III

 

A GRANDE AVENTURA

 

 

Só existirá uma democracia no Brasil no dia em que se montar no Brasil a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública.

 

ANÍSIO TEIXEIRA

 

 

Anísio acreditava a existência de cada qual dividida em ciclos. O dele seria de sete anos. Outros os teriam de cinco, sete, ou nove. "Os ciclos de minha vida, diria a Odorico Tavares, parecem ser de sete anos." Em que ciclo incluía 1931? Nesse ano, pouco depois de viajar para o Rio de Janeiro, ficou noivo de uma conterrânea, Emília Ferreira, ou simplesmente Emilinha, como seria sempre conhecida, e cujos pais, baianos, tinham emigrado para São Paulo. Para os amigos foi o inesperado. Ela viera à Bahia visitar a irmã, Lídia, casada com Nestor Duarte, jovem Deputado Estadual. "Aqui está o seu noivo", dissera-lhe Nestor ao apresentá-la a Anísio. A pilhéria floriu. Alegre, jovial, vivaz, sempre pronta a animar uma reunião com umas notas de violão, Emilinha pousou no coração do tímido.

O amor costuma ter os seus passos, e destes foi Nestor o arauto.

Nestor a Emilinha, em 26 de janeiro de 1930: "Minha querida Emilinha: Não abra esta carta com o coração aos pulos. Sou eu seu velho amigo, o Nestor brigão, insuportável e rixento que aqui está com a melhor disposição de espírito, alegre e expansivo, embora as saudades que você deixou ... Logo à sua saída ainda em águas da velha terra, no curto espaço de uma ausência que a saudade tornava mais cara, o meu querido Anísio revelava alto a todos nós o que já sabíamos de sobra a respeito do que lhe ia no coração e na alma." E, fiel à delicadeza do tímido, a carta dizia adiante: "Pense e responda. Dou-lhe direito de pensar à vontade, mas lhe peço que não demore muito, em respeito à natural impaciência em que se perde por cá o meu caro Anísio. " A resposta foi a desejada. E, vitorioso, Anísio comunicou a

Lobato, o dileto amigo: "Devo dizer-lhe que estou noivo aí em São Paulo."

Encantado, feliz como um adolescente acariciado pelo amor, ele escreveu à mãe, que, em Caetité, sofria a viuvez: "Mamãe: já deve ter recebido meu telegrama em que lhe comuniquei que fiquei noivo de Emilinha. Estive agora quinze dias em São Paulo e me convenci que levo aí para casa uma criatura tão boa e tão simples, que, pelo menos, esse problema de ajustamento ela não terá. Eu que vivia a cogitar de uma mulher intelectual e emancipada, vou afinal me casar com uma criatura que é tão sertaneja e tão simples como qualquer que eu fora escolher no sertão." O noivo transbordava de alegria, exultava. A carta continuava: "Adeus. Esta carta está engraçada. Mas, é que estou sentimental e satisfeito como se tivesse dezoito anos." Sentia-se adolescente. Não serão adolescentes todos os amorosos? Na realidade, breve intervalo na luta do educador. Em maio do ano seguinte, Anísio se casou. Havia pouco que, em 15 de outubro de 1931, assumira a Diretoria da Instrução no Rio de Janeiro. Pouco conhecido, muitos o acreditavam apenas um educador da Província.

Dizia Afrânio Peixoto ser o Rio de Janeiro a grande vitrine do Brasil. Anísio, vitoriosa a Revolução de 1930, e sem perspectivas na Bahia, não demorou a chegar até ela, trazendo o renome do educador. Viera pelas mãos de Themístocles Cavalcanti, seu colega de turma, amigo do Ministro Francisco Campos, a quem sugeriu convidar Anísio para participar da reorganização do ensino secundário. Este não jogou fora a oportunidade. Trabalhador incansável, conversador incomparável, em permanente polêmica com as idéias, inclusive as próprias, que pretendia aprimorar a cada momento, o seu convívio era uma festa da inteligência, e logo granjeara um círculo de amigos e admiradores. Dentre estes, Fernando de Azevedo, Diretor de Instrução do Rio, na administração do Prefeito Prado Júnior, seria dos mais constantes. Idealista, devotado à educação, ele se dizia "homem solitário e livre". Possivelmente, mais livre que solitário. Poucos anos mais velho do que Anísio, unia-os, além do mais, um traço inapagável: ambos tinham estudado com os jesuítas, em cuja Ordem, Fernando de Azevedo chegara a professor. E ambos imaginavam mudar o mundo pela educação, que os integrara no movimento renovador anterior à Revolução de 1930. No Ceará, Lourenço Filho iniciara uma reforma ao mesmo tempo em que Anísio, na Bahia, e Fernando de Azevedo, no Rio, também buscavam renovar o ensino. Os ventos da educação varriam o País, e vários educadores começaram a aparecer. Delgado de Carvalho, Mário Casassanta, Afrânio Peixoto, Almeida Júnior e Venâncio Filho, eram notórios. No fundo, uma confraria, e dela Anísio seria um dos líderes. Era a nata dos educadores brasileiros, todos empenhados em tomar novos caminhos. Alguns, aliás, pareciam frustrados por não haver a recente Revolução realizado o que se prenunciava nos trabalhos de Lourenço Filho e Fernando de Azevedo.

Modesto, franco, grande conversador, ele já fizera novos amigos, conquistara admiradores, e isso ajudaria na escolha do Prefeito Pedro Ernesto, há algum tempo à procura de substituto à altura de Fernando de Azevedo, reconhecido como grande inovador do ensino no Rio de Janeiro. Por sua vez, Afrânio Peixoto, interessado em ajudá-lo, aproximara-o de Francisco Venâncio Filho, na Associação Brasileira de Educação, onde era magna pars. Livre-pensador, partidário de se aplicar aos problemas educativos os métodos das ciências sociais e da psicologia experimental, dele Anísio se tornou íntimo amigo. Também Paulo Carneiro, jovem cientista recém-chegado do Instituto Pasteur, diria haver sido "seduzido pela personalidade fascinante de Anísio". Alargaram-se assim as amizades, prolongadas até São Paulo, onde Fernando de Azevedo o apresentou a Cândido Mota Filho. Mais tarde este recordaria o encontro: "Falou-me Anísio com desembaraço de um convicto, de um destemido que morava na modéstia de um tímido. E quando ele se foi, Fernando de Azevedo me perguntou: O que você achou do Anísio? E eu respondi: Foi o primeiro teórico que me impressionou, porque sempre tive medo dos teóricos e dos dogmáticos." Quem, conhecendo-o, não o admirava? Na ocasião foi importante a conquista de Venâncio, que se dizia ter o dom inato do diálogo, e se fez elo oportuno entre Anísio e Fernando de Azevedo.

Para Paulo Carneiro era "hora afortunada para o Brasil, essa que os seus mais brilhantes espíritos-poetas, filósofos, cientistas e historiadores - dedicavam o melhor do seu talento e dos seus esforços à educação popular". Em verdade, um novo mundo emergido após a famosa Semana de Arte Moderna. Nele Anísio se inseriu com paixão.

Não foi tranqüila a nomeação para a Secretaria. Sabia-se haverem sido convidados, além dele, Lourenço Filho, Teodoro Ramos e Frota Pessoa, educadores de nomeada. Por fim, em Anísio recaiu a escolha. Jovem, ainda pouco conhecido, sem grandes apoios, ser-lhe-ia fatal admitir qualquer tutela, e, enfrentando fortes pressões, nomeou o seu amigo Francisco Venâncio Filho para Subdiretor Técnico, posto-chave na Secretaria. Sinal de pretender exercer o cargo plenamente. Pascoal Leme e Mauro Gomes, antigos auxiliares de Fernando de Azevedo, ocuparam, respectivamente, os cargos de Secretário e Oficial de Gabinete. Punha mel nos lábios do antecessor ilustre, que exultou antevendo a preservação da obra iniciada com entusiasmo. "O Anísio, escreveu ele a Frota Pessoa, é uma solução excelente." Anísio, aliás, apressara-se a escrever a Fernando de Azevedo "uma linda carta", dissera este. E certo de serem reencetadas as realizações interrompidas pela Revolução, Azevedo se mostrou eufórico: "O governo, dizia, confiando ao Anísio Teixeira a realização da obra educacional, planejada na reforma, confiou esse depósito da nova política de educação a um depositário, capaz não só de conservá-lo, como também de enriquecê-lo ... Trabalharemos com ele, para ele, por ele." Anísio começava com o pé direito. E, desvanecido, Fernando de Azevedo escreveu-lhe sem meias palavras: "Se não me falha a memória, na carta em que me congratulava com V. pela sua escolha para o cargo de Diretor de Instrução, pedia-lhe me considerasse um soldado nas lutas educacionais, ao seu lado, e um irmão para os desabafos nos momentos de sobressaltos e desânimo... Nós precisamos estabelecer uma corrente constante de comunicação para não esmorecermos na grande aventura de reconstrução educacional em que estamos empenhados." Ninguém melhor para antever as tormentas.

Do primeiro contato com o Rio, transmitiu-me Anísio impressões sobre o clima político. Impressionaram-no os "boatos que atingiam a própria estabilidade do Governo central, e, sobretudo, do Governo de São Paulo". Parecia-lhe haver "um descontentamento generalizado de gente que não sabia bem o que queria e não sabe o que conseguiu". "Corria-se o risco, dizia, de ver-se a história da Revolução brasileira como a história de uma revolução que se perdeu."

Nessa inquietação aventou-se a idéia do "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova". Redigiu-o Fernando de Azevedo. Dos amigos de Anísio era dos mais entusiastas. Havia alguns anos mergulhado nos problemas educacionais, ele sabia dos percalços e dificuldades a enfrentar. Ambos pagariam alto preço pela tentativa renovadora.

Em fevereiro concluiu-se o Manifesto. De Fernando de Azevedo a Anísio: "Nesse momento de confusão é preciso definirmos a nossa posição, estabelecendo os nossos princípios fundamentais e o nosso programa de reconstrução educacional. Será a primeira vez que os educadores se apresentarão com um programa de diretrizes definidas." Fernando de Azevedo teria sempre uma palavra de estímulo: "Não desanime, não esmoreça, meu caro, dizia-lhe ... Estou aflito por você. Por nós, pelos nossos ideais." Estes ficavam sempre à frente.

Signatário do documento, Hermes Lima comunicou a Anísio: "Há poucos dias escrevi-lhe enviando dois recortes de jornais. Hoje faço-o especialmente para comunicar-lhe que a convite de Fernando de Azevedo fui ouvir o manifesto que ele elaborou sobre os rumos da educação nacional e do qual V. já deve ter notícia. O Fernando convidou-me para assinar o documento. Senti que a honra era superior às minhas forças, mas como soldado da grande causa, não hesitei em dar o meu nome. O manifesto me pareceu, sem favor e sem exagero de adjetivos, uma obra admirável. Escrito com a precisão de linguagem de quem sabe o problema e tem um rumo claro a seguir, acho que ele será alguma coisa como um roteiro nacional no assunto, cuja autoridade decorre de sair dos meios em que a educação não se mistura à política nem a interesses pessoais. Enfim, eu creio que o manifesto marcará definitivamente o início de uma política de educação no País, segura, firme, bem orientada." Via claro e longe.

Fernando de Azevedo a Anísio: "Como já deve ter sabido pelo Venâncio, está concluído o manifesto educacional, que fiquei de redigir. Li-o ao Venâncio, antes de qualquer revisão. Depois que ele partiu, pus-me a revê-lo e a corrigi-lo. Já está sendo passado à máquina a estas horas."

O documento era longo - Azevedo estimava-o em uma página do Jornal do Commercio - e sobre ele meditara detidamente. "Pensei mais de um mês no manifesto, antes de começar a escrevê-lo", informou a Anísio. Satisfazia-o constatar que refletia idéias comuns a ambos: "Alegrou-me ouvir do Venâncio, quando acabei de ler o manifesto, que, no correr da leitura, lhe parecia a cada momento estar ouvindo a você, tal a afinidade de nossas idéias." Fruto de idéias amadurecidas longamente, era de algum modo a estratificação do pensamento que inspirava as revoluções iniciadas em 1922 e 1924, e continuadas em 1930. Havia, porém, um vazio a preencher e tanto Anísio quanto Fernando de Azevedo consideravam urgente preenchê-lo por uma ação coletiva. "Parece-me, escreveu-lhe Azevedo, que o ciclo das revoluções, que se abriu em 1922, não se encerrará senão quando o governo tiver bastante força para evitar ‘a revolução nas ruas', e bastante clarividência para começar ‘a revolução nos espíritos', pelas grandes reformas políticas, econômicas e educacionais. " Destas o Manifesto dos Pioneiros propunha-se a ser a grande voz. Era imprescindível a unidade de ação, e Azevedo insistiu com Anísio: "Isto terá uma grande importância, não só como uma nota clara de coesão, firmeza e coerência, no meio do caos, senão também como uma afirmação de princípios." Muitos deviam ser os chamados. E Azevedo dizia, vigilante: "'Insisto sobre a assinatura do Carneiro Leão, e, particularmente, de Afrânio Peixoto. Peço-lhe dar-lhes a ler o manifesto e obter-lhes, com a aprovação, as assinaturas." Ambos acabaram acedendo: "É preciso estarmos vigilantes para obtermos desse manifesto todo o efeito que procuramos, já de manifestação de idéias, já de consolidação do bloco ou do grupo que o vai lançar." Sinal de que se não contentava em fazer do manifesto apenas um frio documento, mas instrumento de luta, no qual depositava grandes esperanças. Em resumo, aspiravam a reconstruir a educação. A repercussão do "manifesto" foi imensa. Azevedo Amaral, então em plena evidência, teceu esse comentário: "O mal-estar que oprime o País e se traduz em nostalgia de uma forma qualquer de organização política sistematizada e expressa na definição de princípios constitucionais, decorre da esterilidade intelectual do após-revolução, despontando a expectativa pública de diretrizes novas, que, mesmo quando fossem violentamente audaciosas, seriam muito mais aceitáveis e menos perigosas que a estagnação de um País revolucionado, isto é, a posição insustentável de uma Nação que rompe com o passado e fica perplexa entre ruínas e um futuro para o qual não se atreve a caminhar."

Observou Hermes Lima ser "puro Anísio a espinha dorsal ideológica do 'manifesto"'. Sem dúvida, ele estava presente, e seria peça fundamental na sua aplicação. Ao escrever-lhe a "Introdução", que precedeu a publicação em livro, Fernando de Azevedo freqüentemente ouviu as opiniões de Anísio. Da correspondência de ambos, retiro este trecho de Fernando de Azevedo: "Os seus reparos sobre um dos capítulos da lntrodução ao Manifesto, achei-os tão justos que resolvi desenvolver o meu pensamento, para o esclarecer melhor, em dois parágrafos novos, conforme a sugestão. V. interpretou com fidelidade o meu ponto de vista a que a citação da célebre frase de Pascal podia de fato emprestar uma interpretação diferente." E após breve digressão sobre a ciência e as invenções a serviço do homem, continuava: "Se é verdade que é preciso fazer 'o homem tão grande como a obra que ele conseguiu criar' - se esta é a missão dos educadores - não é menos certo que existe um conflito entre a civilização material e a sua mentalidade, presa ainda ao mundo sensível, confuso e místico de preconceitos, crenças e ideais em que ela se formou. A massa, como sempre afetiva e instintiva, deixa-se governar mais pelos sentimentos do que pelas idéias. O que nos falta não é o pensamento claro de uma elite, capaz de lhe transmitir um ideal novo, em cuja substância vivam as forças que elabora a nova civilização?"

Se muitos aplaudiam o "Manifesto", não faltaram os que a ele se opunham liderados pelo "Centro D. Vital", a cuja frente estava Alceu Amoroso Lima. "O Centro D. Vital, pelos seus representantes no Rio e em São Paulo, já assestou contra esse 'Manifesto' as suas baterias. 'Artilharia grossa' ", escreveu Fernando de Azevedo a Venâncio.

Foi duradoura a repercussão do "Manifesto", logo transformado em divisor de águas entre educadores progressistas e conservadores. Na verdade, uma bandeira, e Fernando de Azevedo, pondo a causa acima de tudo, via-a como ponto de aglutinação. "Quando falo nesse Manifesto - escreveu - já me esqueço que fui eu quem o escreveu. Ele é obra impessoal. Havia de ter, como teve, um redator. Mas nele se escreveram, um corpo de doutrina, 'idéias e aspirações comuns', que nos permitem, a mim como a cada um dos outros signatários, falar dele 'objetivamente'." E para ele ninguém mais capaz de empunhar a bandeira do que Anísio: "A bandeira não é de quem a teceu, mas de quem a honra e de quem a conquistou. De todos nós, portanto. A sua mão de chefe foi feita para empunhadura dessa bandeira: nós estaremos para defendê-la em toda a parte em que se realize obra à sua sombra e sob a sua inspiração." Seria luta sem quartel, e dela não demorou Anísio a se tornar o grande Líder, e por isso mesmo a grande vítima. "É preciso que a sua administração, dizia-lhe Fernando de Azevedo, seja coroada de êxito completo. V. o merece. E ninguém o merece mais do que você, pela penetração de sua inteligência, pela largueza de sua visão, pela fidalguia de seus sentimentos." Opinião lisonjeira, que não demorou em se generalizar. Modesto, despretensioso, sem outra ambição senão a de servir, Anísio se tornara o Líder da cruzada, e a Fernando de Azevedo alegrava saber que antigos auxiliares agora se reuniam em torno do novo chefe: "São os que trabalharam comigo - dizia ele a Anísio - num convívio de longos anos, que cerram agora fileiras em torno do seu novo chefe, dando a este a mesma lealdade e o mesmo entusiasmo, as provas de dedicação com que todos conquistaram os direitos à minha confiança e à minha amizade. V. não imagina a satisfação que tive de ver reunidos à volta do novo diretor, sob a mesma bandeira de renovação educacional, aqueles que não me faltaram um instante, nas alegrias das realizações, como nos sobressaltos das lutas e provações." Afinal, a causa era maior que os homens, e Fernando de Azevedo um homem raro.

Mais ou menos por essa ocasião publicou Anísio a Educação progressiva, síntese do pensamento que o orientaria no campo da filosofia da educação. Contemporânea do "Manifesto", Monteiro Lobato reuniu os dois documentos num comentário enviado a Anísio:

 

Comecei a ler o Manifesto. Comecei a não entender, e não ver ali o que desejava ver. Larguei-o. Pus-me a pensar - quem sabe está nalgum livro de Anísio o que não acho aqui - e lembrei-me de um livro sobre a educação progressiva, que me mandaste e que se extraviou no caos que é a minha mesa. Pus-me a procurá-lo, achei-o. E cá estou, Anísio, depois de lidas algumas páginas apenas, a procurar dar berros de entusiasmo, por essa coisa maravilhosa que é a tua inteligência lapidada pelos Deweys e Kilpatricks!

 

E acrescentava com incontido entusiasmo:

 

Eureca! Eureca! Você é o líder, Anísio! Você é o que há de moldar o plano educacional brasileiro. Só você tem a inteligência bastante clara e aguda para ver dentro do cipoal de coisas engolidas e não digeridas pelos nossos pedagogos reformadores... Eles não conhecem, senão de nomes, aqueles píncaros (Dewey & Co.) por cima dos quais você andou e donde pode descortinar a verdade moderna. Só você, que aperfeiçoou a visão e teve o supremo deslumbramento, pode neste País falar de educação.

 

Podia parecer exagero peculiar a Lobato. Contudo, dificilmente alguém deixaria de vibrar ante aquela inteligência sutil, penetrante, e que tudo iluminava, emitindo conceitos aos quais emprestava claridade invulgar. Na palavra de Anísio, tudo se tornava claro, e, portanto, fácil.

O fascínio de Fernando de Azevedo pela Educação progressiva não foi menor que o de Lobato: "Ao terminar a leitura de seus ensaios sobre a educação - escreveu ele a Anísio - lembrei-me de umas palavras em que Alfred de Vigny se retratava, sob traços do Imperador Juliano. Fui procurá-las. São estas: 'N'as tu pas remarqué, Basile, que ce n'est qu' avec effort qu'il descend, tandis que, chez le commun des hommes et même les plus habiles philosophes, l'effort est de se detacher d'en bas pour monter... Si jamais une pensée eut des ailes c'est assurement Ia sienne.' O seu pensamento é desses raros que têm asas, e é evidentemente com esforço que V. desce, enquanto no comum dos homens o esforço é de desprender-se de baixo para subir..." Para os que conviveram com Anísio e dele conheceram a veloz ascensão da inteligência, em constante debate na busca do aprimoramento, a observação é perfeita. E Azevedo continuava: "É sempre com grande facilidade que V. sobe alto e consegue planar acima das teorias e doutrinas de que veio e se desprendeu para voltar a elas freqüentemente, mas nunca para ficar nelas. Essa facilidade em subir quando fala ou escreve, essa flexibilidade e liberdade de pensamento que não traz chumbo nas asas, essa rapidez e segurança de raciocínio, largo e tranqüilo como o vôo dos grandes pássaros, são qualidades que denunciam a sua organização de pensador e filósofo da educação."

Não havia como negar - Anísio, mais do que um líder, tornara-se um chefe. E ao falar das suas distrações freqüentes costumava confessar: "Quando monto na asa de um pensamento, de uma idéia, eu vôo nessa idéia como se a idéia fosse uma ave e tudo o mais se apaga." E voava alto.

Também de Hermes Lima, que permanecia em São Paulo, não faltou caloroso elogio: "O volume, escreveu ele a Anísio, é na verdade excelente. Tem a meu ver, para começar, a virtude de esclarecer um problema que, em geral, anda por aqui, por aí, por esses Brasis, obscuro, mal sabido: o problema da nova educação, da escola para os novos tempos, para a civilização em crise e, sempre, em mudança. A obscuridade era, aliás, compreensível. Na crise da escola reflete-se a crise geral. Dar sentido à escola é dar sentido relativo no tempo, é certo, à marcha da civilização." Afinal, para isso batalhavam os pioneiros. E após considerações sobre os velhos valores que se perdiam, a carta continuava: "O espírito de inconformismo que anima todo o livro é nele uma qualidade, mais do que isso, uma virtude fundamental. O último capítulo particularmente me seduziu: esse seu e cada vez mais novo Dewey é deveras um homem capaz de mostrar coisas." Tomava corpo a nova filosofia da educação.

 

Ainda vivas as feridas de 1930, irrompeu a Revolução Constitucionalista de 1932 e durante quatro meses a guerra civil ameaçou dividir o País. Incorporado às forças de São Paulo, Hermes Lima, cessada a guerra, mandou a Anísio as suas impressões da luta: "Dela volto, meu caro, nem apaixonado, nem saudosista, mas apenas convencido de que os erros políticos da situação dominante que a ela nos arrastaram, só poderão prevalecer a preço da desagregação do País. O Fernando (de Azevedo) lhe falará de tudo com mais vagar e com o rigor objetivo tão característico do poder de observação que ele possui. Contento-me em assinalar-lhe aqui o fato, deveras importante, do aparecimento de uma consciência separatista em São Paulo." E para Hermes, o remédio para cicatrizar a ferida era fortalecerem e ampliarem as idéias do Manifesto dos Pioneiros: "Ora, o movimento educacional cujas linhas foram expostas no manifesto, hoje histórico e que nos congrega, repousa sobre a base da pátria comum, brasileira. Lembrei, então, ao Fernando (de Azevedo) a conveniência de se lançar agora novo manifesto em que, se recordando sinteticamente os traços fundamentais da nossa ação educacional, erguêssemos um vibrante grito de alarme contra a falta de tato e o desconhecimento da realidade que em São Paulo, enfraquecendo o sentimento de brasilidade, nos atiraram à guerra civil e podem, com o tempo, nos levar à guerra da secessão." O separatismo inquietava-o e ele dizia com ênfase: "Insisto por este manifesto como um dever patriótico que nos cabe cumprir, porque a verdade é que a inépcia tem feito em São Paulo (inépcia do Governo Federal) mais pela desagregação do País do que a sua imaginação lhe poderia dizer."

Não haveria outro manifesto. Para Fernando de Azevedo o importante era colocarem em prática as idéias dos "Pioneiros", e para isso aceitou dirigir a instrução pública em São Paulo. "Concordei afinal", participou ele a Anísio, "depois de uma resistência mantida inflexivelmente desde a data de minha nomeação a 27 de dezembro, em assumir a Direção da Instrução Pública em São Paulo, mas sem quaisquer compromissos de ordem política ou partidária e com a mais ampla autonomia de ação." Anísio seria o outro braço nessa luta pela educação. E Azevedo dizia-lhe confiante: "Trago os olhos e o pensamento voltados para a grande obra educacional que está V. realizando no Rio, e cujo espírito, que, na sua essência, é o da reforma de 1928, pretendo transferir para São Paulo, onde o Lourenço (Filho), aliás, já realizou iniciativas e empreendimentos de grande alcance nesse sentido." Sabia, porém, serem muitos os obstáculos. Por vezes sentira-se abatido, desanimado, prestes a submergir. "V. já compreendeu que me refiro à obra educacional em que estamos empenhados, e pela qual eu estaria disposto a sacrificar minha própria vida." Nessas horas o idealista encontrava novas forças: "Sinto-me doente e fatigado, mas não hesitaria um instante em sacrificar todas as energias que ainda me restam na reconstrução do pensamento educacional brasileiro." E desejoso de premunir o companheiro para as tormentas que antevia, acrescentava: "Não conseguimos ainda uma vitória sem esforços hercúleos e senão através de dificuldades imensas, num meio em que, compreendidos por poucos, somos furiosamente negados por uma grande parte de professores, cuja ignorância tem sido vilmente explorada pela má-fé de alguns aventureiros e pela obstinação de outros. Escrevo-lhe agora, de irmão para irmão, como um combatente que aproveitasse um momento de repouso, na sua trincheira, para se desabafar com um companheiro de lutas, certo de que os reveses transitórios que sofremos ou possamos ainda sofrer nos trarão o sucesso e as conquistas definitivas."

Carta melancólica - não a aquece nenhuma ilusão. Para ele, entretanto, o essencial era a união dos empenhados na "grande aventura". Desprendido, punha o êxito das idéias acima das vaidades. E, desvanecido, escrevia a Anísio: "Sinto cada vez maior necessidade de nos mantermos intransigentes. O radicalismo é próprio dos pequenos grupos. O abrandamento da sua irredutibilidade é prova de que o grupo se estendeu quantitativamente ou perdeu a consciência da necessidade de conservação..."

Ao longo de mais de quatro anos, Anísio não fez outra coisa senão tentar implantar as idéias do Manifesto dos Pioneiros. Alçado à Secretaria de Educação, não devia perder a oportunidade. Tanto mais que em São Paulo, também à frente da Educação, Fernando de Azevedo representava base fundamental para a sonhada reconstrução educacional. A Odorico Tavares, em 1952, Anísio recordou esses anos de trabalho. "A revolução produzira o necessário clima de renovação - diria ele na conhecida entrevista. Procurei durante perto de cinco anos elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da República e da democracia, distribuí-Ia por todos na sua base elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que então submergiu o País."

A reforma era uma revolução, contrariando privilégios e interesses de toda ordem. Natural suscitar um mar de reações. Ainda uma vez Anísio seria atacado pelos contrários às suas reformas. Também Fernando de Azevedo não seria poupado. Para este era o rescaldo das idéias do "Manifesto": "Já vê você - escreveu ele a Anísio - que são indícios iniludíveis de uma reação conservadora a todo o transe, que tem por objetivo declarado a 'volta à tradição' (reação contra as reformas Lourenço Filho e Fernando de Azevedo) e, com fins não confessados, mas notórios, a reação pessoal contra o grupo do Manifesto." E, após considerações sobre o ensino religioso nas escolas, a carta prosseguia corajosamente: "Escreva-me longamente e não esmoreça na grande obra comum em que estamos empenhados e na qual é um dos chefes de mais largo descortínio, de mais alto prestígio, e de maior capacidade de ação... Preparemo-nos para a luta." Aliás, Fernando de Azevedo relutara um pouco em se engajar oficialmente na batalha pela educação. Não havia muito, Anísio lhe anunciara cheio de ânimo: "Quanto a mim, dizia, estou embarcado e já não desembarco..." A resposta: "Também eu não hesitaria em embarcar se sentisse aqui, no leme, um pulso firme, e visse no mapa o roteiro seguro e no espírito de todos a disposição de se fazer ao largo, afrontando mar alto de uma vigorosa política de reconstrução. Mas, infelizmente, parece-me que, apesar de tudo, a tripulação hesita em levantar ferros, e, quando se dispõe a isto, é para sair costeando a praia, arranhando a costa como caranguejos." Contudo, não demoraria a também se fazer ao mar. E desvanecido, ele escreveria a Anísio pouco depois: "É certo que já começamos a fazer obra comum e de unificação dos diversos sistemas escolares brasileiros. Não é esta uma obra nacional, de espírito nacional, no mais alto sentido da palavra?" E, desejoso de estimular o colega de sofrimento, dizia-lhe: "Mas, tudo há de passar e lhe será feita a justiça, que a mim, parece-me, já começaram a fazer. Não cuide, porém, que são menores aqui as dificuldades com que venho lutando. O mar que navego é também tempestuoso e cheio de perigos... Já mais de uma vez tive de passar, com ventos rijos, no meu barco frágil, momentos de inquietação para todos e que me foi necessário suportar com indiferença aparente, como se eu fosse estranho a todos os rumores de perigo..."









Sem dúvida a luta seria longa e árdua. Anísio estava disposto a enfrentá-la, convicto de que no Distrito Federal situava-se o coração dessa guerra. "Creio, escreveu ele a Fernando de Azevedo, já lhe haver dito que é minha impressão não ser possível travar, no Brasil, a batalha educacional, antes de vencermos a peleja do Distrito Federal." E para vencê-la Anísio buscou reunir os melhores na educação. Desejara inclusive a vinda de Fernando de Azevedo, para quem almejava o Ministério da Educação ou a direção do Departamento Nacional de Educação, se não a própria Secretaria de Educação.

Jamais alguém conseguira reunir equipe de tal porte, para a implantação de um programa educacional. O Instituto de Educação fora confiado a Lourenço Filho e Mário de Brito; o Instituto de Pesquisas Educacionais a Delgado de Carvalho; a Superintendência do Ensino Secundário a Joaquim Faria Góes; as Bibliotecas e Cinema Educativo a Armando de Campos; a Educação Física à professora Marieta Lois Williams; a Educação Musical ao maestro Villa-Lobos; e na Superintendência do Ensino Elementar estavam Alice Flexa Ribeiro, Calina Padilha, Paulo Maranhão, Felicidade de Moura Castro, Arteobela Frederico, Maria Vidigal, Laudimília Trotta e Zélia Braune. Certamente, nada havia de melhor no Brasil. E para reunir equipe de tão alto nível, Anísio se inspirara, principalmente, na solidariedade aos companheiros de ideal. Disso parecia orgulhar-se. E a Fernando de Azevedo ele diria com franqueza: "Não será necessário esclarecer que levo esse dever de solidariedade a todos que sejam verdadeiramente educadores - amigo ou inimigo - só me considerando desobrigado dela perante os que por ignorância ou falta de idoneidade não podem merecer esse título. No Rio, neste momento, em que me coube, para mal dos meus pecados, o posto de comando oficial, tudo que podia fazer para agregar, reunir, consolidar, impessoalmente, os educadores brasileiros, tenho feito. No magistério e na administração tenho buscado criar uma consciência profissional comum, que desvie das pessoas para a profissão, o dever de dedicação e de solidariedade. De todos os que chamei só falhou até hoje o lsaías."

Nada, porém, impedia que, ora mais, ora menos, prosseguisse a campanha contra o Secretário de Educação. Ferido, ele comunicou ao amigo: "Tão breve quanto possível hei de deixar a direção do ensino. Façamos votos para que o meu substituto seja mais feliz na obra de união e de fortalecimento comum." Certamente uma ilusão. Como deixar em meio a batalha travada ao lado de tantos companheiros? Não sem razão é esta observação de Hermes Lima: "Consagrou-se Anísio à edificação de sua obra educacional, abrasado pelo espírito de missão, missionário que foi a vida inteira." E como alicerce da construção, ali estava o Manifesto de 1932, pedra sobre a qual os pioneiros sonhavam edificar a nova Igreja da Educação. Realmente, a cada passo emergiam as idéias do documento, motivo inclusive de debates entre os Constituintes de 1934, pois custara evitar-se que algum dispositivo constitucional pusesse água abaixo quanto se fizera laboriosamente.

Anísio a Fernando de Azevedo, em 6 de junho de 1934: "Terminado o mais aceso da luta, não sei se não nos devemos dar por satisfeitos, de tal modo, apesar das investidas da rotina e dos interesses, as idéias principais vieram a ficar vitoriosas... O capítulo da Constituição contém o máximo que podia, no momento, triunfar entre nós. Preferimos, entretanto, de público acentuar, em parte, o que perdemos, uma vez que uma campanha mesquinhíssima mais uma vez pretende ferir a renovação da educação nacional." E num tom de desalento, concluía: "Como ambiente geral, sinto, entretanto, que continuamos a lutar com a hostilidade, a indiferença ou a incompreensão. Sem dizer nada dos interesses feridos e dos não atendidos. O esforço de resistência chega a parecer-me que supera as minhas forças. Tenho, dia a dia, maior necessidade de repouso e de descanso." Embora não imaginasse, as forças eram-lhe inesgotáveis, refazendo-se a cada passo, para novas lutas e provações. Para ele, aliás, chegara a hora de um balanço sobre quanto se fizera bem como o que deixara de ser realizado. Extraordinariamente lúcido, Anísio temia iludir-se. E para evitar o perigo pregava uma pausa na qual se analisasse imparcialmente o caminho percorrido.

Em junho de 1934, de viagem para a Bahia, ele, de bordo do Flandria, voltou a escrever a Fernando de Azevedo: "Continuo a pensar que, na crise de cansaço em que nos encontramos, precisamos novamente de uma palavra de ordem estimuladora e justa. Primeiro, que balanceasse o que foi feito, com isenção, objetividade e coragem; e depois indicasse o que havia ainda a fazer e o que se ia fazer... Depois do Manifesto dos Pioneiros, essa nova declaração se impõe. Estamos a correr o risco de fazer crer e, o que é pior, também crermos nós mesmos, que nada foi feito ainda. Sinto que o afrouxar de laços de solidariedade em torno de idéias, projetos e campanhas comuns levará a isso. E tudo por quê? Porque, nas idas e vindas do trabalho, alguns afastamentos pessoais se deram, em virtude de características de temperamento que se não podem mudar de uma hora para outra." E desejoso de novamente reunir os responsáveis pelo "Manifesto", Anísio continuava:

 

E V., meu caro Fernando, tem mais que todos a possibilidade de reacender a flama e sobretudo condenar essas atitudes de displicência que destruirão toda a obra, que não custou pouco de sacrifícios, de esforço e de sofrimento mesmo. Escrevo de coração para coração. Ando a sentir tudo isso. E quero dar o meu afetuoso e franco alarma. Conto com V. para reanimar o entusiasmo e a fé do grupo.

 

Não há notícia do resultado desse brado de alarma, que traduzia decepção e desânimo. Nessas horas Fernando de Azevedo tinha sempre alguma palavra de estímulo, como a desta carta, de julho de 1935:

 

Vi e observei tudo com olhos sem nervos e o coração sem paixões. Por isto, falei-lhe com toda a franqueza e com aquela solidariedade que V. conhece e que é sempre minha nas horas incertas... O que se passa todos os dias não importa. É preciso apanhar o que fica através do que passa. E o que ficará de V. já é grande demais para V. se deter no que é transitório.

 

Como sempre, Anísio não demorou muito em retomar o trabalho. Agora, como cumeeira do edifício, idealizava criar a Universidade do Distrito Federal. Universidade que fosse realmente uma Universidade, tal como a concebia no plano mais alto da educação, e não uma contrafação.

As eleições, para Governador, de Armando Salles, em São Paulo, e Pedro Ernesto, no Distrito Federal, abriram caminho para as Universidades Estaduais. Anísio pôs mãos à obra. Era a oportunidade, não para transplantar a educação, mas para criar uma educação verdadeiramente nacional, adaptada às nossas condições, aos nossos hábitos e às nossas necessidades. Péricles Madureira, íntimo do pensamento de Anísio, daria este depoimento: "A concepção de uma Universidade brasileira, nossa, produto da comunidade posta a seu serviço, ninguém a teve mais nítida do que mestre Anísio. Não queria ele a Universidade como simples elaboradora de comentário e exegese do conhecimento existente. Defendia a grande renovação da Universidade como centro de 'busca da verdade, de investigação e pesquisa'." Era idéia arraigada no pensamento de Anísio. Ao depor na Câmara, em 1968, ele repetiria idêntica concepção: "Quando se fala que a Universidade deve passar à pesquisa, não significa deva haver um acréscimo, isto é, que lhe devamos anexar mais tarefa e ela viraria Universidade de pesquisa. A Universidade será de pesquisa quando passar a formular a cultura que vai ensinar. A cultura humana tem de ser elaborada para ser ensinada."

Para a grande obra era fundamental uma grande figura: Anísio nomeou Afrânio Peixoto Reitor da Universidade. Desde que se conheceram, unia-os crescente amizade e Afrânio admirava o conterrâneo. Afeto que "sublinhava com um gesto de carinho reverente: saudava-o, a cada encontro, com um ósculo na face - maneira que lhe pareceu suprema de expressar seu apreço inexcedível". Notou Hermes Lima que Afrânio "trazia para a Universidade o prestígio do seu nome aureolado pelo saber, pela consagração literária, pela dignidade de uma vida toda dedicada ao ensino". Ninguém pairava mais alto na vida cultural do Brasil. E a isso se somava o entusiasmo do educador. Fundada em abril de 1935, Anísio, na aula inaugural, proclamou não somente os encargos da Universidade, mas também os descaminhos que nos haviam levado aos diplomas universitários honoríficos. E indagava em certo momento: "Haverá, por acaso, demasiado ensino superior no Brasil? Não. O que há são demasiadas escolas de certo tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em número maior que o necessário e o possível, no momento, de consumir." Sabia-se ser a expressão da verdade. Nítidos e definidos eram para Anísio os encargos da Universidade e ele os enunciou na aula inaugural da abertura dos cursos:

 

A função da Universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata somente de difundir conhecimentos. O Iivro também os difunde. Não se trata somente de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata somente de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou de artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que universidades.

 

Inquieto, Anísio não deixava os assuntos dormirem. Em maio Afrânio partiu para a Europa em busca de professores. Seguia os passos da universidade criada em São Paulo por Armando de Salles Oliveira. Apaixonado, Afrânio, após breve estada em Portugal, escreveu a Anísio: "Em mim já o amor da nova Universidade raia pela idéia do sacrifício, disposto até à inimizade, eu, bom moço de uma vida inteira, 'sempre da opinião do meu contraditor', como queria Renan: pois bem, não desgosto a quem desgostar." A missão inflamava-o.

Em Portugal, malgrado "o torvelinho doirado" que o envolveu, ele, auscultadas Lisboa, Coimbra e Porto, sugeriu três mestres para possíveis contratações: Rodrigues Lapa, o filólogo, Joaquim de Carvalho Vasconcellos, professor de filosofia e humanista, e Nuno Simões, economista, financista, admirável amigo dos brasileiros. Indicados por gregos e troianos, eram, porém, "malvistos do integralismo do Estado Novo" - informou Afrânio -, vale dizer, anti-salazaristas. Talvez por isso jamais seriam contratados.

de Paris, e com a Universidade sempre no pensamento, Afrânio voltou a escrever a Anísio:

"Uma Universidade é pesquisa, mas é primeiro, e primeiramente, ensino. Pesquisa só depois de iniciado o ensino. Portanto, para começar, o professor, o aluno, o ensino. Para a evidência, de utilidade pública; será mesmo indispensável começar por aí." E para ele, dos professores possíveis, os melhores teriam sido os alemães, judeus, expulsos pelo nazismo, não fosse já terem sido recrutados pela Inglaterra, Suíça e os Estados Unidos. Ficavam-nos os franceses, certamente mais facilmente entendidos pelos alunos, por causa da língua. E para selecioná-los, conversá-los, e contratá-los, teve Afrânio a inestimável ajuda do seu amigo Georges Dumas, notável figura da cultura francesa, amigo do Brasil, e incansável na catequese dos colegas. Afrânio Peixoto comunicou a Anísio: "O Dr. Georges Dumas anda pelos Ministérios e pelas Faculdades e instituições sábias a proclamar que o Reitor da Universidade do Distrito Federal, que se dirigia à França, confiante e confiado, não podia ir senão com as mãos cheias de dons. E tudo se fará do bom e do melhor meio, dando a França quase tudo."

Realmente era um achado. A França pagaria a todos integralmente, ao passo que o Brasil despenderia apenas pequena parcela. Afrânio escolheu o que havia de melhor. Para a Faculdade de Ciências viriam Maurice Janet, Eugene Block, Leray, Marchaud, Bovat, Henri Cardot, Millot, todos renomados professores nas suas especialidades. Para a Faculdade de Letras não eram menos ilustres os professores contratados: E. Brehier e Henri Hauser vinham da Sorbonne; C. Blondel, de Strasburgo; Bourcier, de Montpellier, e, como consagradas estrelas da cultura, Garric e Desfontaines. De modo geral era o melhor das Universidades da França. Valia por uma transfusão de cultura. "O que esses mestres franceses trouxeram da Europa para a renovação da cultura brasileira, escreveu Gilberto Freyre, através daquela universidade fecundamente experimental, importa noutro corajoso serviço prestado por Anísio Teixeira ao nosso País. Pois sem tradição universitária, não era possível que se improvisasse entre nós a universidade valendo-se os organizadores do sistema universitário brasileiro apenas de bons professores, dos chamados de humanidades, vindos do ensino secundário para o universitário; ou de simples especialistas nisto ou naquilo, recrutados de escolas superiores apenas profissionais para cátedras que devessem ser verdadeiramente universitárias." Contudo, pelos ciúmes suscitados foram muitos os problemas causados pela convocação de professores estrangeiros. Gilberto Freyre insistiria no acerto da decisão: "Anísio Teixeira, escreveu, seguindo, aliás, neste particular, os paulistas, não só importou mestres estrangeiros cuja formação ou experiência universitária se comunicasse vantajosamente ao Brasil, como incorporou à nova universidade de amplitude nacional quanto brasileiro idôneo tivesse essa formação ou experiência, adquirida no estrangeiro." Era o reconhecimento da idoneidade das convocações.

Como lhe era próprio nessas ocasiões, Afrânio vibrava pelo êxito alcançado: o educador transbordava de contentamento. Dele é este expressivo fim de carta para Anísio: "No dia 6 de julho", dizia, "embarca em Marselha, no Alsina, o Dr. Georges Dumas, cidadão carioca, professor da Sorbonne, de Psicologia, autor do monumental tratado, meu amigo, meu grande amigo, que agora fez tudo por mim, por nós, prestando-me imensos serviços. Procure-o, converse com ele, ele dirá tudo isto e mais ainda por mim. Ouça-o, agrade-o. Faça-lhe festas. Leve-o ao Garoto do Mercado, à A.B.E., ao Instituto de Educação. (Já é Grande Oficial do Cruzeiro - não poderia o nosso Pedro Ernesto pedir para ele a Grande Cruz? ... ) Meu Anísio, agradeça-lhe por mim, por nós, com agrado, que bem merece, dedicadíssimo à nossa vitória! E agora? Agora um abraço. Excelsior! Seu, todo seu, Afrânio." A carta era um Tratado de Amizade.

Nessas ocasiões Afrânio Peixoto mostrava-se incomparável. A chegada de Dumas, tão festejado quanto possível, pôs a Universidade em alvoroço. Delgado de Carvalho dizia tratar-se "da maior missão intelectual até hoje vinda ao Brasil". Também a que suscitara maiores problemas e discussões, tanto o ambiente se inflamara, dividido entre fascistas e democratas.

Aconselhado por Anísio, o Prefeito Pedro Ernesto, que se fizera amigo de Dumas, autorizou Afrânio Peixoto, em agosto de 1935, a fazer as contratações sugeridas. Era o feliz desfecho para a Universidade. Brehier, da Sorbonne, viria para a cadeira de História da Filosofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psicologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfontaines, de Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Hazard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, para Língua e Literatura Greco-Romana; Bourciez, para Filosofia das Línguas Romanas; Trochon, para Literatura Comparada; Albertini, do Colégio de França, para História da Civilização Romana. Os contratos seriam por um ano, a partir de janeiro de 1936, com vencimentos de três mil francos anuais, doze mil francos de auxílio para viagem, devendo os cursos se realizarem de 1º de abril a 30 de novembro. Na realidade, um renascimento da cultura ocidental no Brasil.

Tudo seria, porém, em vão. O País estava irremediavelmente dividido. Quem não era integralista via-se acusado de comunista. Na própria Universidade Anísio experimentava dificuldades. Delas deu conta a Afrânio, ainda na Europa: "A nossa filha, a Universidade - dizia - por isso mesmo que promete muito, começa a apresentar os seus primeiros problemas. Com a sua partida, as coisas não podiam deixar de se tornar mais difíceis. O Lourenço trouxe-me, logo após, o Roberto Marinho e de nossa discussão resultou o segundo ficar de acordo com o meu ponto de vista na questão da preparação dos professores secundários. Contra minha expectativa, o Lourenço concordou apenas formalmente, deixando daí em diante de me procurar..." Mas, determinado a alcançar a meta prevista, ele advertia: "Toda a minha prudência, que é grande, como sabe, não me impede a firmeza." Depois, seguira-se o da escolha dos diretores das Faculdades, agravado pela impossibilidade de Gilberto Freyre sair de Recife. Havia que substituí-lo, e Anísio informou a Afrânio: "Pensei no Hermes Lima. Não sabe como nessa ocasião desejei que V. estivesse aqui. Para convidar o Hermes para a Escola de Filosofia e Letras, seria, porém, preciso que o Castro Rabelo não tivesse revelado desejos de dirigir essa escola. Uma coisa juntou-se a outra e por necessidade da Universidade, propus a nomeação de Hermes para a de Direito e Economia e do Castro para a de Filosofia e Letras. Ficou o Castro satisfeitíssimo. O Hermes entrou somente para nos servir." As escolhas não representaram a tranqüilidade. O próprio Anísio transmitiu a Afrânio as reações: "Até agora, ao que sei, nos meios independentes a escolha repercutiu muito bem. Em outros, devem ter, como sempre, julgado vermelhos os nomes. É tudo que há de mais falso. O Castro é o varão prudente por excelência. E o Hermes é de nossa escola: pensamento liberal do melhor quilate." Era difícil acalmar as águas.

Na medida em que as dificuldades cresciam, Anísio mais se empenhava pelo regresso de Afrânio, esperado em outubro. Parecia uma eternidade. Anísio ao amigo distante: "Dificuldades? Continuavam mas havemos de vencê-las para realizar obra digna de nós, diz V., obra digna de V., sobretudo, digo eu. Foi grande a alegria que me deu sua carta. O Brasil merece o seu entusiasmo. E com ele iremos até onde for preciso. Mas, volte. Não sabe como é grande a sua falta e como me parece longe esse outubro. Adeus. Sempre aí com V., apesar dos silêncios." Evidentemente mal avaliava a tormenta próxima.

Liberal, infenso a todas as violências, Anísio, no fundo, conservava certa pureza, por vezes, raiando pela ingenuidade. Não tinha, porém, como se libertar da pecha de comunista. E tenaz campanha envolveu implacavelmente quanto realizava no campo da educação. Entre os papéis deixados por Afrânio Peixoto há um breve balanço do realizado por Anísio, no Departamento de Educação, "como não fez até hoje nenhum educador nacional, escreveu Afrânio, como não se fizeram nos quatrocentos anos precedentes. Edificou 26 grandes prédios escolares modernos, sociáveis, para educação pública, instituiu neles a escola progressiva, permitindo experiências pedagógicas de êxito comprovado, organizou a administração do ensino em bases de controle e eficiência, aumentou a matrícula e as assiduidades de 80.000 para 120.000, promoveu por meio de cursos o reajustamento do professorado à atualidade educacional; criou e formou um corpo de orientadores pedagógicos acessório ao exercício escolar; instalou o Instituto de Pesquisas Educacionais; reorganizou o ensino técnico e profissional; instituiu o ensino secundário municipal, comparado, em excelência, ao federal e particular; transformou a antiga Escola Normal em Instituto de Educação, onde um curso geral prepara para a especialização didática, mais preocupado com a matéria e os métodos intrínsecos do seu ensino com a massa total de conhecimentos, do que com imaginários métodos de ministrar qualquer conhecimento... finalmente criou a Universidade do Distrito Federal." Era a cúpula daquele novo mundo educacional.

De certo modo, aproveitando o que haviam realizado Carneiro Leão e Fernando de Azevedo, Anísio reconstruíra e inovara desde os alicerces: a Universidade seria a catedral da nova religião. Ele e Afrânio a amavam imensamente.

Dificilmente, Anísio conheceria a justiça. Inicialmente, passara do catolicismo ultramontano para o liberalismo, e o acusaram de americanizar a educação. Agora, acoimaram-no de comunista. Ele, que jamais fora marxista. E durante décadas não houve como libertá-lo daquela pecha. Em 1936, escreveu ele a um amigo, dando conta do que ia pelo País: "Não se pensa, cheira-se. Agora tudo lhe cheira comunismo." Na verdade equívoco pelo qual pagaria até o fim da vida. Escreveu Edson Nery da Fonseca, da amizade intelectual de Anísio, que tal equívoco fora "miseravelmente explorado pelos interesses criados em torno de colégios particulares: interesses defendidos por uma parte do clero e até por alguns membros da hierarquia eclesiástica". Aos amigos era impossível aceitar a acusação. Tanto mais que "nunca houve no Brasil - observou o educador Lauro 0. Lima - maior americanista em matéria de educação". Nada impediu, porém, fosse "ferozmente combatido, terminando por ser considerado esquerdista, à falta de melhor argumento para combatê-lo". Ele que americanizava o pensamento brasileiro em matéria de educação, principalmente difundindo as idéias de John Dewey, violentamente combatido pelos educadores soviéticos. Lembrada pelo próprio Anísio, é esta afirmação de N.K. Goncharov, educador marxista: "Os educadores reacionários esforçam-se nos Estados Unidos por demonstrar lealdade aos donos de Wall Street, formulando os fundamentos teóricos do sistema norte-americano de educação. Solto no palco está o bisão endurecido John Dewey, com 90 anos de idade, ex-catedrático da Universidade de Columbia."

Devoto de Dewey, Anísio via-se contraditoriamente acusado de comunista, mácula da qual jamais se libertaria. Na realidade, Marx nunca fora do seu convívio. Mais tarde, a propósito das idéias que lhe atribuíam, ele escreveu a Paulo Duarte: "Tem V. carradas de razões quanto à ignorância de Marx. Conheço Marx como conheço Freud, de oitiva. Nunca os li. Em filosofia, sou uma mistura de universalismo cartesiano com pragmatismo americano." Em seguida, ele fazia o seu próprio julgamento: "De tudo me fica a idéia de que o que há é o método de pensar e todos os resultados desse método são contribuições que têm de ser levadas em conta dentro das condições temporais em que foram feitas. Temos que utilizá-las nesse caráter de rigorosa relatividade."

Anísio abria o coração magoado. E para não ficar a meio caminho dessa confissão sobre o que pensava, concluía: "O problema humano é tão amplo que não cabe dentro de nenhuma das contribuições históricas que o homem lhe tem trazido. Vejo Marx mais como economista do que como filósofo. Como economista continua a ser terrivelmente importante, por trás de qualquer filósofo está algum economista. E hoje não há como não ter Marx por trás." Modesto, ele confessava: "A minha fraqueza nesse campo é manifesta e só não é mais grave porque procuro raciocinar dentro do empirismo anglosaxônico que, de qualquer modo, não me distancia irreparavelmente do materialismo de Marx." Por fim, vinha Dewey, o mestre: "Deixemos, porém, isto, pois lhe reconheço toda razão em dizer que a ‘experiência' de Dewey equivale à praxis de Marx. Toda a questão está em considerar tanto Dewey quanto Marx históricos, o que corresponde a reconhecer que temos de examinar o homem e o mundo de cima dos seus ombros e não sob os seus olhos, que não podiam ver o que já agora podemos ver."

De fato Anísio vivia em busca da verdade. Darcy Ribeiro, que bem o conheceu, diria que, fiel à verdade, ele não tinha compromisso com idéia nenhuma. Ao que acrescentou: "As idéias são vestimentas provisórias de uma verdade inatingível... Anísio era o próprio questionamento... De tarde questionava o que tinha dito de manhã. Perturbava com isso muita gente." Ele seria sempre assim.

De Ênio Silveira, seu colega na Editora Nacional, é este testemunho: "Anísio era, antes de mais nada, um antidogmático, um cético altamente especulativo em todos os terrenos de atuação mental. Tanto que, muitas vezes, o vi entregue ao exercício de armar profundas críticas às próprias concepções pessoais que a reflexão e a prática o haviam levado a estabelecer sobre as teorias pedagógicas e sua aplicação à realidade brasileira." No fundo, um eterno insatisfeito. Para ele nada era definitivo. Escreveu o seu genro, Paulo Alberto, mais conhecido pelo pseudônimo de Artur da Távola, que Anísio costumava dizer: "Adoro modificar o meu pensamento." Contudo, ninguém mais intransigente nas suas convicções. Tendo nascido um dialeta, a discussão, o debate, era para ele fundamental não somente como forma de se chegar à verdade, mas também como necessário exercício mental, que cultivava com deleite, preferindo que dele discordassem, permitindo-lhe as mais imprevistas cambalhotas da inteligência. Contudo, extremamente educado, sensível, não o alegrava a sensação de haver esmagado o interlocutor pelo vigor da argumentação. Era um sol que brilhava, mas não desejava queimar.

O levante comunista de 1935 tornou-lhe incômoda a permanência na Secretaria. Havia meses que os adversários do Prefeito Pedro Ernesto, antigo revolucionário, presidente do "Club Três de Outubro", espírito liberal, e, portanto, infenso aos reacionários, o consideravam uma pedra no caminho. Era preciso removê-la. Para isso o primeiro passo foi atirar contra o Secretário da Educação. No fundo era a luta entre a escola pública e a escola privada, em boa parte confessional. Haviam-na transformado num confronto entre fascistas e comunistas. Não havia lugar para o meio termo. Acusado de ateísmo, de populista, de estatizante e americanizante, de subversivo pela defesa da escola única, Anísio se revelou o alvo fácil para se atingir Pedro Ernesto. Jamais apegado aos cargos, ele recusou ser um ônus para o Governo e cuidou de se exonerar. Fê-lo com a veemência necessária. Dezembro começava quando escreveu a Pedro Ernesto: "Pela conversa que tive, ontem, com Vossa Excelência, pude perceber que a minha permanência na Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal constituía embaraço político para o Governo de Vossa Excelência." A demissão adiou o sacrifício do Prefeito. Na ocasião ela representou, porém, um dever, e Anísio o cumpriu altivamente. Nada que denotasse temor ou transigência. A carta prosseguia: "Renovo a declaração, porque não é possível aceitar agora a minha exoneração sem a ressalva de que ela não me envolve, de modo algum, a confissão, que se poderia supor implícita, de participação, por qualquer modo, nos últimos movimentos de insurreição ocorridos no País. Não sendo político, e sim educador, sou, por doutrina, adverso a movimentos de violência, cuja eficiência contesto e sempre contestei. Toda a minha obra, de pensamento e de ação, aí está para ser examinada..." Pedro Ernesto confirmou a posição do auxiliar: "Dou meu testemunho - respondeu ele a Anísio -, da veracidade de quanto afirma em sua carta, pois do nosso convívio pude perceber que o Secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal foi sempre adverso aos movimentos de violência e foi sempre um apaixonado apologista da verdadeira democracia."

No ambiente que se forjara, a demissão foi inevitável, e Anísio teve a solidariedade dos colaboradores. Afrânio Peixoto, Carneiro Leão, Roberto Marinho de Azevedo, Gustavo Lessa, Mário de Brito, Paulo de Andrade Ribeiro e Adroaldo Junqueira Ayres foram dos primeiros a protestar contra a iniqüidade. Calorosos, eles saíram a campo:

 

Nós, abaixo firmados, colaboradores do Dr. Anísio Spínola Teixeira nos serviços de Educação no Distrito Federal, onde prestou, em quatro anos, maiores benefícios à causa escolar do que qualquer outro brasileiro em sua existência, vimos afirmar nossa surpresa ao ato que o afastou daquela administração.

Espontaneamente demissionários, temos a hombridade de declarar nossa inabalável convicção, haurida em testemunho quotidiano, de que o Dr. Anísio Teixeira se manteve absolutamente alheio a qualquer ideologia política subversiva da ordem constitucional, exclusivamente voltado à cultura nacional, pela educação e só com a educação.

 

Certos da improcedência das acusações, muitos outros se solidarizaram com o demitido. Se de alguma coisa podiam acoimá-lo era de haver querido americanizar a educação. "Nunca houve maior americanista em matéria de educação", afirmaria Lauro O. Lima. Era exato. No momento, entretanto, a versão oposta era invencível.

Também ferido, Afrânio Peixoto, paciente, esperou dez anos para desvendar a farsa montada pelos adversários. Somente em 1945 ele enviaria a Afonso Pena Júnior, que o substituíra na Reitoria da Universidade, este desabafo vingador:

"Desabafo (a Afonso Pena Júnior). Faz dez anos: 1935, 1945. Havia uns lugares cobiçados. Inventou-se que eram comunistas o A.T. e o A.P. Mesmo demitidos, pois pediram demissão, quiseram prendê-los... O jovem diretor da Faculdade de Ciências e Letras declarou que os professores franceses contratados pelo segundo eram 'inúteis, perigosos e nocivos'. Inúteis porque havia ele e os amigos; perigosos e nocivos porque seriam comunistas." Era a velha tecla, que ficava atravessada na garganta de Afrânio. O desabafo continuava: "O grande líder católico telegrafou então a Jacques Maritain indagando se não o eram... O Governo francês telegrafou à Embaixada reembarcasse a Missão se o jovem fosse ainda diretor. Mas, desaguisado providencial entre Reitor e Diretor deu com os dois em terra. Veio você. Foram os professores franceses recebidos. Maritain respondeu que nove deles eram católicos praticantes e o que não o era, Emile Brehier, era o maior de todos pela ciência, erudição, altura moral. V. Exa. compendiou num livro as magníficas conferências desses professores magníficos... Passaram-se dez anos. V. Exa. no ostracismo. A.T. enjoou o serviço público e enriquece, com a exportação de manganês para a guerra. A.P. pergunta se não será agora preso... por conservador direitista... O jovem diretor um entusiasta do Prestes. O líder católico já visita o dito Prestes... Exa., não é isto desabafo ... é o mundo ... E engraçado! " Espera longa: vingança maior. Afrânio nada esquecera.

Exonerado, Anísio embarcou para Buenos Aires. Tentava amenizar as amarguras. Fiel aos amigos, ele, ainda de bordo do General Artigas, escreveu a Afrânio: "Antes de saltar, depois de pôr, entre nós e o Rio, algumas centenas de milhas, o nosso pensamento vai para você, em primeiro lugar." Era a gratidão. E prosseguia: "A vida humana é feita de algumas escolhas e decisões. Uma das maiores escolhas de minha vida foi a sua amizade. Uma das maiores graças, foi você ter feito a mesma decisão. Nunca mais me faltou companhia nos dias tristes ou amáveis da jornada. É essa companhia que esteve conosco em todo esse dezembro meio inesperado e meio melancólico com que terminamos 1935. E essa companhia é que vai ainda conosco para o nosso repouso. Você há de permitir que agradeçamos aos Deuses essa ventura." A amizade suavizava o infortúnio. E ao lado de Emilinha, jovial, alegre e que o acompanhara, ele reencontrava aspectos felizes da vida. "Estamos ambos ótimos, dizia. Tão ótimos que todo o vapor nos está a julgar recém casados..." O amor superava as decepções.

Ninguém ficara indiferente à iniqüidade. Pouco antes, Afrânio Peixoto recebera esta carta (4.12.1935) de Lobato: "Afrânio: De passagem pelo Rio, rumo ao petróleo de Alagoas, não posso furtar-me ao comovido prazer de abraçá-lo pela nobilíssima atitude no caso Anísio. Raras vezes no mundo um golpe insidioso, dado contra a Inteligência, encontrou repulsa mais nobre. Você e os mais que se manifestaram solidários com o nosso maravilhoso Anísio salvaram a Consciência Nacional duma vergonha sem nome. De todo o coração, Monteiro Lobato." A insídia comovera as consciências.

 

Vencida a primeira batalha, os inimigos almejavam ganhar a guerra, preconizando a prisão de Anísio. Mal retornou de Buenos Aires, choveram as ameaças. Era a maré montante do fascismo, e não havia como resistir. Por fim, atendendo ao conselho dos amigos, Anísio deixou o Rio de Janeiro. Novamente, buscou o sertão, onde se sentia em segurança.

Cerca de dois anos viveu na Fazenda Gurutuba, próxima de Caetité, e residência da irmã Evangelina, casada com o Cel. Francisco Pires de Oliveira, homem pacato, laborioso e conceituado proprietário rural. De bom ânimo Anísio se dispôs a suportar aqueles tempos de injustiça. Que fazer, se não esperar o fim da tormenta?

Lobato não mais esqueceria esses dias de opróbrio. Passados alguns anos, ele escreveu a Anísio: "Lembro-me de quando te vi no Rio de Janeiro, traqué pela polícia, escondido pelos amigos como um grande criminoso - e naquela ocasião também chorei. To whom the bells toll ? Todos estamos implicitamente perseguidos, foragidos, escondidos com você, enquanto lá fora o tumor Vargas sorria com o seu charuto e entregava a Cultura Brasileira aos Percevejos da Cúria Romana." Era a confirmação do que dissera a um amigo, Flávio de Campos, em fevereiro de 1938: "Num País em que essa maravilha de inteligência e caráter que se chama Anísio Teixeira vive escondido, só há um protesto dos que têm voz: o silêncio."

Foi nessa ocasião que Lobato, então às voltas com o petróleo brasileiro, mandou a carta acima reproduzida a Afrânio Peixoto. Nem tudo se perdera.

Nessas horas, perseguido, Anísio se integrava na simplicidade da vida do campo. "No fundo deste sertão, escreveu a Lobato, o silêncio e o deserto nos tornam humildes e pequenos." Encantavam-no as coisas simples. Familiarizara-se até com um alegre casal de lavadeiras-de-nossa-senhora, o pequeno pássaro de que fala Lobato, e que por algum tempo veio cantar-lhe à janela naquelas frias manhãs sertanejas. Depois, criados os filhos no ninho próximo à casa, elas se foram com as águas. Não saberiam, perguntou Anísio, "que o homem é o mais terrível dos animais ferozes?" Distraíam-no as seriemas e as perdizes, únicos habitantes das planícies sem fim. E convidando Lobato a visitá-lo, dizia-lhe: "A cidadezinha morta de Caetité vive rodeada de uns gerais que são tudo que há de mais verde, mais largo e mais alegre..." A solidão fazia-o romântico naqueles dias de abandono: "Mato o tempo com distrações cro-magnônicas: caça e vaquejadas. E à noite, colo o ouvido ao éter (rádio) e ouço as confusões do período da estupidez. Depois enterro-me nos meus livros e sonho com o futuro... Tenho três mundos, pois, com que me divertir. O de ontem, o de hoje e o de amanhã. Sou assim feliz como um pinto. Porque, dos três, se o de amanhã, o melhor, é também ainda possível, o pior, o de hoje, só o tenho pelo éter (rádio) e o de ontem, afinal, suportável, é o que vivo corporalmente." E ao dar conta do que lhe ocorria, informara ao amigo: "Sou, hoje, lenhador, vendo madeiras e dormentes à estrada de ferro. Comprei umas terras e creio que retornarei ao destino rural dos meus bisavós. É um esforço para me primitivizar que não deixa de ter os seus encantos." Na verdade, buscava iludir-se. Como conformar-se o sonhador com o destino que lhe interrompera a caminhada? E deixando entrever a inquietação, confessava com certa amargura: "O cabritozinho do espírito ainda pula e esperneia e se bate - tão habituado ficou com a sua vida de livros, de complexidades e de inquietações -, mas virá, por fim, a habituar-se à planície e à sóbria, poupada e sumaríssima vida intelectual de um criador de bois e vendedor de lenha." Era a teimosia da ilusão. Os amigos é que se não enganavam. E como se falasse pelos amigos, Homero Pires deixou vazar a revolta de muitos: "Se o Brasil fosse uma Nação - escreveu a Anísio -, o seu caso seria impossível. Você, acoitado, refugiado nos sertões, por ter feito a obra mais benemérita de educação no Brasil." Parecia inconcebível. Havendo permanecido no Rio, Hermes fora preso. Soltaram-no depois de um ano, sem jamais lhe dizerem por que fora detido. Cada inquisição tem as suas vítimas.

Mais ou menos por esse tempo, Anísio leu a História da educação, de Afrânio Peixoto, que a enviara para Caetité. O agradecimento é luminoso - o sofrimento decantara o espírito do educador. Não é demais reproduzir-lhe largos trechos. "Querido Afrânio: li a história da educação, no meu sossego da roça, em um dia. E saí da leitura com essa vertigem de quem assiste, em algumas horas, todo o espetáculo do pensamento humano... É pena que não sejam mais extensos esses seus luminosos "ins", aquelas sínteses da luminosa clareza com que você pontua a exposição. No dia em que se fizer o capítulo do Brasil por outro que não Afrânio Peixoto, tem-se que dar a esse educador o lugar que você dá a Montaigne. Não foi um educador, foi uma educação." Ao falar do autor de Ensaios, Afrânio escrevera: "Montaigne foi, entretanto, mais que um educador, foi uma educação, e, sob este aspecto, em escala bem menor, só se lhe podem comparar duas outras educações: a de John Stuart Mill e, um pouco, a do nosso Rui Barbosa. Sem favor, a eles se reúne Anísio Teixeira, também ele mais do que um educador, pois foi uma educação." A espontaneidade do missivista não fazia menor os seus ensinamentos. E a carta continuava:

"Você fez história da civilização fazendo história da educação, e esse é o seu grande elogio, a despeito dos impagáveis críticos nacionais. E se em alguma coisa o livro poderá melhorar, é na acentuação desse aspecto. Por exemplo, tornar, se é que é possível, ainda mais funda a linha de eficácia, no curso da civilização, da educação não somente pensada mas realizada nos povos. O caso do 'milagre grego’ e sobretudo do 'milagre judaico' são exemplos marcantes desse tipo de educação realizada e não apenas pensada. O caso do cristianismo também, como efeito fundamental de sua organização educacional. Creio que vê onde quero chegar. Mostrar ainda mais vincadamente a educação como causa e fautora da civilização, quando a educação é realizada." O exílio exaltara a clareza e o vigor do pensamento. A carta flui como breve aula a que não falta a paixão do educador, e dela não é demasia lembrar este trecho: "Mas, o aspecto a salientar seria, entre os antigos, a educação do templo, do altar e da guerra, depois a educação do coração e do amor das grandes religiões universais, o 'milagre' de Buda, de Jesus, de Maomé, as deturpações e acréscimos dessas doutrinas e a educação resultante, a idade média, o renascimento, a idade moderna e contemporânea, enfim, com as educações resultantes, de suas idéias e condições." Dir-se-ia que o exílio aprimorara o pensador.

Nos meses de refúgio, um dos poucos prazeres intelectuais foi a correspondência com Afrânio Peixoto. Cartas que, dizia, chegavam, atravessando metade do Brasil e passando por Caetité, de mão em mão, até esta fazenda, onde curto a minha solidão".

Eram custosas as notícias do mundo. Afrânio costumava mandar-lhe também os livros que publicava, e dos últimos foi a Educação da mulher. O educador vibrava. E, repetindo o que escrevera em carta anterior, extraviada no difícil percurso sertanejo, dizia: "Contei todo o meu entusiasmo e tudo que aprendi e tudo que retifiquei com o seu esplêndido depoimento, tão Afrânio, claro e profundo, completo e curto, objetivo, impessoal, desapaixonado e ainda assim tão afirmativo, tão radical, tão corajoso e tão cheio de calor e de imaginação, que são as condições do pensamento vivo."

O isolamento era propício à meditação: de algum modo Afrânio reconciliava-o com a vida. Na carta, longa, Anísio dizia numa expansão de entusiasmo: "Porque de fato o seu livro me deixara grato e satisfeito com a vida, que, por entre todos os seus desapontamentos, dava-nos ainda um Afrânio. E um Afrânio vivendo no Brasil podia escrever ensaios universais como esse sobre a mulher que cheiram àquelas obras clássicas que os homens podiam escrever no período do renascimento, em que a vida intelectual não era ainda a própria vida ambiente mas segredo e privilégio de alguns que a fiavam e teciam em seu espírito, dando-nos dela apenas os frutos acabados e perfeitos." Depois, retomando os sentimentos do sertanejo, acrescentava: "Nos meus vagares de homem hoje da roça, tenho ficado assim a meditar na sua - perdoe-me - grandeza intelectual, que posso melhor perceber por me achar recuado não só de algumas centenas de léguas, mas de algumas centenas de anos - vivo pouco mais ou menos na era sumeriana, e me encho de tão justificada veneração que minha amizade se toma daqueles cuidados tão sertanejos 'de não incomodar'. "Sensível, tímido, Anísio não sabia como agradecer a fidelidade do amigo. Para onde o levaria o novo ano? "1937 - concluía - começa encontrando-me nesse estado de meia descrença a que me levou o histerismo dogmático de doze longos meses. O seu exemplo é, porém, uma janela de onde se olha para fora." Por maiores as amarguras Anísio conservava uma reserva de esperança e otimismo. Era a maneira de se reconciliar com o mundo, que voltava a divisar pela janela entreaberta pelo querido Afrânio.

Se a inteligência continuava brilhante, a alma conservava a ponta de amargura, que desponta nesta confissão: "Acabara de ler a História da educação - diria Afrânio - quando me chegou aquele seu santo breviário do riso. Falta um capítulo à Swift, no breviário, o da educação no Brasil, da História da educação. Não lhe parece? Mas, será antes amargo, doloroso, e tremendamente triste..." Tinha razão. E, no fundo, a história se confundia com os sofrimentos do missivista.

As confidências minoravam as angústias do exilado. De Afrânio Peixoto vinha sempre uma palavra de amizade e de conforto. Sem esquecer os tempos idos, Anísio acrescentara: "Um reparo apenas. O autor sendo quem é, não pôde dizer na página 259 o maior ato do Diretor de Instrução a que se refere ali: nomear Afrânio Peixoto Reitor da Universidade do Distrito Federal, sob cuja inspiração ela surgiu e se constituiu e contratou professores e ia viver..." A Universidade, entretanto, morreria. E ele assim resumiu os anos em que dirigira a educação no Distrito Federal: "Procurei, durante perto de cinco anos, elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da república e da democracia, distribuí-Ia por todos na sua base elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores, e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que então submergiu o País. Os nossos insignificantes progressos democráticos pareceram perigosos e um obscurantismo que se julgaria impossível entre nós determinou um retorno de 180 graus na roda do leme nacional." Mais um ciclo de sete anos fechara-se na vida de Anísio.

A tranqüila solidão permitia-lhe avaliar o passado. Publicou então Educação para a democracia, síntese do trabalho no Distrito Federal. "É um livro vivido dia a dia, porque fundamenta e expõe uma obra ainda mais vivida, intensa e afanosa." Em verdade "o jornal de um trabalhador desassombrado de quatro anos..." Escrever era a maneira de perpetuar. Quando retornaria à arena?

Fernando de Azevedo era dos mais inconformados com a ausência. Senhor de "um mundo interior em que o sol aparece poucas vezes", a solidão parecia-lhe benéfica: "De minha parte, escreveu a Anísio, reconheço terem sido utilíssimas essas voltas periódicas à solidão que é, para homens como nós, a oportunidade feliz para esses 'encontros consigo mesmo', em que o indivíduo, dando balanço às suas forças e aos resultados de seu trabalho, se habilita melhor à disciplina de sua vontade e de suas energias para a vida de ação. Lembra-me de um verso daquelas estrofes magníficas de Lamartine a d'Orsay: 'J'ai veu pour Ia foule, je veux dormir seul'."

Acreditando que mais do sofrimento do que dos aplausos medraria a obra realizada, acrescentava: "Veja V., meu caro Anísio, que não lhe será prejudicial esse recolhimento, nem a V. nem à obra, em que estamos empenhados, da educação nacional. Demais, essa obra (não tenhamos dúvida) viverá menos pelos aplausos que coroarem os nossos sucessos do que pelo sofrimento que soubermos suportar com os seus reveses. Benditas as injustiças, que fazendo-nos refletir sobre ela e sobre nós mesmos, nos permitem engrandecer com os sacrifícios e purificar-nos com as provações!" Tendo experimentado reveses nas lutas pela educação, concluía aquela nota de estoicismo com uma ponta de esperança: "Esperamos que V. não tarde a voltar ao seu trabalho e a aumentar, com o seu idealismo construtor, a sua contribuição entre todas notável à organização de uma educação verdadeiramente democrática, tão atual e viva, tão ampla e vigorosa que, na criação de um povo e na construção de uma Nação, se reconheça um dia a parte que nos reservou o destino e que estivemos, na vitória e no revés, à altura de nossa missão." Naquela hora de angústia, as observações caíam como azeite sobre um mar encapelado. Mais do que uma carta era o Credo de um idealista obstinado. Lograria Anísio sobrepor-se às injustiças e amar a solidão?

Aos poucos, embalado pelo isolamento do sertão, o asceta adquiria nova visão do mundo. E a Lobato ele transmitiu a quietude do exílio. - "No fundo deste sertão", dizia-lhe, "o silêncio e o deserto nos tornam humildes e pequenos. Ainda hoje, neste domingo - estou só, absolutamente só, há quatro semanas, em uma deserta fazenda - eu andei por veredas sem fim a não ouvir outro ruído senão o de pássaros, o que não é um ruído..." Também a Afrânio Peixoto, que lhe escrevera lembrando os dias sombrios que haviam precedido a fuga, ele escreveu com suavidades: "Sarado de ilusões, 'com os olhos renovados para o quotidiano', perdi a minha dureza ascética e sou hoje um homem entemecido diante da vida. Chaque homme porte en soi Ia forme entiere de l' humaine condition. Esta palavra de Montaigne me tem servido para reduzir a minha mágoa a seus limites exatos e fugir de insistir na sua insignificância. E por isso mesmo a me abrir os olhos para o espetáculo dos outros homens a que me liga um destino absolutamente comum e a que faltam, bem mais essencialmente, as consolações de viver." Na medida em que depunha as armas, o combatente adquiria nova visão da vida e dos homens. E, de algum modo agradecido, ele continuava: "Muito mais ‘comblé' do que 'méconnu', eu me sinto, depois de tudo, o homem mais afagado da sorte que se poderia imaginar. Satisfaz-me esse estado de espírito, porque tinha horror de me tornar um desses espíritos 'aigris' tão comuns em nosso rarefeito ambiente social." A conformidade pousara no espírito de Anísio. Havia, porém, mais alguma coisa para se sentir "o homem mais afagado da sorte": em breve lhe nasceria um filho. Emocionado, dizia: "Reentregue à família de que me afastara o meu terrível noviciado de vida pública, esperando feliz e apreensivo a difícil fortuna de um filho, eu me descubro com aquela 'vida integral' de que V. fala...... afagava uma felicidade reencontrada. E dizia devê-la aos inimigos: "Separado de ilusões e de febre... o mundo talvez tenha perdido um fanático, mas ganhou um homem feliz. Se os nossos inimigos soubessem o bem que nos fazem... Sou hoje um homem que se pode entusiasmar sem se cegar, que pode dar sem se perder, que pode ver o extraordinário sem esquecer o quotidiano, e tudo isso devo aos meus amabilíssimos inimigos. Como é fácil amá-los das alturas onde eles me puseram..." Afinal era a vida com os seus altos e baixos, ilusões e realidades. Estas eram simples, e Anísio as vivia com tranqüilidade.

A Lobato ele não se esqueceu de comunicar um feliz acontecimento - a sucessão das gerações: novos Teixeiras continuariam a caminhada dos velhos Teixeiras e Spínolas. "Devo hoje ir receber Emilinha na ponta do trilho mais próximo. Esteve na Bahia às voltas com o médico e o dentista. Avalie o que não me veio mandar esse ano de deserto! Um filho, nada menos que isso. E eu que sonhava sempre uma liberdade meio aventureira, meio romântica... As duas possíveis mãozinhas que vêm aí me enraízam... Sou árvore, Lobato, sou árvore... cousas passarão por mim, mas já não poderei ir ao encontro delas... A vida nos domestica." E, mudado, Anísio pensava em "mergulhar no primitivismo sólido da terra". Em 16 de setembro de 1937, nasceu-lhe a primeira filha, Marta Maria.

Anísio não teve tempo para desfrutar dos prazeres iniciais da paternidade. Mal lhe nasceu a filha, uma chuva de boatos assoalhou que seria preso, e aconselharam-no a desaparecer. Novamente ele tomou o caminho do exílio no sertão.

Para acalmar o "cabritozinho do espírito" inquieto naquele deserto, Anísio deixou surgir, ao lado do criador de bois e vendedor de lenha, um apaixonado tradutor de grandes obras. Afinal, precisava carrear uma pedra para o futuro, consolo que sobrenadava em meio às decepções. Na ocasião, ele se imbuíra da idéia de que nada mais útil, para a formação de "uma mentalidade lúcida e crítica", do que a divulgação da História, na suas linhas gerais, "em suas lições fundamentais, em sua filosofia". Escreveu então a um amigo: "Humildemente já me atirei à tradução do Outline of History, de Wells. São 1.200 páginas quase milagrosas de clareza." O trabalho caminhara rápido, e ele comunicou a Lobato: "Terminei o Wells - o Outline - e a impressão que tive ao terminar, foi a de ter roubado o leitor... Não calcula o arrependimento de não ter deixado em suas mãos!... Às vezes, sonho que você poderia corrigir. Mas, corrigir é pior do que traduzir... E o livro é uma tal visão global do mundo, uma tão estimulante apresentação do drama humano, que só você, entre nós, a deveria reapresentar em português, aos nossos brasileiros. Não, traduzir é tão arte quanto escrever, e só escritores o devem fazer. E eu, positivamente, não sou escritor." Observação modesta e inexata, pois dele, pela clareza da inteligência, o escritor era inseparável.

O sertão revigorava-o. "Sou todo brotos e disposição para o trabalho", informou a Lobato. Havia algum tempo ele se aproximara de Octales Marcondes Ferreira, a quem se devera haver salvo a malograda editora de Lobato, transformada numa das mais importantes do País. Octales possuía o gênio do editor, e reuniu em torno dele, para o ajudarem, Monteiro Lobato, Anísio, Fernando de Azevedo e Henrique Cavalheiro, para lembrar apenas alguns. Para ele, Anísio era "um dos esteios da Companhia", e incentivou-lhe o sonho da tradução de livros fundamentais destinados a nutrir a cultura nacional. Em meio à solidão sertaneja, Anísio cercara-se de autores famosos - Dewey, Russell, Wells, Lobato... Aos estrangeiros ele imaginava traduzir, e entre estes, no primeiro plano, estava The Shape of Things to Come, de Wells, que tinha como um dos seus manuais. E enquanto aguardava The Mansions of Philosophy, de Durant, lia a sua História da civilização. Verdadeiramente muito pouco para o espírito habituado às aventuras da inteligência. Às traduções, se comparadas às criações do escritor, chamava-as de filhos adotivos. E escrevendo a Venâncio confessava as dificuldades do novo ofício: "Traduzir é uma arte diabolicamente difícil", dizia-lhe. Contudo, terminara Wells, cujas 1.200 páginas começara a rever e emendar. "Vamos ver - escreveu a Venâncio - se o Octales põe o seu O.K. O Outline tem um ligeiro sabor, em muitos capítulos, de apontamentos, e isso no inglês é ótimo. Mas, no português..." O tradutor mostrava-se temeroso.

Vencidos os primeiros tempos muitos acreditavam chegada a hora de ele retornar. Fernando de Azevedo disse-lhe sem rodeios: "Quero juntar o meu apelo que já lhe foi feito, ao que me informaram amigos, para terminar o seu retiro voluntário. É preciso, e agora oportuno, que V. volte às suas atividades, no jornalismo e na educação, no Rio ou em São Paulo. A sua longa permanência no interior, longe do grande centro, em que deixou tão profunda impressão do seu pensamento e de suas iniciativas admiráveis, não conseguiu apagar nem a lembrança de seus serviços, nem o reconhecimento de seus méritos excepcionais. Todos aguardavam a oportunidade de sua volta ao campo de ação e de lutas, em que ficamos em número tão reduzido e em que a sua ausência do Rio só contribuiu para uma apreciação mais justa de seus notáveis esforços pela solução dos problemas educacionais." O apelo não podia ser mais enfático. Calorosa, a carta continuava: "Ao que me têm informado amigos do Rio, a educação ali ainda se mantém no estado de colapso ou de paralisia em que ficou desde a sua partida e o seu exílio, ainda que voluntário. Nunca tive dúvidas de que, mais dia menos dia, lhe haviam de fazer justiça e novas oportunidades e perspectivas se teriam de abrir ao seu trabalho empreendedor, onde quer que os interesses subalternos e imediatos cedessem lugar às preocupações. Fico satisfeito por verificar que já soou a hora de dar por concluído o seu retiro e de tornar ao seio dos seus amigos e ao campo predileto de seus trabalhos e de seus estudos." Generoso, idealista, Fernando de Azevedo buscava convocar o bravo companheiro.

Embora lisonjeado e agradecido, Anísio, entretanto, escarmentado pelas injustiças, julgava temerário lançar-se ao mar alto da "grande aventura". E, em vez de retornar ao amargo e "terrível serviço público", ele se associou aos irmãos Jaime e Nélson para a exploração e exportação de minérios, indo morar em Salvador. Depois de sonhar com altos vôos via-se chumbado ao terra-a-terra dos interesses comerciais.

Por algum tempo, ele permaneceria simples observador. Necessitando, porém, ganhar a vida, era comum encontrá-lo ao longo do cais, na Bahia, examinando montanhas de minério prestes a embarcar. Certamente não se desinteressara da vida política do País. O intervalo, embora doloroso, ou talvez por isso mesmo, permitira-lhe repensar o País, a educação, os seus problemas. Deflagrada a sucessão presidencial com as candidaturas de José Américo e Armando de Salles, ele mandou a Hermes Lima, que o convocara para retomar a caminhada, longa carta, na qual alternara política e educação, reflexos das meditações do exílio. "Estou cada vez mais convencido de que a escola não pode ser reformada diretamente, de que a escola depende do pai, do meio da grande ignorância geral. Esta é que deve ser o objetivo das campanhas das inteligências independentes. Só as inteligências independentes podem fazer alguma coisa para remover o medo e a ignorância, as duas armas dos fanáticos de toda a parte." Sinal de haver concluído serem estas as armas que o haviam ferido. Não bastava educar a criança - era preciso educar a sociedade. Pouco adiante a análise continuava: "Somos, por ausência substancial de instrução - é preciso sempre lembrar que não tivemos nem ensino secundário, nem universitário - um País sem moralidade de idéias, sem inteligência de conseqüências, com uma vida social sem lógica, sem ordenação, sem sentido ideológico. Esse aspecto se revela em nossa usual observação de que nada tem conseqüência no Brasil, e no espanto do estrangeiro ante o sentido diverso que os fatos e os atos têm aqui entre nós. Diverso do da Europa, do da América, de todos os países de civilização similar." E analisando as forças que, afinal, aglutinavam a sociedade em meio a essa inconsistência, dizia: "Se fosse só isso, porém, o Brasil não poderia durar. Qualquer cousa substitui essa falta essencial de moralidade e seriedade social. E essa qualquer cousa é a nossa doçura, a nossa bondade, o nosso conceito privado de moralidade. Somos o País da amizade pessoal. Substituímos a estrutura ideológica coletiva da sociedade, a moralidade de idéias, a moralidade do interesse geral por uma base afetiva e sentimental." O conceito era severo. Em seguida, indagava: "Como, pois, nessa sociedade, fazer qualquer cousa com idéias e por idéias? Como, pois, fazer o brasileiro compreender que as idéias tomadas a sério reformariam a vida? Como, pois, dar base racional à nossa extraordinária vida social de base puramente afetiva? É esse, meu caro Hermes, o problema em que me debato hoje. É essa a dificuldade que me põe extraordinariamente modesto nas minhas perspectivas de ação social no Brasil." A realidade esmagava o pensador. E alongando a vista sobre as perspectivas prenunciadas em meio à campanha, Anísio, antecipando-se ao que aconteceria, não escondia pessimismo: "Teremos de sofrer um pouco para fazer da democracia uma realidade, mas muito mais teremos de sofrer se, por desespero infantil, buscarmos qualquer das duas soluções desesperadas em um País como o nosso, de vida folgada e distâncias sociais quase nulas." E um tanto surpreendentemente, fazia o paralelo dos dois candidatos: "Entre o Armando Salles e o José Américo, preferi o primeiro. Porque acho o segundo ainda com uma base sentimental e não intelectual de pensamento. O Armando é uma inteligência de formação democrática que se pode tornar ditatorial por interesse. O José Américo é uma formação ditatorial com sentimentos democráticos. Se o País fosse um país jà formado, ele enquadraria um e outro, no que ele fosse como o País. Qualquer desses dois homens, porém, irá fazer mais cousas ao Brasil do que o Brasil a eles. E o meu horror a qualquer confusão mental, o meu horror à instabilidade, e o meu horror aos temperamentos pouco lúcidos, inclinou-me para o Armando que me parece mais dominado pela inteligência e com uma igual nobreza pessoal." Escrita da Bahia, em 12 de agosto de 1937, a carta refletia o interesse pela vida pública. Anísio adiante retomava o assunto: "O discurso José Américo me entusiasmou pela coragem, pelo sentimento da realidade brasileira, por um retorno aos problemas do homem comum, por uma vigorosa hostilidade à ilusão brasileira de civilização. Queria, porém, encontrar nele mais consciência das dificuldades, mais precisão de planos, mais ossatura intelectual, mais lucidez de observações e de idéias. Estou inevitavelmente mais próximo do José Américo pelo coração; o que ele sente é o que eu sinto, mas desejava que me ajudasse a ver melhor a solução e o como das cousas que ele me deixou entrever. Com o outro, não sou ultrapassado no meu sentimento, mas entendo mais o que quer. É menos sentimental e mais organizado. É mais lúcido. Parece-me que nos reporá na estabilidade, pelo menos, de antes de 30. E o Brasil já tem razão de ter saudades de antes de 30." A carta é de agosto de 1937. Três meses mais e Getúlio Vargas implantava a ditadura do Estado Novo. Contudo, restava uma ponta de otimismo, reflexo de idealismo: "Sinto ainda, dizia, a grande nobreza da aventura humana e acho que nesta parte do planeta que chamamos Nossa, essa aventura poderá tomar um matiz muito simpático e talvez importante. A nossa contribuição ao sentimento de fraternidade racial me parece particularmente marcada. E depois há qualquer cousa de muito mais poderoso que nós - é a nova geração. Devemos pensar e ajudar se possível - para que ela faça melhor do que nós." Sinal de continuar confiante na educação.

A presença do Estado Novo afastou qualquer possibilidade de Anísio retornar então à educação: o exílio deprimira-o. Deixara inclusive de escrever aos amigos, e esse estado de espírito perdurou até lhe nascer a segunda filha, Ana Cristina, em janeiro de 1939. Em fevereiro ele comunicou a Fernando de Azevedo: "... vim procurar aqui na Bahia repouso e alívio para uma situação de espírito que já se ia tornando de certo modo difícil de tolerar. Não direi que a encontrei. Pelo contrário, os períodos mais longos de meditação antes me reaqueceram a consciência de uma crise que aí o trabalho não me deixara tomar conhecimento. Envolvido por uma onda de perplexidade e quase de irritação, não escrevi durante esse período a ninguém. Só outro dia retomei a minha correspondência." Ainda uma vez as emoções da paternidade sacudiam-no. E a carta prosseguia:

 

Foi com efeito o nascimento a 30 de janeiro de uma segunda filha - a Ana Cristina - que me veio de certo modo curar. Colhido pelo dramazinho elementar mais forte do nascimento de uma filha, retomei os meus contatos com a vida e me senti mais apto a sofrer-lhe as terríveis imposições que ela me vem fazendo ultimamente. Durante todo esse longo tempo pensei fundamente em V., de quem tive rápidas notícias pelo Octales... O meu silêncio foi muito mais um desses silêncios de íntima comunicação e solidariedade em que por vezes se deixam cair os amigos, mesmo na presença um do outro, do que de esquecimento ou distância. Agora, porém, que a chegada de uma filhinha vem de certo modo renovar-me a coragem, no dever de viver, apresso-me em lhe vir pedir as notícias, e levar-lhe mais expressamente a certeza de uma solidariedade que nem mesmo por um momento lhe faltou em toda essa longa ausência e em toda a sua dolorosa provação.

Os meus votos - votos de coração - são para que o seu espírito de tudo triunfe e saia ainda mais robusto, se possível, para a luta sem tréguas que representa o ideal de uma vida de serviço como o que lhe empolgou. Há um preço definido a pagar pela vida, mas esse custo da vida sobe a alturas astronômicas quando escolhemos para essa vida o ideal mais alto.

 

Falando ao amigo, Anísio falava também de si próprio. Quem mais do que ele pagara alto preço pelo ideal? E, voltando ao berço que o reanimara, concluía com ternura:

 

E se lhe pode ajudar a V. o saber que um pobre-diabo como eu redescobre motivos de entusiasmo nos elementares e sadios deveres da família, colhendo nos olhos espantados e cândidos de uma criancinha de quinze dias, lições que já não encontrava em minha inteligência - aqui lhe deixo essa humilde confissão...

 

Em meio às incompreensões e sofrimentos, Anísio reunia forças para a jornada, na qual desejaria ter permanecido. Aos poucos, porém, a vida desviara-o, e não escondia certo sentimento de culpa.

 

Sinto - escreveu mais ou menos por esse tempo - com efeito que vou sendo arrastado para setores completamente diversos dos em que batalhei e vivi até hoje. E que não resisto devidamente. Antes me deixo levar como se me agradasse a fuga que as circunstâncias me prepararam e me facilitaram.

 

Não lhe era grato esse distanciamento da "velha causa", cujo lugar via tomado por outras obrigações, outros deveres. Que lhe restava, no campo das atividades da inteligência, senão as traduções? "O único contato, diria a Fernando de Azevedo, que guardo com a nossa antiga profissão de fé é o das traduções que tão pouco me satisfazem, por isso mesmo que não sou um escritor, mas antes um professor e, talvez, um homem de ação." Na realidade era tanto um escritor, pela clareza das idéias, quanto homem de ação. Dizia Jaime Junqueira Ayres, que com ele conviveu, ter Anísio o braço ligado à inteligência, pois os seus pensamentos logo se transformavam em ação.

 

Na medida em que o tempo passava, Anísio tentou acalmar o "cabritozinho do espírito", desviando-o para a planície do dia-a-dia. E aos amigos, insistentes em vê-lo ocupar o lugar do combatente, respondia com sutil ironia. Não dizia o Presidente Getúlio Vargas estar o Brasil no melhor dos mundos? Anísio a Francisco Venâncio: "Vocês, com a sua generosidade, estão correndo o risco de me fazerem um dos 'roubados' deste nosso rico mundo de oportunidades. Não se aborreçam, portanto, se os não ouvir. Sempre achei como todo o mundo que o Brasil precisava de cabeças mais que de braços. Hoje, porém, estou com todo o mundo: o País precisa, mas é de braços. E os braços sempre me deixaram. Com os braços faço a minha agricultura e o meu comércio e me fortaleço nas velhas virtudes romanas das gravitas, dignitas e simplicitas. Sobretudo as simplicitas, a sancta simplicitas, que deve ser a nossa virtude nº 1. E dentro desse candidismo vou achando que o País vai admiravelmente e que me devo encher do ar de plenitude e satisfação que se desprende da 'hora do Brasil'." Isso é que se podia chamar de "felicidade condicionada!" Transbordante de humor, Anísio continuava: "O governo benévolo e soberano faz conosco o que, nos tempos ominosos do passado, só se fazia com os tzares. Não nos deixa ver as mazelas do fatigado corpo nacional. E há nada melhor do que isso? Viajar-se dentro das paisagens artificiais mais lindas desse cenário do Estado Novo - é delícia sem igual! Estou panglossiano e o panglossismo é a única forma disponível de felicidade nos tempos correntes... O tempo mal me chega para constatar a minha espantosa felicidade de viver em ambiente tão admiravelmente condicionado. A própria Europa tão atrasada em comparação como Brasil de 'céu limpo de nuvens ameaçadoras' mal nos chega por aqui. Sabemos vagamente que lá há nuvens ameaçadoras e nos compadecemos do singular atraso desse pedaço velho e caduco da terra." Concluía no mesmo tom: "E você, meu caro Venâncio, será que já está tão desabituado de ser feliz, que estranhe o colchão de pena em que vamos vivendo? Os votos meus são para que V. releia Pangloss e viva de acordo com esse grande filósofo. Tudo o mais é vaidade, e vaidade é vaidade." E depois da rósea visão de Pangloss, continuava: "Nos intervalos, leio e traduzo. Mas, os intervalos são poucos, creia. O tempo mal me chega para constatar a minha espantosa felicidade de viver em ambiente tão admiravelmente condicionado." Anísio preferia rir.

Afrânio Peixoto continuara fiel correspondente. Era a maneira de amenizar os dias do exilado. Mais ou menos nessa ocasião enviara-lhe pequeno livro sobre Portugal - Viagem na minha terra - e Anísio agradecera encantado: "Há em todo o livro - dizia-lhe - um misto de reminiscência, de serenidade e de canto, e todo o livro é verdadeiramente um hino. Como, nesses dias tão atrozes, pôde V. escrever um livro tão lindo? Quanto mais penso nisto, mais vejo quanto as suas raízes são profundas... que V. possa fazer farfalhar a sua fronde com tanta serenidade e tanta frescura e tanta sombra, é porque V. desceu muito com as suas raízes e subiu muito com os seus galhos e as suas folhas." O agradecimento era terno - aos poucos, Anísio esquecia os dias de amargura.

 

Por volta de 1939, Anísio se mudou para Salvador para gerir com os irmãos Jaime e Nélson a Sociedade Importadora e Exportadora, a Simel, empresa de exportação de minérios e importadora de locomotivas e material ferroviário. Era o propósito de trocar a cabeça pelos braços.

Por uma carta à irmã, Sinsinha, em agosto de 1939, sabemos um pouco das atividades de Anísio por esse tempo. Dizia-lhe: "Divido aqui o meu tempo entre uma colaboração um tanto ineficaz e vaga com o Jaime, as minhas traduções e a fazenda de Floresta. Fora as atividades comerciais do Jaime, tudo mais porém é plantar, para colher no futuro. E como no Brasil tudo é muito incerto, a colheita é por isso mesmo profundamente incerta. Eu, porém, se pudesse reduzia a minha vida à fazenda e à agricultura. Estamos tentando tudo: criação de éguas - tenho importado do Rio reprodutores com o auxílio do Estado - criação de cabras - e criação de gado. Apesar de todos os pesares, a minha impressão é que mesmo na Bahia a criação tenderá a crescer e melhorar. É a força das coisas..."

Foi monótona a experiência do homem de negócios. Gradativamente, salvo o trabalho do tradutor, Anísio se distanciava das atividades do educador, cujo espírito a Guerra cobrira de apreensões sobre o destino da humanidade. "A destruição material imensa será o menos, dizia. O pior é a sementeira do ódio, é a deterioração humana que uma catástrofe desta natureza produz. Adeus jovialidade americana, adeus saúde mental americana, adeus delicados móveis morais, adeus tudo o que faz da civilização algo doce e calmo e pacífico..." O horizonte parecia-lhe cada vez mais negro, pois a essas aflições somava-se o processo contra Lobato por causa da campanha em favor do petróleo brasileiro. E ao perseguido, que tanto o consolara nas horas do infortúnio, e agora exilado em Buenos Aires, ele escreveu evocando o Albatroz cativo, de Baudelaire. Também Lobato não pudera voar:

 

Exilé sur le sol au milieu des hueés

Ses ailes de geant l'empechent de marcher

 

As mágoas afloravam a cada passo. Talvez para as disfarçar, Anísio, mais ou menos por esse tempo, começou a veranear na ilha de Madre de Deus, no fundo da Baía de Todos os Santos. Era a praia do Suape, habitada por simples pescadores. De areias alvas, ampla, nela se quebravam pequenas ondas trazidas das águas rasas por um vento fresco, preguiçoso, que, nas tardes calmosas, deliciava os moradores. Anísio ganhava novas forças naquele convívio com a natureza. As casas, desprovidas de eletricidade, eram simples e acolhedoras. Abarrotavam-nas um bando de crianças seduzidas pelas atrações do mar, o banho, a pesca, os passeios de barco pelas ilhas próximas, cada qual com um toque peculiar e as suas histórias, geralmente fantásticas, que os pescadores repetiam satisfeitos.

Além dos vizinhos, alguns deles professores universitários, como Almir Oliveira, famoso ginecologista, Nestor Duarte e Jaime Ayres, advogados, Anísio gostava da companhia de humildes pescadores, ouvindo-os paciente e transmitindo-lhes a impressão de que nada os separava. Um dos seus segredos era fazer-se sempre do tamanho do interlocutor, evitando feri-lo com uma aparência de superioridade. Postas as cadeiras quase à beira d'água, as conversas eram intermináveis e alegres. Anísio deleitava-se naquela integração com a natureza e a simplicidade. Por vezes, para melhor gozar o deslumbrante pôr-do-sol, ele subia até à casa de um amigo, no cimo de pequena elevação, e embevecia-se vendo o sol de verão se recolher, iluminando o horizonte com os derradeiros raios de luz. Anísio era um puro, um simples. Josué Montello, ao fazer-lhe o perfil, escreveu que "ninguém mais afetuoso e cordial. A voz mansa. Os gestos comedidos. O próprio físico de Anísio - miúdo, enxuto, com uma luz suave no olhar, sem nada de discursivo, ajudava-lhe a mansuetude". Naquelas tardes suaves de Madre de Deus, Anísio era, involuntariamente, o centro de tudo. No fundo, permanecia, porém, um "americano". Por esse tempo, havendo ido à América, Afrânio Peixoto trouxera-lhe como lembrança uma bela edição de Dewey, e Anísio agradeceu-lhe encantado: "Meu grande Afrânio - aqui me chegou a sua lembrança magnífica da passagem pela América. É uma edição do pensamento de Dewey de pôr água na boca de um descrente quanto mais de um devoto como eu desse profeta da democracia... Afrânio, Dewey, América... tudo isso junto me pôs nos olhos aquela quentura que sabe... Felizmente há todo aquele pedaço do mundo cheio de saúde em um planeta perdido de insânia... E isto ajuda-nos a crer na humanidade e... em nós mesmos. Imagino, meu querido Afrânio, como os seus olhos vieram renascidos daquele espetáculo de liberdade, de saúde e de beleza. Não sabe o bem que me fez a sua lembrança e também a sua dedicatória à nossa América..." As vicissitudes não haviam mudado o idealista. Anísio continuava a sonhar com a América.

 

No início de 1941, Anísio se desligou da Editora Nacional e a separação o amargurou. Anísio a Fernando de Azevedo: "Não costumo pedir aos homens nem justiça, nem generosidade pela clara visão dos seus próprios interesses. Parece, contudo, que isto, exatamente, é que lhes é mais difícil dar-nos... Vivo hoje afastado de tudo e só de quando em quando o ruído assim de uma injustiça maior me chega aos ouvidos... Somam-se esses ruídos a todos os outros anteriores e confesso que vou com eles confirmando uma amarga filosofia a respeito do Brasil." Ruídos a que se acrescera o desligamento da Editora Nacional. Era uma ruptura. "O desligamento que concluí com a Editora, que era a minha pequenina ponte para o mundo, chocou-me mais do que poderia imaginar."

Em São Paulo, todos lamentavam a ausência de Anísio. Quando, tempos depois, aí esteve, Fernando de Azevedo informou a Venâncio: "Tivemos domingo passado um dia cheio: a presença do Anísio, inesperada e confortadora, apesar de tão curta na sua duração, e com a mensagem que nos trouxe, de inteligência e de sensibilidade, algumas horas de convívio em casa do Octales, entre amigos. Nessa reunião, a que compareceram também o Lobato e o lan de Almeida Prado, o espírito fez todas as despesas, mesmo as dos vinhos..." Anísio era uma casa cheia.

Dia a dia tornava-se maior o isolamento. Pouco mais tarde não conteve esse desabafo: "Ando ansioso por chegar até aí, pois, a despeito do meu poder de adaptação, vou sentindo o cansaço de uma vida sem estímulos intelectuais nem contatos inspiradores, diria numa confissão a Fernando de Azevedo. E às vezes, diante do espantoso de nossa época, apanho-me humilhado pela condescendência com que me venho habituando a viver aquém das suas tremendas responsabilidades." No fundo era o remorso do combatente refugiado na atividade privada.

Por mais que o tempo passasse e ele se escondesse nos afazeres do comércio, os amigos permaneciam-lhe fiéis e inconformados. Venâncio era dos mais presentes. Chamando-o de "especialista da amizade", Anísio escreveu-lhe sensibilizado: "Como lhe agradecer, senão repetindo que você é um breve contra o pessimismo e contra o desengano a respeito dessa humanidade, tão diversa, tão contraditória, tão espantosamente má e, graças aos como você, tão espantosamente boa." Afrânio era também dos que absolviam a humanidade. Mais ou menos por esse tempo, havendo publicado Eunice ou a educação da mulher, ele o dedicou ao companheiro ausente: Para Anísio Spínola Teixeira, pela ação e pela doutrina, o maior dos educadores brasileiros. A dedicatória bateu em cheio no coração sensível, e Anísio escreveu a Venâncio: "Recebi Eunice ou a educação da mulher, de Afrânio. Grande alegria com a edição Jackson. Grande confusão com a dedicatória. Afinal, recompus-me, pensando: a homenagem é a um educador morto. E os mortos tudo podem receber, pois que não ouvem..." Pensaria realmente haver tudo passado?

A vida corria-lhe entre grandes tristezas e pequenas alegrias. No início de 1944, faleceu D. Anna. "Tenho a impressão, escreveu Anísio, que vamos morrendo com os nossos mortos. Eles partem levando-nos também um pouco e sinto, com a morte de mamãe, que já não estou tão longe quanto por vezes a nossa inocente despreocupação de filhos nos fazia crer da grande viagem. Vinha ultimamente envelhecendo depressa, mas a perda de mamãe me envelheceu séculos. Já me sinto meio espectador de certo modo alheio à emocionante confusão da vida, como quem já vai tendo os olhos mais voltados para os que ficaram na estrada do que para os que prosseguem a viagem. lsto já é um pouco morrer..." E concluía corajosamente: "Como se precisa de bravura para sofrer a vida."

 

Estimulado pelo "dever de viver" que encontrara nos olhos "espantados e cândidos" da filha recém-nascida, Anísio continuaria até 1946 na faina do comerciante, rumo à prosperidade. Embora não o dissesse, evitando recriminações contra a vida e os homens, ele tinha nítida consciência do que representava estar confinado a atividades aquém da contribuição que desejaria dar à Educação. Testemunho das cicatrizes, são estas palavras a Lobato quando perseguido pelo Estado Novo. "Sei que somos fortes, escreveu-lhe Anísio, e que acidentes piores do que o sofrido por você nos deixam, aparentemente, sem mancha nem mossa... Mas, só aparentemente. Na realidade, uma prega se inscreve mais em nosso tecido da vida e perdemos um pouco de nossa elasticidade, elasticidade de que precisamos para reagir aos acidentes futuros..." Sim, apenas aparentemente... No fundo, as marcas do exílio continuavam. Além dos problemas pessoais, o destino do mundo inquietava-o. O fascismo, o hitlerismo, a guerra, tudo contribuíra para atormentar o espírito liberal. Anísio a Fernando de Azevedo: "Para onde vamos? Sinto em mim algo da atitude que devia esmagar um romano que via seu império sucumbir ao assalto de forças mais novas e menos civilizadas. E depois da débâcle virão as conseqüências da débâcle, que são bem mais terríveis que o próprio desastre." E alguns dias mais tarde: "Sou o menos determinista histórico que se pode ser - mas ando assombrado com a fraqueza misteriosa da consciência humana. Alguma profunda modificação se operou dentro dessa mesma consciência para que ela não reaja tão inexplicavelmente aos acontecimentos... Fica-se em dúvida se algum obscuro determinismo não preside na realidade a confusa agitação humana. Está certo que determinismo existe, mas a minha perplexidade é de referência à sua dirigibilidade. Por um lado a Alemanha nos fortalece a convicção de que a história pode ser fabricada voluntariamente. Por outro lado os aliados nos fazem crer no destino e na sua inevitabilidade..."

Além da família, as cartas dos amigos marcavam os poucos momentos de alegria. Afrânio Peixoto, que retornara da América, era dos que melhor sabiam exorcizar o desalento. Anísio a Afrânio: "Ando aqui em nossa Bahia procurando absorver-me em fazenda, bois, em negócios. Mas o anestésico é fraco. Vou indo, porém. A obrigação, bem. Marta, uma graça. Ana Cristina, uma promessa de graça. Emilinha, mãe deliciosamente consumida e feliz." Era o retrato de um raro instante de ventura.

Por algum tempo, até 1945, as atividades do homem de ação voltaram-se para a iniciativa privada, como comerciante e exportador. A guerra estimulava o negócio, e Anísio tornara-se próspero importador e exportador. Não o desagradava de todo essa face do trabalho. Observou Hermes Lima que ele o fizera "com o mesmo fervor e dedicação com que dirigira serviços de ensino". Ele próprio diria das atividades do comerciante: "Com uma filosofia que procura não distinguir o pensamento de ação, achei a chamada vida prática tão sedutora quanto a chamada vida intelectual. Foi uma bela ocasião de demonstrar a mim mesmo que vencera, realmente, os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito..."

Nada havia, porém, a fazer senão adaptar-se à realidade. Talvez custoso, mas inevitável. E na medida em que o tempo passava Anísio se sentia enleado pela maneira um tanto oriental dos baianos diante da vida. Nos séculos XVIII e XIX, fora a Bahia ponto de encontro de navios vindos de todos os continentes e aí ancorados ou queimados durante meses. Criara-se o hábito de não haver pressa - as coisas se resolviam tangidas pelo tempo, e, em setembro de 1940, Anísio escreveu estas impressões:

 

Vivo na Bahia uma vida tão baiana que, insensivelmente, me vou sentindo afastado do presente e do futuro e preso a não sei que encanto da inação e do passado. Porque a Bahia, como já lhe tenho dito várias vezes, é uma terra que chegou e que nada mais espera senão conversar e sorrir tolerante e displicentemente sobre a vida... Penso que, guardadas as proporções, o ambiente em que se vive, na Bahia, tem algo de comum com o clima moral e mental da China, ou da Grécia ao tempo da ocupação romana... A ação e o trabalho, a luta, enfim, passou para o segundo plano, é qualquer cousa que se faz porque não se pode de todo deixar de fazer. O que importa, porém, o que dá prazer e acende nos olhos a alegria de viver não é o triunfo, nem o êxito - mas a conversa fiada, o comentário ocioso e amável, o convívio humano pelo convívio humano. Neste sentido, tenho que a Bahia é uma das terras mais civilizadas do mundo - tão civilizada que já não cogita de civilizar-se...

 

O torpor amortecia o ímpeto do homem de ação. Certamente, um contraste com o imaginado pelo missionário, que, enleado pelos encantos da "conversa fiada", confessava com humildade: "Para quem já trazia em si, como eu, um grande e decepcionante desconsolo pela ação, esse ambiente baiano tem o encanto e o poder repousante de um banho morno... Deixamo-nos quedar na paz e na tranqüilidade dessa remotíssima Bahia, como em colo amigo, fechamos os olhos e nos pomos a dormir. Às vezes dormimos e sonhamos. Os temperamentos como o meu, porém, que são impermeáveis ao sonho, dormem apenas..." Para Anísio a época era mais de pesadelo do que de sonho. Também Fernando de Azevedo estava mergulhado em decepções: desejava mudar de alma. Era o impossível: "coelum non animum mutant...... dizia ele a Anísio, para acrescentar: "O que desejaria é fugir de mim mesmo, esquecer-me, para reviver. Se pudéssemos sair de nós e voltar a nós, quando fosse agradável ou necessário! " E nesse oceano de pessimismo, ele deixava sair um grito de angústia. "É preciso aprender a morrer na cruz todos os dias." Não diferia muito o estado de espírito de Anísio. Não seria em ambos a lembrança de Loyola?

Os amigos, aliás, jamais se conformavam vendo-o à margem, inaproveitado, ele que tanto podia ajudar o País. Lobato, dos mais revoltados, escreveu ao próprio Anísio: "O fato de Anísio Teixeira ter ficado anos no Brasil parado, afastado da ação pública, já forçado a empregar seu gênio numa função de comércio, coisa ao alcance de qualquer galego, foi o que mais me deu a medida do 'fracasso' que somos como povo e como País - espetáculo tão triste que me levou, na velhice, com todos os meus cabelos brancos, a mudar de terra, a fugir para não presenciar uma decomposição progressiva e irremissível."

Para o clã dos Teixeiras, o exílio fora fértil, e mais dois filhos, Carlos Antônio e José Maurício, haviam chegado para a alegria do pai enternecido. O primeiro, em agosto de 1941; o segundo em março de 1943. Era o que chamava a "minha tribo, quatro sólidos tupiniquins". Encantava-o acompanhar aquelas inteligências desabrochando curiosas para a vida, e ele as espicaçava com os livros infantis de Lobato, as Caçadas de Pedrinho, as Reinações de Narizinho, ou Emília no país da gramática. E diria ao glorioso autor: "Éramos, pois, todos Lobato em casa. Nada mais líamos. O dia perdia-se e eu nas amolações dos negócios. E à noite lia Lobato para a tribozinha apaixonada e sôfrega. Lia e relia, porque a minha leitura tem que ser 'diferente'. Como a de Dona Benta, com explicações, comentários e respostas às perguntas de Baby e à impaciência ansiosa de Marta, diante das questões um tanto 'emílicas' da primeira." Se não de sonho, estas horas seriam de esperança em meio às atribulações. Em breve, porém, o homem de ação retomaria a ferramenta do educador. Continuava um devoto de Dewey. A Lobato, que lhe dissera haver encontrado o "seu" livro, A grande síntese, de um Pietro Ubaldi, e publicado pela Federação Espírita, Anísio respondeu na hora: "Você nunca desejou enfrentar o Dewey, os seis ou oito volumes de John Dewey. Se enfrentasse, escreveria uma grande síntese sem o espírito-santismo-de-orelha de Ubaldi e com toda a riqueza e maravilha e perspectiva que acaso nos possa dar esse livro." E dizia, dando conta do estado de espírito em que estava o novo exportador de minérios:

 

Estou, como deve ter visto pelo meu silêncio, mais morto do que vivo. Cansado no físico e gloomy no moral... a sua carta trouxe-me o desejo de voltar ao meu Dewey. E se puder voltar, isto é, se tiver forças para refazer a viagem, hei de lhe escrever sobre essa residência da casa de meu pai... De todos os filósofos é, com efeito, o único que não quis fazer uma filosofia, mas dar-lhe o método para você fazer a sua filosofia... Mas a verdade é que em Dewey encontrei alguém que põe na busca mais alguma cousa que o puro buscar. Não é busca pela busca. Mas, um buscar consciente da felicidade que produz esse esforço por encontrar; com encontros que constituem tão somente novas plataformas para novas buscas, numa confirmação daquela sábia palavra de Laocoonte, se não me engano, pela qual a verdade toda só a Deus pertenceria, e a nós homens, o buscá-la eternamente, a imensa delícia de um eterno jogo com a verdade...

 

Por toda a vida, procurar a verdade e, achada, contestá-la para voltar a procurá-la, seria o seu trabalho e também a sua diversão.