Ação Educacional

   A ação educacional empreendida por Anísio Teixeira foi tão grande em extensão e qualidade que, ao analisá-la, faz-se necessário enfocar várias áreas de abragência - estadual, nacional e internacional - e vários níveis de ensino, pois a sua influência extrapolou as fronteiras da Bahia e do Brasil e a educação recebeu suas contribuições desde a chamada escola primária até a pós-graduação.
   O trabalho no campo da educação que iniciou na Bahia teve tal força e importância que o projetou nacionalmente. A reforma de ensino que dirigiu neste Estado a partir de 1924 é ressaltada pelos historiadores não só pela dimensão, mas também pela perfeita coerência com os princípios pscológicos, biológicos, sociológicos e filosóficos que estão em voga ainda nos dias atuais. Ribeiro faz referência a esta reforma colocando-a entre as grandes reformas educacionais ocorridas nos Estados na década de 20.11
   É interessante frisar a clarividência e o alcance da visão deste homem que há cerca de 60 anos atrás propunha a implantação da "escola primária integral", tal a sua atualidade hoje. A constatação desta atualidade pode ser feita recorrendo-se à verificação de alguns aspectos da Lei nº 1.846, citada por Nagle12, que em 1925 estabelecia as metas e orientações da reforma no ensino baiano. Apresenta-se a seguir as observações que demonstram esta afirmativa e transcreve-se, após, enunciados do artigo 65 desta Lei que a comprovam. Segundo a Lei referida "a escola primária integral" valorizava e estimulava:
- o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças "...buscando exercitar os hábitos de observação e raciocínio";
- a experiência construída pela humanidade ao longo do tempo, e o patriotismo através do estudo do passado do seu próprio país e da língua nacional, "...despertando-lhes o interesse pelos ideais e conquistas da Humanidade, ministrando-lhes noções de literatura e história pátria, fazendo-os manejar a língua portuguesa como instrumento de pensamento e expressão";
- o pleno desenvolvimento do físico das crianças, fazendo alusão ao que a psicologia moderna chama de desenvolvimento do controle sensório-motor, e da acuidade visial, que são condições necessárias para o bom aprendizado da escrita e da leitura, referindo ainda o cuidado com a higiene corporal. "...Guiando-lhes as atividades naturais dos olhos e das mãos mediante formas adequadas de trabalhos práticos e manuais, cuidando, finalmente do seu desenvolvimento físico com os exercícios e jogos organizados e o conhecimento das regras elementares de higiene";
- a adptação do homem ao seu meio ambiente físico e social e a sua capacitação para fazer boa utilização dos recursos que o meio lhe oferece, estimulando o desenvolvimento regional, "...procurando sempre não esquecer a terra e o meio a que a escola deseja servir, utilizando-se o professor de todos os recursos para adaptar o ensino às particularidades da região e do ambiente".
   Estas considerações são o bastante para demonstrar o interesse despertado pela ação de Anísio e a sua projeção no âmbito nacional, pelo reconhecimento da capacidade deste reformador que era então um jovem de apenas 25 anos, e que não havia ainda contactado com Dewey, nem com universidades americanas.
   No Brasil, nos anos 20 e 30 deste século, desenvolveu-se um movimento de discussão e reflexão da escola brasileira, como resultado direto dos debates nos círculos de intelectuais acontecidos após a 1ª Guerra Mundial. Tratava-se de debates informais entre intelectuais, em sua maioria educadores. Destes, alguns haviam estudado fora do País e analisavam a situação escolar nacional à luz dos modernos conhecimentos adquiridos, o que gerou uma renovação de idéias e de técnicas educacionais. O grupo que resultou daí promoveu a maior campanha pública sobre educação de que se tem notícia na história brasileira. Todos os meios de comunicação eram utilizados. Como conseqüência natural deste processo, foi criada a Associação Brasileira de Educação, que promoveu, a partir de 1927, as famosas Conferências Nacionais Sobre Educação. O povo acompanhava pelos jornais. Na cúpula deste movimento, destacam-se, entre outras, as figuras de Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira.
   As críticas feitas ao trabalho por eles desenvolvido eram calcadas principalmente na alegação de que se estava processando a americanização da educação brasileira. A este respeito, pode-se contrapor o fato de que a educação neste País sempre esteve antes influenciada por outras metrópoles, como se pode verificar em obras de especialistas como Cardoso sobre o processo de dependência nas sociedades latino-americanas13. O que acontecia é que nesta época se tentava um trabalho pioneiro de nacionalização do processo educativo, sem contudo descuidar dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos em outras paragens, diminuindo o ritmo da defasagem cultural, como se pode observar na afirmação de outro grande estudioso, já falecido, especialista na teoria da dependência aplicada à educação, Manfredo Berger: "Mesmo que ainda sob a influência e motivação externa, observa-se aqui uma situação em que pela primeira vez a realidade educacional brasileira é criticamente pesada por brasileiros".14 Além disso, a influência de John Dewey, que chamavam de "americanização", era então projetada nos países mais evoluídos do mundo. Sua teoria tem valor universal e está acima de sectarismos locais.
   A influência do movimento destes brasileiros é apresentada concretamente ao povo e ao governo, quando o Manifest dos Pioneiros da Educação Nova é lançado em 1932 e referendado pelos maiores nomes da educação brasileira, propondo a reconstrução da educação nacional, como resultado prático da IV Conferência Nacional de Educação ocorrida em 1931. Neste documento, tão visceralmente importante para a evolução da educação neste País, foram apresentadas a teoria pedagógica que fundamentava a chamada Escola Nova e as idéias políticas necessária à viabilização da proposta de renovação. As linhas mestras do esboço do programa educacional contido no manifesto e apresentadas por Ribeiro15 são as seguintes:

  1. Estabelecimento de um sistema completo, com uma estrutura orgânica, conforme as necessidades brasileiras, as novas diretrizes econômicas e sociais da civilização atual e os princípios gerais de educação como função social, estatização do ensino e educação integral gratuita e obrigatória dos 7 a 12 anos;

 

  1. Organização da escola secundária para os alunos de 12 a 18 anos em tipo flexível de nítida finalidade social como escola para o pvp:

 

  1. Desenvolvimento da escola técnica profissioanl, de nível secundário e superior, como base da economia nacional, com a necessária variedade de tipos e escolas;

 

  1. Organização de medidas e instituições de psicotécnica e orientação profissional;

 

  1. Criação de Universidades, de tal maneira organizadas e aparelhadas, que possam exercer a tríplice função que lhes é essencial;

 

  1. Criação de fundos escolares ou especiais (autonomia econômica) destinados à manutenção e desenvolvimento da educação em todos os graus;

 

  1. Fiscalização de todas as instituições particulares de ensino que cooperação com o Estado na obra de Educação e Cultura;

 

  1. Desenvovilmento das instituições de educação e de assistência física e psíquica à criança na idade pré-escolar e de todas as instituições complementares pré-escolares e pós-escolares;

 

  1. Reorganização da administração escolar e dos serviços técnicos de ensino em todos os departamentos de ensino, visando rapidez, eficiência, controle e aperfeiçoamento;

 

  1. Reconstrução do sistema educacional em bases que possam contribuir para a interpenetração das classes sociais e formação de uma sociedade humana mais justa e que tenha por objeto a organização da escola unificada, desde o Jardim da Infância à Universidade.

   Os acontecimentos apresentados ocorreram no período histórico que corresponde à fase da 1ª República e representaram mudanças muito significativas que suscitaram manifestações contrárias dos descontentes, que não demoraram a aparecer. Todo movimento de renovação encontra nos setores mais conservadores uma certa reação de contrariedade; neste caso específico, alguns educadores católicos, bastante reacionários, lidram um posicionamento contra as mudanças apresentadas e fizeram fogo cerrado contra aspectos como estatização e laicidade do ensino.
   Grande parte desta oposição foi canalizada para Anísio e ficou concentrada em sua pessoa e em sua teoria, por ser visto como responsável pela divulgação das teorias de Dewey e Kilpatrick. Anísio Teixeira ficou então sendo considerado um inimigo ideológico a que se deve combater por representar um perigo à doutrina cristã. Esta animosidade perdurou por bastante tempo e, posteriormente, já em 1968, ficou documentada quando um grupo de educadores católicos publicou um documento, com um teor nitidamente panfletário, de incitamento da opinião pública contra ele, com o título "Educação segundo Anísio Teixeira, a Filosofia e a Igreja".16
   A ação desenvolvida como titular da pasta da Educação no Rio de Janeiro destacava-se por dois fatos principais: a reforma educacional e a fundação da Universidade do Distrito Federal. A linha reformista que se iniciou com o trabalho na Bahia não parou aí, mas tornou-se contínua e mais forte através da ação no Rio de Janeiro. Várias foram as medidas tomadas, e, entre estas, pode-se citar: implantação de novos métodos de administração escolar, consideração dos problemas da educação à luz dos novos conhecimentos científicos, criação de instituições educacionais mais sólidas, enriquecimento do conteúdo básico do programa escolar, especialização dos professores primários e ampliação do sistema escolar. Neste caso, deve-se frisar a articulaçào entre o ensino técnico-profissional secundário e o ensino secundário acadêmico, garantindo a equivalência de estudos. Para a mentalidade vigente na época isto funcionou como uma verdadeira revolução educacional, pois a dualidade de ensino (técnico-profissional para as camadas populares; acadêmico para as elites) ameaçava ser diminuída. Era preciso muita segurança ideológica para o administrador tomar esta posição e sobretudo coragem para assumi-la e levá-la avante. Foi uma verdadeira "proeza" no dizer de Gildásio Amado, que argumenta: "antecipava-se Anísio, com esta providência, aos planos que na Europa naquela época mal se esboçavam nas idéias de reduzidos grupos de educadores no sentido de uma maior aproximação dos ensinos geral e profissionais, de uma escola média menos diferenciada em ramos independentes e inconfudíveis,"17
   A preocupação com a formação de professores foi uma constante em seu trabalho, e nesta época propôs a reorganização do ensino normal, visando uma melhor capacitação dos doentes do ensino primário.
   Foi então que se caracterizou mais claramente a estruturação proposta no sentido de organizar os vários graus de ensino, aticulando-os entre si, desde o ensino básico até os estudos superiores.
Anísio foi o primeiro brasileiro a projetar positivamente o nome do Brasil no exterior, no campo da educação. Os vários títulos e condecorações que recebeu em outros países representam a glória não apenas para ele, mas, por extensão, para o seu povo e seu País. Afinal, países com nível de desenvolvimento como o da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, para reconhecerem e premiarem o talento e capacidade de um representante do terceiro mundo, é preciso que nele encontrem capacidades realmente excepcionais.
   Foi também o grande dinamizador da pesquisa educacional e incentivador do aprofundamento de estudos a nível de pós-graduação. Durente a sua gestão à frente do INEP e da CAPES, esta preocupação ficou patente. Ele, que descobrira pela própria experiência pessoal a importância da pesquisa e do estudo, batalhou para oferecer estas oportunidades aos seus colegas de profissào.
   A ênfase que deu ao ensino superior tese o seu primeiro grande momento com a criação da Universidade do Distrito Federal, mas o segundo ponto culminante se deu quando, juntamente com Darcy Ribeiro, Heron de Alencar e outros, deu forma ao grande "Projeto Nacional da Intelectualidade Brasileira", com a criação da Universidade de Brasília. A tarefa de renovação universitária feita então é das mais belas páginas da história da educação no Brasil. Anísio, eleito em 1963 para dirigente máximo desta comunidade universitária, nela ficou apenas até 1964, em conseqüência da mudança política que se verificava no País. Mas a marca da sua administração e a força de seu talento ficaram impressos indelevelmente no meio universitário da nova capital. Ao publicar a obra A universidade necessária, em que resume o histórico e a fundamentação deste projeto de ensino superior, Darcy Ribeiro dedicou-a à memória de Anísio Teixeira e de Heron de Alencar.19
   Anísio foi um apóstolo da educação, como alguns afirmaram, mas principalmente foi o patriota, o filho devotado à pátria querida a sque serviu com entusiasmo e espírito denodado, sem esmorecer diante dos que o combatiam ou perseguiam. A educação foi o seu campo de batalha, onde, travando luta contra o analfabetismo e a ignorância, tentava garantir a vitória da razão na conquista da paz. Paz que via na convivência fraterna do seu povo, na democracia, onde a educação seria direito de todos e dever do Estado. Sobre a sua vivência de patriotismo, já alguém afirmara que sua vida fora "uma vida luminosa de saber, de probidade intelectual, de amor à juventude, de bravura cívica, de devoção ao Brasil. A vida de um mestre dos mestres, de um devassador de rumos, de um plasmador de grandezas, de um criador de futuros".20
   Anísio foi também o mestre, o guia de toda uma geração de intelectuais. Exerceu, assim a função de educador informal que, a exemplo de Sócrates na antiga Grécia, tinha sempre em torno de si aquelas inteligências que buscavam a orientação do mestre mais sábio e mais experiente, com quem mantinham, além da amizade, admiração e respeito, uma relação dialética em busca da verdade. Mesmo no final da vida, quando já não exercia cargos administrativos, sempre foi considerado como o mestre que estava sempre pronto a orientar os amigos, que nele encontravam um manancial de conhecimentos aliado à agilidade e coerência de raciocínio sem a petulância da soberba. Observe-se, a este respeito, o depoimento de um destes discípulos: "A circunstância de ter deixado postos executivos não retirou de Anísio a chefia de uma verdadeira escola, orientando os estudos pedagógicos através de livros, artigos e sobretudo de suas extraordinárias aulas informais. Só os que as ouviam podem dizer o que eram simples conversas com Anísio Teixeira. ós, os que tínhamos o privilégio de participar delas com freqüência, as designávamos 'Universidade Anísio Teixeira'. Com isso exprimíamos a profundidade dos conceitos, o proveito que todos tirávamos dos improvisos daquela máquina de pensar, acionada pelos mais variados estímulos."21
   Finalmente, pode-se afirmar que a literatura educacional produzida por Anísio se apresenta como um acervo de documentos valiosos que analisa e reflete todo um período da evolução da educação brasileira. Esta literatura será objeto de consideração a seguir.
   A avaliação de aspectos tão grandiosos e variados de uma ação educacional que se apresenta tão rica, eclética e produtiva, demonstra a força e o valor deste educador que foi acima de tudo um trabalhador idealista, um batalhador tenaz e obstinado em favor do homem brasileiro.

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