A universidade surge na Europa, nas alturas dos séculos XI e XII,como uma nova corporação de professores e alunos, ou de alunos e professores.ocres. Era, sem dúvida, o reconhecimento de uma nova profissão,a do scholar, devotado à arte de ensinar. A sua instituição obedeceu à forma jurídica então corrente da carta de fundação, proveniente do Papa e,depois, em certos casos, do rei.

Resulta da longa fermentação religiosa e intelectual da Idade Média, graças à qual se chegou nos séculos XI, XII e XIII à consolidação da cultura medieval. com a fusão da cultura antiga na nova cultura católica da época. Seu período de vitalidade criadora tem seu apogeu no século XIV, entrando, depois, no período rígido e sistemáhco que caracteriza o escolasticismo.

Com o Renascimento e a Reforma, a unidade até então obtida começa a romper-se, mas a universidade no mundo católico não participa substancialmente desse segundo movimento, enclausurando-se no seu isolamento e sua gradual decadência, para isto concorrendo a instituição da Inquisição, ainda no século XII, no caso de Portugal, dentro da universidade.

Quando, nas alturas do fim do século XVIII, a sociedade entra de novo em fase da grande transformação que se vinha elaborando desde o século XVI, mas que no século XVIII teve seu florescimento característico, essa universidade encontra-se em completa decadência. A Revolução Francesa fecha a Universidade de Paris, assim como as Universidades de Oxford e Cambridge já quase tinham sido fechadas por Cromwell. De fato, a universidade que realizara na Idade Média extraordinária obra de unificação do pensamento ocidental, fez-se na época moderna a universidade clássica renascentista no mundo protestante,mantendo-se no mundo homogeneamente católico substancialmente escolástica, não conseguindo viver à altura das novas exigências da sociedade, que se encaminhava para a grande transformação—nacional, democrática e industrial—cujas verdadeiras raízes encontravam-se na revolução científica do conhecimento humano.

Somente no início do século XIX, a universidade vem efetivamente a renascer com a Universidade de Berlim, já como expressão do nacionalismo nascente do povo germânico e do novo espírito de descoberta do conhecimento. É na Alemanha, com efeito, que se opera a grande transformação da universidade, voltando a ser o centro de busca da verdade, da investigação e da pesquisa; não o comentário sobre a verdade existente, não o comentário sobre o conhecimento existente, não a exegese, a interpretação e a consolidação desse conhecimento,mas a criação de um conhecimento novo, que iria inspirar as culturas nacionais. A sociedade estava se transformando, a pesquisa ia voltar a essa universidade até então toda debruçada sobre o passado, para projetá-la para o futuro. Esta universidade de Humbolt faz-se de tal modo a nova universidade, que a Inglaterra vai à Alemanha buscar associar-se ao renascimento científico. A Holanda, que havia começado trabalho paralelo, conjuga também seu esforço com o esforço alemão. E a América do Norte, perdida ainda em duas orientações - a da anterior universidade clássica e a de uma universidade extremamente moderna, utilitária voltada para os problemas da sociedade em mudança - vai huscar também, na segunda metade do século XIX, novos rumos naquela universidade, ai colhendo a inspiração para instituir a sua verdadeira universidade moderna, que hoje lembra a universidade alemã de Humboldt.dedicada à pesquisa, à descoberta do conhecimento científico e ao serviço à comunidade, à complexa sociedade moderna. Também na França, supnme Napoleão a universidade e reforma radicalmente o ensino supenor.

A nova universidade era dedicada à ciência. Mas a ciência ainda estava longe de ter os aspectos que tem hoje. A ciência e a filosofia estavam ainda unidas. De maneira que a maior faculdade da grande universidade alemã era a de filosofia, pois a filosofia era entendida como um desdobramento completo do conhecimento humano, inclusive científico.

Substancialmente, a universidade, guardando ainda a sua missãoimediatamente anterior—guardiã e aprimoradora da cultura - começa a criaçao de uma nova cultura. Aos períodos de renovação criadora da universidade, sucedem os de consolidação, sistematização e gradual estagnação. Assim foi, desde a Antigüidade. Sócrates e Platão sucedem aos sofistas. E a Platão, sucede Aristóteles, que já era novamente a sistematlzação e a busca do definitivo. E a universidade medieval do século XII também sucedia ao platonismo dos séculos anteriores, para repetir Aristóteles e fechar-se na sistematização e nas verdades últimas que acabam na esterilidade da escolástica.

Foi esta última a universidade que presidiu a formação da cultura no Brasil: um centro de rígido treino da mente e de formação profissional o clérigo, o legista e o médico - centro do circulo fechado dos conhecimentos existentes. Assim ficamos, sem universidade no território da Colônia, mas ligados à Coimbra medieval, escolástica e jesuística.

O renascimento universitário, no início do século XIX, com a universidade de Humboldt, não chega até nós. Nem também nos chega a universidade de Newman dos meados do século XIX. Para que existe a universidade? Pergunta ele. E responde: "Para levantar o tônus intelectual da sociedade; para cultivar o espírito público; para unificar o gosto nacional; para suprir os verdadeiros princípios para o entusiasmo popular e objetivos fixos às aspirações populares; para dar largueza e sobriedade às idéias da época; para facilitar o exercício dos poderes políticos e para refinar o intercurso social da vida privada."Era já a universidade expressão da cultura nacional, mas ainda não era a universidade de Humboldt, com sua ênfase em pesquisa e descoberta. Lembraria antes Oxford e Cambridge, a universidade clássica de cultura geral e humanística a universidade para a educação do gentleman, guardiã e aprimoradora da cultura, mas já agora de uma cultura nacional. Esta era a tendência comum entre as duas ênfases, a de cultura humanística e a de cultura científica.

Como explicar-se não haver repercutido no Brasil esse movimento pela recuperação da universidade, persistindo a primeira reação contra a universidade medieval? À primeira vista, parece paradoxal essa resistência à criação da universidade. Não houve no Brasil universidade no período colonial. Com a transmigração da família real, criam-se as duas primeiras escolas de medicina, 20 anos depois as Faculdades de Direito, depois uma Faculdade de Minas e Mineralogia; a de Engenharia veio com a Academia Militar. Durante todo o período monárquico, como já nos referimos, nada menos de 42 projetos de universidade são apresentados, desde o de José Bonifácio até o último, que é o de Rui Barbosa, em 1882, e sempre o governo e parlamento o recusam. Nos anais do Congresso de Educação que se realizou no Brasil, também em 1882, presidido pelo Conde d’Eu, ao qual o imperador deu extraordinária importância, deparamos, é necessário repetir, com o Conselheiro A. de Almeida Oliveira a fazer uma longa catilinária contra a universidade. Toda a sua argumentação gira em torno da universidade medieval. Alega que "a universidade é uma coisa obsoleta e o Brasil, como país novo, não pode querer voltar atrás para constituir a universidade; deve manter suas escolas especiais, porque o ensino tem de entrar em fase de especialização profunda; a velha universidade não pode ser restabelecida’’. Ora, em 1882 isto representava, dentro da atmosfera daquela época, a reprodução de uma posição do século XVIII, que vinha sendo radicalmente revista no século XIX.

Efetivamente, a universidade antiga não podia ser restaurada. Mas havia a universidade moderna, cujas bases haviam sido lançadas por Humboldt, no princípio do século, e que já estavam em pleno surto nessas alturas do século XIX. Registra-se um retardamento da informação nacional. O discurso do Conselheiro Almeida de Oliveira seria razoável um século antes, quando a universidade estava em período de decadência, não se achando em condições de enfrentar os problemas modernos da ciência, da pesquisa e da transformação social. Em 1882, contudo, já era outra a situação, tanto na Europa, quanto na América. A universidade moderna já era uma realidade. Persiste, contudo, da parte do governo brasileiro, um particular e constante propósito de resistir à idéia de universidade, refletindo posição dos fins do século XVIII. Todo o período do Império documenta tal atitude. Observe-se a atuação do próprio Imperador D. Pedro II, que embora razoavelmente culto e até altamente inclinado para as coisas intelectuais, não cria uma só escola superior no Brasil (apenas instalou tardiamente a Escola de Minas, de Ouro Preto), resistindo à idéia da universidade até a sua última fala no trono, quando afinal reconhece, por certo que relutantemente, a conveniência de uma universidade para o Norte e outra para o Sul. Nem por isto, entretanto, se criou qualquer universidade.

A República continuou a tradição de resistência. Estimulavam-se escolas agrícolas, liceus de artes e ofícios e, depois da República, o ensino técnico-industrial. Não podemos deixar de reconhecer que o gover no brasileiro, a classe governante brasileira, ao mesmo tempo que via o Brasil com uma inclinação para a cultura intelectual, para a cultura do lazer, para a cultura geral, para a cultura do consumo, resistia a essa tendência, que considerava "ornamental", no sentido que Ihe dava Benjamim Franklin, procurando promover educação mais utilitária

A atuação do governo federal nesse sentido é típica. A Regencia criou o Colégio Imperial Pedro II, e desde a criação deste colégio até recentemente, não houve ampliação alguma ou criação de outro colégio. Este colégio seria francamente "ornamental", no sentido em que Benjamim Franklin usa o termo, francamente dedicado à cultura desin teressada do espírito, à cultura intelectual da época passada. Apesar de ter recebido o seu nome, o imperador não o multiplicou, mas veio a bafejar as escolas agrícolas e os liceus de artes e ofícios com seus aspectos mais práticos da educação.

Vem a República e faz a mesma coisa. O governo federal cria escolas técnico-profissionais e não cria ginásios ou escolas secundárias. E quanto ao ensino superior, mantém-se estritamente na idéia de ensino utilitário de preparo profissional, sem cuidar daqueles outros aspectos da cultura. Prevalecia a idéia do Conselheiro A. de Almeida Oliveira no Congresso de Educação de 1882: "Nós não podemos ter universidade porque não temos cultura para tal. A universidade é a expressão de uma cultura do passado, e nós vamos ter uma cultura do futuro que já não precisa mais dela."

Havia no Brasil, na classe governante brasileira, a idéia de que a sociedade que se estava construindo ia ser uma sociedade utilitária, uma sociedade de trabalho e, como tal, não ganharia muito em receber os ornamentos e as riquezas da velha educação universitária. E a resistência se mantém. Somente em 1920, a República dá o nome de universidade às escolas profissionais superiores que havia no Rio de Janeiro. O Brasil conservava a posição de defender uma educação superior de tipo

 

Esta universidade federal é, afinal, reformada em 1937, passando a incluir a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, refletindo a reforma da Universidade de São Paulo e a criação da Universidade do Distrito Federal em 1934 e 1935.

utilitário e restrito às profissões, esquecendo-se de sua função de formadora da cultura nacional e da cultura científica chamada pura ou ‘’desinteressada " .

Poder-se-ia levar em conta que a universidade de que teve o Brasil experiência foi a Universidade de Coimbra que, apesar de sua latinidade, continuava a tradição espanhola de universidade profissional. Embora isoladas e independentes, as escolas profissionais instituídas no Brasil-as de medicina desde 1808 e as de direito, 20 anos depois - a despeito de serem escolas profissionais, seriam também escolas de cultura universitária. Guardamos aquela antiga tradição de que a universidade preparava para o ofício da profissão, pelo qual chegaríamos à cultura... A escola superior preparava o homem culto. E, tanto na escola de medicina, quanto na de direito, nós lavramos e construímos a cultura geral que o Brasil possui. É verdade que todo o período colonialfoi um período de cultivo das artes da latinidade e das letras clássicas, pelo Colégio de Artes dos jesuítas, daí nos advindo o gosto pelas letras; no Império, a escola secundária acadêmica continuou a educação pelo ensino das línguas e das letras, ja com o Colégio Pedro II, já com os famosos colégios particulares da época.

Essa ambigüidade essencial entre cultura acadêmica e cultura utilitária decorre, porém, de confusão mais profunda, em que talvez se manifeste uma atitude fundamental brasileira: a de julgar apenas poder "importar" a cultura, mas não criá-la e elaborá-la para o novo país que a Independência fizera surgir. É essa grave deficiência e lacuna, inconscientemente alimentada, que iremos procurar analisar a seguir.