensino religioso obrigatório e do custeio de colégios privados pelo poder público, ameaçando o domínio da educação pela rede particular e confessional.

Sob a batuta de dom Evaristo Arns, bispos faziam campanha sistemática contra Anísio. Em 1934, o livro Educação progressiva, uma introdução à filosofia da educação chegou a ser leitura proibida entre católicos e foi recolhido através do documento Canon 1399, segundo o professor universitário João Augusto Rocha, organizador da coletânea Anísio em movimento. Um fato raro na história do país. Mais tarde, entretanto, a obra foi reeditada com mudanças e título novo - Pequena introdução à filosofia da educação.

Em 1958, outro golpe. No calor das discussões da legislação educacional, o gaúcho dom Vicente Scherer, com apoio de outros bispos, lançou manifesto contra o educador. No documento, acusaram-no de extremista e solicitaram ao governo federal a sua demissão do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep). O arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, Cardeal da Silva, no entanto, o defendeu. O movimento gerou o protesto de 529 educadores, cientistas e professores através de abaixo-assinado e o presidente da República, Juscelino Kubitschek, o manteve no cargo.

Ainda em Educação não é privilégio, ele comparava a escola pública à privada. A pública seria democrática, aceitaria a todos sem restrições. A particular, porém, seria sempre para algumas classes. Contanto, ao contrário do que se imaginava, Anísio não pregava a exclusividade estatal ou proibição do ensino particular. Como secretário de Educação da gestão do governador Octávio Mangabeira, ganhou desafetos esquerdistas, desconfiados das suas idéias populistas. Contraditoriamente, as posições também faziam estremecer os governistas, às vésperas do golpe de 64. Contra estes, escreveu: "A escola pública não é invenção socialista nem comunista, mas um daqueles singelos e esquecidos postulados da sociedade capitalista e democrática do século XIX".

Homenagem no Senado

Não é sem razão que até hoje o ideal de Anísio Teixeira é relembrado não apenas no meio acadêmico. "Anísio pregava exatamente a criação de uma sociedade que abrisse mão da luta de classes - porque ele não considerava a luta de classes um determinismo histórico", analisou o senador Artur da Távola em sessão especial realizada no Senado, no último dia 26, ern homenagern ao educador baiano. Na sessão, requisitada pelo presidente do Congresso Nacional, senador Antonio Carlos Magalhães, a riqueza da vida e obra de Anísio Teixeira foi relembrada também por parlamentares como os senadores Paulo Souto, Bernardo Cabral e Ney Suassuna.

O próprio presidente do Senado fez questão de destacar o quanto Anísio foi genial. "O ensino moderno que temos hoje já era idealizado por Anísio há 50, 60 anos passados, ele foi realmente o homem que pensou grande na educação do Brasil e que serviu muito à Bahia", disse o senador Antonio Carlos Magalhães, lembrando que o educador baiano "foi muito injustiçado". Durante a solenidade, os parlamentares destacaram a importância do educador baiano para o ensino público no país. O encontro teve a participação de familiares do Anísio Teixeira, prefeitos e autoridades do governo baiano.

Primário para todos

Fazer vanguarda de pensamento e ação era mesmo o destino de Anísio. A defesa da escola pública e gratuita colocava na berlinda a educação primária, básica, hoje rotulada de "fundamental". Ele propunha: as criangas em idade escolar deveriam ser recrutadas como se fazia com os soldados para o Exército. O professor universitário Felippe Serpa, "notório saber" em Educação, lembra que, em pronunciamento na Assembléia Legislativa, em 47, Anísio disse: "A democracia é assim: um regime em que a educação é o supremo dever e a suprema função do Estado".

Já nos anos 20, o educador propôs mudanças na legislação baiana, ampliando a cobertura do nível primário no estado. Incrementou em 70% as matrículas, triplicou a freqüência, dobrou o número de unidades escolares na primeira gestão, segundo o senador Paulo Souto, também em pronunciamento no Senado. "Há que virar pelo avesso a nossa filosofia de educação: a escola primária tem de ser a mais importante escola do Brasil; depois, a escola média; e depois, a escola superior", dizia Anísio, o homem que interferiu nas bases da pré-escola à universidade quando apenas 9% das crianças brasileiras estudavam.

O recrutamento obrigatório, entretanto, não seria suficiente para mudar o cenário. Era preciso aumentar o tempo de escolarização, a carga horária diária e o número de dias letivos, que somente em 96 saltou de 180 para 200. Com a meta de seis anos de escolaridade fundamental nas cidades, abriu a possibilidade de estudo aos alunos de qualquer situaçãto financeira que se destacassem, e tambám aos estudantes com condições econômicas de dar prosseguimento às atividades, independentemente do seu aproveitamento no primário. Já a obrigatoriedade até os 14 anos facilitaria a orientação dos melhores alunos para o ensino médio.

Herdeiro do norte-americano John Dewey (1859-1952), pragmatista defensor do acesso à educação por todas as classes sociais e da aprendizagem como um processo ativo, o inquieto baiano também introduziu atividades práticas nas salas de aula - um dos fundamentos da escola nova. Autor da expressão "só existiria uma democracia no Brasil no dia em que se montar aqui a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública", Anísio freqüentou os Estados Unidos no calor das discussões da relação ensino democracia naquele país.

Brilho próprio na saúde

Educador marcou história investindo na interiorização do atendimento.

Que Anísio Teixeira mudou a educação no Brasil, ninguém duvida. Pouca gente sabe, entretanto, que a sua administração da saúde pública na Bahia tem brilho próprio. Como secretário de Educação e Saúde, entre 1947-51, na gestão do governador Octávio Mangabeira, marcou a história da área. Investiu na interiorização do atendimento, defendeu a autonomia dos órgãos e unidades médicas, criou até posto fluvial. Medidas ainda hoje adotadas por governos como inovação. O bom baiano fez ainda incursões pela assistência social.

Quase padre da Companhia de Jesus, se fez reconhecido pelo senso humanitário também na saúde. Já no relatório de atividades da pasta de 1948, deixou claro que obedeceria ao "princípio de que a saúde é um direito do cidadão". Preservou seu estilo inovador no setor, ao mesmo tempo em que assustava o país com a Escola Parque. Criou, por exemplo, o atendimento domiciliar para parturientes, a unidade médica fluvial com atuação na região banhada pelo Rio São Francisco e o consultório de higiene pré-natal e infantil volante, além de transformar o antigo, Instituto Oswaldo Cruz (depois chamado de Instituto de Saúde Pública) em centro de diagnóstico, produçào, estudo e pesquisa de vacinas e medicamentos.

Partos em casa

Mesmo sern qualquer formação na área médica, não hesitou diante do estudo que apontou a septicemia e as infecções como principais causas de morte maternas na Bahia. Como não havia leitos suficientes em maternidades e fatores socioeconômicos contribuíam para assistência ineficaz, traçou um plano de assistência ao parto em domicílio na capital. Resultado: reduziu o número de casos de tétano, por exemplo.

"Enquanto melhores condições gerais não proporcionarn à cidade número suficiente de leitos em maternidade e enfermeiras diplomadas igualmente numerosas, passou-se a promover o registro das aparadeiras e o controle das suas atividades", dizia no relatório de 48. "Depois de se lhes ministrar noções práticas de higiene geral e obstetrícia, fornece-se-lhes, a título de ajuda, um pacote de "necessários obstétricos" a troco da notificação dos partos a que assistem", planejava. Recentemente, a União promoveu campanha similar em algumas regiões do Brasil.

Virou vanguarda também na prevenção da tuberculose, quando a doença era considerada o "inimigo número um" dos baianos - ainda hoje o estado é campeão de casos. De olho principalmente na profilaxia, elaborou a Campanha Nacional contra a Tuberculose, através de parcerias com outras instituições e da cooperação até do famoso pneumologista José Silveira, hoje ainda vivo. Construção, recuperação e aparelhamento de unidades de atendimento, que somariam mais de dois mil leitos, já estavam nos seus planos.

Este homem de hábito simples e gosto pela leitura implementou também campanha sistemática contra as doenças venéreas e viabilizou o censo epidemiológico. No Hospital Couto Maia - referência para doenças infecto-contagiosas - reorganizou as observações clínicas, as normas de tratamento, a atenção aos pacientes e inaugurou o Núcleo de Estudos Médicos. E ainda: fez a reforma das instalações físicas do hospital. O retorno veio a galope, com acréscimo nas taxas de cura.

Liberdade e autonomia

Tema de discurso sobre educação na Assembléia Legislativa em 47, a autonomia também foi defendida por Anísio na saúde. Pessoalmente, ele coordenou o trabalho que deu liberdade administrativa aos setores e serviços da secretaria, facilitando o movimento de pessoal e verbas, a elaboração de programas e campanhas. Acusado de comunista e contraditoriamente também de reacionário, pregou a transferência da gerência das unidades para entidades privadas - medida ern parte adotada pela Bahia atualmente.

Para viabilizar a manutenção econômica e eficaz dos hospitais, deixou claro que o propósito do governo era encaminhar à Assembéia projeto para transformá-los em fundações civis, com patrimônio próprio. Previa-se, inclusive, a doação das instituições às entidades, em nome da sua autonomia. Defensor da articulação do estado com municípios, União e organizações particulares, concluiu estudo sobre a nutrição dos estudantes da capital e substituiu o cartão de registro das empresas de alimentos por alvará de licença, facilitando a vigilância. Já nos anos 40, se preocupou com duas questões atualmente na moda: a saúde do trabalhador e o trabalho infantil.

Incentivo a pesquisa

Segundo Lamartine Lima, presidente do Instituto Baiano de História da Medicina e ex-professor da Escola Baiana de Medicina, o bacharel em direito e educador "incendiou" a pesquisa, inclusive com investimento em parcerias com instituições estrangeiras. Os estudos de saúde pública eram prioridade. Numa época em que a Bahia não figurava nas estatísticas nacionais, Anísio retomou a produção do Boletim Federal de Bio-Estatística, acompanhando semanalmente os índices virais e possibilitando a elaboração de estratégias de combate a doenças.

Hoje, fala-se da, municipalização do sistema de saúde pública, em nome da proximidade da comunidade com o centro de decisões. Pois, foi Anisio, nos anos 40, quem fez a interiorização do atendimento. Criou a função de "médico correspondente", lotado nos municípios sem postos regulares. Uma inovação. Através do Plano de Saúde do Interior, instituiu nove unidades chave, nos distritos sanitários, e centro de treinamento de profissionais.

Para evitar o remanejamento para a capital dos técnicos com residência fixa em Salvador, planejou o recrutamento nas próprias zonas de trabalho. A televisão brasileira nascia, quando ele fez surgir o cinema educativo, com a intenção de despertar na população a atenção para a saúde. Com Anísio, as comunidades ribeirinhas da região do Rio São Francisco passaram a contar com uma lancha, construída nos estaleiros cariocas Bormann. A embarcação, segundo o secretário, teria serviço clínico, laboratório, raios X.

As mudanças chegaram aos antigos manicômios. Também por volta de 48, foi inaugurado um pavilhão reservado a menores de 18 anos, antes acomodados em espaços destinados aos adultos. Os adolescentes contavam com enfermeira, médico e professor. Junto com a Secretaria da Agricultura, o Hospital Juliano Moreira ganhou plantação de legumes e aviário. Os pacientes se ocupavam nas sessões de laborterapia, no estábulo, na pocilga. Além da função terapêutica, as atividades serviam para o abastecimento da unidade.

Assistencia social

Décadas antes da discussão sobre programas de renda mínima, fez o estado conceder auxílio a famílias numerosas ou carentes, em especial às atingidas por abandono materno, doença dos pais, desemprego. O benefício,já havia sido criado anos antes, mas a função era atribuída a agências privadas. As parturientes carentes recebiam pensão mensal até oito meses após o parto. O "prêmio de amamentação" era uma espécie de auxílio-maternidade, visava-assegurar à criança pobre os cuidados da mãe e o aleitamento. Concedido preferencialmente às mães de gêmeos, chegou a auxiliar 300 mulheres por ano.

Os olhos de Anísio se abriram ainda contra a mendicância pública. Por sua iniciativa, a Secretaria de Educação e Saúde construiu um abrigo-hospital, no terreno do Abrigo do Salvador, em Brotas. Numa época em que os dois asilos públicos da cidade - Dom Pedro II, em Roma, e Salvador - estavam lotados, os mendigos doontes eram recolhidos e tratados num local reservado. Enfim, as ações, descritas no relatório de saúde ao governador, terminam revelando uma faceta diferente do homem que se destacou pela competência e foi admirado pela simplicidade.

Morte suspeita no poço do elevador

Educador baiano foi encontrado morto em 1971 no edifício Duque de Caxias, em Botafogo.

Manhã de domingo, Rio de Janeiro. Sobrevivente e fugitivo da ditadura getulista e aposentado compulsoriamente pelos militares em 1964, Anísio Teixeira é encontrado morto no poço do elevador social do Edifício Duque de Caxias, em Botafogo, após 48 horas de sumiço. Morreu decidido a se dedicar apenas à escrita, em campanha por cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas entristecido com a desvalorização do seu trabalho pela educação, saúde e arte ao longo de quase 50 anos. O ano era 71, ápice do governo de Emílio Garrastazu Medici, considerado o mais duro dos presidentes militares. A princípio, a polícia levantou a hipótese de homicídio. Depois, encerrou o caso como acidente.

Candidato à vaga deixada por Clementino Fraga na ABL, teria saído da Fundação Getúlio Vargas em direção ao apartamento de Aurélio Buarque de Holanda, no prédio botafoguense. A poucos metros de sua casa, cumpriria o ritual de visitar um dos antigos membros da Academia para pleitear seu voto. Sumiu no caminho, antes mesmo de falar com o amigo escritor. Ninguém o viu entrando ou saindo do edifício, apesar de pelo menos seis operários trabalharem na reforma do local e do porteiro assegurar que nunca deixou a portaria sozinha.

Horas após o corpo ser descoberto, um comissário da 10ª Delegacia da Polícia Carioca, conhecido como "Limoeiro", considerou a "morte suspeita", segundo jornais da época. O corpo teria sido encontrado de cócoras - com a cabeça junto aos joelhos -, num platô de cimento armado meio metro acima do fundo do poço. Ferimentos no rosto e na cabeça, respingos de sangue dentro da casa de força do prédio - vizinha ao poço - e o estado de decomposição do corpo reforçariam a hipótese de crime.

Até alcançar o elevador social, o baiano precisaria andar vários metros pelo hall. O poço dos elevadores era duplo, mas somente o de serviços desce até o subsolo. O social ficaria a cerca de dois metros deste patamar, onde era intensa a circulação de operários e empregados domésticos no dia-a-dia. A área de acesso ao poço era protegida por uma portinhola de um metro de comprimento por 20 centímetros de largura, mas seria impossível sussurros ou gritos não serem ouvidos.

Outros detalhes teriam intrigado o comissário "Limoeiro". Primeiro, o chão em volta da portinhola foi lavado. Segundo, apesar de ser praticamente impossível um corpo cair sem bater nas pilastras de sustentação das molas do elevador - que ficavam acima do platô onde estava Anísio -, não foi encontrado nenhum vestígio de acidente nelas. Por fim, os óculos do educador forma encontrados numa das pilastras, com uma das hastes abertas e com lentes viradas para cima como se estivessem colocados no local. Vinte dias antes do acidente, os elevadores teriam passado por revisão técnica.

Antes marcada por outra tragédia - a morte do filho caçula de Anísio aos 19 anos, num acidente de trânsito -, a família se calou com o falecimento do educador. Havia peregrinado por cerca de três dias, à procura de notícias do patriarca. Da Bahia, teria recebido a confirmação do então governador Luís Viana Filho - amigo pessoal do educador e homem com trânsito entre os militares - que Anísio estaria recolhido em algum quartel militar, conforme depoimentos de estudiosos.

Um mergulho na história favorece às especulações. Ainda naquele ano, sumiu o deputado Rubem Braga e a militante Glauce Rocha, irmã do cineasta Glauber Rocha, igualmente encontrada caída no poço de elevador. Anos depois, o capitão Sérgio Miranda de Carvalho, o "Sérgio Macaco", fora excluído da Força Aérea Brasileira por acusar o brigadeiro João Paulo Burnier de arquitetar um plano para eliminar ativistas da esquerda em 69. O episódio ficou conhecido como o Caso Para-Sar, uma referência à instituição cuja função de salvar vidas seria desvirtuada para matar políticos, líderes sindicais e estudantes e intelectuais.

No livro Geisel por ele mesmo publicado post-mortem, o presidente sucessor de Medici admite que também acreditava na veracidade da denúncia do capitão. A afirmação é um mea-culpa do homem que se recusou, em 74, a anular a cassação de "Sérgio Macaco". Neste ano, o brigadeiro Eduardo Gomes pediu a Geisel a reintegração do militar à Força Aérea, mas somente nos anos 90 (já na era civil) a União se redimiu do erro.

Por outro lado, também há precedentes que indicam a possibiliclade de acidente. A filha de Anísio, Babi Teixeira, e a sua sobrinha, Maria Duarte Sepulveda, descrevem-no como homem com intensa capacidade de se asbter do que o rodeava enquanto lia, por exemplo. Distraído, dava parabéns em velório e até logo em vez de bom-dia. Certa vez, machucou-se ao tombar num vidro de portaria, ao lado da porta, conforme lembra seu ex-genro, o senador Artur da Távola.

Amigo e estudioso de Anísio, Hildérico Oliveira, encontrou com o bom baiano dias antes do acidente. "Ele disse: 'estamos marginalizados' (já não era solicitado como antes), mas nunca se referiu a ameaças", garante, após lembrar que a relação com os "militares não era boa" mas os algozes teriam até elogiado a sua atuação em inquérito que comprovou não haver improbidade administrativa no seu reitorado na Universidade de Brasília. Quase 30 anos após sua morte, permanece a dúvida.

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