TEIXEIRA, Anísio. Carta a San Tiago Dantas, Rio de Janeiro, 21 jul. 1959.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 32.04.22/3.
21 de julho 1959
Prezado amigo
San Tiago Dantas
Com o meu regresso somente hoje da
Bahia, não pude tomar conhecimento de sua carta a tempo de lhe falar no fim de semana. De
ontem para hoje não consegui ainda encontrá-lo.
Reconheço que me retraí de comparecer espontaneamente à Comissão de Educação,
devido à campanha que venho sofrendo do grupo que julgou usado o momento para a conquista
da escola, a fim de pô-la a serviço do que se vem chamando de "grupos sociais"
e que se advinha o que seja, mas, de forma antes implícita do que explícita.
Não me cabendo, por direito, participar da Comissão, ou da subcomissão, só ali poderia
comparecer se convocado. Recebo agora essa convocação de sua parte, e que muito me
honrou, mas V. mesmo reconhece que devo, talvez, preferir fazer-me representar. Por isto
mesmo, pedi hoje ao Jayme Abreu e ao Darcy Ribeiro que fizessem aí, na subcomissão, as
minhas vezes. Antes já pedira ao Prof. Geraldo Bastos Silva, para representar-me perante
esse grupo de trabalho.
Reconheço quanto está sendo penoso o esforço da subcomissão de debater lei de tal
importância para o país, em meio à obscura e equívoca luta de interesses em que se
está querendo envolver a escola .
Embora cumpra reconhecer que o consagrado pela subcomissão é melhor que o chamado
substitutivo Lacerda, devo-lhe dizer que, a meu ver, parcela substancial de obscuridade
intencional está sendo mantida no projeto, para que se possa conseguir, na
interpretação ou na regulamentação da lei, aquilo que não se consegue aprovar à
plena luz do debate legislativo.
Senão veja:
"Art. 1º - A educação nacional... tem por fins
Que quererá dizer isto? que é ter
por fim a compreensão dos direitos e deveres? Que será em lei esta expressão : criatura
humana? Que serão esses "grupos sociais"? E seus direitos e deveres?
Não lhe parece clara a intenção de levar para a lei uma terminologia imprópria e
obscura?
Felizmente, na alínea ( ) do mesmo artigo aparece a expressão "indivíduo"...
É um descanso para a inteligência.
"Art.3º - O direito à educação é assegurado a todos:
I -
..............................................................................................
II - pela obrigação do Estado de fornecer recursos técnicos e financeiros
indispensáveis para que a família se desobrigue dos encargos da educação quando
provada a insuficiência de meios, afim de que fiquem asseguradas iguais oportunidades
para todos."
Que quererá dizer "obrigação" "de fornecer recursos técnicos e
financeiros"? Por que designar desse modo a idéia de "bolsas"? Por que
não ressalvar: "no caso de falta de escola pública?" É evidente a intenção
de obscuridade, de equivocidade, de por em lei algo que permita interpretações
cerebrinas.
As leis inglesas costumam ser precedidas de uma definição de seus termos. Nós, ao que
parece, temos a idéia oposta.
"Art. 4º - "É......vetado ao Estado favorecer o monopólio do ensino."
Que quererá dizer esse favorecer, sem nenhuma qualificação?
Como o Distrito Federal tem a formação de seus professores públicos restringida às
escolas oficiais, o que hoje é direito não será amanhã, em face da lei, considerado
como importando em "favorecer" o monopólio? E a simples criação de escolas
públicas suficientes para a população escolar não será também caso de se considerar
como "favorecimento" do monopólio do ensino? O termo é evidentemente vago,
fluído e obscuro.
"Art. 5º - "Os Poderes Públicos assegurarão igualdade de condições às
escolas oficiais e às particulares:
Desaparecem com este artigo
todas as diferenças reais entre o Instituto de Educação do Distrito Federal e a pior
escola particular do Rio. Entre a Faculdade de Medicina de São Paulo e do Rio e a escola
de medicina de qualquer iniciativa particular. É a terrível validação legal das coisas
mais diversas e a proibição legal de se reconhecerem as diferenças.
E aquele "adequado" da alínea a), que será? É o vago intencional,
para se fazer depois o que se quiser ?
"Art. 10 - A inspeção dos estabelecimentos particulares limitar-se-á ao mínimo
imprescindível a assegurar o cumprimento das exigências legais."
A que mandados de segurança não dará direito este artigo? Qual será o "mínimo
imprescindível"? A intenção do artigo não é má, mas cabia exprimi-la de outro
modo. De maneira a dar-lhe sentido positivo e não negativo. E a lembrar o dever da
inspeção de ser estimulante, de distinguir o melhor do pior, de classificar o modo e o
nível em que "as exigências legais" estejam sendo cumpridas.
"Art. 11 - Os Estados e o Distrito Federal ficam obrigados a comunicar a
instituição e o reconhecimento das escolas ao Ministério da Educação e Cultura, para
os devidos efeitos."
Que efeitos serão estes? Por que não mencioná-los? Por que não indicar os artigos em
que acaso estejam definidos? Não será mais uma obscuridade propositada?
Art. 12 - Reproduz-se a igualdade para qualquer fim entre a escola pública e a
particular. Essa igualdade, assim estabelecida por lei, é tanto mais de estranhar quanto
nos artigos 48 e 49 se estabelece expressamente uma diferença no provimento dos cargos do
magistério público e particular. A realidade é que nem as escolas públicas são todas
iguais, nem, muito menos, iguais às particulares. O princípio construtivo a defender
seria exatamente o oposto, isto é, o de classificar as escolas públicas ou particulares
- em boas, regulares, satisfatórias e deficientes, e admitir o direito de qualquer
escola, pública ou particular, e, na medida dessa classificação, obter regalias e
vantagens e ver reconhecidas as diferenças...
Mas a lei toda está fundada na suspeita contra a autoridade pública.
Art. 16 - Não sei se nesse artigo se deve sublinhar o pedantismo ou a obscuridade. Mas
sobretudo é grave ignorar-se completamente o problema de ensinar a pensar, fim maior e
constante de toda a educação em todos os níveis.
Adiante, na parte referente ao ensino médio, fala-se em formação do adolescente. Por
que não se cogita da formação da infância?
Art. 20 - Que serviços serão estes? Devem ser as famigeradas "campanhas"...
Por que não existirão também nos meios urbanos?
Art. 26 - Repete-se a terminologia do projeto de lei orgânica do ensino secundário
"disciplina ou matéria e prática educativa". A obscuridade desse dualismo é
patente. Será que a disciplina ou matéria não é educativa?
Art. 28 - parágrafo único - Nesse dispositivo pune-se o aluno que tenha feito o sexto
ano primário com a perda de um ano de estudos. Aos 11 anos pode entrar no 1º ano
secundário. Mas aos 12 não poderá entrar senão no 2º ano secundário. É evidente que
se condenou o 6º ano primário a morrer por falta de alunos.
Art.30 - Normas sobre:
II - elaboração e cumprimento integral dos programas.
Que quererá dizer isto?
III - "processo educativo que desenvolva " a formação moral e cívica.
Que se entende por isto? ( O artigo visa a fixar normas).
VII - expedição de documentos legais.
Também isto será norma?
Art.32, alínea c - Cursos noturnos com estruturação própria, "segundo normas
gerais baixadas pela administração do ensino ".
Que administração de ensino? Por certo, a local. E por que não deixar expresso?
Art.38, par.1º - A especial atenção do estudo do português "em seus aspectos
históricos, lingüísticos e literários" irá fazer dessa especial atenção tudo
menos o uso inteligente da língua. Não bastaria dizer estudo do português?
Capítulo III- Do ensino profissional - A União aprovou recentemente uma ótima lei do
ensino industrial. Seria da maior conveniência que este capítulo refletisse as normas
gerais daquela lei. Acontece que foi o Congresso que votou a lei referida: única, aliás,
que logrou ser aprovada, porque o assunto não feria os interesses dos educadores
privados, que não se dignam de considerar esse gênero de ensino.
Título VII - Cap. I - Da formação do magistério - O capítulo mantém os dualismos de
regentes e professores primários e de professor rural e urbano, e, no que parece, reduz
os Institutos de Educação a cursos de especialização e aperfeiçoamento. Muito se
teria para dizer sobre tudo isto.
Art.46 - Reproduz-se aí a consagração da igualdade entre a escola pública e a escola
privada, com o que, parece, se visa imediatamente, todos os Institutos de Educação.
Art.47 - Mantém a formação de professores de ensino médio nas Faculdades de Filosofia,
quando os professores dos ginásios puderem também ser formados pelos Institutos de
Educação e os de colégios somente pelas Faculdades de Filosofia.
Art. 48 e 49 - São uma rica demonstração das diferenças reais e legalmente permitidas
entre escolas particulares e públicas, apenas de igualdade, para todos os fins, dos
respectivos estudos.
Os artigos parecem primordiais para indicar que a lei terá sido feita pelos
representantes dos colégios particulares, já com a respectiva representação adequada
na subcomissão.
Como vê, meu caro San Tiago Dantas, a lei ainda ficou, a despeito de seu esforço,
marcada pelo espírito dos interesses que presidiram a elaboração do absurdo
substitutivo Lacerda.
Restar-me-ia o conforto de sua emenda n.º 49, para que eu chamo atenção, e a que dou
meu integral apoio. Substituiria apenas o termo oficial por pública, quando
diz "estabelecimentos oficiais de duas categorias". No mais, ética.
Será uma grande esperança ter esse artigo na complexa e tortuosa lei que as
circunstâncias nos estão compelindo a ver votar...
Com muitos agradecimentos,
o seu amigo e constante admirador
Anísio S. Teixeira