ÚLTIMA HORA. Substitutivo Lacerda transformaria em comércio todo o ensino no Brasil! Última Hora. Rio de Janeiro, 20 mar. 1959.

AMEAÇA FRONTAL AO FUTURO DA EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO

SUBSTITUTIVO LACERDA TRANSFORMARIA EM COMÉRCIO TODO O ENSINO NO BRASIL!

No momento em que se instalam os trabalhos da quarta legislatura e os representantes do povo são chamados a examinar problemas da maior relevância para a vida brasileira, ULTIMA HORA julga oportuno alertar o Congresso para aquilo que pode ir a ser o mais rude golpe já desferido contra as instituições, o regime democrático e o próprio sistema federativo. Trata-se do substitutivo com que o Deputado Carlos Lacerda, a trôco de "devolver a educação à família brasileira", pretende generalizar no País a comercialização do ensino, extinguindo a escola pública e entregando a grupos particulares o monopólio da educação. Já não parecia possível que alguém no Brasil, ao elaborar um projeto de lei de tamanha importância política para a Nação, pudesse pôr-se a serviço de tão estranha bandeira, em nome da qual o espírito do senhor de engenho, de clã e do interêsse particular investe contra o interêsse público e procura esmagá-lo sob a forma de lei. Mas foi isto precisamente o que fêz o Deputado Carlos Lacerda ao propor recentemente ao Congresso um substitutivo ao projeto governamental de Diretrizes e Bases da Educação, onde, além de se proibir ao Estado exercer a função constitucional de assegurar a educação para todos, arma-se, ao mesmo tempo, contra os cofres públicos, um assalto de 25 bilhões anuais para financiar, sem riscos, o negócio do "ensino livre".

Além de inconstitucional, o substitutivo do Sr. Lacerda é totalmente indefensável, e isto ficou sobejamente provado nos sucessivos depoimentos que eminentes educadores acabam de oferecer através da ULTIMA HORA. Mas o Congresso está reunido e vai votar, entre outras matérias em pauta, a lei de Diretrizes e Bases, a que nada menos de cinco projetos, inclusive o do Sr. Carlos Lacerda, procuram nenhum momento é mais propício para alertar os Deputados sob o mesmo nome dar forma e conteúdo. E assim sendo, e Senadores sôbre o imenso perigo que representaria para o Brasil a aprovação do substitutivo Lacerda; e é isto o que ora fazemos trazendo-lhes mais uma vez o depoimento daqueles ilustres educadores, cuja síntese é a seguinte:

ANÍSIO TEIXEIRA – Atual Diretor do INEP e uma das maiores autoridades brasileiras em educação: "Nenhuma lei de educação visa a eliminar as controvérsias educacionais. O Estado democrático, ao intervir no amplo processo social pelo qual o homem se educa e assegura a sobrevivência da sociedade, não pretende absorvê-lo nem esgotá-lo, mas organizar serviços educativos que julgue indispensáveis para o funcionamento menos acidental da sociedade. O Estado legisla, sôbre educação como legisla sôbre saúde, agricultura, indústria. Como o interêsse pela educação se fêz público, isto é, transformou-se em um interêsse dominante de tôda a sociedade, o Estado é convocado a estabelecer as bases e diretrizes, dento das quais vai intervir no processo e assegurar que as oportunidades educativas se desdobrem regularmente, obedecendo certas condições de justiça e com a eficiência necessária para que todos delas se possam aproveitar. A lei regula a educação pública e, com relação à privada, que deve continuar livre pode dispôr quanto às condições necessárias para a eventual sanção pública de alguns de seus resultados. Lei de educação é lei de direito público no sentido mais exato da palavra". O Professor Anísio Teixeira examina detidamente o capítulo dos recursos para a educação e conclui que êstes devem constituir três fundos: o federal, o estadual e o municipal, todos êles administrados por "Conselhos", organizados nas respectivas órbitas. aponta as normas gerais de aplicação dêsses fundos, mas em momento algum em relação à escola privada. Para o Professor Anísio, finalmente, "uma neblina pedagógica e ideológica nos está impedindo de elaborar uma lei de bases e diretrizes de educação nacional, que deveria ser votada à maneira das leis tão revolucionárias que vimos votando no campo fiscal e financeiro."

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DARCY RIBEIRO – Antropólogo, Professor universitário e coordenador da Divisão de Pesquisas Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, o Professor Darcy Ribeiro é de opinião que só a escola pública é democrática e afirma, analisando o substitutivo Lacerda: "Acho incrível que se aceite, em nossos dias, um projeto tão hostil à escola pública, e que não pretende reformá-la, assegurando-lhe condições para que cumpra o seu papel, mas tão sòmente substituí-la por escolas particulares, ou, mais precisamente, por escolas-emprêsa. Tôda a fundamentação do substitutivo Lacerda se refere à família brasileira e à liberdade de ensino, dando a impressão de que se assenta em ideais democráticos de educação. Mas só a escola pública, efetivamente, garante à família, quero dizer, a tôda família, branca ou negra, rica ou pobre, iguais condições de ingresso. Êste é mesmo um fato histórico, já que a escola pública surgiu precisamente quando a educação deixou de ser um privilégio de poucos para ser uma necessidade de todos, imposta pela necessidade crescente da vida social e pelas exigências opostas – cada vez maiores – de participação de todo o povo na vida nacional". O Professor Darcy Ribeiro adverte ainda que o substitutivo Lacerda quer submeter o Brasil a uma espécie de aristocracia exclusivista, despótica, contraposta à plebe. E conclui dizendo que "o Brasil de hoje se esforça é para negar essa tradição colonial, para constituir uma sociedade cada vez mais democrática, com uma rede escolar aberta a todos e só voltada para a transmissão do saber e preocupada com o preparo do cidadão para o exercício da democracia. E isto só pode ser alcançada com escolas públicas."

Almir de Castro – Diretor de programas da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior: "O projeto do deputado Carlos Lacerda é um conjunto de falsos interêsses. Falsos interêsses religiosos, porque a escola privada não será mais religiosa do que a pública, na qual se ministra a educação religiosa. Falsos interêsses conservadores porque, habitualmente, em todo o mundo, a escola revolucionária não é a pública, mas a privada. Falsos interêsses da família, porque nenhuma escola é mais atenta às condições familiares – de tôdas as famílias – do que a escola pública. Os demais interêsses que ditaram o projeto não serão falsos mas ilegítimos. E êsses são os de canalizar os recursos públicos da educação para a escola privada." Mostrando que o projeto Lacerda pretende "inventar a escola privada mantida pelo Govêrno", O Dr. Almir analisa no substitutivo o aspecto da liberdade de ensino e conclui: "É preciso de uma vez por tôdas esclarecer êsse problema. A educação será livre na medida em que seu processo se fizer mais objetivo e racional, na medida em que a conduzir e inspirar o conhecimento e não o dogma, a rotina, o preconceito, as abusões. Será livre, como a medicina conduzida pela ciência é livre, seja ela do hospital público ou da clínica privada. E deixará de ser livre sempre que houver limitações ao processo do conhecimento e do saber".

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RAUL BITTENCOURT – Três vêzes presidente da Associação Brasileira de Educação, professor universitário e um dos autores do texto da Constituição de 1934. Dizendo preferir, dentre os projetos apresentados à Câmara, o proposto pelo Govêrno, o professor Raul Bittencourt faz quatro restrições ao substitutivo Lacerda, ou sejam: pela "extensão que êle dá ao curso primário com prejuízos para o ensino secundário, que passa a ser desenvolvido em apenas quatro anos"; porque, "se vingado o substitutivo, as escolas normais perderão a sua finalidade, uma vez que elas preparam professôras para enfrentar os problemas psicológicos de crianças e não para ensinar adolescentes que, encaixados no novo sistema, cumprirão um curso primário de oito longos anos"; porque o substitutivo "suprime a cadeira de Filosofia do rol das matérias obrigatórias do curso secundário, o que importará em sensível decréscimo do nível educacional do nosso povo"; e finalmente porque "os dinheiros públicos devem ser, antes de tudo, gastos em serviços públicos, e o substitutivo Lacerda prevê uma fórmula a absurda, utópica mesmo, que só favorecerá ao ensino privado."

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JAYME ABREU – Membro do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e especialista em administração escolar. O professor Jayme Abreu vê o substitutivo Lacerda primeiramente como "uma investida do feroz privatismo nacional, insurgindo-se contra o Estado, como sempre, na medida em que êste, a seu juízo, não lhe defende suficientemente os privilégios de classe". Em seguida, citando o Comitê de Ação Cultural da Organização dos Estados Americanos, mostra que "uma das notas diferenciais dos atuais sistemas educacionais é o caráter de instituição pública que tem a escola pública, especialmente a primária". Depois, transportando para os Estado Unidos, padrão mais alto de liberdade, o problema da educação, revela que "87,5 por cento da população discente primária e 88,5 por cento da secundária freqüentam, naquele pública "a todos acolhe e não discrimina, não rejeita ninguém por ser pobre, favelado, filho de estivador, prêto, socialista, filho de desquitado, protestante, católico, agnóstico ou ateu".

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Após êsses depoimentos, resta-nos apenas lembrar que, mais que qualquer outra, uma greve nacional de professôres particulares está neste momento conturbando a vida do País. Os diretores de escolas, patrões dos professôres, apóiam integralmente a greve de seus empregados, se não declaradamente, pelo menos fazendo-se omissos quanto à necessidade de vê-la terminada. E os alunos, que já fizeram sua greve, ameaçam agora deflagrar uma segunda, desde que prevaleça a idéia do Govêrno de subvencionar os estudos sòmente daqueles que provarem insuficiência de recursos para pagar o aumento de 35 por cento cobrados pelos colégios. Professôres, diretores e alunos de escolas particulares estão, dessa forma, contribuindo, cada um com sua parcela, para que essas mesmas escolas permaneçam de portas cerradas por tempo indeterminado.

Aí está em que resulta, no quadro geral da educação, a escola como negócio.

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