NUNES. Clarice. Entrevista. Proler. Rio de Janeiro, v.4, n.13, jul 2000. p.4-5.

O ano 2000 comemora o centenário de Anísio Teixeira, grande educador brasileiro cujo legado, ainda hoje, é extremamente fértil para repensar a educação no país. O pensamento de Anísio, visando afirmação integral da pessoa, pôde desencadear ações efetivas pela qualidade da educação. Para ele, as artes, a ciência, a técnica caminham juntas, oferecidas em escolas de jazer pensar e, por isso, dispôs em nova arquitetura bibliotecas e espaços para a cultura e o lazer indispensáveis para a humanização.

A Folha Proler e a Casa da Leitura celebram, neste mês de junho, sua memória e história, exemplo para todos que queiram fazer desse país uma nação melhor.

Com doutorado em Ciências Humanas pela PUC do Rio, Clarice Nunes trabalhou durante 25 anos em pesquisas na área de história da educação brasileira. Tendo travado contato com o pensamento de Anísio, quando elaborou sua dissertação de mestrado, no final dos anos 70, no Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas, Clarice publicará este ano um livro sobre Anísio Teixeira, produto de sua tese de doutorado, realizado em 1991. O livro será lançado pela Editora da Universidade São Francisco, de São Paulo. O livro, que leva o mesmo nome da tese, chama-se "Anisio Teixeira, a poesia da ação", e faz uma espécie de biografia intelectual de Anísio, ressaltando períodos cruciais de sua vida, dentre os quais o do exílio no interior do Brasil, impedido, pela ditadura getulista, de ser educador.

Folha Proler - Anisio Teixeira dizia que bibliotecas são instituições básicas da educação que antecedem, em verdade, à escola. Como você vê a importância da leitura e da biblioteca no processo educacional?

Clarice - Ensinar a amar os livros e viver com eles é uma nobre tarefa da escola. Já houve tempo em que as escolas públicas possuíam suas bibliotecas.

Hoje nem todas contam com esse acervo, o que é uma Iástima! Quando aprendemos a ler entramos no mundo da escrita e o percurso é vasto e complexo. Mesmo antes dessa aprendizagern a criança acaba sabendo reconhecer certos símbolos pelo contexto em que eles aparecem, como por exemplo a marca de um refrigerante, o nome de uma rua. Todas essas experiências criam a curiosidade em torno da leitura. A biblioteca é uma polifonia de vozes, de concepções que colocam o leitor em relação direta com conhecimento produzido. Aprendemos com os personagens de uma história, identificamo-nos ou não com eles. Criamos relações amorosas com nossos autores prediletos. Eles são, como dizia Anisio Teixeira, referindo-se a Dewey, nossas plataformas de lançamento no espaço da cultura, da compreensão de si mesmo e do mundo que nos cerca. Creio que os avanços tecnológicos trazem mudanças significativas no ato de ler e pensar para a concepção de uma biblioteca e do serviço que ela presta, mas isso não quer dizer que os livros e as bibliotecas deixarão de existir. Serão modificados com certeza até nos seus suportes materiais, mas a necessidade de ler no sentido mais amplo continuará existindo...

Folha Proler - O que Anisio representou em termos de educação no cenário educacional brasileiro?

Clarice - Eu diria que Anísio Teixeira é um dos nossos maiores educadores. Por que? Porque dedicou sua vida inteira à causa da escola democrática e da sociedade democrática. E mesmo com as interrupções de trabalho que sofreu por conta das perseguições políticas, em 35 e 64, ainda insistiu em traballiar em prol da educação dos jovens, da criança e do adolescente. E eu acho que é esse desejo pela educação e esse serviço, pois ele considerava que prestava um serviço à população, é que caracteriza a sua vida. Por outro lado, Anísio Teixeira tem um papel importante na criação de instituições educativas. Foi Secretário de Educação no Rio de Janeiro nos anos 30, e em Salvador no final dos anos 40. Foi diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos a partir de 1952 , dirigiu a CAPES, esteve presente na fundação da Universidade de Brasília - UnB. São todas iniciativas de extrema importância no âmbito da educação, alguém que soube realizar suas idéias. Não é por acaso que alguns intelectuais denominarn Anísio Teixeira corno "grande estadista da educação". E ele, na verdade, discutiu todos os grandes temas da educação: a democratização, a qualidade de ensino, a questão da pós-graduação em educação, a autonomia Universitária, o financiamento da educação no país, o planejamento ern educação. Uma série de temas, enfim, foram por ele não só debatidos, mas também tratados, pois foi um legislador em seu papel de educador, escrevendo o Fundo Nacional do Ensino Primário, nos anos 40. Anísio uma, pessoa que tem essa contribuição fundamental, que não há como não reconhecer.

Folha Proler - A escola pública de qualidade para todos era um sonho de Anísio. Em que esse sonho tem a ver com a escola pública de hoje?

Clarice - Eu diria que a escola pública de qualidade não é só um sonho de Anísio. Ele realizou, quando Secretário de Educação, essa escola pública de qualidade. Vou dar um exemplo: o caso da cidade do Rio de Janeiro. A cidade do Rio de Janeiro de 31 a 35 teve um sisterna de educação construído por ele, que ia desde a escola primária até a universidade. E o que era essa escola primária de qualidade para Anísio? Era uma escola, em primeiro lugar, que tinha uma nova arquitetura, uma arquitetura apropriada para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. Algumas das nossas escolas mais importantes nesse momento, das quais muitas pessoas sentem saudades, são escolas que possuíam bibliotecas, anfiteatros, pátios de recreação, estruturas que não erarn comuns. São escolas que Anísio criou, mas ele achava que a escola pública não era só prédios e equipamentos, era um espírito, e quern construiria esse espírito? As pessoas, trabalhando dentro da escola, mas sobretudo os professores. Então, um outro movimento de Anísio no sentido de construir a escola pública, de qualidade, era o aprimoramento da formação docente. Nos anos 30, pela primeira vez no país, temos, pela iniciativa dele, o ensino da formação do professor primário elevado à universidade. Foi a primeira vez que os professores primários começaram a ser formados em âmbito universitário, com a criação da Escola de Educação da Universidade do Distrito Federal. Fora a formação de professores, a organização da escola é um outro ponto. Os professores passaram a contar com um serviço que hoje chamaríamos de "supervisão pedagógica" nas secretarias de educação. Os professores eram acompanhados em seu trabalho, os resultados das escolas passaram, a ser acompanhados, de modo que a Secretaria pudesse intervir, no sentido de melhorar o trabalho escolar. Havia algo que era fundamental também, a concepção de que a escola tem de estar a serviço do aluno e professores, supervisores, diretores deveriam estar a serviço do aluno, resolvendo seus problemas de aprendizagem e fazendo da escola um ambiente onde a criança realmente quisesse ficar e onde ela pudesse viver uma experiência variada de educação. Uma das iniciativas interessantes de Anísio foi a criação das Escolas Técnicas Secundárias, em 32, onde ele reuniu disciplinas de cultura geral às práticas de ofício, pela primeira vez também, procurando superar aquele esquema da dualidade escolar que esteve sempre presente na nossa educação e que, na verdade, se caracteriza por duas linhas de prosseguimento nos estudos: a linha primária profissional e a linha secundária superior. Com esta proposta, ele queria articular a questão da cultura geral com as práticas de ofício, e que o diploma dos alunos dessas Escolas Secundárias Técnicas se equivalessem, em termos de prestígio e aceitação, ao mesmo nível do diploma dos alunos que saiarn do Colégio Pedro II, uma das escolas mais prestigiadas do ensino acadêmico no país. Se a gente cornpara essa iniciativa e essa realização dele com a escola primária pública, hoje, a gente vê que há uma diferença muito grande. O que as escolas públicas hoje apresentam? Apresentam-se com prédios pichados, degenerados, destruídos. Apresentam-se com professores desmotivados pela falta de salário decente, de uma carreira que realmente lhe motive a trabalhar, e uma escola que como termômetro social reflete muitos dos problemas que enfrentamos hoje, sobretudo a violência, que é muito grande. Além disso, uma escola que foi crescentemente destituída de outros sujeitos que nela antes trabalhavam, e que serviam como auxiliares do trabalho docente. Então, vê-se que hoje as escolas acabam se reduzindo quase somente a professores e diretores, quando muito a um ou outro coordenador pedagógico, mas evidentemente o número de funcionários dessas escolas diminuiu. A questão da limpeza, da manutenção é muito deficitária; a questão da qualidade de ensino está comprometida, porque as políticas públicas, quando se voltam para a formação do professor, voltam-se ignorando toda uma experiência histórica acumulada, da qual o próprio trabalho de Anísio Teixeira é um exemplo. Ou então, verifica-se a ausência das próprias políticas. Hoje, apesar do discurso político falar sempre que a educação é uma prioridade nacional, na prática não é, até porque as decisões no âmbito da educação são tomadas por outros ministérios que não o da educação. Evidentemente que, hoje, o Ministério (da Educação) está com um papel maior, inclusive de intervenção, a partir da questão da avaliação, questão bastante séria, mas substantivamente o que se vê são as escolas públicas de modo geral desmotivadas, desaparelhadas, e no fundo descornprornetidas, apesar do ideal de seus professores, e do fato que alguns deles ainda insistem em querer aprender por conta própria, se aprimorar. Mas é uma escola que não está conseguindo realizar esse ideal de educação pelo qual Anísio Teixeira tanto lutou.

Folha Proler - Que mudanças estruturais são necessárias para que as escolas públicas voltem a ser escolas de qualidade?

Clarice - Uma das coisas que eu aprendi lendo Anísio Teixeira, é que qualquer política educacional precisa apresentar uma abordagem de conjunto. Não basta, pontualmente, interferir num aspecto da estrutura do sistema e achar que com isso provocou-se a mudança. Para conseguir uma escola de qualidade, tem que interferir simultaneamente sobre três grandes eixos do que se chama de estrutura. O primeiro, é a produção da escola. Como essa escola está organizada, desde a parte material, até a parte da formação de seus professores. Como essa escola se produz? Como ela é construída? Como ela está pensada para desenvolver o seu trabalho? Outro eixo fundamental é a questão da produção da formação do proffisional. Porque o professor ainda é a alma da escola, na sua relação com aluno. O terceiro ponto é a questão da carreira profissional, quer dizer, ao mesmo tempo que se vê a escola se produzindo, trabalha-se na direção de uma melhoria na formação do professor e na questão de uma carreira digna. Sern esses elementos não se consegue uma escola pública de qualidade. Do ponto de vista da produção da escola, acho que nós já colocamos aqui, é conseguir criar essa atmosfera. Mas o que é essa atmosfera? É uma atmosfera, primeiro, de valorização da própria cultura. A escola não é vista apenas como uma instituição de educação, simplesmente. Ela é vista como uma instituição cultural. É uma escola que não se fecha em si mesma. Abre-se para o seu entorno, reflete sobre as questões que a estão atingindo. É uma escola em que os recursos públicos são aplicados criteriosarnente. É uma escola em que há um acompanhamento do trabalho pedagógico. É uma escola em que se acredita na educação. Eu creio que uma das principais questões é essa. Na época em que o Anísio trabalhou dentro das Secretarias de Educação, sobretudo nos anos trinta, via-se uma mobilização da sociedade em geral, não apenas dos educadores, mas de outros intelectuais em relação à educação. Havia mesmo um clima, que hije já não se endossa tanto, de que a educação resolveria os problernas nacionais. Hoje já não se tem essa idéia, digamos que se é um pouco mais realista mas, de qualquer forma, essa imobilização, essa visão de futuro está faltando dentro da escola. Percebo, sobre a escola pública hoje, que as ações são muito imediatas, muito pontuais, falta o que? Uma filosofia, uma concepção pedagógica que possa aglutinar as pessoas e pela qual as pessoas possam realmente desenvolver o seu trabalho. Pensando a educação de uma maneira global, isso é importante. Além, por fim, de medidas que procurem realmente levar em conta, do ponto de vista das políticas educacionais, as culturas regionais. Acho que uma grande questão que se coloca quando se fala em sistema nacional de educação, ou em diretrizes e bases, é até que ponto se pode ter propostas políticas definidas em nível federal, que não colidam com a autonomia dos estados ou dos municípios. Pela Constituição de 88, se tem uma liberdade maior dos sistemas estaduais e dos sistemas municipais desenvolverem seus próprios sistemas, mas essa liberdade é sempre muito relativa. Ela depende da canalização de recursos. Então, o que se vê hoje, por exemplo, ao nível do sistema municipal de ensino? Municípios que para obter a verba do FUNDEF (Fundo Nacional de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério) estão realmente dando ampliação ao ensino fundamental, que é uma necessidade, mas fechando escolas de ensino médio. Alguns municípios tinham escola de segundo grau (ensino médio). Têm ainda, mas estão fechando, não só por uma determinação legal de que dentro de alguns anos as antigas escolas normais deverão estar extintas, mas porque há uma nova organização na formação do professor. Pelo último Decreto (presidencial) de dezembro do ano passado, se criou o Instituto Superior de Educação, que vai formar exclusivamente professor da educação infantil e da 1ª a 4ª série do ensino fundamental. Os professores das quatro últimas séries do ensino fundamental, e daí para a frente, serão formados nas Universidades, as Faculdades de Pedagogia já vêm fazendo isso. Há, inclusive, uma grande polêmica em torno disso, pois se a Faculdade de Pedagogia já está dando formação para esses professores, aí incluídos os professores de educação infantil e de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental, por que então criar o Instituto Superior de Educação? Essa é uma medida muito polêmica na atualidade, principalmente pelo fato de que o Decreto é de uma contundência que coloca em cheque todas as discussões dos rnovimentos organizados de professores do país. Vêem-se as políticas produzindo conflitos, e produzindo também a fragilidade das instituições organizadas. Na verdade, porque são impositivas. Apesar de não estarmos mais nurn governo populista, e a grande crítica aos governos populistas é que eles não conseguiam realizar efetivamente as suas propostas, temos hoje um estilo muito, autocrático de gestão. E esse estilo é contraproducente, porque ignora que as mudanças não ocorrem de cima pra baixo, elas ocorrem de dentro pra fora. Então, enquanto não se mudar realmente o professor, não se muda o sistema. Com Decreto não se rnuda a educação, mas essa é uma Iição que nós não aprendemos.

Folha Proler - O que poderia ser aproveitado do legado de Anísio nas escolas públicas contemporâneas?

Clarice - Talvez valesse a pena que se falasse da concepção de educador de Anísio Teixeira. Lembrar um pouco que, na história da vida dele, passou por uma adolescência com um trabalho muito sério de formação da sua intelectualidade e do seu afeto nos colégios jesuítas. Teve uma formação humanista clássica de alta qualidade, e não apenas uma formação humanista no sentido das letras, mas também das ciências, pois o que muita gente não sabe, é que tendo nascido em 1900, Anísio estudou, por volta de 1914, no Colégio Antônio Vieira, em Salvador. Esse Colégio possuía professores que eram jesuítas, mas também eram cientistas, alguns deles fizeram pesquisas irnportantes sobre a flora e a fauna do sertão da Bahia e chegaram até a publicar os seus resultados em revistas internacionais. Anísio foi criado em urn ambiente de valorização da cultura, de domínio das letras. Escrevia muitíssimo bem, eu até sempre digo que ele seria um dos nossos grandes nomes da literatura, se ele tivesse se decidido a caminhar por aí, pois as cartas dele são peças belíssirnas de literatura, sobretudo as cartas que ele mantém com seu grande amigo Monteiro Lobato. Enfim, teve uma formação sólida, mas ao mesmo tempo uma vIvência de internato muito depressiva, porque era muito rígida. Quando vai para os Estados Unidos, já homem feito, e descobre o arejamento das escolas americanas, os colleges, fica impactado com a relação bem mais democrática vivida pedagogicamente entre professores e alunos. Começa a rever as suas concepções de educação e a imaginar que um educador, para ser um bom professor, precisa de alguns requisitos. Quais? Primeiro, precisa de uma motivação pela educação e de um interesse fundamental por aqueles a quem educa. Então, é um educador que tem uma atitude de comprometimento visceral com o seu trabalho. Mas isso só, seria suficiente? O que esse profissional precisaria além disso? Precisaria de um domínio do conhecimento que vai ensinar. Precisaria ter uma formação sólida de cultura geral e precisaria ter, além de tudo, um conhecimento de como ensinar. Não basta ter só o conhecimento, é preciso saber como ensinar. E, nesse sentido, ele entendia que a educação era uma área de aplicação de várias ciências humanas e sociais: a psicologia, a sociologia, a antropologia. Então, um bom educador teria de ser formado com essa base de conhecimento, e mais, ser o investigador da sua própria prática. Por que? Porque não é fácil recriar os conceitos que se aprendem no campo dessas ciências na prática da sala de aula. Ele dizia que o professor na sala de aula tinha de utilizar a ciência, mas que a ciência apenas não resolve, na verdade, tem que ter um saber elaborado que é mais do que científico, e que se aproxima mais do saber artístico. Anísio ensina que, na verdade, o professor trabalha com uma multiplicidade de saberes. Os saberes que vêm da sua área de formação; os saberes que vêm da área de conhecimento que leciona; os saberes que vêm do currículo ou dos programas escolares, que ele tem que dar conta; e os saberes da experiência. Um bom professor é aquele que sabe lidar com esses saberes de forma diferenciada e dar as respostas adequadas às situações imprevisíveis da escola, utilizando esse arsenal. Esse profissional se aproxima mais do artista, embora não prescinda de forma alguma dos conhecimentos científicos. Esse profissional é alguém interessado em conhecer a sua própria sociedade, então não pode se voltar para o seu próprio umbigo. Ele tem que saber o que acontece no mundo, tem que saber o que acontece em torno da escola, e como é que isso se reflete na sala de aula. Essa atuação do professor está pautada pela compreensão do que seja a atuação de um professor-educador, que é um pesquisador, que é um intelectual.

Se nós pudéssernos dizer o que pode ser aproveitado do legado de Anísio, eu tenho a impressão que a primeira coisa é que a educação é um direito de todos, não é privilégio de alguns. A escola pública tem que estar aberta a pobres e ricos, a pretos e brancos, pardos, índios, enfim, pessoas de todos os credos, seja religioso, seja político. Essa escola precisa ser um ambiente de discussão, o que é muito difícil porque se costurna acusar o Estado de autoritário, mas a nossa sociedade é muito autoritária e as relações pedagógicas são muito opressivas. Mudar isso é um trabalho de gerações. Anísio deixa uma mensagem fundamental e muito simples: a de que a escola tem um sentido, tem um sentido político, tem um sentido social, ela é formadora da cidadania. A formação da escola deveria se preocupar menos com uma prática de ofício pontual, e mais com a compreensão social do trabalho. Isso não quer dizer ignorar a prática, ele até criou práticas de ofícios nas escolas públicas do Rio, nas escolas públicas de Salvador, mas de uma maneira articulada às questões sociais. Na verdade, é uma concepção de educação ampla, global, não é uma concepção estreita. Hoje, continua ainda em nossa agenda algo pelo qual ele sempre trabalhou, que é a formação de uma inteligência solidária, sem medo, sem arrogância, sem preguiça. Esse é o grande legado: a autonomia de pensar e de se expressar em muitas linguagens. Eu me lembro de uma frase dele que me impressionou muito, falando sobre como o pensamento era o ato mais vigiado de todos. Normalmente, só se tem a idéia que os nossos pensamentos são tão nossos, mas talvez não se tenha a crítica de como nós somos também um produto da sociedade, das nossas relações, e como as nossas idéias, muitas delas, são preconceitos. Eu creio que um grande legado é essa tolerância. Anísio foi um mestre da tolerância, porque trabalhou com pessoas dos mais diferentes perfis políticos e ideológicos, soube coordenar esse trabalho. Hoje vê-se que é muito raro alguém do ponto de vista da política ter essa qualidade.

Folha Proler - O mundo moderno está impondo um dinamismo que a escola não tem correspondido, como superar esse desafio?

Clarice - É muito difícil para a escola acompanhar os avanços sociais, até porque quando se lida com idéias e concepções esse trabalho é muito lento. Por isso é que em educação não existe resultado de curto prazo. Os resultados em educação só aparecem a médio e longo prazo. Os tempos do educar são tempos lentos, porque eles exigem um envolvimento entre educador e educando. Há até quem ache que educar é a rigor impossível, se quem se está educando não quiser ser educado. Esse ato da educação acontece mais como um movimento de escolha de cada um, apesar de a educação ser condicionada, o que é um paradoxo, mas as resistências à educação são muitas, no nível pessoal e no nível coletivo. E por isso que se diz que a educação só acontece quando o sujeito resolve se educar, mas de qualquer forma não se pode esquecer que, ao nascer, já encontramos o mundo instituído, e a nossa reação com esse mundo é que vai fazendo com que nos construamos do jeito que somos. Nós nos educamos para construir uma identidade, para exercer uma atividade social, ou para nos relacionarmos e, ao mesmo tempo, para que consigamos dar uma resposta própria aos problemas que estamos enfrentando, quando se objetiva o que se interiorizou. A educação é uma necessidade anida, sobretudo a educação básica, para dar uma base de cultura geral a todas as classes sociais, mas especialmente à classe popular. Esse dinamismo do mundo moderno, se for pensado em termos de equipamento, a escola não alcaça mesmo, mas se for pensado em termos de concepções, observa-se que a escola tem ficado sufocada pelas políticas reducionistas, estreitas, pontuais, seletivas. A política de hoje, com certeza, vai produzir como resultado uma competição muito grande das instituições; das instituições particulares entre si; das instituições públicas entre si. Uma escola regida pela ideologia da competitividade, para mim é anti-educadora. Uma escola em que o sistema de avaliação é homogêneo e imposto a todos os alunos, ignorando as capacidades individuais, no sentido dos dons a serem desenvolvidos, no sentido de uma formação integral do ser humano, é abusiva. E o que acontece com as escolas. Quando é que você encontra uma escola que verdadeiramente encoraje uma inteligência artística, plástica, prática? O que você vê hoje nas escolas de segundo grau (ensino médio) são os pais apavorados, cobrando a aprovação de seus filhos no vestibular. Eu entendo que é uma perversão geral dos valores. Quando Anísio fala dessas inteligências passivas, está correto, porque geralmente o aluno bem sucedido é aquele que se adapta aos rituais, às exigências da escola, muitas vezes em detrimento da sua própria expressão pessoal, até abafa a sua expressão pessoal. Então, essa é uma escola desumanizadora. Agora, numa formação integral, como foi na escola construída por Anísio em Salvador, em que o aluno passa por atividades artísticas, por atividades práticas, por atividades intelectuais, tem-se um maior equilíbrio nessa construção do ser humano, e o aluno pode ir se conhecendo. Essa é uma escola onde o indivíduo pode se auto-conhecer e fazer escolhas efetivas, porque viveu uma multiplicidade de experiências. Mas as nossas escolas públicas se pensarmos a maioria delas não são assim. Mesmo nas escolas particulares, sobretudo nas escolas particulares das camadas mais altas da sociedade, o que predomina ainda é o ensino verbalista, o modelo da aprovação para a universidade, o que é uma burrice. Porque o indivíduo que sai hoje da universidade com um diploma, sai com um diploma, e isso não significa mais que ele vai obter emprego como acontecia há um tempo antes, nem que esse diploma vai ser reconhecido. Hoje em dia, uma formação profissional está significando pouco, porque existe no mercado uma situação diferenciada de qualificação: há os muito especializados; os não especializados, que precisam adquirir alguma especialização e procuram vários treinamentos profissionais. Então, o perfil do profissional, hoje, é o do profissional com uma formação múltipla. Ou ele faz mais de uma Faculdade ou, enfim, passa por várias experiências. Não há mais aquela coisa do profissional que sai já com a garantia do seu espaço no mercado de trabalho. E isso inquieta muito as famílias, e inquieta muito as escolas. A construção de uma inteligência, o cultivo de uma inteligência é uma arte refinada, e eu acho que Anísio era capaz de entender isto e lutar por isto com medidas concretas. E defender a idéia de todo esse cultivo eu creio que torna o homem mais humano, mais solidário, mais responsável pelos seus próprios atos. Gostaríamos muito, todos nós, de construir essa escola.

| Articles from newspapers and magazines | Interviews |