É preciso recordar que a universidade moderna, com a definitiva introdução da ciência experimental no seu campo de estudos, é desenvolvimento do século XIX, só havendo sido generalizada no último quartel desse século. À universidade escolástica sucede a universidade clássica, com os estudos das literaturas greco-latinas, de matemática e filosofia (comprcendendo ciência) e da história, do que Oxford e Cambridge são os grandes exemplos. Os estudos históricos são grande inovação, introduzidos pela primeira vez em 1736 na Universidade Gottingen, na Alemanha.
O Brasil tem experiência da universidade escolástica e, depois, da universidade reformada de Pombal. Esta já era a universidade clássica, em seus reflexos do iluminismo, mas não a universidade de ciência experimental. Fora disto, tinhamos a vivência do ensino profissional para o clero, os legistas e os médicos.
Com as nossas escolas profissionais isoladas, ficamos com o ensino universitário de tipo profissional, mas não chegamos à universidade de Humboldt, nem sequer a Oxford, com o estudo desenvolvido dos clàssicos e da história. No século XIX, com o Colégio Pedro II, tivemos o estudo propedêutico do latim e do grego e o estudo da história no nível secundário, sem o levarmos ao nível superior.
Esta parece-me a lacuna mais significativa de nosso sistema escolar. Mantivemos em todo o Império e até o primeiro terço do século XX ensino secundário do tipo eclético-estudos clássicos, no sentido de inclusão do grego e do latim, e geografia, história e ciência-sem nenhuma formação de professores em nível superior, nem para os estudos clássicos e históricos, nem para ciência. No ensino superior, só dispunhamos de escolas profissionais, isto é, de ciências aplicadas e formação vocacional.
Não é difícil prever as consequências dessa falha fundamental. A chamada cultura humanística de estudos clássicos e históricos, sem a alimentação e a coordenação que só a universidade lhe podia, sobreviveu apenas devido aos esforços autodidáticos, perdendo qualquer caráter de disciplina e séria formação intelectual. Sobrevivendo a cultura científica experimental, também não a tivemos na universidade, salvo como pura cultura profissional de ciência aplicada, a qual, só na medicina, logrou de certo modo desenvolver-se, criando o nosso único corpo de homens de ciência, limitados à area de conhecimentos aplicados.
Acredito que estejam aí as deficiências maiores dos estudos secundários e superiores do Brasil, estudos, afinal, formadores da inteligên- cia e da cultura nacional. Até a Independência, a nossa cultura era a que nos dera a Universidade de Coimbra, duplamente afastada do que se poderia chamar cultura brasileira: primeiro, pelo caráter universal da cultura escolástica, depois por ser oriunda de uma universidade estrangeira, embora de língua portuguesa. Os residuos dessa cultura são contudo o que viemos a ter durante o século XIX.
Entramos então, num periodo de equivocos e confusão, recebendo da Europa e, sobretudo da França, as idéias gerais que ali se elaboravam sobre o pensamento moderno, filosófico e cientifico, mas não tendo no país o ensino e a instrução organizados nesses campos de cultura geral e especializada.
Veja-se bem que a Europa saíra do século XVIII para o século XIX com
as suas universidades reformadas para o desenvolvimento das culturas nacionais, que sucediam à cu]tura universalista da Idade Média. Não esqueçamos que esse é o sentido da universidade germânica de Humboldt e, não menos, o da universidade francesa e inglesa. O ensino na língua vernácula e os estudos históricos, juntamente com os progressos dos estudos matemáticos e científicos, e o progressivo estudo das literaturas nacionais, aliado ao das literaturas grega e latina, faziam dessas universidades, embora ainda um tanto alheias à ciência propriamente experimental, instrumentos capazes de nutrir e dirigir a cultura nacional.
A nossa situação era toda diversa. Até 1800, por mal ou por bem,tínhamos a Universidade de Coimbra, reformada no último quartel do século XVIII pelo iluminismo de Pombal, como fonte central de nossa cultura, fonte ampliada com os contatos com a Europa, onde iam os graduados de Coimbra completar a sua formação, de que é um dos melhores exemplos o nosso José Bonifácio. Toda essa cultura não era nacional, mas tinha sua integridade e suas possibilidades de desenvolvimento.
No século XIX, cortamos, como era natural, essa articulação. Criamos nossas escolas superiores puramente profissionais e mantivemos um ensino secundário de tipo clássico e acadêmico. Mas, onde as fontes para o preparo de professores para esses dois tipos de ensino? Com os resíduos da cultura que trazíamos do periodo colonial, íamos manter tais escolas, mas como iríamos preparar os seus professores? Tivemos que confiar as fontes de nossa cultura ao puro autodidatismo, pela leitura dos livros estrangeiros que as novas condições de difusão da cultura nos viriam trazer e pela possibilidade de viagens à Europa.
Ficam, desse modo, perfeitamente claros os motivos do que costumamos ehamar a alienação da cultura nacional e os equívocos relativos à própria cultura geral de nossa época, como a hostilidade à universidade e a repentina ênfase positivista dos começos da República, com idêntica hostilidade à universidade. Não só não criamos as fontes que iriam gerar a cultura nacional - a universidade com estudos superiores da cultura humanística e histórica e, depois, com a cultura científica (não-profissional)—como éramos contra a existência dessas fontes, esperando ou supondo que a cultura profissional de escolas de medicina, de direito e de engenharia nos daria, não se sabe como, uma cultura nacional.
Era tão grave a lacuna, que certas deformações seriam inevitáveis. Uma delas, sem dúvida, foi a relativa perda de caráter profissional das próprias escolas profissionais. As escolas superiores isoladas perderam seu caráter estritamente profissional e tenderam a se fazer escolas gerais de cultura jurídica e social (as de direito), de cultura biológica e médica geral (as de medicina), de cultura matemática, física e de engenharia politécnica (as de engenharia). Faltando a formação intelectual acadêmica, pelos estudos sistemáticos desinteressados, não tinha como o brasileiro obter a chamada cultura acadêmica, que lhe daria a verdadeira disciplina intelectual dos estudos avançados em qualquer campo de cultura especializada ou geral.
Mas, além disso, há a notar o caráter inevitavelmente alienado que havia de ter toda a cultura, que passamos a formar pela assimilação dos produtos da cultura européia, fosse francesa ou alemã, ou inglesa, por intermédio das escolas isoladas superiores. O ensino superior era um ensino de informação sobre a cultura estrangeira, por professores por vezes brilhantes, mas em geral repetidores superficiais, que dispunham de um conhecimento que não haviam construído e de cuja elaboração não tinham a vivência. Dessas aulas-conferências passávamos ao autodidatismo, outra forma de cultura pela informação, agravada pelo inevitável fragmentarismo das leituras, naturalmente acidentais, do livro estrangeiro, que nos punha em contato com a cultura européia, estrangeira ao nosso meio e marcada pelo nacionalismo de cada uma de suas fontes. Caracterizávamos, assim, o intelectual brasileiro pelas origens de suas leituras: havia o mais geral de cultura francesa, depois o de cultura alemã, e de cultura inglesa e, mais raro, o de cultura americana (geralmente, somente em cultura política ou constitucional). Os historiadores e filólogos talvez se pudessem identificar como de cultura portuguesa.
Tão profundo era es se traço estrangeiro da cultura do brasileiro que suas obras, mesmo quando na literatura e no romance, não só traem a influência da outra cultura a que se teria filiado o autor, como revelam um tom de espectador, ou observador distante, e não de participante da cultura nacional, que, de qualquer modo, vinha-se elaborando no seio do povo brasileiro. Os livros e romances que verdadeiramente refletem originalmente a vida nacional e ainda assim com certa linearidade e falta substancial de densidade são, dominantemente, posteriores a 1920, salvo exceções marcantes e singulares, como, para citar um exemplo, Euclides da Cunha com Os sertões. Em história, Capistrano de Abreu e João Ribeiro se destacam com obras nacionais. Os demais são como estrangeiros escrevendo sobre o Brasil.
O contraste com os Estados Unidos merece ser notado. Também os Estados Unidos nasceram como colônia inglesa. Suas instituições políticas e educacionais tinham sua origem na Inglaterra. Mas a independência fez o país voltar-se sobre si mesmo. E partindo da experiência colonial, que em New England já se tinha formado com originalidade no sentimento de igualdade democrática, o país lança-se a uma aventura política e institucional substancialmente comparável à experiência européia, sem os resíduos da cultura feudal. E como a educação é, desde o princípio, depois da instituição política, a sua instituição fundamental, registra-se na educação um desenvolvimento próprio e novo, ali se operando a criação da escola primária universal (que era novidade tanto para a Europa como para o continente americano), de uma escola secundária nova (incluindo todos os alunos e todos os tipos de ensino) e uma universidade, também nova, dominada pelo espírito pragmático e científico e com singular ampliação de funções. Deste modo, o país fez-se independente e lançou as bases de um sistema de cultura adequado à formação da cultura nacional e inspirado por um pragmatismo que o predispunha à revolução científica em marcha. Nem sempre se salienta que os Estados Unidos não eram apenas uma inovação política, mas uma inovação em educação e cultura de proporções equivalentes às do governo democrático.
Costuma-se dizer que, em cultura geral, a América Latina era, nos começos do século XIX, mais desenvolvida do que os Estados Unidos, mas isto representa uma observação marcadamente superficial, se se tem em vista que a época era de renovação da cultura e não de apoio à cultura anterior em transformação, representada na América Latina pelas suas universidades escolásticas, ou verbalistas e decadentes e, no Brasil, pelas suas modestíssimas escolas profissionais isoladas.
Nos princípios do século XIX, o mundo estava vivendo época que lembraria a dos séculos XI e XII, quando se iniciaram a reformulação radical e a consolidação da cultura medieval, o que nos deu a universidade desse tempo. Agora, nos começos do século XIX, temos a Universidade de Berlim como pioneira da universidade de pesquisa no campo das humanidades e das nascentes ciências físicas e naturais. Não houve ruptura radical com a cultura anterior, mas uma atitude nova de pesquisa das próprias raízes dessa cultura, sendo desnecessário sublinhar que a universidade alemã era de pesquisa no sentido amplo e não, ainda, da pesquisa experimental, como veio depois a desenvolver-se. Já era a universidade moderna, porque visava reelaborar o conhecimento humano e dar-lhe sentido nacional e não apenas transmitir o conhecimento universal existente. A cultura moderna tinha de ser formulada pela pesquisa para poder ser ensinada. Sem a universidade como centro de descoberta e de reformulação do conhecimento e como órgão nacional elaborador de cada cultura nacional, não seria possível a difusão pelas escolas comuns (primárias e secundárias) da cultura necessária ao desenvolvimento da nação, nem também a formação acadêmica do novo intelectual, do novo homem "culto" nacional.
Foi isto que, paradoxalmente, escapou aos fundadores da nossa independência, apesar da aparente maturidade com que discutiam os problemas políticos da época, levando afinal o pais a implantar um regime de monarquia constitucional e, depois, com a queda do Império, um regime republicano.
Augusto Comte que, então, veio a ter influência tão acentuada entre os republicanos, era uma das figuras capitais dessa transformação do pensamento humano, sendo sua oposição à universidade então existente uma oposição ao seu programa, seus métodos, sua filosofia e seus preconceitos, jamais à necessidade de estudos superiores completos e integrais para a reconstrução da cultura humana.
O acidente da influência positivista no Brasil é uma ilustração dos perigos do autodidatismo, com a tentativa de inserção do pensamento de um filósofo numa cultura em que esse pensamento não era objeto do estudo, nem havia sido incorporado à cultura nacional.
Ninguém nega a profunda influência de Comte no pensamento moderno, de que ele é um dos grandes formuladores, não se restringindo aquela influência à França, mas estendendo-se à Inglaterra e a todo o mundo, jamais sendo possível a qualquer nação tomá-la como oposta à universidade. Tratava-se de reformar a universidade e não de suprimi-la.
Seja Comte, seja Humboldt, seja Newman, o que se debatia no século XIX era a nova universidade, devotada à pesquisa e à ciência, que iria reformular o conhecimento humano em todos os campos do saber e, além disto, criar a consciência das culturas nacionais, em face do ressurgimento das línguas vernáculas na cultura e do surgimento das nações para seu apogeu presente. Saíamos da cultura greco-latina para a cultura vernácula, primeiro; depois para a cultura nacional, e por fim, para a cultura científica, e foi todo esse movimento que o Brasil ignorou, vivendo 114 anos, de 1808 a 1922, sem as instituições destinadas a formular e a ministrar, no nível superior, a cultura nacional e a cultura cientifica pura, ou básica, ou "desinteressada", no sentido de não apenas aplicada.
Dir-se-ia que não poderia ser de outro modo. Que as condições do Brasil determinavam que assim fosse. Mas resta explicar por que as condições eram o que eram. Os brasileiros formados em Coimbra eram tão "cultos" quanto os portugueses. Um brasileiro nascido em Pernambuco é o reformador da Universidade de Coimbra, ao tempo de Pombal. Os brasileiros educados em Coimbra eram portugueses envolvidos, como qualquer outro nascido em Portugal, nos negócios do Estado e do Império. José Bonifácio era professor na Universidade de Coimbra e funcionário português. Colaborando íntima e influentemente na Independência, como explicar-se faltar-lhe a consciência da reconstrução institucional que se imporia para a formação da nação brasileira? Todo o problema parecia ser o da mudança de governo. Destacava-se o Brasil da Metrópole, passava a ter um governo autônomo - e tudo estava feito.
Sucedia, porém, que a província brasileira não tinha nas instituições raízes que geram a cultura, e, além disto, esta estava em profunda transformação. Recebia antes, o Brasil, essa cultura de Portugal. Com a Independência, esse contato, que era, de qualquer modo, profundo e identificado com a vida colonial, passa a ser a dos contatos com a Europa, pelos livros e pelas viagens ocasionais. A cultura, que sempre fora buscada no estrangeiro, primeiro na Metrópole, e agora nas capitais européias e nos livros, ficou mais estrangeira do que nunca. Não só isto, como já aludi. Passou a ser uma cultura pelo contato com produtos da cultura estrangeira, sem nenhuma participação nem vivência dos métodos, disciplina e prática da elaboração desses produtos. Ficou, por conseguinte, mais remoto e menos integrante o processo cultural brasileiro. O aspecto alienante foi acentuado, perdendo-se o seu possível poder de atuação sobre o real desenvolvimento nacional, que entrou a processar-se espontaneamente num laissez-foire que se fez cada vez mais inexpressivo e apagado, só ocorrendo manifestações de vida pelas suas incoerências mais gritantes. A posição do intelectual no Brasil é, em todo esse período, a de um espectador complacente ou irritado, mas fundamentalmente descrente da vida nacional e impotente. A fórmula de que "no Brasil, é assim mesmo" fica subjacente e a vida continua à espera de acidentes ou crises. A própria curiosidade pelo Brasil é muito mais de estrangeiros do que dele próprio. Essa singular esterilidade da inteligência nacional não se pode explicar se não por esse foto da cultura ser um produto de outros países, importado para uso pessoal de um pequeno grupo de beletristas... Isto explica também a pequena importância que têm, no fim de contas, os poucos que sentiram tudo isso e deram, por vezes, expressão a seu desgosto ou seu protesto em documentos significativos de lucidez e de penetração. Nenhum deles acentua, entretanto, com o vigor necessário, a necessidade de se elaborar aqui, com as instituições normais para esse trabalho, a cultura nacional como instrumento para o controle do desenvolvimento nacional. Suas idéias não tinham força porque resultavam de esforços individuais, não inseridos no contexto cultural do ambiente. Toda cultura nacional era informativa, não representando idéias difundidas e vividas em comum. Os grandes documentos da lucidez brasileira caíam no "vácuo cultural" do país, cujo sistema educacional era um grotesco aparelho de "ouvi dizer". Impossível deixar de concluir que a nação continuava colonial e... sem metrópole, no sentido de matriz de sua cultura.
A longa estagnação do Império e o despertar precipitado da República ficam explicáveis, como explicável que a Independência não criasse um surto de vitalidade cultural nacional e, depois, a República também se amortecesse até a década de 20. Essa década de 2oé inegavelmente, afinal, um sinal de estar a nação acordando. Não deixa de ser significativo que o despertar seja primeiro um movimento intelectual, de sentido mais literário e artístico do que político e econômico. Mas, segue-se a inquietação política em que estamos até hoje imersos. O Brasil está a viver nos últimos 5oanos uma atmosfera intelectual e social que devia ser a da independência.
Estou em que tudo isso tem, como uma de suas razões fundamentais, o fato de não se haver caracterizado no país a necessidade de se criar nele as fontes elaboradoras da cultura que iriam inspirar, acompanhar e controlar o desenvolvimento nacional. Esta função é a da universidade, quando ela se faz autêntica e verdadeira: o conhecimento, o saber humano não se transmite sem que a nação participe do seu processo de elaboração. A simples importação dos produtos desse saber ou conhecimento não cria a cultura num país.
Foi isso que fez a Europa no século XIX. O processo iniciado por Humboldt na Universidade de Berlim generalizou-se por toda a Europa. Antes desse período, toda a universidade estava a transmitir um conhecimento universal já existente e já formulado pelos livros antigos. Com Humboldt, surge para a universidade a função de se elaborar a cultura nacional que vai ser ensinada. Esse ponto parece-me extremamente importante. Assim como a universidade da Idade Média elaborou a cultura universal da Idade Média, a universidade da Idade Moderna teve de elaborar a cultura moderna e nacional para ensiná-la. Então, não se trata de dizer apenas que a universidade precisa dedicar-se à pesquisa. Ela tem de reformular o conhecimento que iria ensinar, conhecimento que não estava "feito" mas em processo de elaboração. Quando se diz que a universidade deve passar à pesquisa não significa deva haver um acréscimo, isto é, que lhe devemos anexar mais uma tarefa para ela se transformar na universidade de pesquisa. A universidade somente será de pesquisa quando passar a reformular a cultura que vai ensinar. Pode parecer excessivo dizer que a cultura humana tem de ser reelaborada para ser ensinada. Isso, porém, é literalmente verdade. Se se trata de uma cultura própria e já existente, a transmissão é uma revisão e adaptação, pois toda cultura é ela própria um processo dinâmico. Mas se desejo transmitir uma cultura nova, não a posso transmitir pondo o aprendiz em contato com os "produtos" dessa cultura, mas tornando possível ele aprendê-la pelo processo de sua formação, de modo que ele, de algum modo, a reinvente, inserindo-a em seu modo de pensar. Ele não deve ficar apenas capaz de compreendê-la mas de fazê-la e de continuá-la, sem mencionar a capacidade de aplicá-la. A cultura realmente existente é a que estiver incorporada pela sociedade, e a sociedade é hoje nacional.
É absolutamente necessário que a educação seja um processo de incorporação pelo aluno da cultura real da sociedade, cultura de que a universidade seria a reformuladora; e não um acréscimo, não um ornamento, não um simples processo informativo. Só conseguiremos transmitir a cultura e o saber quando transformarmos as nossas instituições educacionais em instituições realmente embebidas no solo brasileiro, na terra brasileira, a refletiram a peculiaridade brasileira e o modo de pensar brasileiro. Foi exatamente isso que Humboldt imaginou para a Alemanha. No século XIX, a Alemanha tinha sido derrotada pela França e estava vivendo um momento de humilhação. A universidade, naquele país, ressurgiu como uma forma de se criar a cultura germânica, como um meio de se formular a cultura nacional. Quer dizer, a universidade é ciência e nacionalismo, é pesquisa e nacionalismo.9
Com aquele despertar que busquei datar da década de 20, o país, na data do centenário de sua Independência, formula o primeiro esboço universitário, com a Universidade Federal no Rio de Janeiro e, pouco depois, a de Belo Horizonte, em Minas Gerais. É de admitir-se que a medida subentendesse o esforço de transformar o ensino superior no processo de tomada de consciência da cultura nacional, em formação, e de aquisição de novos métodos de pensamento e de saber, fundados na ciência experimental, para a solução dos seus problemas. A nova ciência já não era uma ciência de especulação ou de exegese e interpretação do conhecimento existente no passado, mas ciência criadora e extraordinariamente fecunda em conseqüências culturais e tecnológicas para a solução dos problemas materiais relacionados com o poder e o enriquecimento humano. O novo ensino era um ensino de descobertas, a exigir uma atitude de espírito e métodos de trabalho intelectual radicalmente diversos dos que dominavam no passado. Na própria Europa, não foi fácil a adaptação da universidade à revolução do conhecimento científico. Somente na segunda metade do século XIX consolidaram-se, dentro da universidade, o novo espírito e os novos métodos. Ainda assim, em meio a grandes resistências de alguns dos mais conhecidos centros do saber humano. É que a universidade, além dessa nova tarefa de absorver e aumentar o novo saber experimental e tecnológico, conserva a sua antiga função de zelar e transmitir a cultura existente e refletir a cultura nacional. Diante, porém, da transformação em que entrou a própria sociedade, mesmo a tarefa de transmitir a cultura existente e refletir o caráter da cultura nacional passou a exigir estudos novos, por seus métodos, ou seja, a impor os métodos de pesquisa que dominavam o campo do saber científico e experimental.
Só recentemente está a se esboçar, de novo, uma cultura planetária global. A sua incorporação em cada cultura nacional será um novo problema.
Estudar e saber, longe de continuar a ser o feliz emprego do lazer humano e consistir, dominantemente, em compreender o homem e o mundo, para aprimoramento e refinamento do seu espirito e de sua vida, passou a ser árduo trabalho, em muitos aspectos material, a exigir todo o tempo e a depender de um tipo de imaginação totalmente diverso do que inspirava a antiga cultura chamada, talvez impropriamente, de humanística, pois era toda a cultura existente naquela época, inclusive a científica. A ciência nunca foi, nesse período em que se estava operando a transformação da humanidade, tida como uma cultura não humanística. Na universidade de Humboldt, o humanismo compreendia filosofia e ciência. Estavam ambas completamente integradas. Foi o tremendo desenvolvimento científico moderno que criou a dualidade de culturas, a humanística e a científica. A humanística é dominada, sobretudo, pelo conhecimento do passado e por suas letras. A cultura cientifica, ao contrário, se impregnava de um sentido de futuro, sendo este um dos aspectos fundamentais da revolução do saber humano. Esta revolução foi na verdade como a de Copérnico: a cultura que era do passado volta-se quase toda para o futuro. Surgiram, então, as escolas-laboratório, as escolas-pesquisa. E todo o saber humano, fosse humanístico ou de estudo da natureza, entrou em fase de radical reconstrução. A doce atmosfera, de certo modo convencional, do saber, desapareceu para surgir a indústria do conhecimento, e as escolas se fazerem casas de trabalho árduo e persistente, exigindo o que hoje se vem chamando tempo integral e devotamento exclusivo e que não é mais o que a condição normal de todo sério trabalho humano. O desenvolvimento do ensino superior passou a ser medido pelo grau em que professores e alunos assim conduziam o seu trabalho e adotavam os novos métodos do novo conhecimento. É essa transformação que vamos procurar caracterizar no ensino superior brasileiro, distinguindo fundamentalmente o que é simples ampliação e crescimento das condições anteriores, às vezes com grave deterioração dessas condições, e o que é real renovação e começo do novo espírito, do novo método, do novo estilo do saber e do novo modo de trabalhar no campo das ciências físicas e humanas. O novo professor universitário e o novo aluno da universidade são, hoje, dois trabalhadores modernos, cujo grau de esforço e dedicação se fizeram tão particulares e essenciais que antes se fundam numa paixão do que em possíveis incentivos materiais, embora estes não sejam, sobretudo hoje, desprezíveis. Tomaremos, assim, as nossas escolas superiores em seu desmedido crescimento, sem maior deslumbramento pela sua expansão, buscando investigar e descobrir o que realmente nelas representa a transformação, melhor diria, mutação, para firmar os pontos de sua sobrevivência e mostrar os aspectos em que perduram os velhos moldes em vias de desaparecimento. Distinguiremos, por isto, a simples expansão, que é resultado da explosão de aspirações em que vivam os que hoje buscam o ensino superior, e o que se vem realmente fazendo para adaptar a universidade às novas necessidades da sociedade em transformação, de modo a evitar que a sua expansão venha a constituir, para os que a procuram, uma paradoxal frustração.
Estagnada ou não, a educação superior tradicional representa o que havia de mais significativo no país, no sentido de valorização e prestígio social. Por isso mesmo, não se pode pedir à mocidade que busca essa educação ainda tradicional, que seja ela a renovadora de seus métodos e de seu conteúdo. Não pode mover essa mocidade motivação diversa da que serviu aos que antes a buscavam. Entre as resistências à mudança necessária e indispensável, não está apenas a sociedade brasileira, de si mesma, naturalmente, letárgica, podendo sofrer a mudança, mas raramente a promovendo; não estão apenas os professores ameaçados de perder seus hábitos longamente aceitos: estão os próprios estudantes a refletir tudo isso na motivação que os projeta para as suas nova ambições de estudos e de saber. Se os mais velhos se cultivaram em escolas de tempo parcial, recebendo o saber por impregnação auditiva e um vago ocasional convívio com os professores, é natural que os mais novos também julguem que se cultivarão do mesmo modo, para poderem fruir o prestígio social de que ainda goza a velha elite formada segundo os velhos métodos. Não se trata da organização formal do ensino superior, nem mesmo dos fins proclamados na abundante legislação que rege esse ensino. Cogitaremos, antes, de valores subjacentes, geralmente implícitos, e que realmente governam a sua expansão, de certo modo explosiva, a partir de 1940. As sociedades latino-americanas, dentre elas a brasileira, eram sociedades, até a I Guerra Mundial, em desenvolvimento acentuadamente lento, de tipo oligárquico, e de algum modo aristocrático, pois não só eram sociedades para os poucos, como vinham de certa maneira refletindo a Europa, cuja cultura e civilização buscavam imitar, com um apreço especial pelo que se poderia chamar cultura geral em oposição à cultura científica ou técnica.