CAPITULO SEGUNDO
EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA

   Si educação é funcção que assegura a direcção e o desenvolvimento do immaturo atravez da sua progressiva participação na vida da sociedade, a educação deve ser estreitamente condicionada á qualidade de vida social desse grupo, ao seu ideal de vida social. A theoria americana de educação não poderia ser comprehendida si não fosse estudada á luz da organização democratica da sua sociedade. Si alguma lição tem a America a dar ao mundo, si algum grande ideal sustenta a sua civilização e dá vigôr e sentido á sua obra - essa lição e esse ideal se consubstanciam em Democracia.
   Mas, democracia ganhou, na América, um sentido mais amplo do que o seu originario sentido politico e significa uma nova experiencia de vida associada, cujas conquistas estão longe de ser concluidas.
   Dewey, ao estudar as condições de um grupo social, fixa dois criterios para julgar-se de seu progresso e de sua harmonia: a somma de interesses partilhados em comum, o que indicará a riqueza, a variedade e ausencia de desigualdades do grupo; e a cooperação com outros grupos distinctos, o que tornará possivel um intercambio, permanentemente renovador das condições do grupo para a sua progressiva e constante reconstrucção.
   Taes condições não podem existir em sociedades aristocraticas ou olygarchicas onde a divisão dos interesses, o isolamento dos grupos e a desigualdade de opportunidades, criam uma athmosphera de rotina para a classe desprotegida e de fastio e capricho para a classe nobre. Aquellas condições se realizam somente na sociedade democratica que se pode caracterizar, segundo Dewey:
   1) pelo desenvolvimento de pontos de participação e commum interesse cada vez mais numerosos e variados entre os seus diversos membros e pela confiança no criterio de que mutuos interesses são o melhor factor para o controle social;
   2) por um intercambio cada vez mais livre entre os diversos grupos sociaes e uma consequente continua readaptação atravez das novas situações produzidas por esse variado intercambio.
   Essa definição de democracia esclarece singularmente o destaque e o relevo que a civilização americana põe nas suas instituições de educação. Só uma organização educativa verdadeiramente efficiente pode amparar e manter esse ambicioso projecto de vida social que a democracia americana está realizando. Essa vida social de plena e larga participação, sem barreiras e sem limitações, envolve uma perfeita confiança no homem commum, e só não resultará em desastre, si a educação realmente apparelhar todo o cidadão americano para essa forma livre e superior e rica de vida de grupo. O alargamento da area de interesses partilhados em commum e a libertação de uma maior diversidade de capacidades individuaes são caracteristicos já existentes. Isso determina uma perpetua transformação social, absolutamente indefinida, que só não degenera em confusão porque a educação americana procura prover iniciativa pessoal e adaptabilidade social de sorte a criar um novo equilibrio social, que é a surpreza e a maravilha de todo observador do mundo americano.
   A educação, comprehendida assim, como a suprema funcção social, tende a ser não somente a agencia conservadora da sociedade, mas a agencia do seu constante desenvolvimento e progresso. Consistindo a sua funcção especifica em uma permanente e progressiva adaptação do homem á vida social, o seu problema se restringirá, em nossos dias, em vencer as barreiras economicas que ainda dividem os homns e em conciliar uma finalidade nacionalista de educação com uma finalidade social mais vasta e mais universal.
   Esse ideal, que annos atraz seria uma utopia de sonhadores, parece-me perfeitamente realizavel nesse paiz, onde o mesmo vigôr constuctivo que levanta as suas fabricas e os seus edificios gigantescos, anima as suas aspirações sociaes de missionaria belleza.
   O grande movimento de reconstrucção educativa que caracteriza os actues dias americanos vae provêr amanhã a taes facilidades, amplas e efficientes, de educação, que os effeitos das desigualdades economicas sofferão pelo menos um largo e compensador desconto; por outro lado, a coragem com que se transformarão os tradicionais ideaes de cultura, as tradicionaes materias de estudo e os tradicionaes methodos de ensino e disciplina, não só apparelhará com uma nova efficiencia a juventude desse paiz, como agirá no sentido de uma cada vez mais larga libertação da capacidade individual, para, emancipado de quaesquer barreiras economicas ou nacionaes, o homem participar em movimentos sociaes mais ricos, mais livres e mais fecundos, que os de nossos dias.
   Uma ligeira discussão dos fins geraes de educação, auxiliará a nossa intelligencia do sentido democratico da educação americana.
   Devemos precisar, de inicio, que educação não tem um único fim geral que centralize todos os demais. Por uma questão de circunstancias de logar ou de tempo, põem os theoristas emphase em um outro fim, que não são mais do que pontos de vista, pelos quaes se examinam as actuaes condições e as futuras possibilidades do processo educativo.
   Os tres objectivos geraes de mais larga influencia, - "natureza" com Rosseau, "cultura" com a chamada educação classica e "eficiencia social" modernamente, - poderão auxiliar-nos a comprehender o sentido de educação que vimos estudando.
   A concepção de Dewey em educação é essencialmente uma concepção integradora. Dewey salienta e esclarece o equivoco em que se baseiam todos os dualismos que caracterizam as theorias educacionaes aristocraticas - taes como trabalho e lazer, pratica e actividade intellectual, individualismo e associação, cultura e profissão, etc.
   Não me é possível aqui indicar toda a argumentação do philosopho americano na sua tentativa unificadora dessas theorias que sempre, mais ou menos, dividiram os homens. O commentario, porém, desses tres fins comprehensivos de educação, indicados acima, dará ao leitor uma idéa da unidade do pensamento de Dewey. Qualquer delles, tomado isoladamente, provará ser inidoneo para orientar a educação no sentido democratico.
   Quando, desgostosos do artificialismo e convencionalismo dos methodos escolasticos de educação, alguns educadores, chefiados por J. J. Rousseau, julgaram que a reforma deveria consistir em tomar a natureza como standard e finalidade educacional, elles incidiram nesse erro.
   Rosseau contribuiu innegavelmente para o moderno conceito de educação. Elle precisou, em seu tempo, verdades que são hoje completamente confirmadas pela sciencia, istoé, - que os tres factores do desenvolvimento educativo são: a estructura nativa dos nossos orgãos corporeos e suas actividades funccionaes; o uso em que as actividades instictivas são postas sob a influencia de outras pessôas; a sua directa acção e reacção com o meio; - e ainda, que somente quando esses tres factores trabalham harmonica e cooperativamente, o indivíduo se desenvolve adequadamente.
   O equivoco rousseauniano foi julgar que aquellas actividades naturaes tinham um desenvolvimento independente e distincto dos outros demais factores educativos. Que havia "um espontaneo e natural desenvolvimento" de nossas tendencias, que devia ser considerado ideal e perfeito. Isto o levou a imaginar uma educação fóra do meio social, deploravelmente fantasista e lateral. A natureza, isto é, em linguagem de hoje, as "differenças individuaes" fornecem as condições os limites da educação, não o seu fim ou o seu objectivo ultimo.
   Incompleta, tambem, hade ser a theoria que procura accentuar que o fim da educação é supprir, precisamente, o que a natureza não poude assegurar, habituando o individuo ao controle social, á subordinação dos instinctos naturaes ás regras sociaes.
   A sociedade, como fim de educação, será tambem parcial, si não fôr entendida como uma designação que envolva os tres objectivos geraes, consubstanciados no que se poderá chamar "efficiencia social".
   "Efficiencia social" não deve ser considerada uma rigida subordinação aos actuaes standards da sociedade, mas como um aparelhamento do individuo para uma progressiva organização social, mais e mais adequada ao desenvolvimento harmonioso das actividades individuaes.
   Essa "efficiencia social" se traduz em fins mais especificos - competencia industrial ou efficiencia economica e efficiencia civica.
   A primeira é rigorosamente essencial em uma sociedade democratica e nada justifica que a educação superior, em nome de suppostos ideaes espirituaes elevados, despreze essa consideração economica vital em educação. Essa preparação economica, vale a pena repetir, não se determina escravamente pelas actuaes condições materiaes do mundo, mas tenderá a alimentar o mesmo fermeto de constante transformação e progresso. A educação não trabalhará pela perpetuação das iniquidades de hoje, mas pela sua remoção tão prompta quanto possivel.
   A complexidade e o dynamismo do mundo economico exigem que o individuo não só assimile as mudanças desse apparelho, mas possa incidentalmente ser o agente do seu progresso e do seu melhoramento.
   Efficiencia civica é uma finalidade mais vaga em educação. Em essencia, não se pode, sinão arbitrariamente, distinguil-a de efficiencia economica. Mas, por efficiencia civica comprehendemos, especificamente, o desenvolvimento da capacidade de participar no livre dar e receber da experiencia social. Nesse sentido, efficiencia social significará, exxencialmente, cultivo da sympatia e bôa vontade humanas, de sorte que se eduque um cidadão em uma attitude acolhedora de tudo que une os homens e rebelde a tudo que os divide ou separa.
   Essa larga comprehensão da finalidade educativa já nos põe em guarda contra a concepção de cultura da personalidade como fim educacional exclusivo. Effectivamente, entendida como tem sido entendida, - como um puro refinamento espiritual e interior, o ideal de cultura se oppõe á efficiencia social e á natureza.
   Á natureza, como a qualquer cousa incultivado e á efficiencia social, como a uma preparação para uma positiva actividade exterior. Tal cultura, como desenvolvimento do que o individuo tem de exclusivo e "incommunicavel", como uma preparação para o isolamento e uma artificial selecção, só foi possível em uma sociedade de classe onde, como diz Dewey, a certos homens cabia a tarefa de prover aos productos materiaes da vida, emquanto a outros era dado tempo e opportunidade para se desenvolverem como seres humanos.
   Mas, si democracia tem algum sentido moral e social, ella deve exigir de todos uma funcção social e a todos offerecer opportunidade para desenvolver as suas capacidades distinctivas.
   Efficiencia social não pode existir sem cultura, sob pena de ser mero treino industrial. Efficiencia social e cultura pessoal, provendo a uma livre e larga vida associada entre os homens devem constituir dois objectivos harmonicos que se integrem numa legitima concepção democratica de educação. Não ha condemnação de cultura, com predominancia de "utilitarismo" ou "praticalidade", mas uma educação tão integral e tão humana quanto possível, e que se não baseie nem alimente nenhuma sorte de isolamento ou divisão social, floresçam de hypertrophia espiritual de cultura ou de limitado treino profissional.
   A educação democratica, segundo Dewey, é uma educação de humanidade, no seu justo sentido, não para uma classe privilegiada, mas para todos os homens.


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