LAGÔA, Ana. A Utopia da educação pública. Entrevista. Jornal do Brasil On-Line. Rio de Janeiro, 18 jul. 1999. Seção Empregos e Educação para o Trabalho.

A Utopia da educação pública

Centenário Anísio Teixeira - Uma pedagogia na medida para as necessidades do Brasil no século 21

- Qual é a atualidade de Anísio Teixeira?
Sylvia Ganem Assmar - A obra de Anísio Teixeira é absolutamente contemporânea. Quando ele pregava a democracia, a universalização, poderia estar falando hoje. Os problemas que ele enfrentou estão todos aí. Os fundo próprios para a escola, a auto-estima da escola, um ensino que não passe cultura inútil, tudo isso existia no tempo de Anísio e está aí hoje. Mas eu queria centrar a contemporaneidade do seu pensamento e da sua ação na questão da valorização da carreira do magistério. Anísio pensou e pensou alto numa escola de qualidade baseada na competência do professor. Essa é nossa batalha atual. É preciso que os educadores tenham a oportunidade de continuar a aprender sempre, possam se graduar, pós-graduar e conhecer o mundo. Sem isso, nunca vamos ter uma escola de qualidade no Brasil.
Carlos Otávio Fiuza Moreira - Anísio é atual em dois sentidos. A questão da democracia, pois Anísio percebeu a necessidade do sistema educacional público de boa qualidade para poder para poder gerar a boa democracia. E a pedagogia que deve criar hábitos úteis para a vida democrática. Isso deve ser retomado por nós professores nas universidades e nas redes de ensino - a idéia de que a escola deve desenvolver hábitos voltados para uma sociedade democrática. Outra questão é a do trabalho. A idéia importante trazida dos Estados Unidos é a relação da educação com o trabalho manual, mexendo com o pavor que a classe média tem trabalhar com as mãos. Uma das piores heranças políticas do país.
Vanilda Paiva - A idéia de educação para a democracia é importante e, Anísio, como educador, carregou a chama dessa utopia. Mas dentro de uma sociedade profundamente autoritária será que é possível construir essa escola democrática? Precisamos manter acessa a chama da utopia. Anísio foi uma pessoa muito importante também por suas ações e não só por seu pensamento. Ele é um quadro de elite capaz de pensar e construir o futuro e é justamente o que nos falta hoje. A educação geral que Anísio valorizava é hoje mais importante do que nunca, porque falar em educação para o trabalho é falar dessa educação geral, que dá a base e, no futuro, será cada vez mais necessária.
- Nos anos 70, o pensamento de Anísio Teixeira foi criticado pelos pedagogos marxistas. Mas Anísio fora afastado de suas funções com o golpe de 64 e considerado comunista por correntes da direita. Afinal, o que há de tão polêmico no pensamento anisiano?
Vanilda - No momento da Escola Nova - década de 20/30 - o pensamento de Anísio pode ser considerado liberal, mas na linha do liberalismo norte-americano da época, que é progressista e acredita que a educação vai mudar o mundo. A prova disso é o impacto profundo das idéias de Anísio sobre o pensamento de Paulo Freire. É a pedagogia crítica pós-Paulo Freire que colocará em questão o progressivismo de Anísio. Não foram os educadores católicos, nem os ligados ao Partido Comunista que tomaram esse rumo. A critica ficou limitada à geração que se formou depois de 68, começou a escrever nos anos 70 e ressuscitou Marx como instrumento de crítica ao que tinha sido produzido antes. Uma coisa é certa, Anísio não era marxista.
Otávio - Mas isso não o faz menos progressista. Concordo que a leitura de Anísio feita nos anos 70 trouxe muitos problemas para as novas gerações que estudam seu pensamento. As primeiras teses de mestrado sobre ele acabam enveredando por um caminho negativo do ponto de vista político. Meu problema com essa leitura é que, sendo uma época em que faltava democracia, foi negativo criticar justamente um educador que falava de democracia.
Vanilda - O que cobram, em suma, é que ele não era marxista. Para os críticos de Anísio teria mais sentido pensar em educação e força de trabalho, do que educação e democracia. Uma crítica, sem dúvida, restritiva. Impedir que o capital subordine a educação aos seus interesses. Essa era a palavra de ordem: liberar o sistema educacional do peso do capital. Por isso, as escolas profissionais eram combatidas - aqui e na Europa, porque eles formariam operários qualificados para as indústrias. Para os críticos, a escola deveria dar educação geral que não levasse necessariamente ao trabalho. O interessante é que, nesse ponto, marxistas e liberais pensam da mesma forma.
Otávio - Anísio se alinhava mais com uma educação em que os trabalhos manuais tinham importância enorme no desenvolvimento da mente. Era a idéia de Dewey, que também tinha preocupação política, visando quebrar a separação entre a escola da mente e a escola das mãos. Isso foi assimilado por Anísio, só que ele trouxe essas idéias para um país de heranças escravocrata em que a hierarquia entre a mente e a mão forte. Educar escravos nunca estivera na pauta dos governos. O que ele traz é a tentativa de superação disso e foi uma das suas maiores contribições. Mas as leituras posteriores levaram a identificar Anísio com as escolas técnicas, esquecendo-se o fundamento político da introdução dos trabalhos manuais na escola.
Sylvia - A formação do indivíduo em todos os sentidos ficou muito clara na criação da Escola-Parque, que dividiu com o Centro Educacional Carneiro Ribeiro as tarefas de educar esse ser humano para a democracia. No projeto do centro educacional estão presentes as práticas que unem mentes e mãos.
- Não seria bom definir bem o que separa educação para o trabalho e educação pelo trabalho?
Vanilda - Há uma grande discussão que remonta a história do surgimento da escola como instrumento do capital. Mas os sistemas de educação, ao se orgnizarem, adquiriram dinâmica própria. Em alguns momentos e países, os sistemas podem ter se tornado funcionais, servindo ao modelo de desenvolvimento econômico e industrial, adestrando, oferecendo cursos rápidos. Mas neste final de século, o que observamos é a vitória das correntes contrárias a esse adestramento. Quem tiver uma formação restrita terá dificuldades na vida futura. A vida futura será cheia de desafios novos, sem a curva ascendentes linear que caracterizou as gerações anteriores no século 20, com uma relação clara entre escolaridade, estatus e renda. Nesse contexto, Anísio é mais que atual.
- Como as idéias da Escola Nova entram no Brasil? Que país era esse que captava idéias educacionais que são atuais até hoje?
Vanilda - As idéias da Escola Nova entram no Brasil no contexto da primeira guerra mundial, as levas de imigrantes, o surto industrial - um período de ebulição, de reformas, de questionamento do ensino provincial. O primeiro seminário educacional aconteceu em 1920. As famílias que podiam pagavam preceptores, periodicamente os jovens eram avaliados no Colégio Pedro II, ou um colégio religioso de grande porte. Dali seguiam para as universidades. Havia um sistema municipal, mas incipiente, em algumas capitais. Tudo era muito precário. Professores davam aulas de camisolão. Em 1920, uma cidade inteira formou dois alunos. Foi nesse contexto que os imigrantes criaram suas próprias escolas para seus filhos. É nesse cenário que as idéias de uma escola universal e de qualidade se encaixam perfeitamente, pois atendem ao anseio das novas classes industriais.
Otávio - Os Pioneiros da Educação, então, tentam criar os primeiros sistemas estaduais e depois o federal. Aí começa o nosso sistema público de ensino, na década de 20. Anísio, muito jovem, foi secretário de Educação na Bahia. E conseguiu um aumento considerável do número de alunos.
Vanilda - Nesse momento ele ainda não tinha ido aos Estados Unidos. Fazia parte de um movimento que começou antes. Em 22, Lourenço Filho saiu de São Paulo e foi fazer a reforma no ensino no Ceará. Capanema está em Minas Gerais, enfim, é um movimento de grandes dimensões. Fernando de Azevedo, que redigiu a carta de 32, será o expoente do Movimento do Pioneiros da Educação. Anísio vai aos Estados Unidos, volta e continua fiel ao programa de Azevedo, na reforma de 1928.
- Alguma coisa está acontecendo nessa sociedade...
Otávio - Cresce a idéia de que o Estado deve criar, gerar, administrar o ensino público e que ele deve ser para todos. Uma conquista tardia, mas uma conquista, sem dúvida. Sarmento já fizera isso no século 19, na Argentina. Falar e agir por essa escola pública foi a grande contribuição dos Pioneiros da Educação.
Vanilda - O país vive um momento liberal quando Anísio chega dos Estados Unidos com as idéias do Dewey. A aliança liberal o toma imediatamente porque há essa identidade. E ele se mantem fiel ao grupo dos pioneiros e seus compromissos com uma educação como instrumento de democracia.
Sylvia - A favor do crescimento da sua obra também há a forma mais global de ver a educação e a imensa atividade que ele exercia. É preciso reverenciar a ousadia dele, ao usar recursos públicos para coisas básicas e fundamentais para a formação e um povo. Isso causava muito espanto. Ele mandou artistas baianos estudarem no exterior, fez com que pintassem painéis revelando a arte desse povo. Educação para ele era tudo. A Escola Parque era uma prova disso, com coisas muito simples e grandiosas. Como o banho para dois mil meninos. Diógenes Rebouças bolou um chuveiro que soltava a primeira água como sabão, e a segunda para enxagüe. Tudo aquilo foi pensado com uma pedagogia, pois Anísio não queria os meninos comendo em fila, queria todos em mesas com pratos de louça, garfo e faca, e isso era educação também.
Otávio - Para ele a educação se dava pela formação de hábitos e não somente pela transmissão direta de conteúdos. Essa era uma educação avançada. Nem hoje é aceita com unanimidade. E chega a ser uma utopia, mesmo que seja positiva. Essa é uma herança que merece ser resgatada: a crença que a escola pode formar hábitos para a democracia. Através da experiência corporal dos hábitos escolares. Isso é muito atual.
- Porque a acusação de comunista?
Vanilda - Em 35 ele sai do governo e se exila na Bahia até 1946. Na ditadura Vargas ele ficou fora do governo. Para o governo que é semi-militar Anísio era um subversivo. Como muitos liberais eram. Em 64 ele volta a ser perseguido por ser liberal. Porque nesse período - final dos anos 40 até 64 - ele foi a principal figura educacional por ter ocupado postos centrais do Ministério da Educação. O Inep cuidava de tudo que dizia respeito à educação primária - da construção à pesquisa. Com a Capes ele interferia no ensino superior. Liberais e comunistas foram perseguidos. Anísio também foi fundador do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), a primeira instituição a ser fechada com o golpe militar. Roland Corbusier, Candido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Alvaro Vieira Pinto e, é claro, Hélio Jaguaribe. Anísio estava em toda essa movimentação, até contraditória, porque envolve católicos, liberais, comunistas, nacionalistas. Todos foram perseguidos pelo golpe. Em 66 eu ainda o encontrei no MEC.
Sylvia - Todos que ousavam ou protestavam tinham que ser suprimidos...
Otávio - A democracia era a principal ameaça. Em dois momentos o projeto anisiano foi derrotado por isso. Na reforma Capanema e nos anos 60. Por isso acredito que, nos anos 70, teria sido muito melhor para o país resgatar Anísio em vez de criticá-lo. Naquela hora precisávamos de democracia. E eu não me refiro à democratização do sistema, no sentido de ampliar as vagas, por isso aconteceu. Eu me refiro às idéias de democracia que ele defendia.
Vanilda - Nós perdemos a batalha nos anos 80, justamente pelo muito que o sistema se expandiu. Perdemos a batalha da qualidade no ensino fundamental. E a qualidade e a quantidade no ensino fundamental. E a qualidade e a quantidade no ensino médio e superior. Acabamos de perder a batalha. Não houve um pensamento extra-econômico que levasse em conta a formação do professor, os investimentos necessários. Não tivemos uma elite que pensasse nisso tudo, nos meios. Lá fora se tem muito essa consciência da batalha perdida pelo Brasil.
Sylvia - Da mesma forma que a elite não tem a capacidade e consciência, o professor também não sabe, não recebe e não participa e sem isso não tem como tocar para frente.

Participantes da mesa redonda

Carlos Otávio Fiuza Moreira
aluno do doutorado da PUC/RJ, Anísio Teixeira: Ciência, Progresso e Educação, apresentada na PUC-RJ, em 1995, com orientação da professora Zaia Brandão.

Vanilda Paiva
Professora da UFRJ, doutorada na Universidade de Frankfurt e dirigiu o Inep entre 1985/86 e dirige hoje o Instituto de Estudos da Cultura e Educação Continuada e publica a revista Contemporaneidade e Educação.

Sylvia Ganem Assmar
Diretora do Instituto Anísio Teixeira, que faz o trabalho de aperfeiçoamento dos professores da rede pública do Estado da Bahia, pedagoga especialista em alfabetização.

Acervo pedagógico será reaberto

O fato mais importante das comemorações do centenário de nascimento de Anísio Teixeira será, sem dúvida, a reabertura do acervo da biblioteca do extinto Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), criado nos 50, quando o educador dirigia o Instituto Nacional de Estudos Pedagógico (Inep).

A reabertura do acervo faz do projeto do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ e da Fundação Anísio Teixeira - Um olhar para o Mundo - Contemporaneidade de Anísio Teixeira. Desenvolvido pelo programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) e pela Biblioteca do CFCH, o programa prevê ainda a realização de uma exposição itinerante sobre a atuação do CBPE e Inep e uma teleconferência com a particapação já confirmada do ex-ministro da Educação do Chile, José Joaquim Brunner, Senador Artur da Távola e os professores Carlos Guilherme Motta (Mackenzie/SP) e Cristóvam Buarque (UNB).

Com a MultiRio - empresa de multimeios da prefeitura do Rio, está sendo realizado documentário sobre a atualidade do pensamento anisiano, com supervisão do cineasta Zelito Viana.

Programação

2 de setembro - Palestra de Josapha Marinho e da presidente do Inep, Maria Helena Castro.

3 de setembro - Mesas-redondas sobre Política Educional, pela manhã e gestão pública de educação, à tarde, com a presença de educadores como Luis Antonio Cunha, Ana Waleska, Clarice Nunes e secretários de estado.

7 de outubro - Teleconferência discutindo Anísio à luz da Globalização, com a participação das universidades brasileiras ligadas em rede.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |