O PROJETO DE LEI DAS DIRETRIZES E BASES DA

EDUCAÇÃO NACIONAL

 

 

 

 

O SR. EURICO SALES (Presidente) – Havendo número legal, está aberta a sessão. Leitura da ata da reunião anterior.

O Sr. Nestor Jost – Sr. Presidente, já tendo sido publicada a ata, peço a V. Excia. dispensa da leitura.

O SR. PRESIDENTE – Se não houver oposição, o pedido está deferido.

Sras. Professôras, Srs. Deputados, Sr. Professor Anísio Teixeira, a Comissão de Educação e Cultura, medindo, pelo ângulo da responsabilidade, o ângulo adjacente da sua competência regimental, viu e sentiu, ao iniciar o estudo do projeto que fixa as bases e diretrizes da educação nacional, o culto do encargo de traçar o perfil legislativo do sistema que, de futuro, será pôsto à prova no objetivo de assegurar dias mais felizes para o povo brasileiro.

Considerando difícil definir a educação, sem o recurso da repetição de conceitos muitas vêzes contraditórios e nem sempre satisfatórios, estou entre os que consideram tarefa básica dos debates sôbre êsse importante tema a declaração dos seus propósitos, ou melhor, dos seus fins reais. A êsse respeito disse H. C. Dent, em A New Order in English Education: Nosso ideal é uma democracia plena.

A atual geografia política, dividindo o universo em dois mundos e qualificando o ocidente corno o reino da democracia, tem inspirado a todos os povos do lado de cá o ideal do aperfeiçoamento do exercício da democracia pela maior compreensão dos seus nobres fundamentos e pela ampliação do número dos que nestes devem crer, para melhor sustentá-los. A constelação das culturas ocidentais, para seu maior brilho, há de contar com o desenvolvimento da cultura brasileira, adornada de convicções gerais sôbre a democracia plena. Para tanto, está convocada a educação.

Não julguem os que me estão a ouvir haja nas minhas palavras qualquer resquício de uniformidade, de igualdade ou de modêlo oficial na formação da cultura do ocidente. Quero, apenas, afinidade nos propósitos de intransigente defesa dos postulados da democracia cristã. Situo-me entre os que consideram de importância vital para a sociedade um certo atrito entre os seus componentes. Enquanto na mecânica o atrito é fator de perda de energia, na política êle significa, via de regra, fôrça geradora de notáveis conquistas.

Dirigindo o nosso pensamento para as precedentes afirmações, devemos sentir o quanto precisa de renovação o sistema educacional brasileiro para que dêle extraiam, as gerações vindouras, o máximo de utilidades em proveito do porvir da nossa Pátria.

Não nego, – pois isso seria prova de ignorância, – que o organismo da escola brasileira tenha recebido o influxo de idéias novas, acostumando-se, em muitos setores, a práticas bastante adiantadas. Tudo, porém, – forçoso é reconhecer – sem certo ritmo ou propósito planificador, refletindo tais avanços, quase sempre, o ideal de um técnico, a sabedoria de um administrador ou ação de algum publicista de prestígio.

Afirmo – e aí com contristadora certeza – que, fora da escola, o ambiente brasileiro é muito lacunoso no conceituar e no prestigiar a questão educacional. Há quem, rotulando-se de entendido no assunto, proclama a preponderância de determinado ramo ou de determinado grau de ensino. Sendo único o problema da educação, as soluções que o desejam resolver devem abranger tôdas as questões que o estruturam. A propósito, quero citar a palavra sempre correta do eminente Deputado Gustavo Capanema, que, ao apresentar à II Convenção Nacional do Partido Social Democrático o projeto de programa que foi incumbido de elaborar, assim se manifestou: "A respeito, fugimos às declarações demagógicas de que o ensino primário está em primeiro lugar ou de que o ensino profissional merece maior cuidado ou, ainda, de que o ensino agrícola é o mais importante. Senhor Presidente, quem medita sôbre os problemas da educação popular chega à conclusão de que êles representam um bloco só. Para desenvolvê-la necessário se torna fazer um trabalho por inteiro. Se encararmos o problema da indústria, ou da agricultura, verificamos que não basta o ensino primário, mas, também, o profissional. Quando chegamos ao ensino profissional, verificamos que o ensino superior também é indispensável. Se vamos ao ensino superior, vemos que o secundário é básico, pois sem êle o superior não existe. De modo que o estudo do problema da educação leva à convicção de que não pode haver proeminência entre os ramos do ensino. Todos são importantes, e errará gravemente o Govêrno que tentar resolver apenas um dos aspectos da educação. Mas, Senhores, além da disparidade de conceitos que existe, muitas vêzes, dentro e fora da escola, temos que registrar, em certas épocas, lamentável antagonismo entre êsses ambientes. O dinamismo da hora presente, devorando energias físicas e intelectuais numa combustão incessante, é como que uma fôrça a convidar-nos à improvisação e a impor-nos soluções aligeiradas, isentas de críticas, porque a rapidez da sucessão dos fatos não deixa vagares para a censura do que passou. Ninguém se lembra do êrro de ontem, tal a intensidade com que o problema de hoje monopoliza tôdas as preocupações válidas. Alguns não têm tempo para pensar e muitos não desejam pensar. Os recursos da moderna ciência abriram tão amplas perspectivas ao crescimento material do Brasil que instalamos um clima de mobilização geral de todos os esforços no afã do rápido alcance dos bens de riqueza. Exatamente quando mais próximos nos encontramos dêsses fartos tesouros, é que se generaliza a desconfiança de que não estamos preparados para a sua útil fruição. Por isso mesmo, vizinhamos a época das frustrações, dos desencantos e dos desenganos. Caminhamos com muito ardor, mas, sem a escola, que tem vivido órfã de equipamentos modernos e de melhor técnica de ensino. Bradamos, em praça pública, que o petróleo é nosso, mas não forjamos, pela educação, armas indispensáveis a essa prerrogativa. Longe da escola, a sociedade modelou novos estilos de triunfo, na euforia do sucesso fácil, estimulando os aventureiros, premiando os ignorantes, facilitando a caminhada dos superficiais e propagando, com ótima acústica, a voz das mentiras sedutoras. E essa brutal inversão dos fatôres de vitória, peculiar às horas de transição social e econômica, afetou, pela raiz, a árvore da escola, que muitos desejavam fôsse de pequena estatura e de fácil escalada, com frutos doces e saborosos a serem colhidos antes de qualquer esfôrço. Assistimos, então, à cruzada do diploma, através dos caminhos da ignorância e da displicência. A sociedade só se lembrava da escola para criticá-la pela lentidão em "expelir" a legião de doutores que desejava fôssem formados "em série industrial." Apenas eram consultadas as estatísticas quantitativas, esquecidos os índices de afeição qualitativa.

Mas a realidade fêz as suas advertências e já nos ameaça com suas severas penalidades.

Estamos, felizmente, ainda em tempo para uma reforma nessa falsa orientação, ou melhor, para uma verdadeira revolução, conforme a lapidar expressão do antigo Ministro Clemente Mariâni ao instalar a Comissão de Estudos das Diretrizes e Bases da Educação Nacional."

O que acima ficou dito justifica bem as sérias apreensões da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados ao iniciar o estudo do projeto de tanta relevância. Daí a sua orientação de convocar, para um debate prévio, figuras eminentes do quadro da nossa educação, de cujo tirocínio, cultura e entusiasmo espera receber os indispensáveis adminículos à realização de uma obra que corresponda, em eficiência, ao grau de patriotismo com que nela nos empenhamos.

Senhor Professor Anísio Teixeira: a sua calorosa aquiescência ao convite que, por meu intermédio, lhe fêz a Comissão de Educação e Cultura representa uma esplêndida confirmação das seguintes palavras do seu discurso de posse na direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos: "Devo declarar, entretanto, que aceito o encargo, acima de tudo, como uma imposição do dever. Sou dos que pensam que estamos vivendo uma hora de aguda premência e de grandes exigências da vida nacional, em que nenhum de nós pode e deve recusar a investidura para que o convoquem as circunstâncias, de vez que se nos reconheçam (ou presumam) condições de especialização e experiência para o seu desempenho".

Os altos propósitos desta Comissão e as suas indiscutíveis condições de especialização e experiência foram as razões que ditaram o convite que lhe fizemos. Aceitando-o, V. S. deu robusta prova de aprêço ao Poder Legislativo, de entusiasmo pela causa da educação e do seu acentuado espírito de colaboração. Assim qualificando, e com justiça, a sua atitude de cooperação conosco, creio lhe haver prestado melhor homenagem do que arrolar os seus grandes títulos de intelectual e educador e descrever o brilho com que V. S. sempre se houve em sua magnífica vida pública.

Senhor Professor, os antecipados agradecimentos dêste órgão técnico pela sua valiosa contribuição.

Dou a palavra ao Professor Anísio Teixeira.

O Sr. Anísio Teixeira – Sr. Presidente e Senhores membros da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados: Agradeço desvanecido a honra que me deu esta Comissão, convidando-me a participar de um debate que, aliás, acaba de ser magistralmente iniciado pelo Presidente da Comissão e cuja importância não é possível encarecer.

Vou falar como um homem preocupado com o problema da educação há mais de vinte e cinco anos e que traz para o seu depoimento – digamos assim – a autoridade que lhe possa advir da experiência no exercício de cargos administrativos de educação, em diferentes setores da vida nacional, tanto no campo federal, como no estadual.

Não me encontro, entretanto, aqui em caráter oficial, mas na condição de um estudioso dos problemas da educação. Por isso, não vejam nas palavras que pronunciar qualquer crítica de autoridade à situação legal ou oficial. Farei apenas o exame desinteressado, o estudo, a análise de uma questão fundamental, como é. a da educação.

 

 

 

1) Natureza de Debate

 

– Estamos, ainda hoje, dentro da "revolução brasileira", que se iniciou em 1930. Essa revolução foi, em essência, uma revolução de inspiração democrática. Politicamente, realizamo-la com o voto secreto e livre. Econômicamente, estamos procurando realizá-la com a legislação social e projetos econômicos. Resta-nos, entretanto, realizá-la, ainda educacionalmente.

O instrumento da democracia – nunca será demais insistir – é a educação popular, isto é, a educação de todos para a vida comum e a de alguns – selecionados dentre todos – para as funções especializadas da sociedade democrática e progressiva. Esta educação popular, que cumpria organizar, como estrutura fundamental da democracia política e até, ainda mais, da econômica, não foi organizada no período devido e normal.

Os problemas do "nosso tempo" assaltaram-nos, relegando para segundo e terceiro plano o da educação. Os problemas do nosso tempo são os da realização de uma possível democracia econômica. Só êles parecem ser os reais problemas políticos de hoje e só êles ocupam e desafiam realmente, com inquietação e premência, o espírito dos nossos homens.

E assim é que penso poder explicar a idéia de considerar-se o problema da educação como um problema meramente técnico, quando, na verdade, é o problema político por excelência de uma nação. É o problema da formação nacional, que se obterá pela formação do homem brasileiro para a vida democrática. Como a maioria das nações civilizadas já o haviam resolvido, nos fins do século XIX, julgamos nós também já tê-lo resolvido e entramos a querer resolver os problemas considerados atuais, isto é, os problemas sociais e econômicos das demais nações – também nossos, por certo – mas que exigiriam, para ser adequadamente resolvidos, que o fôsse primeiro o da educação.

Porque êste é o problema básico – econômico, político e social. Problema econômico – porque resolve o da igualdade oportunidade para todos; político – porque habilita ao uso das franquias políticas; e social – porque cria a única hierarquia que não é iníqua: a do mérito e do valor. Sòmente, pois, com a sua solução é que o homem brasileiro estaria em boas condições de lutar pelas reivindicações posteriores – de melhor equilíbrio social. Seu preparo educacional é que o habilitaria para receber as novas franquias e novos direitos, sem o perigo de deformá-los, transformando-os em ameaças ao próprio equilíbrio social.

O debate, pois, sôbre a educação é um debate político que, embora retardado, precisa ser feito aqui com o calor, a amplitude e o alcance com que foi desencadeado do meio para o fim do século passado, nos países mais avançados.

 

 

2) A atual legislatura

 

É uma felicidade que êsse debate se venha fazer num parlamento cujo líder é um educador, o Dr. Gustavo Capanema, e cujo vice-líder e presidente da Comissão de Educação, o Dr. Eurico Sales, é um jovem político que acaba de realizar, no seu Estado, como Secretário da Educação, uma obra de todo ponto notável de renovação pedagógica. São, assim, fundadas as esperanças de todos nós, em que dêste debate resulte a votação de uma lei nacional de educação, capaz de promover o movimento de emancipação educativa que dela esperamos.

 

 

3) Movimento educacional

 

Referi-me a movimento de emancipação educativa – e não o fiz sem intenção. Não me parece que estejamos aqui para discutir como "disciplinar" a educação nacional, mas como "promovê-la", como desencadear as forças necessárias para levar a efeito um movimento, a mobilização geral de esforços e recursos para resolver o problema do direito dos direitos do brasileiro: o de se educar para ser cidadão, para ganhar a vida e para viver com decência e dignidade.

A ênfase em movimento, e não em disciplinação, marca ou deve marcar o espírito da nova lei. Não se trata de conter, limitar e uniformizar o que já existe, como pensam alguns; mas, de criar, libertar, estimular e encorajar a iniciativa – as iniciativas particulares, municipais, estaduais e federais, para, inspiradas por uma política educacional ampla e saudável, se lançarem, tôdas elas, com espírito de autonomia e senso de responsabilidade, à grande obra comum, dinâmicamente unitária, de educar (não de diplomar) os brasileiros.

Estou a imaginar as críticas que podem suscitar tais afirmações. Há hoje quem não pode ouvir falar em liberdade sem imediatamente pensar em anarquia. Mas a anarquia decorre muito mais da imposição de formas únicas e imperativas do que do livre jôgo de formas plurais e livres. O equívoco provém dos pressupostos a respeito do espírito humano.

O espírito do homem, em estado de liberdade, não age anàrquicamente, mas perquire, estuda, procura orientar-se e escolhe o que associadamente, socialmente, deve fazer. Estrangulado é que salta para rebeldia, o conformismo passivo, infecundo, ou a simulação. E o caso brasileiro, é muito mais êste ultimo caso.

 

 

4) Retrato da situação educacional

 

Com efeito. – Que está sendo a educação brasileira? – Um sistema de educação em que o ensino primário é, pràticamente, livre, ministrado pelos Estados, Municípios e particulares, e os demais ensinos são rìgidamente uniformes e controlados, direta ou indiretamente, pelo poder federal. No nível primário, há liberdade. Há escolas e escolas, professôres diplomados e leigos; escolas bem montadas e mal equipadas; que ensinam mal e que ensinam bem; em um só turno, dois e até em três... Cada escola, entretanto, é o que é, e se apresenta como é. Não busca passar por outra coisa. E o esfôrço por progredir é geralmente visível. Não havendo ninguém que queira defender as piores; mas, todos se esforçando por fazer o melhor possível. Se algum Estado se desmanda, a crítica logo se levanta e, ainda assim, não é por falsa pedagogia ou pelo gôsto da anarquia que se desmanda; mas por alguma agitação político-partidária, que logo encontra, na própria opinião pública e do magistério, a correção que se impõe.

Cabe aqui, Senhores, um parêntese. Ainda hoje as circunstâncias me permitiram ter uma longa conferência com o diretor das construções escolares do Estado do Rio. Verifiquei o que está sendo a obra daquele Estado, no concernente à educação primária. A maior parte dos prédios que o Estado do Rio está construindo para as suas escolas primárias é melhor que a grande maioria dos edifícios das nossas escolas superiores!

Ora, o ensino primário se acha entregue, exclusivamente, à responsabilidade do Estado. Se algum ensino tem ainda virtudes e pedagogia, vamos encontrá-las muito mais integralmente no primário que nas demais fases da instrução.

No mesmo parêntese, refiro outro caso positivo, atual e pertinente. Um prefeito do Rio Grande do Sul procurou-me, há dois ou três dias, para submeter à minha apreciação um plano para o desenvolvimento do ensino primário no seu município. Conta êsse município com trezentas e sessenta e cinco escolas por êle mantidas, com mais de vinte mil alunos matriculados, em grande parte em prédios próprios. E' um esfôrço real, concreto, sério. Além dêsse ensino primário, o mesmo município está a iniciar a construção de ginásios, escoIas normal e profissional, para o que pedia auxílio e assistência federal.

Cito êste exemplo porque vou defender aqui, com maior entusiasmo e convicção, uma descentralização corajosa do ensino brasileiro (Muito bem). E precisamos, para isso, que se associem, com senso de responsabilidade, todos os poderes e todos os setores governamentais brasileiros, na obra educacional. Ficar tudo em mãos do govêrno federal representa, em vez de estímulo, um fator de inibição para os múltiplos responsáveis, que devem ser convocados a trazer a sua contribuição.

Voltando, entretanto, à análise ligeira que estamos fazendo do sistema escolar. – Que vemos depois do ensino primário?

– As "escolas de modelo rígido e uniforme", impostas pela legislação federal. São as escolas secundárias e superiores.

– E que sucede? – Não se vê ninguém querendo livremente fundar tais escolas para ensinar, mas, sim, para conseguir a "oficialização" e "diplomar". Poucos, muito poucos são os que se preocupam em fazê-las melhores, pedagògicamente. A opinião pública manifesta-se o sôbre o mau ensino secundário, mas o Govêrno, o poder oficializante, nada tem a dizer a respeito: todos os papéis estão em ordem, e só isso é importante. Os programas são oficiais, uniformes e rígidos. Os livros são "oficializados"...

E a propósito. O caso dos livros é muito interessante. Todos sabemos que o Brasil possuía bons livros didáticos. Qual de nós, com a idade que infelizmente tenho, não conheceu uma escola primária com admiráveis livros primários? E mesmo secundários... E eis que, chegamos ao Brasil de hoje, com os filhos por educar, e ficamos horrorizados à vista dos livros em que estudam.

Por que o livro didático não continuou a ser tão bom quanto era antes?

– Por dois motivos principais: programas oficiais obrigatórios e aprovação oficial dos livros, desde que conformes aos programas.

A organização de programas oficiais foi instituída no Brasil (na suposição de se poder, por uma medida central, melhorar todo o ensino). Depressa, porém, êsses programas foram sendo simplificados, até se constituírem meras listas de pontos, rìgidamente ordenados, constituindo verdadeiras camisas de fôrças para a elaboração dos livros didáticos. Até aí, se teria limitado a liberdade dos bons autores, mas a competição ainda se poderia exercer entre os menos maus e os maus ou péssimos manuais de ensino. Surge, porém, a idéia da aprovação oficial dos livros didáticos, por um órgão central. E, graças a essa chancela oficial, as últimas diferenças desaparecem, e todos os livros, uma vez aprovados, são considerados iguais.

Obtida, assim, a equivalência legal do bom e do mau, nenhum livro bom, realmente didático, consegue mais ser vendido no Brasil, porque a moeda má, que é o livro oficializado ruim, substitui completamente a moeda sã. Qualquer editor nos poderá informar como basta publicar-se outro programa, que tão sòmente reduza ou altere a ordem dos pontos do anterior, para que nenhum dos livros, não conformes com o novo programa, seja mais vendido. À primeira vista, parecia não haver mal na oficialização de programas e livros didáticos. Na realidade, as duas medidas suprimiram a liberdade didática e impediram a competição entre o bom o mau livro escolar, resultando de tudo a degradação do ensino e dos manuais escolares.

Os livros – dizíamos – são "oficializados". Tudo é legal. Legal e ruim. Mas – paradoxo dos paradoxos – não são iguais as escolas nem o são os professores. Muito pelo contrário, tudo que há de mais diferente. As formalidades é que são idênticas. Os cursos têm as "mesmas matérias", os professôres têm o mesmo "registro", a duração dos cursos é a mesma. O conteúdo, porém, das matérias, a qualidade dos professôres e o que se ensina efetivamente nos cursos têm diferenças que vão de 1 a 100. Mas isso não importa, pois o que importa é que a educação secundária e a superior tenham aquela uniformidade extrínseca e formal, em todo o país, com o que se estará a salvar a cultura nacional e até... a unidade nacional!

Dir-se-á que não pode ser de outro modo, porque êsses cursos geram direitos e precisam de ser disciplinados e uniformizados, sob pena de produzirem profissionais desiguais e inferiores. Mas nada disto se consegue. Tudo que se consegue com tal formalismo, com essa uniformização rígida, é que os profissionais sejam legais, porque desiguais e inferiores muitos dêles o são, e em que grau!

Ocorre, neste caso, o mesmo que com o livro didático. Criado o modêlo oficial e, nessa base, estabelecida as "equiparações", tôdas as escolas passam a ser iguais porque assim são reconhecidas pela autoridade oficial. Neste regime, a Escola de Medicina de São Paulo, que pode sofrer confronto com o que de melhor existe em todo o mundo em ensino médico, com um orçamento anual de mais de uma centena de milhões de cruzeiros, é considerada absolutamente idêntica a pequenas escolas de medicina.

Não, meus senhores. Estamos nos iludindo a nós mesmos. A uniformidade legal não produz a uniformidade real. A liberdade e a equivalência poderão muito mais produzir a desejada uniformidade ou, melhor, a unidade.

O que produzem a uniformidade e a rigidez do modêlo único, oficial, é a fraude e a simulação. Daí a ânsia por concessões de oficialização a escolas improvisadas. Busca-se a oficialização porque é o passaporte para a legalização das simulações educacionais que estão proliferando pelo Brasil afora. Estamos, em educação, legalizando a moeda falsa. E não é tanto pela sanção ou direitos que cria, mas pelo prestígio que o que é "oficial" tem no país.

Na verdade, o ensino secundário já se está transformando em educação comum e necessária, independente do diploma que concede. A grande maioria dos seus alunos já não visa prosseguir e não prossegue os estudos em nível superior.

– Por que, entretanto, não surge a escola secundária livre, a buscar tão-sòmente ensinar? – Porque não se cria, impunemente, num país, o regime que estamos criando. – Qual é êste regime? – É o de que a educação ou é legal ou não existe. E legal significa: "reconhecida pelas autoridades oficiais". – E reconhecimento pelas autoridades oficiais que significa? – Significa que as formalidades de matrícula, de registro, de tempo e de exames foram cumpridas. – Mas o aluno aprendeu, educou-se, realmente formou-se, está apto a fazer o que deve fazer? – Tudo isto é dado como conseqüência inevitável. Logo, o regime é um convite à fraude. – Para que esforçar-se, se o que é julgado não é a qualidade da educação, mas o cumprimento daquelas formalidades?

Desejo acentuar que êste é realmente o mal dos males da situação educacional brasileira. A "oficialização" – pelo regime das equiparações – de todo o ensino, particular e público, sob um modêlo uniforme e rígido, fiscalizado tão-sòmente nos seus aspectos extrínsecos, não só permite, corno promove, a falta de autenticidade do ensino nacional. A imposição do modêlo único cria a contingência da falsificação. Não sendo possível, por falta de recursos materiais e humanos, na imensa heterogeneidade e diversificação das situações brasileiras, a realização do modêlo de modo adequado e eficiente, surgem os arranjos, as acomodações, os expedientes, quando não a pura e simples falsificação de listas de professôres ou equipamentos. Criada esta situação, a fiscalização, puramente formal, a sanciona e o ciclo da inautenticidade real do processo de ensino se fecha para qualquer movimento de saúde, renovação ou progresso educativo, tendendo antes a agravar os vícios de origem do que a remediá-los.

O regime da uniformidade e da fiscalização formal é, com efeito, um círculo vicioso que gera, pela imposição de condições e requisitos, em muitos casos inexequíveis, a simulação educacional, e depois a perpetua com a ausência de sanções relativas ao mérito do processo educativo. Falta, no sistema, um elemento essencial, pelo qual a instituição oficial ou equiparada, satisfeitas as condições formais e extrínsecas do seu funcionamento, que lhe criam a suposição de ensinar bem, viesse a provar que assim realmente o faz.

Dir-se-ia que êle (o sistema) faz a prova pelos exames. Mas os exames são realizados dentro da própria instituição fiscalizada, e não havendo fiscalização quanto ao mérito do ensino, como desafio a qualquer pessoa, conhecedora do atual regime educacional brasileiro, a contestar...

O Sr. Rui Santos – Há colégios fiscalizados por coletores, leigos.

O Sr. Anísio Teixeira – Lembra muito bem Vossa excelência.

Ora, não é possível acreditar-se que a máquina montada nessa base de formalidades exteriores, depois passe a ser contra si mesma, declarando nulos os produtos de sua fabricação.

A apuração e triagem dos resultados só se dariam, como passarei a demonstrar, se, além da fiscalização exterior, houvesse a fiscalização do ensino pròpriamente dito e os exames se fizessem perante bancas estranhas ao concessionário do ensino oficializado. Obriga-lo-íamos, então, a provar, realmente, se havia bem e efetivamente ensinado.

A falta dessa apuração real, no sistema educacional brasileiro, está produzindo a diátese que aqui focalizo e que todos conhecemos.

Essa prova, entretanto, repito, não pode ser obtida senão por um julgamento estranho à instituição interessada. Por êsse julgamento é que as escolas quebrariam o círculo vicioso em que estão encerradas e se fariam dinâmicas e progressivas.

Daí, como se verá, a razão de propugnarmos o chamado exame de estado para a aferição da eficácia real do ensino. O exame de estado, em essência, é o exame dos alunos por pessoas ou instituições que não estejam comprometidas no processo de aprendizagem que se deseja julgar e medir e, portanto, tenham a isenção e objetividade necessárias para fazê-lo.

Os nossos atuais exames vestibulares estão de certo modo exercendo esta função e, na medida em que a instituição que os realiza tem as condições necessárias para ser isenta e objetiva, confirmam, com as suas reprovações maciças, o nosso julgamento da situação educacional brasileira e mostram como a mesma seria, primeiro, revelada e depois corrigida, se tais exames não fôssem apenas os de admissão à escola superior, mas substituíssem os atuais das escolas secundárias.

Quando se fala em exame de estado, há uma grande resistência, sobretudo pelo argumento atualmente mais apresentado: a inexeqüibilidade prática. Costumo dizer, quando argumento, que já temos, de algum modo, uma forma de exame de estado, e é o exame vestibular às escolas superiores. Tratando-se de exame realizado por instituições não comprometidas com a oficialização do ensino secundário brasileiro, os seus resultados ganham inegàvelmente autenticidade. E todos sabemos quais são êstes resultados, constituindo êles um julgamento severíssimo da situação educacional. Ora, seria bastante exigirmos exames dêsse tipo em determinados períodos dos ciclos secundários, para imediatamente pormos êsse ensino secundário em condições de se valorizar, progredir e melhorar.

Todo o vício do regime está aí. Se tivéssemos fixado aquelas condições extrínsecas para a "equiparação" e depois exigido, pelo chamado exame de estado, ou, simplesmente, pelo exame em outra instituição independente da "equiparada", a apuração dos resultados da educação, o regime poderia ser condenado pela rigidez, pela uniformidade, pela centralização administrativa, mas, a sua autenticidade estaria ressalvada. Esta autenticidade, porém, desaparece desde que a própria escola – seja particular ou pública – uniformizada do ponto de vista das condições extrínsecas, não está sujeita a fiscalização de qualquer natureza com respeito à qualidade mesma do ensino ministrado.

Perdida a autenticidade, tôdas as demais mazelas se seguem inevitàvelmente. O processo se faz irreal e abstrato. A estagnação qualitativa e a igualização do melhor e do pior fazem desaparecer a emulação. Sem experimentação, sem ensaios, sem competição, sem escalas de mérito e demérito, o sistema ou se fossiliza no formalismo e na rotina, ou envereda pela fabricação de resultados falsos. As energias de professôres e alunos se desenvolvem no sentido de problemas acidentais e colaterais. Desinteressados em relação ao processo educativo pròpriamente dito, – pois que êste se fêz irremediàvelmente estático e rígido, – passam a cogitar de problemas pessoais, os professôres, e os alunos de atividades diversas, menos as do aprendizado... Nada, pois, mais justificado do que o sentimento de mal-estar já reinante nas próprias esferas da educação e na opinião pública.

Minha análise da situação, em palavras talvez aparentemente candentes, é a que faria qualquer bom professor, qualquer diretor de bom colégio ou mesmo qualquer bom aluno. Trata-se de uma crítica à situação em que se acham todos envolvidos e que a todos imobiliza, criando mesmo um sentimento de impotência, ante a extensão e o caráter aparentemente irremediàvel dos males de nossa conjuntura educacional. A perda de iniciativa que gera tal atitude é de uma gravidade impossível de medir. Chega a ser inacreditável o grau de desinterêsse a que vão chegando, sobretudo nos Estados, todos aquêles que estariam a lutar e se esforçar, se, por acaso, se sentissem responsáveis pela situação. Absoluta dependência do poder central cria, porém, um sentimento mais grave do que o da irresponsabilidade, que é o da impotência. Até o estudo das questões do ensino está a desaparecer. Ninguém se sente estimulado para isso, porque a centralização determina se transformem todos os educadores estaduais em simples cumpridores de instruções, de ordens recebidas. Perdido o incentivo, perdida a liberdade, pois a centralização é, sobretudo, uma tirania, o homem perde as suas qualidades e se faz um autômato. E não só no ensino, mas, em todos os demais setores da técnica e do saber, o monstruoso centralismo brasileiro está a destruir muitas possibilidades de progresso, de diversificação e de florescimento brasileiro. Somos todo um povo a cumprir regulamentos, instruções e ordens emanadas de um poder central, distante e remoto, como o da metrópole, ao tempo da colônia. A descentralização, a autonomia estadual, a autonomia municipal ora em debate, relativamente ao problema da educação, constituem problemas essenciais da democracia e da implantação definitiva do regime federativo no país.

Nenhuma das reformas de educação de 30 até agora merece ser acusada de haver visado pròpriamente àqueles efeitos que revelamos. Tudo é antes o resultado da interpretação puramente literal das leis do ensino, do espírito burocrático que entrou a presidir a sua fiscalização e da centralização administrativa que determinou a inibição generalizada das fôrças que, se responsáveis, impediriam tal estado de coisas, tais como a das autoridades estaduais, as do próprio magistério e as da opinião pública, tôdas elas lançadas na impotência ante o falso espírito legalista, formalista e ante-educativo, das autoridades centrais, sobretudo as de menor porte, com as quais, no final de contas, fica a decisão final... Porque, à medida que a educação se converteu em mera processualística, competência em educação passou a significar estar a par dos regulamentos.

Assim, os grandes educadores, os que decidem efetivamente hoje os problemas do ensino, são pessoas que conhecem minuciosa e microscòpicamente a letra dos regulamentos. Não aceitam debate sôbre teorias de educação, sôbre conceitos de educação, sôbre processos de educação! Isto não vem ao caso. Agora, competente em educação é o conhecedor dos regulamentos e da legislação. Imaginemos como não estaria o país, se, não apenas no campo profissional da educação, mas nos da Medicina, da Engenharia e da Agricultura tivéssemos criado o mesmo regime de "le galismo" em substituição ao do saber e da competência profissional!

O Sr. Rui Santos – Agora, além dos regulamentos, há as célebres portarias...

O Sr. Anísio Teixeira – De fato, há portarias também e com minúcias e detalhes de estarrecer! ...

 

* * *

 

Já agora, impõe-se recolher a lição dêsse período. Estamos amadurecidos para fazê-lo. Estão na consciência de muitos as graves conseqüências de se haver transformado a educação nacional em formalismo burocrático, os educadores em rígidos intérpretes de leis e regulamentos uniformes, os professôres em puros executores de rígidos programas oficiais e os livros didáticos em manuais "oficializados", e conformes, linearmente, com os pontos dos "programas".

Todo êsse complexo regime de "oficialização formalista" do ensino resultou no que se acha à vista de todos: despreparo generalizado dos brasileiros educados, desestímulo do magistério, rotina de métodos e sentimento cada vez mais intenso de uma crise sem remédio da educação. O problema de pessoal qualificado – em todos os níveis de trabalho – fêz-se o problema agudo por excelência. São escassos os quadros mais altos, maus os médios e piores, se possível, os inferiores. Esta crise do fator humano, na civilização brasileira, começa a ameaçar o nosso próprio desenvolvimento – político, econômico e social.

Todo um capítulo seria preciso abrir aqui para demonstrar até que ponto essa má formação brasileira, a má educação brasileira, está pondo em perigo o próprio equilíbrio econômico do país.

Em geral, esquemàticamente, tracejo assim o problema: criamos um mercado interno, que começa a ser bem mais importante que o externo. Mas o mercado externo continua a ser vital, essencial, porque êle é que fornece o orçamento de divisas com que alimentamos o parque da produção nacional.

Ora, à medida que o tempo passa, nossa produção para a exportação, que é a agrícola e de matéria-prima, se faz mais cara no seu custo e de menor valor no mercado internacional. Cada dia, os preços de venda são mais baixos, no seu poder aquisitivo real, e o custo da produção mais alto. Época virá em que não poderemos exportar o suficiente para obter as divisas necessárias à manutenção do nosso próprio parque de produção para o mercado interno. O problema vital, assim, será o de diminuir o nosso custo de produção por unidade, o que sòmente se poderá conseguir pelo melhoramento de técnica e aumento da produtividade do brasileiro. Para isto, importa, sobretudo, melhorar o fator humano, porque, dentro do conjunto complexíssimo de condições que nos levam a produzir tão caro, uma das mais graves é a da deficiência dêsse fator humano. Chegamos exatamente ao ponto crítico: ou melhoramos a formação do homem brasileiro, o nível de mão-de-obra não qualificada, o da mão-de-obra qualificada, o dos condutores de trabalho e o dos técnicos de nível superior, ou não conseguiremos a produtividade necessária para suprir o orçamento de divisas estrangeiras, indispensável à própria sobrevivência do parque industrial que alimenta o nosso mercado interno. O problema da educação tem assim, hoje, a premência de um grave problema econômico.

Possa êsse aspecto mover a nossa vontade, já que todos os demais argumentos têm esbarrado na apatia com que encaramos as soluções longas e difíceis dos problemas do desenvolvimento nacional.

 

 

5) Que se há de fazer?

 

Modificar o processo de fiscalização. Retirar a ênfase nas formalidades para visar sobretudo ao mérito do ensino. Restabelecer a liberdade de tentar o melhor. Restringir a legislação do ensino à fixação dos objetivos e das linhas fundamentais. Permitir a relativa liberdade de currículos, de horários e de métodos. Substituir o princípio da uniformidade pelo princípio da equivalência.

Os objetivos do ensino podem ser conseguidos por diversos caminhos. A pluralidade de caminhos estimulará a experimentação, a competição e o progresso. Revitalizará o processo educativo. Como garantia – estabeleça-se o exame de estado, isto é o exame oficial em determinados períodos do curso. Êste regime dificultará a fraude ou a simulação, por não premiá-la. E quanto ao receio de que tal possível diversificação degrade o ensino, verifiquemos que é infundado. Com o ensino uniforme é que o ensino se degrada; na realidade se degradou.

Com efeito, não havendo possibilidade legal de mudar o currículo, é que se tenta ensinar o que não se pode ensinar. Com o currículo flexível e variável, cada colégio ensinará o que puder e, desde que mais importa aprender pouco e bem do que muito e mal, o ensino poderá ser eficiente. Por certo, será mais eficiente do que o atual.

Estas palavras, ditas assim, parecem, realmente, perigosas: "cada escola ensine o que puder". Mas, entre tentar alguém numa cidade do interior brasileiro, instalar um ginásio, contando para isto – digamos – com um professor de Português, um professor de Matemática e, com certa dificuldade, um professor de História e Geografia, faltando-lhe, entretanto, o professor de Latim, ou o de lnglês, reduzindo, assim, o curso, à vista das condições do meio; entre essa tentativa limitada, mas séria, de um ginásio, e a alternativa de hoje, à vista da imposição da lei, de inventar um professor de Latim e outro de lnglês, e fazer de conta que também ensina essas matérias, temos de reconhecer que mais vale o ginásio modesto, mas verdadeiro, do que o "completo e uniforme", mas falso. Sabem todos, porém, que o "completo" não é só isto. Pretendemos em nosso ensino secundário ensinar cinco línguas: a materna e mais quatro estrangeiras.

O Sr. Rui Santos – E não sabemos nenhuma.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA – Evidentemente. E isto foi impôsto do dia para a noite. De repente, inventamos professôres de Latim para tôdas as séries de todos os ginásios brasileiros. – Não seria muito melhor ensinar-se aquilo que, realmente, se podia ensinar, do que impor um currículo e um programa, que são, pela sua impraticabiIidade, a imposição da fraude?

Passemos, porém, ao exame da lei de diretrizes e bases, pela qual esperamos poder sair do atual impasse educacional.

 

 

6) A lei de diretrizes e bases

 

A lei de diretrizes e bases, cujo projeto está em estudos, nesta Casa, a ela entregue pelo Executivo em 1948, ou seja dois anos após promulgada a Constituição, que impôs a sua necessidade, é uma aplicação moderadíssima da solução que propugnamos. Representa uma média entre os que desejariam uma experiência mais radical e corajosa e os super-prudentes, temerosos de qualquer liberdade. Aplaudo-a com muitas restrições, mas reconheço que melhorará a situação.

As grandes Iinhas desta lei assim se poderiam resumir:

I – Unidade da educação brasileira – Tôda a educação brasileira, em todos os seus níveis e ramos, terá diretrizes e bases comuns, constituindo um sistema contínuo, diversificado e uno, a ser executado por particulares e pelos poderes públicos, sob a administração dos Estados e a supervisão discreta, mas eficaz, do Govêrno Federal.

Não só a iniciativa particular, como a de tôdas as três ordens de govêrno, serão mobilizadas para o grande esfôrço comum, em um regime de livre participação e de responsabilidade, sem imposição de modelos rígidos e uniformes, mas em sadia emulação, em que ao lado do bom se erga o melhor e um e outro mùtuamente se fertilizem, para o progresso e a vitalidade contínua do ensino.

II – Divisão de competências – Os sistemas estaduais de educação representam os corpos – também êles próprios diversificados – componentes do super-sistema complexo e amplo de educação nacional, enquanto não se chega até o Município, ao que tenderá o sistema, à medida que amadureça a experiência administrativa brasileira. No momento, a prudência administrativa aconselha que se vá com a descentralização até o Estado, mas sem desconhecer que os próprios estados ainda constituem unidades demasiado amplas para uma ação centralizada, cumprindo que se pense em levar a tendência descentralizadora até os municípios, que deverão ser, no final, as unidades administrativas básicas do ensino.

Êste ponto de vista encontra o seu maior fundamento na necessidade de íntima cooperação entre a comunidade e a escola. Se alguma instituição não pode ser implantada, em uma comunidade, de fora para dentro, é a escola. Ela deve nascer, sempre que possível, da própria comunidade. Tal localismo não a fará exótica, mas antes a integrará no meio a que serve, buscando obedecer, dentro das peculiaridades dêsse meio, às grandes normas gerais e nacionais. O ensino local e de responsabilidade local não ferirá em nada a unidade nacional, mas, antes, permitirá que essa unidade se faça diversificada e dinâmica, como realmente deve ser a unidade de nossa cultura e de nossa civilização.

O Sr. Nestor Jost – São Paulo está tentando. No momento, o Governador do Estado está descentralizando os encargos, e subvenciona os Municípios, com êsse objetivo.

O Sr. Anísio Teixeira – Indiretamente, está, assim, a concorrer para a vitalidade das instituições educativas.

Na Bahia, a Constituição do Estado prevê um regime pelo qual o sistema educacional terá completa autonomia. Criou-se ali um quarto poder, o da educação, constituído por um Conselho e um diretor de educação, de nomeação do Governador, mas com mandatos fixos, e que dirigirão a educação em um regime de plena autonomia e plena responsabilidade. Por delegação do Conselho Estadual, essa autonomia se estenderá, gradualmente, aos municípios.

III – Poder supervisor e normativo da União – A União não perde nenhum dos seus poderes, que antes se ampliam, com a inclusão – pela primeira vez – do ensino primário dentro de sua órbita normativa. Seu poder se exercerá pela própria lei de diretrizes e bases e por uma ação, extraordinária, nos casos, de cassação e revisão de atos dos governos estaduais, e contínua e permanente, na ação supletiva, por meio da qual assistirá financeira e tècnicamente os governos dos Estados, exercendo, indiretamente, a mais profunda influência sôbre o ensino, que, de fato, se quiser, poderá dirigir, pela forma mais fecunda de direção, que é a da demonstração, do estímulo e da sugestão.

No projeto em discussão nesta Casa, o Govêrno federal, a qualquer momento, pode cassar e anular um ato estadual. Isso corresponde a um poder tremendo que lhe é conferido exatamente para atender aos que julgam que a vida brasileira será posta em perigo, se se der aos Estados o poder de dirigir e fiscalizar a educação em seus territórios.

IV – Flexibilidade, liberdade e descentralização – Não será preciso repetir aqui coisas sediças sôbre o processo educativo. E' sabido que só adestramento se pode fazer sem participação do educando. Educação e ensino só se conseguem com plena autonomia do aluno – porque êle realmente é que se educa. Isto é verdade em relação a todo o processo educativo. Autônomo tem de ser o aluno, autônomo tem de ser o professor, autônoma tem de ser a própria instituição. Todos precisam sentir-se participantes e responsáveis, para que o processo educativo se faça autêntico e vital. A imposição em educação é uma antinomia. Daí a lei se fazer pregoeira de flexibilidade, liberdade, descentralização e autonomia, como algo de inerente ao próprio processo educativo...

Os planos impostos de cima para baixo podem funcionar na ordem mecânica, e mesmo aí apresentam seus graves defeitos, nunca em sistemas vivos como os de educação. Temos de restabelecer uma linha de autonomia que vivifique todos os tecidos do sistema educacional desde o trabalho de classe até a ordem administrativa mais alta, não para se perder a unidade, mas para se conseguir a forma única de unidade, que não é prejudicial às instituições sociais vivas e dinâmicas: a unidade obtida pela emulação de meios e formas diversas com objetivos comuns e de que resultará uma consciência comum.

Redargue-se, porém que, não havendo cultura, nem técnica, nem esclarecimento suficiente, tal regime degenerará em verdadeiros absurdos. Nada me parece mais falso. Quanto mais fraco o professor, menos lhe poderemos impor a execução de algo rígido e uniforme em desproporção com a sua capacidade. A deformação, então, é que será monstruosa. Tudo que devemos e só o que poderemos fazer será, assisti-lo, estimulá-lo, oferecer-lhe sugestões para lentamente reerguê-lo. E isto é o que se fará do novo regime de sanções indiretas, assistência e orientação.

O Govêrno Federal, aliviado da função administrativa, se constituirá, na execução da lei de diretrizes e bases, no órgão de supervisão e assistência técnica e financeira do ensino, devendo prover-se para tanto dos órgãos capazes, se os não tem, depurando e apurando a composição dos que já tem. Estudará todos os sistemas escolares e fará circular, entre os mesmos, o máximo de informações a respeito de suas estruturas, do seu funcionamento, das suas experiências, dos seus progressos e dos seu erros. Atento, pelos seus inquéritos, pelas suas visitas e pelos seus estudos à marcha e desenvolvimento do ensino, exercerá uma ação permanente de assistência e de orientação, que será a mais eficaz, não só por ser desejada como por ser a mais inteligente. Ensaiará uma classificação das escolas, em cada Estado e em todo o país, mostrará que há boas e más escolas, graus diferentes de eficácia de ensino e desenvolverá planos para seu progresso mediante auxílios a ser concedidos em face de padrões novos atingidos. Será um regime de estímulos, a substituir o de sanções.

– Que se perderá com isto? – São, por acaso, as imposições e sanções de hoje garantia da eficácia do ensino? – Qual de nós responderá que sim?

Em primeiro lugar, não há memória de sanções aplicadas e, quanto às imposições, elas se transformaram em objeto de comprovação formalística, fácil de atender por meio de ,"documentos hábeis", criando-se, em educação, algo como o regime de prestação de contas perante os Tribunais de Contas do país em que a perfeição formal do documento substitui a indagação real do mérito.

Temos que voltar ao regime do mérito. A educação não pode ficar reduzida à prova dos autos. Educação não é processo burocrático nem judiciário. Não estamos lidando com ficções ou convenções legais, mas com a natureza humana. É a cultura que está em jôgo. E não poderemos promovê-la senão por um sistema complexo de estímulos e sanções indiretas, em situações de autonomia e responsabilidade. Por mais que repugne ao nosso espírito formalista e lógico essa organização empírica e livre, não vejo outro modo de se criar no país uma saudável e vigorosa atmosfera educativa.

 

 

7) O projeto da lei em seus capítulos fundamentais

 

a) Os títulos I e II definem o direito à educação e os fins da educação. São dispositivos, gerais mais ou menos felizes, na sua redação, e decorrentes do texto constitucional;

b) o título III distribui a competência de assegurar o direito à educação – nos têrmos também da Constituição – aos poderes públicos, e prevê, em linhas gerais, a administração federal do ensino;

c) o título IV – que é a chave da lei – dispõe sobre os sistemas de ensino. Êstes serão o sistema federal de ensino, de caráter supletivo, e os estaduais e do Distrito Federal. (Não se cogita, sequer, ainda, de sistemas municipais).

Dentro das diretrizes e bases comuns da lei federal, os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino, com a autonomia essencial para que se sintam plenamente responsáveis pelas suas qualidades e defeitos.

Muitos pensam consistir a descentralização em transferir os poderes federais ao Estado. Não, Nem a União, nem os Estados devem ou podem ser centralizadores. Descentralização e autonomia são princípios complementares. Também os Estados terão de possuir legislarão descentralizadora. Exercerão sôbre os municípios, como o Govêrno Federal exerce sôbre êles (Estados), pela assistência técnica e financeira, urna influência que não poderá ser nociva – como tão facilmente se faz a fiscalização a distância – e, em muitos casos será saudável e estimulante. Além disto, o Govêrno Federal manterá um sistema de ensino, cujas funções serão supletivas ou de demonstração.

Vejam bem: no jôgo do sistema da lei de diretrizes e bases, os Estados organizarão os seus sistemas de educação e o Govêrno Federal contribuirá com um sistema supletivo por meio do qual completará e estimulará os estaduais, desde que não pode constituir o seu sistema supletivo sem estudar a fundo cada sistema estadual, cujas deficiências deseja suprir.

Além disto, êsse sistema supletivo deverá constituir uma demonstração de bom ensino, destinado a comprovar que o seu método, a sua pedagogia, a sua técnica são realmente melhores que a do Estado e a do município. Em vez de legislar sôbre um suposto bom ensino, a união ficará com a obrigação de fazer o "bom ensino", demonstrando-o, pelo seu sistema supletivo, à Nação. Não se poderão, assim, queixar os centralizadores. Competirá ao Govêrno Federal fazer, e não mandar fazer, o que, no seu ponto de vista, seja o melhor. E tal demonstração será o melhor estímulo para que Estados e Municípios a acompanhem.

O Sr. Rui Santos – Eu gostaria que V. Excia. desse seu ponto de vista quanto a essa questão de sistema ou, por outra quanto à definição e entendimento do que seja sistema de educação. Sabe V. Excia. haver já quem tenha dito ser o sistema educacional, previsto pela Constituição, um sistema – vamos dizer assim – burocrático, administrativo apenas. Dai desejar neste capítulo ouvir sua opinião.

O SR. Anísio Teixeira – Considero a palavra "sistema", sem dúvida alguma, equívoca, pois tanto pode significar sistema de idéias, quanto conjunto de escolas ou instituições educativas.

Deixemos, porém, o debate semântico ou, digamos, lógico, sôbre a palavra "sistema". A verdade é que, à luz da Constituição, os Estados passam a ser responsáveis pela educação primária, pela secundária e, parcialmente, pela superior, porque esta, em virtude de outro artigo constitucional que dá ao Govêrno Federal o direito de regular o exercício das profissões, a êle pertence em parte. Fora dêsse direito de fiscalizar o exercício das profissões liberais, o Govêrno Federal não tem outros poderes senão o de legislar sôbre diretrizes e bases da educação nacional e manter o seu sistema supletivo de, educação.

O que os legisladores, a meu ver, deverão, portanto, defender, relativamente ao problema do que se chama sistema estadual de educação, é que tôda educação ministrada dentro do território do Estado fique sob a ação do respectivo govêrno estadual. Êste é que está lá, executando a lei de bases e diretrizes, sofrendo as sanções do Govêrno Federal, se, por acaso, cometer erro, e, na realidade, pela proximidade, pelo conhecimento da sua comunidade, pela subordinação à sua opinião pública, em condições de dirigir e fiscalizar o ensino em seu território. Tôda a ação federal deverá ser, apenas, supletiva.

O Sr. Rui Santos – É a expressão "supletiva" constante da Constituição.

O Sr. Anísio Teixeira – O conjunto de auxílios ou de escolas com os quais o Govêrno Federal irá dar ao Estado o que o Estado não tem, ou fornecer-lhe elementos para que êle melhore o que está fazendo mal, constituirá a ação supletista do Govêrno Federal.

O Sr. Moura Andrade – Pretende-se dar, segundo me parece, ao Estado, a capacidade que êle já possui hoje da organização dos sistemas judiciais. Assim, teríamos, neste ponto da educação – e aí está a minha indagação a V. Excia. – que o Estado organizaria seu sistema educacional, para ir executando a educação de acôrdo com as leis federais que fôssem baixadas, sôbre assuntos gerais. Seria êste o princípio?

O SR. Anísio Teixeira – Êste, exatamente, meu ponto de vista. Chego a dar o exemplo do cumprimento pelo Estado das leis de saúde pública, como das leis civis, das leis comerciais, das leis processuais (pela, organização da justiça local), sem que se tenha julgado com isto fôsse pôsto em perigo o poder da União. Dir-se-á, na questão da justiça – vamos levar o argumento até o fim – que existe tôda uma organização federal, de instância superior, em que os erros da justiça local são corrigidos pela justiça federal. De modo geral, porém, tanto o Código Civil, como o Código Comercial, como os Códigos de Processo, como as disposições de saúde pública, estão sendo cumpridos, e não somente pelos órgãos próprios da justiça, mas por tôdas as autoridades regulares do Estado, sujeitas à legislação federal. Não se pode fazer um contrato sem obediência ao Código Civil, mas não se precisa vir ao Rio de janeiro pedir o amparo de uma autoridade, para se poder dizer que um contrato de direito civil, realizado consoante a lei, é válido. Não se precisa para tanto, de nenhum visto, ou carimbo da burocracia federal. O êrro está em se pensar que a execução das leis federais de educação só pode ser feita através do funcionário federal, que êles (os funcionários da União) são os únicos e exclusivos juízes a decidirem, aqui, nos seus distantes gabinetes, se a lei foi cumprida ou, não. Cria-se, assim, aliás, um singular privilégio: é de passarem êles a ser a lei. O que importa não é, no fundo, a lei mas o que êles despacham. Se despacharem contra a lei, fora da lei ou além da lei, os seus atos continuam legais e os papéis válidos, porque trazem a "chancela" dêsses-singulares "magistrados" da educação nacional.

Voltando, porém, ao regime a ser instituído pela lei de diretrizes e bases, teremos, como dizíamos, no país, vinte e um sistemas educacionais dos Estados e do Distrito Federal e um sistema federal supletivo – todos gravitando dentro da mesma órbita comum que é a traçada pela lei federal de diretrizes e bases. Os que vêem nisto perigo não reparam que já temos êstes 22 sistemas; apenas, hoje sem a plena responsabilidade dos seus mantenedores.

A última lei federal de ensino decretada no país determinou a uniformização rígida do ensino normal, secundário, industrial, enfim, de todos os ramos do ensino. Em todos os Estados – excetuados aquêles que ainda não observaram essa legislação – procedeu-se à alteração completa de suas escolas, para obedecerem aos modelos federais. E as escolas imediatamente entraram num regime de mortificação progressiva.

As escolas normais do país estavam fora da legislação federal. Eram escolas boas ou más, mas eram o que eram. Podia haver esfôrço para progredir. Uma administração estadual podia pensar em melhorá-las. Não se pode imaginar o que representou a extensão de uma legislação federal uniforme, rígida e detalhada a tôdas essas escolas. Logo se criou o sentimento de impotência generalizada, e todos, de braços cruzados, apenas declaram: é isto a formação dos professôres, nada podemos fazer! Tudo depende do Govêrno Federal, que, por sinal, não mantém uma só dessas escolas.

Esta falta de responsabilidade das autoridades locais pelo que se passa nas instituições mais fundamentais da sua comunidade é que me aterra. Desejaria que a lei promovesse a responsabilidade local até dos municípios – o que poderá fazer a legislação dos Estados. A responsabilidade só poderá ser obtida por meio da autonomia. Devemos, pois, dar autonomia, não por amor à autonomia, mas por amor dos seus resultados. E – perdoem-me que o diga por não ser possível, materialmente possível, que a União se substitua aos poderes locais.

Sou contra a centralização de todo o poder educativo na União por muitos motivos, mas nenhum me parece mais decisivo do que êste: porque tal centralização não é possível, e tudo que consegue é estimular a fraude e desencorajar as boas iniciativas. A centralização, num país, como o nosso, é uma congestão cerebral. Por isto, somos uma federação. Por isto, temos os municípios autônomos. Ora, não é possível a federação política e o princípio da autonomia política dos municípios, sem equivalentes autonomias dos seus serviços de educação. Uns acompanham os outros.

Serviços relativamente mais fáceis de executar como os de polícia, os de justiça, os de saúde pública, precisam ser locais, e são locais, pois, se fôssem federais, sabe lá Deus como não funcionariam. - Como não hão de ser locais os de educação, que, mais do que quaisquer outros, precisam haurir na comunidade, na família, nos indivíduos, que constituem sua clientela, a seiva por que hão de se fazer vivos e progressivos?

Todos sabemos o que resulta da centralização excessiva de poderes na União: temos uma total centralização financeira e já isto, na prática, destruiu polìticamente os Estados. A segunda grande centralização é da educação, que está ameaçando destruir, culturalmente, o país. (Muito bem). Não falo na dos transportes, nem da estatística - porque não julgo a centralização de grandes serviços mecânicos tão prejudicial quanto a de serviços mais complexos e mais vivos, que requerem a participação de todos para se fazerem eficientes. Mas, a centralização da educação parece-me, sem exagêro, mortal. E muito do sentimento de impotência que vai pelo país, em relação à possibilidade de resolver os seus problemas educativos, provém, a meu ver, dêsse estrangulamento causado pela centralização federal.

Tudo isto, porém, parece estar em desacôrdo ou em contradição com o que tenho afirmado sôbre certa improvisação educacional corrente no país e a multiplicação que anda por aí - a meu ver perigosa - de escolas sem condições adequadas de funcionamento. A aparência da contradição é real e precisa de ser explicada.

Por um lado, almejo grande movimento educacional, em que as iniciativas tôdas se expandam com liberdade e, de outro lado, estou, geralmente, a protestar, a reclamar contra as improvisações educativas a que vimos assistindo. Explico a aparente contradição.

O país está a crescer e desenvolver-se, gerando problemas maiores do que os que os seus recursos atuais permitem resolver. O da educação é um dêstes problemas. Nem todos os recursos atuais dos municípios, dos Estados e da União poderiam resolvê-lo, completamente, de uma assentada. Daí, segundo julgo, a necessidade de distribuir a responsabilidade de resolvê-lo por todos: particulares, municípios, Estados e União. Como, porém, mesmo assim, não se conseguirá resolvê-lo bem, propugno um regime de liberdade e flexibilidade - para que todos e cada um, dentro de seus recursos e suas possibilidades técnicas e sociais, possam ensaiar suas soluções, deflagrando-se aquêle amplo movimento nacional que me parece indispensável para o encaminhamento do problema nacional de educação. E como conseqüência dêste sistema propugno o exame de estado, a que já tenho aludido, para a devida sanção.

- Com o regime da centralização uniforme e rígida, que se está dando? - Algo que é um desvio perigoso de tudo isto. As necessidades de expansão estão cada vez mais gritantes. Tentar o que propugno - isto é, grandes esforços coletivos para a solução do problema - seria fatigante e contrário à nossa natureza. Mas, há "modelos formais e padrões uniformes" de educação e uma repartição, distante e remota, a repetição federal, que "concede" inspeções preliminares" e "equiparações", mediante a "comprovação", por meio de "processo" ou de "provas nos autos", dos padrões requeridos, a ginásios, colégios e escolas superiores. Fica, então, fácil "fundar" quanto ginásio e escola superior se queira. Contra essa "expansão" é que me levanto. Não seria jamais contra os esforços honestos, embora pobres, para fundação de colégios. Sou contra a simulação, que a atual legislação centralizadora e formalista promove e estimula.

Não sou contra a expansão educacional honesta, contra a expansão, por exemplo, que estamos fazendo no ensino primário, e que poderíamos ilustrar com o caso do Município do Rio Grande do Sul, que há pouco citei, o qual criou, êle sòzinho, 375 escolas primárias, ou com o esfôrço singular da Administração do Estado do Rio para melhorar o ensino primário, construindo prédios escolares, cada um dêles melhor do que muitos dos prédios das nossas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, mais recentemente instituídas. Não me refiro, evidentemente, às duas grandes Faculdades de Filosofia, em São Paulo e no Rio. Penso nessas Escolas de Filosofia criadas em sobrados, com duas ou três salas de aula, com recursos mais modestos do que o de escolas primárias das mesmas cidades onde foram instaladas. É contra isto que eu me bato.

O Sr. Rui Santos - Em tese, estou perfeitamente de acôrdo, mas, no comêço de sua exposição, V. S. citou o que se verifica nas escolas superiores, quando ali prestam exames os alunos provenientes do ginásio. Queria pedir sua atenção para êste fato, que venho notando: há dois critérios de julgamento ou de rigorismo em matéria de exames - um, adotado nas escolas chamadas oficiais, outro, nas escolas particulares. Nas escolas oficiais, há uma tendência maior de reprovação, o que faz alguém, como eu, julgar que o professor busca menor trabalho, nos anos seguintes, procurando reduzir a classe, através de reprovações, por vêzes, abusivas. (Trocam-se apartes). A rigor, o geral é isto. O Deputado Maurício Joppert, Professor na Escola Nacional de Engenharia, tem êsse mesmo ponto de vista. Diz S. Excia. que, nas escolas oficiais, de modo geral - é claro que não generalizo - os professôres procuram ter menor trabalho.

O Sr. Paulo Sarasate - Isto é uma questão de mentalidade, que devemos criar.

O Sr. Rui Santos - Exige-se muito nos vestibulares e, de modo geral, o comparecimento às aulas é reduzido e lá também se pede pouco. Sou de escola oficial, mas esta é a verdade.

O Sr. ANÍSIO TEIXEIRA - Reconhecemos que começam a aparecer, realmente, exemplos de uma severidade talvez excessiva nos exames. Sei de escolas particulares onde isto se observa. Mas, o que precisamos é de instituir um regime em que não haja necessidade de atitudes especiais de "exemplo" para assim agir. Presentemente, quem assim procede, quem procura orientar o seu estabelecimento de ensino dentro de alto padrão de eficiência e rigor, fica, de certa maneira, em situação de desvantagem com relação aos demais que deixam correr o barco e nada sofrem, antes ganham com isto. Temos de criar um regime em que, para se ser honesto ou rigoroso, não se precise de ser herói.

Não preciso de maior prova do que digo, que essa própria multiplicação de escolas a que estamos assistindo. Poucos aqui serão tão jovens que não tenham conhecido um Brasil que não julgava fácil criar escolas, em nenhum dos seus níveis. - Por que, hoje, se reputa tudo tão fácil? - Porque um regime de centralização, rigidez, conformidade e mera fiscalização de papéis, estabelecido para criar a "unidade nacional", impedir os "abusos", limitar a "licença educacional", degenerou no mais vasto sistema de facilidade que se poderia imaginar. A "oficialização" de tôdas as iniciativas educacionais tornou-as tôdas idênticas, boas e más, estimulando, por conseguinte, as más e desencorajando as boas.

O projeto não chega a restabelecer a liberdade que eu propugnaria. Mas abre o caminho para maior flexibilidade. Se estabelecermos o exame de estado para o quarto e o sexto ano do ensino médio, e se, no ensino superior, criarmos, como no secundário, estágios de cultura geral superior e cultura profissional e especializada, restringindo os últimos ciclos sòmente às escolas melhores, teremos oposto um dique à "dissolução educacional", ao mesmo tempo que daremos estímulo às boas e corajosas iniciativas.

Para atender à expansão do ensino pós-primário ou médio e do superior, com o mínimo de perda de padrões, já de si tão modestos, no país, lembraria que as concessões ou autorizações se fizessem por etapas graduais. Assim, no ensino secundário, em vez de mantermos apenas o ciclo ginasial, de quatro anos, o ciclo do colégio de dois e, pelo projeto, um colégio universitário de um, deveríamos proceder a divisão ainda maior, criando dois ciclos de dois anos no período ginasial. E as mesmas divisões se estabeleceriam no ensino superior, entre os cursos básicos e os cursos profissionais. Êsses "patamares", digamos assim, da "escada educacional" iriam permitir a expansão por etapas ou, para manter a metáfora, por "lanços" da escada do ensino. Teríamos ginásios com os dois primeiros anos do curso, outros com os primeiros quatro e outros com todos os seis. Nos centros adiantados haveria o curso completo, nos centros médios, os dois ciclos ginasiais, e, nos pequenos, apenas o primeiro ciclo de dois anos, o qual a rigor, penso se poderia, perfeitamente, permitir que funcionasse em todos os bons grupos escolares primários do país.

O Sr. Moura Andrade - Não seria possível executar a idéia, porque as escolas estão superlotadas e não têm, absolutamente, condições para desviar sua atenção do ensino primário. Em São Paulo, hoje, 50% da educação primária se faz através dos Municípios. (Trocam-se apartes).

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Eu vejo o dilema de outro modo. Temos de atender à expansão, custe o que custar. A solicitação da opinião pública e o desejo dos pais de dar educação secundária aos seus filhos, muito em conseqüência de certa degradação sofrida pelo ensino primário, face ao congestionamento das escolas primárias e da redução do respectivo programa, não podem deixar de ser satisfeitos. Seria muito difícil ao Govêrno poder deter a expansão em marcha das escolas secundárias. Mas, se vamos permitir, atendendo à expansão, que funcionem estabelecimentos particulares em más condições, destinadas apenas àquela parte da população que pode pagar o ensino particular, devemos, com maior razão, encorajar o Estado a criar, nos seus melhores grupos escolares, o primeiro e o segundo anos ginasiais. Seria como se tivéssemos ampliado o curso primário, com dois anos complementares, de nível secundário. São Paulo criou, recentemente, várias dezenas de ginásios. A expansão do ensino secundário público se impôs diante de São Paulo e o Estado teve de atendê-la em parte. Mas a rigidez do curso de quatro anos só permitia ginásios, assim, completos. Com êsse período dividido em dois ciclos independentes, poderemos, sem dúvida, estabelecer o primeiro ciclo nos melhores grupos escolares do país. Isto imediatamente abriria para a mocidade do país uma imensa rêde de escolas secundárias com dois anos de curso, o que refrearia a pressão sôbre o ensino particular. Esta solução parece-me, por todos os modos, preferível à de fundação, em cada caso, de novos ginásios, com novos prédios ...

O Sr. Paulo Sarasate - Parece que o problema não é de prédio; desde que haja a facilidade preconizada por V. S., teremos elementos - como acontece em todos os setores da atividade nacional para a construção de prédios em número suficiente para a instalação dêsses pequenos ginásios de dois anos. Nos próprios Municípios hão de aparecer - os Estados são todos iguais - meios necessários à fundação de suficiente ensino ginasial em escala progressiva, com V. S. preconiza e acho absolutamente aconselhável. (Trocam-se apartes).

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Com efeito, criando-se êsses patamares sucessivos, conduziríamos a expansão por graus, por etapas, evitando o funcionamento das séries mais adiantadas, em todos os casos onde as condições de falta de recursos humanos ou materiais não o permitissem.

No ensino superior, penso, a mesma gradação tem de ser estabelecida. Temos de criar o curso básico fundamental superior e, após êste, os cursos profissionais pròpriamente ditos e os de especialização e doutorado. As autorizações e concessões para funcionamento de curso superior se fariam, então, por etapas. As escolas que não estivessem devidamente aparelhadas ou não possuíssem professorado adequado, só poderiam manter os cursos básicos, ficando os diplomas profissionais para ser concedidos sòmente pelas escolas melhores e de maiores recursos. Os exames em cada um dêstes ciclos teriam o caráter dos atuais exames vestibulares, ou sejam, de exames de estado, constituindo processos de verificação da aprendizagem global obtida no ciclo anterior de estudos básicos. Ainda advogaria outro dique à diplomação fácil e êste seria o do exame final para a licença de exercício da profissão, por associações profissionais, de médicos, engenheiros, etc. Estas associações, mediante novos exames, por elas mesmas planejados e efetuados, concederiam as licenças para o exercício da profissão. Tais exames atuariam como contrôle final para o ensino superior oficial ou particular.

Em país como o nosso, será inevitável uma certa e contingente heterogeneidade de instituições educativas. A lei deve reconhecer isto, e não impor um modêlo uniforme que, por impossível, como digo sempre, gere a fraude. Mediante processos de classificação das escolas e aferição dos resultados escolares, por exames de estado, deixa-las-emos livres para progredir e melhorar, desenvolvendo um sistema de assistência e estímulos indiretos, que intensifique êsse desenvolvimento.

Os títulos V e VI da lei dispõem sôbre a educação pré-primária e primária, estabelecendo os meios de assegurar a obrigatoriedade escolar, que, em meado dêste século, ainda não foi, no Brasil, assegurada, e fixando as condições do curso elementar. Ambos os títulos exemplificam a amplitude da competência legislativa da União e de como essa competência não implica, necessàriamente, no contrôle pela União do ensino primário. A lei federal será executada pelas autoridades estaduais, do mesmo modo que as executam, no campo da legislação civil comercial e penal, as autoridades locais.

O título Vll regula a educação de grau médio. Continuando a tradição inaugurada pela legislação federal imediatamente anterior, o projeto classifica como educação média, no mesmo capítulo, o chamado curso secundário e os chamados cursos profissionais, inclusive a formação do magistério primário, mesmo quando êste atinge dois anos de curso acima do de colégio. Mas, não vai além.

É um dos títulos em que mais se pode sentir o caráter conservador ou conciliador do projeto. Prefere ser contraditório a ser inovador. Separa o curso secundário do chamado profissional, embora em sua organização os subordine ao mesmo art. 27 do capítulo sôbre ensino secundário. Tudo está feito para que os cursos tenham equivalência. Mas, um estranho pudor tradicionalista separa essas "equivalências" em dois capítulos diversos. Depois, nos cursos de formação de docentes para o ensino primário, repete a mesma estranha incoerência, classificando de médio o ensino nos institutos de educação, mesmo quando feito em duas séries posteriores ao curso de colégio.

Os autores do projeto se convenceram de que o ensino médio deve ser um ensino diversificado e flexível, quer dizer - acadêmico, comercial, industrial, agrícola, - conduzindo todo êle ao ensino superior, e convenceram-se de que o docente primário deve ter, no último escalão, formação de nível superior, mas "chamar" os cursos profissionais de secundários e os cursos dos institutos de educação de superiores pareceu-lhes demais. Preferiram a contradição. São secundários os cursos profissionais, e os dois anos pós-colégio dos Institutos de Educação são realmente superiores, - assim, porém não se chamarão.

E com isto continuaremos a manter os falsos dualismos, com que insistimos em dar ao ensino secundário de caráter acadêmico um prestígio social que já não tem sòzinho, pois os cursos de caráter profissional - agrícolas, comerciais e industriais - também já o possuem, e mais o devem possuir, se desejamos estabelecer uma sociedade democrática, cuja maior dignidade é a do trabalho.

O outro falso desdém que o projeto insinua é o do ensino primário, cujos docentes, mesmo que tenham dois anos de formação além do colégio, continuam a não possuir, na letra da lei, senão o curso médio.

O segundo motivo para essa peculiaridade de classificação está em não querer subordinar os Institutos de Educação ao regime das Escolas Superiores, porque, se isto fizesse, dentro do sistema da lei, limitaria o poder dos Estados de criá-los.

O título Vlll cria o colégio universitário como articulação entre o ensino de nível secundário e o superior. É uma inovação feliz e que sugere uma solução que, mais corajosamente adotada, poderá ajudar-nos a vencer as dificuldades de uma rápida expansão do ensino.

É aquela solução por mim lembrada, em que iríamos criando etapas e patamares sucessivos.

Com efeito, uma vez que temos de expandir aceleradamente o nosso sistema de educação, tudo aconselha que dividamos os seus cursos em ciclos, a fim de que os ampliemos por etapas, cada vez mais elaboradas e difíceis. Assim será desde o primário, que a lei divide em fundamental de três anos e complementar de dois, podendo haver escolas com três séries apenas e com as cinco, como ainda escolas com, apenas, as duas séries complementares. Isto permitirá que adaptemos as escolas aos recursos locais. Depois, no secundário, o projeto divide as escolas em ginásios, colégios e colégio universitário, tornando progressivamente maiores as exigências para cada ciclo. Proporia eu aí, ainda, como já disse, divisão maior. O primeiro ciclo de dois anos do curso ginasial, após o complementar primário, poderia ser organizado nos grupos escolares. O segundo ciclo de dois anos isoladamente, ou em conjunto com o primeiro, seria organizado nos ginásios. O terceiro, colegial, nos estabelecimentos mais desenvolvidos. E o último, o colégio universitário, nas escolas superiores.

Êstes diversos patamares constituiriam diques à expansão desarrazoada, porque compulsória ... ou melhor, porque não equacionada com o realmente possível em cada lugar. . . Desde que não posso fazer ginásios senão de quatro anos ou séries, mas só tenho recursos, humanos e materiais, para as duas primeiras séries, está claro que as duas últimas séries vão sofrer as conseqüências: terão laboratório falso, equipamento falso, aparelhamento falso, espaço de aulas congestionado e professôres fictícios ...

Os diferentes ciclos iriam permitir a melhor adaptação dos estabelecimentos aos recursos locais e, ao mesmo tempo, permitiriam que a pirâmide educacional estendesse a sua base, sem perda do sentido de progresso gradual, que lhe deve caracterizar a passagem para os níveis mais altos.

O título IX regula o ensino superior. A lei estende-se neste título a detalhes minuciosos e reivindica o privilégio da União de só ela poder autorizar o funcionamento de estabelecimento de ensino superior.

O intuito da lei é tornar mais severo o reconhecimento e impedir a existência de más escolas superiores. Infelizmente, não se pode garantir que a providência seja eficaz. As autorizações já concedidas para funcionamento de escolas superiores aí estão, para mostrar que a autoridade federal pode ir até onde não foram nunca as autoridades estaduais. Pessoalmente, estou convencido de que as autoridades locais não iriam tão longe.

Só vejo um remédio, repito, para a correção dos efeitos dessas facilidades. Seria o de criarmos ciclos também no ensino superior, como os já estabelecidos para os cursos médios. As autorizações concedidas, sem que as condições necessárias sejam atendidas, valeriam para o ciclo inicial, que diplomaria os estudantes num primeiro grau de bacharel, o qual, não importaria no direito de exercer a profissão. Êste direito, para ser alcançado, exigiria que o diplomado seguisse em escola mais adequada o restante do curso, que seria o profissional pròpriamente dito.

Se quiséssemos ir mais longe, poderíamos adotar ainda o exame de estado para êstes últimos diplomados em escolas oficiais ou reconhecidas, com o que dificultaríamos, talvez eficazmente, tôdas as veleidades de burla ou ineficiência do ensino superior. Os patamares ou diques à expansão imprudente do ensino superior seriam, então, o dos cursos de bacharel, destinados a dar cultura geral superior, sem direito ao exercício de qualquer profissão, depois o dos cursos profissionais, que habilitariam os graduados ao exercício potencial das profissões e, por último, o exame de estado, nas ordens ou associações profissionais, do qual dependeria a efetiva licença para o exercício legal da profissão ou carreira superior, em certos casos com o necessário estágio de prática.

Sou francamente por êsses três degraus, para a conquista do direito de exercer uma profissão definida em lei. Se os adotarmos, estaremos, pelo menos, tentando sèriamente elevar o nível do ensino superior, criando um mecanismo profundamente desfavorável à fraude, à cola e a todos os expedientes com que, infantilmente, nos iludimos em nosso gôsto pelo diploma puramente ornamental. Tais providências valeriam por tôdas as disposições fiscalizadoras formais, que, infelizmente, nada reprimem, por não terem as autoridades fiscalizadoras nenhuma influência sôbre o processo de ensino, que é julgado, exclusivamente, pelos próprios fiscalizados.

O capítulo da Universidade regula a autonomia dessas instituições. Incondicionalmente favorável a esta autonomia, gostaria de vê-Ia exercida com um senso mais vigoroso de responsabilidade. Julgo que a lei concede a autonomia e depois a dilui por órgãos coletivos, em que se difunde, com prejuízo para uma perfeita definição de responsabilidade. Defenderia assim um Conselho Universitário de número reduzido de membros, como poder deliberativo, e um Reitor com vigorosos poderes executivos e disciplinares. A nossa experiência universitária é, entretanto, tão recente, que, talvez, não estejamos amadurecidos para reconhecer tais necessidades. . .

O título X regula os recursos para a educação. Êste é um capítulo fundamental e que, no projeto, não teve o desenvolvimento que seria de esperar. Não podemos fazer educação sem recursos e recursos sempre crescentes. As percentagens constitucionais representam um bom princípio, mas cumpre estabelecer sanções, para que não se tornem letra morta. Os juristas deverão, neste caso, ajudar os educadores, encontrando as disposições que logrem compelir os poderes públicos a dar cumprimento à Constituição. Até o momento, não existe nenhuma sanção contra o seu não cumprimento.

Sabemos que, na maioria das capitais dos Estados do Brasil, não se cumpre a Constituição na parte da aplicação da verba educacional. E não há sanção para isso. É um verdadeiro desafio ao Legislativo Federal êste de se descobrirem os dispositivos necessários para o estabelecimento de sanções pela falta de cumprimento de uma disposição que é a mais fundamental de nossa Carta Magna, no que diz respeito ao problema da educação.

Mas, não basta isto. Será necessário prever o financiamento, inclusive por empréstimo, das grandes despesas iniciais da educação. Que as verbas orçamentárias respondam pelo custeio da manutenção da educação; mas, a construção dos prédios e o seu aparelhamento deverão ser financiados por empréstimos a longo prazo. Neste capítulo, deverá o legislador prever e autorizar e, se possível, definir o caráter, as condições e as garantias que poderão ter tais empréstimos. Sem um amplo financiamento, garantido pela União e facilitado aos Estados e Municípios, jamais lograremos construir os sistemas escolares necessários à nossa população crescente. O problema precisa ser examinado com coragem e desejo real de resolvê-lo.

Muitas de nossas palavras, talvez demasiado severas, ao retratar a situação educacional do país, encontram a sua real explicação na penúria dos nossos recursos para a educação. Ora, só a guerra tem, mais que a educação, exigências financeiras. A educação de um povo, entretanto, é o mais amplo empreendimento das sociedades humanas. E os recursos têm de aparecer e acompanhar essa amplitude. À mobilização de vontade indispensável para se levar avante tão grande e imperioso empreendimento deve corresponder uma grande mobilização de recursos, pelas três ordens de govêrno, em um plano conjugado para a construção dos prédios, a formação do magistério e a montagem definitiva de um sistema escolar público e gratuito. Ao seu lado se erguerá o sistema particular para as classes abastadas ou semi-abastadas que, interessadas em certo tipo especial de educação, prefiram pagá-lo a receber a educação pública, gratuita e distribuída indiscriminadamente.

Alimentamos, por vêzes, a veleidade de manter um sistema de educação particular com os característicos da educação pública, pleiteando que seja indiscriminada e barata e, em rigor, substitua a pública. Não me parece que isto seja possível, nem cabível ou justo. A educação particular é particular, destinada a alunos da preferência dos que a mantenham e dirijam, e naturalmente cara. Entre os muitos equívocos em que nos debatemos no campo da educação, está êste de querer que a educação privada cumpra deveres que pertencem, apenas, à educação pública.

 

 

8) Conclusão

 

Não encerro esta ligeira exposição, sem acentuar, mais uma vez, que a lei de diretrizes e bases deverá ser uma lei de grande amplitude, que liberte as iniciativas, distribua os poderes de organizar e ministrar a educação e o ensino e faculte ao povo brasileiro encontrar, no jôgo de experiências honestas e de uma emulação sadia, os seus caminhos de formação nacional.

Deve ser um ato de confiança no povo brasileiro. As características do nosso povo - em que pesem aparências mal apreciadas porque mal compreendidas - são a melhor garantia para êste ato de fé. Tutelados, revelamo-nos hábeis e, por vêzes, maliciosos. Livres, porém, surpreendemos os observadores com a nossa capacidade de iniciativa, de flexibilidade, de engenhosidade e de esfôrço.

Por certo, haverá casos de erros e de abusos. Mas, os erros são o preço que temos de pagar para podermos ser livres e honestos. E serão os erros, como tais reconhecidos, que nos permitirão progredir e acertar. A pedagogia da liberdade, que é a pedagogia da democracia, não produz os seus frutos de caráter e de virtude sem êsse risco. Tenhamos a coragem de corrê-lo. (Palmas).

O SR. PRESIDENTE - Meus nobres colegas, acertei quando antecipadamente, manifestei ao Professor Anísio Teixeira os agradecimentos da Comissão de Educação e Cultura, pela sua contribuição, já agora podemos dizer - valiosíssima. Seus estudos profundos sôbre as causas da eficiência de nossa educação, sua observação perspicaz de todos os problemas que afligem quantos têm a responsabilidade de dirimi-los, representam, para nós, a certeza de que possuímos, no setor da educação, homens dotados de grande patriotismo e capazes de empreender obra de real merecimento para a redenção do povo brasileiro.

De acôrdo com o programa fixado para êste debate, declaro aberta, agora, a todos os eminentes colegas, consoante, ainda, o próprio desejo do Professor Anísio Teixeira, a fase da inquirição.

Todos os pontos que não tenham atendido suficientemente ao esclarecimento dos nobres colegas ou que em seus espíritos tenham despertado dúvidas poderão ser aclarados, pela gentileza do nosso convidado, que me declarou sentir-se bem com esta sabatina ...

O Sr. Carlos Valadares - Como relator do ensino normal, no projeto de diretrizes e bases da educação nacional, peço permissão para formular algumas perguntas ao Dr. Anísio Teixeira. A primeira é a seguinte:

 

- Deve-se deixar a cada Estado o poder amplo de legislar sôbre o ensino normal, ou é preferível que o legislador federal fixe níveis-padrões para formação do professor primário, em todo o país?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Para o ensino normal, o projeto indicou três estágios: o curso normal regional; a escola normal de três séries anuais e o Instituto de Educação. Penso que, sempre que a lei de base e diretrizes não fixar modelos pròpriamente ditos, mas níveis e planos de preparo de qualquer profissional, tais planos, criando o quadro necessário dentro do qual se manterá a educação brasileira, estará atuando dentro da área legítima do poder federal. O professor primário será, assim, preparado em três graus sucessivos. O sistema normal compreenderá escolas do primeiro, segundo e terceiro níveis. Não estão, porém, aqui, em detalhes, quaisquer das outras condições - de currículo, programas, métodos e processos - que ficam, tôdas elas, para ser objeto da legislação estadual, que, por sua vez, não as deverá fixar, mas definir os órgãos profissionais que as estabelecerão, em regime suscetível de permitir a flexibilidade e a experimentação. Acho de vantagem sejam estabelecidos aquêles três níveis de formação do magistério primário, mas não iria ao ponto de aconselhar viesse também o Govêrno Federal reconhecer a profissão magisterial do ensino primário e generalizar a aplicação do diploma a todos os Estados brasileiros, pois não me parece de nenhuma conveniência para o país venha o seu professorado primário a ser preparado em um Estado para ensinar em outro. O professorado primário deve ser uma expressão tão profunda das condições culturais de cada Estado que, de preferência, deve ser de origem e formação local.

Creio ter atendido à indagação de V. Excia.

 

O Sr. Carlos Valadares - Perfeitamente.

 

- A experiência da atual "Lei Orgânica do Ensino Normal", obra do INEP, oferece elementos que justifiquem a manutenção de seus preceitos de uniformidade pela nova lei de diretrizes e bases da educação nacional?

 

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Tudo o que expus constitui uma condenação a essa legislação anterior, que levou a ação centralizadora até a fixação dos menores detalhes de organização, de currículo e até de programas, retirando das escolas tôda flexibilidade e tôda autonomia.

A meu ver, o poder central não deve sair da simples indicação genérica do que representarão os cursos para o preparo do magistério. Tôdas as particularidades internas do processo educativo são e devem ser da alçada da legislação estadual, a qual, como já disse, também deverá abster-se de ser uniformizante e centralizadora, fixando antes as condições em que se processará a organização e os cursos da escola. Mesmo no setor estadual, não recomendaria assim a fixação, em lei, de seriação ou currículo e programa, os quais constituem processos técnicos em permanente experimentação, à luz da experiência educacional e da consciência profissional do magistério.

Os exemplos que dou, a respeito, são sempre os da medicina. Jamais nos passaria pela cabeça prever, em lei, o tratamento de determinada moléstia. Podemos determinar em lei, a necessidade do diagnóstico, quiça a posteriori como muitas vêzes não pode deixar de ser, mas, quem faz o diagnóstico é o médico, com a sua consciência profissional. E o mesmo, ou mais ainda, podemos dizer quanto ao tratamento ou terapêutica.

No dia em que passarmos a elaborar a legislação de que verdadeiramente necessita o Brasil sôbre educação, nunca haveremos de pretender dar receitas educacionais por ato de lei. A lei fixa os objetivos, os princípios, as condições em que o ensino se dever dar, mas quem deve estabelecer o conteúdo, formular o programa e dizer como alcançar aquêles objetivos, é a consciência educacional, a consciência profissional do educador. Os educadores, cada vez mais autênticos, saberão fazer o que fôr melhor para que se atinja o fim colimado.

Sempre raciocinamos e agimos, como se a educação não fôsse capaz de criar uma consciência profissional, pela qual os educadores cheguem a soluções aproximadamente similares de seus problemas, baseados em suas experiências e conhecimentos. Ora, a educação, o ensino, é uma grande profissão liberal como a medicina, a engenharia, o direito, ou a ciência, e não algo de abstrato, irreal e arbitrário a ser fixado por lei e regulamentos rígidos.

O Sr. Carlos Valadares - Que pensa sôbre a questão da validade nacional dos certificados e diplomas do ensino normal?

O Sr. ANíSIO TEIXEIRA - Já o disse. Na prática, sou contra essa validade. Embora, à primeira vista, um quadro só do professorado primário no país pareça vantajoso, seus inconvenientes concretos são enormes. O professorado primário, comum a todo o país, podendo ser transferido, livremente, de um ponto para outro, deixa de se integrar nas condições locais, e essa integração é essencial para à constituição de uma boa escola primária. Se estivesse em minhas mãos decidir sôbre o assunto, faria os professôres primários "colados" às escolas, como os vigários de certas paróquias antigas. Já, porém, que isto não é possível, pelo menos que os professôres estaduais pertençam aos seus próprios Estados, e se possível, a cada uma de suas regiões. Não facilitemos, mais ainda, a gravitação brasileira da periferia para o centro, porque acabaríamos trazendo todos os professôres primários para o Rio de Janeiro, para se colocarem nas escolas do Distrito Federal, o que seria verdadeiro despropósito.

O Sr. Carlos Valadares - Convém que se articule o ensino normal, de forma mais ampla, com o ensino superior, a exemplo do que permite a Lei nş 1.076, relativamente aos diplomados em cursos comerciais técnicos?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - V. Excia. indaga se o ensino normal deve articular-se com o ensino superior. Sou francamente favorável a essa articulação, no sentido de que, nos planos que decorrerão da lei de bases e diretrizes, tôda a preparação normal permita ao normalista encaminhar-se para qualquer das escolas superiores brasileiras. Sem dúvida alguma, tôda vez que, em educação, criarmos escolas como becos sem saída, teremos feito grande mal à educação. Tôda educação deve ser organizada de forma que, na famosa "escada educacional", considerada a forma por excelência democrática da educação, todos os degraus, isto é, tôdas as escolas, em todos os ramos do ensino, possam conduzir aos degraus mais altos do ensino superior.

Exemplo que muito bem ilustra esta tese é o do ensino agrícola. Enquanto o tivemos isolado, segredado dos demais ramos do ensino, ficou êle um ensino morto, desprestigiado e procurado apenas pelos que não podiam fazer outros cursos. Hoje com a sua melhor articulação faz-se, cada dia mais, um dos ramos vigorosos do nosso ensino superior.

A circulação entre os diversos ramos do ensino deve permitir que, a qualquer momento, possa o indivíduo, que escolheu determinado caminho, tomar, se as condições mudaram, outra resolução e buscar dar à sua formação rumo diverso. É mister haver tal circulação horizontal e não sòmente a vertical, entre todos os graus e todos os ramos do ensino. Aliás, a lei atual, da autoria do Deputado Gustavo Capanema, já inicia êste processo de articulação ora completamente assegurado pelo projeto de bases e diretrizes.

O Sr. Carlos Valadares - Sr. Presidente, estou satisfeito.

O Sr. Paulo Sarasate - Perguntaria ao Dr. Anísio Teixeira se, preconizando nova legislação sôbre o ensino - porque, efetivamente, a preconiza - e entendendo que devemos partir da centralização exagerada de hoje, para a almejada descentralização, democrática, não acha que devemos elaborar essa legislação em escala ascendente, progressivamente, ou admite possamos, de chofre, realizar a transformação?

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - A pergunta tem perfeita razão de ser e eu mesmo havia pensado em esclarecer êsse ponto, durante a minha ligeira exposição.

O problema de centralização e descentralização, infelizmente, não é puramente lógico e objetivo, mas, de certo modo, temperamental. O grande argumento contra a descentralização é, mais ou menos, representado por estas palavras: Tenho mêdo disto! Tenho muito mêdo! E fica-se nisso. Ora, não há de ser fácil vencer-se tal posição emocional. Daí, também eu admitir uma transação, qual seja a de estabelecer a lei um regime misto, em que o poder continue todo dentro da órbita federal, com a possibilidade de ser delegado aos Estados, à medida que se julgar viável essa transferência de atribuições. Vou, pessoalmente, até aí. E tenho confiança em que o Govêrno Federal, com tais delegações aos Estados, a seu ver capazes de arcar com a nova responsabilidade, venha a colhêr resultados tão bons, que, depois, estenda amplamente o processo aos demais Estados.

Desejaria que tal transação não fosse necessária. Infelizmente, porém, talvez o seja. Assim como o imperialismo é, por vêzes, facilitado pela nação que o sofre, assim é a centralização do Govêrno Federal. Há Estados que a desejam e até a pedem. É difícil dar autonomia a quem não a deseja.

O Sr. Paulo Sarasate - V. S. aludiu à necessidade de ser o ensino público aquilo que deve ser, continuando o ensino particular, efetivamente, como ensino particular. Pergunto: - Também aí não podia haver um meio têrmo? Porque chegamos a uma verdadeira pletora, pelo menos no curso ginasial, de estabelecimentos particulares, contra a insuficiência de estabelecimentos oficiais. Não poderíamos chegar, também aí, a um regime de transação? Êste não seria de boa política? Não seria caso de se admitir o ensino particular com a desejada gratuidade ou semigratuidade, através de subvenção aos educandários particulares que o merecessem? Se a questão é de recursos, atingiríamos êsse objetivo por meio de subvenção. O poder público poderia subvencionar os estabelecimentos particulares, para que êstes proporcionassem a desejada gratuidade aos estudantes que a essa vantagem fizessem jus, continuando a pagar aqueles alunos das classes mais abastadas. Qual o seu ponto de vista?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Devido a omissão do poder estadual, o ensino secundário particular, no Brasil, está, realmente, procurando cumprir a obrigação, que àquele cabia. E muitos dos colégios particulares não têm, digamos assim, o espírito de colégios particulares, nem sempre procedendo à discriminação peculiar do ensino privado, salvo a discriminação da capacidade de pagar o curso. Mas entre os que podem pagar, adotam por vêzes regras de seleção de seus alunos, que se poderiam considerar equivalentes às públicas. Então, como transação, lembraria o seguinte: Uma vez que o Govêrno não pode, com a rapidez necessária, criar um número de ginásios públicos capaz de suprir as necessidades verdadeiramente gritantes de matrícula de alunos impedidos, pela suas condições econômicas, de fazer o curso secundário nas escolas particulares, sugeriria uma lei de bôlsas de estudo, pela qual o Govêrno viesse a manter cêrca de 50.000 estudantes, secundários nos colégios particulares do país. Êsses estudantes, escolhidos em tôda a nação, à razão de tantos por município, uma vez distinguidos com a bôlsa, poderiam, por sua vez, escolher o colégio de sua preferência dentre os da lista aprovada pelo Govêrno para atender aos seus bolsistas. Os colégios receberiam, assim uma subvenção, com o pagamento das despesas decorrentes da freqüência dêsses alunos no curso secundário, ficando, portanto, para os mesmos, gratuita a educação.

Infelizmente, até agora é mais modesto o que se tem pretendido, consistindo os planos em se conseguir gratuidade para certo número de alunos dos colégios particulares, com base nos favores que, por sua vez, êles recebem. Dêste programa, discordo.

O Sr. Paulo Sarasate - Quando a êste particular, também discordo inteiramente. Talvez essa lei nem chegue a ser concretizada e submetida à apreciação do Ministro. Mas tenho cópia do plano, que me forneceu Murilo Braga, particularmente.

O Sr. ANÍSIO TEIXEIRA - Também conheço o plano do Dr. Murilo Braga. Êle concede as bôlsas mas, depois, reivindica 5% de matrículas gratuitas, com o que pensa ampliar o programa. A meu ver, entretanto, o programa deve ser tentado corajosamente, com bôlsas de estudo que importem em pagar a educação, a compra de livros, e um pouco de subsistência do aluno. Assim, não se pode cogitar de bôlsa pequena. Não pode ser, de modo algum, inferior a seis ou sete mil cruzeiros por ano e por aluno. Cinqüenta mil alunos perfariam uns Cr$ 350.000.000,00, importância que não é demasiada para o imediato alívio à situação de não haver escolas secundárias públicas gratuitas em número suficiente no país.

O Sr. Paulo Sarasate - Peço permissão para mais uma pergunta. Aliás, não sou membro desta ilustre Comissão e constitui deferência muito especial de sua parte responder às indagações que formulo. Esta consulta que farei é à margem de uma afirmação de V. S. Disse V. S., se não engano, serem diminutíssimos os recursos com que conta o Distrito Federal para inversão em obras, isto é, construção de prédios escolares. Estou de acôrdo; são de fato, diminutos êsses recursos. Mas, pergunto: - Sendo assim, deveríamos recorrer, talvez, a financiamentos ... (Trocam-se apartes). Preconiza V. S. que os recursos atualmente destinados a construção de prédios sejam destinados apenas a pagar ...

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - A financiar os grandes empréstimos para construção de 15, 20 ou 50.000 prédios escolares.

O Sr. Paulo Sarasate - E quem iria arcar com a responsabilidade dêsses empréstimos: a União, o Estado e o Município?

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Uma vez a idéia aprovada e objeto da legislação, está claro que o desenvolvimento dela se daria no plano municipal, estadual e federal. Gostaria que houvesse uma garantia federal para os empréstimos, a serem lançados na base de apólices escolares, cada empréstimos destinando-se a custear o sistema escolar de determinada comunidade. As próprias escolas se fariam as agentes da distribuição e colocação dessas apólices escolares, que deviam ser vendidas a prestações, ter regime de prêmios igual aos habituais dos empréstimos públicos ou, talvez, melhorados, à maneira dos empréstimos de capitalização. Seria um grande movimento, em que, se projetasse o plano de construção para cada município - no Estado do Rio, por exemplo, só o Município de São Gonçalo tem 50 prédios escolares a construir - e depois se estudassem as necessidades de financiamento, lançando-se um empréstimo para cada município ou para grupos de municípios. Se as escolas fôssem estaduais, arcaria o Estado com a responsabilidade final do empréstimo, - se municipais, o município; mas, em todos os casos, poderia a União garantir o empréstimo, para facilitar a colocação das apólices.

O Sr. Paulo Sarasate - Ideal seria assumisse a União a responsabilidade do empréstimo.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Sem dúvida. Mas, se a União ficar na posição de garantidora, já seria inestimável a sua cooperação para o êxito do empréstimo.

O Sr. Paulo Sarasate - Agradeço a explicação. Como um plano dessa ordem tem de ser amadurecido, para que possa dar frutos satisfatórios, perguntaria se, enquanto êle não fôr transformado em realidade, acha razoável abandonemos o que já está iniciado, isto é, o emprêgo das votações orçamentárias na construção de prédios. Acredito que de modo algum.

SR. ANíSIO TEIXEIRA - De modo algum.

O Sr. Paulo Sarasate - Folgo em ouvir esta sua declaração, porque já se anda apregoando que o INEP estaria resolvido a mudar de orientação nesse sentido e todos nós aqui, pelo menos no Congresso, temos a satisfação de proclamar que essas realizações do INEP, na parte de construção de prédios, constituem obra útil e digna de maiores aplausos. Folgo em registrar sua resposta, que nos veio trazer esclarecimento oportuno e necessário.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - A política de construção de prédios é acertadíssima. Poderemos, apenas, discutir um regime de prioridades para essa construção, determinando o que se deve fazer em primeiro, segundo e terceiro lugar. A êste respeito, desejaria apenas acentuar a escassez de recursos do INEP para o vulto da obra a realizar. O INEP tem, para a construção de prédios escolares, no orçamento de 1952, Cr$ 40.000.000,00, no setor de escolas rurais, e Cr$ 13.000.000,00, para escolas normais, enquanto que só o Estado do Rio dispõe de Cr$ 84.000.000,00, no orçamento atual, para construções escolares. Se os recursos do Fundo do Ensino Primário pudessem ser aplicados no pagamento de juros de um grande empréstimo, por certo que poderíamos fazer obra muito mais rápida.

O Sr. Paulo Sarasate - Estou satisfeito, Sr. Presidente.

O Sr. Nestor Jost - Dr. Anísio Teixeira, inicialmente, desejo manifestar-lhe minha admiração pela coragem com que examinou os problemas educacionais em nosso país. Se me permitisse, formularia uma questão, a respeito da flexibilidade dos currículos. V. S. defendeu, com brilhantismo a descentralização e a flexibilidade dos currículos. No sistema adotado no projeto de bases e diretrizes, parece que essa flexibilidade se acha a cargo dos sistemas estaduais. Não acharia interessante deixá-la aos cuidados dos próprios estabelecimentos de ensino secundário ou escolha dos alunos, mediante a fixação de diferentes currículos, como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Não condenarei, em tese, um currículo completamente flexível, a ser ajustado às necessidades dos alunos, como se faz na América do Norte. Hoje, porém, a tendência mais ou menos incontrovertida a respeito de programas escolares, é no sentido de se estabelecer uma parte fixa e outra variável. Os currículos escolares devem ser organizados como se organiza uma dieta, com uma série muito variada de pratos, mas dizendo-se: - Êstes e aquêles são essenciais, podendo, no mais, completar a refeição, à vontade escolhendo entre o que fôr oferecido.

O projeto de bases e diretrizes atende a êsse ponto, em parte, e numa revisão que se está fazendo no Ministério da Educação, para, oportunamente, ser apresentada à Comissão, ainda se reduz mais o número de matérias obrigatórias, que constituiriam, pròpriamente, o núcleo do currículo compulsório. Serão apenas cinco essas matérias obrigatórias, sendo quaisquer outras optativas, permitindo-se assim, adaptar-se o curso às necessidades do estabelecimento, da comunidade local ou dos alunos. A organização de núcleo mínimo de currículo parece-me aconselhável. A experiência adquirida pela América do Norte, de inteira liberdade, no particular, não deu resultados e hoje aquêle país está sendo levado retificar tal orientação, e admitir, como ocorre agora, currículos com parte fixa mínima, e parte optativa e flexível. Assim a flexibilidade é relativa.

O Sr. Nestor Jost - Na minha opinião, podia-se fazer justamente êsse núcleo composto de métodos ou trabalhos abrangendo dois terços do currículo, ficando o restante a critério dos estabelecimentos de ensino. Em alguns Estados norte-americanos, está sendo usado certo número de matérias fixas e outras à escolha dos alunos.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Dependerá da riqueza do colégio o programa de opções a oferecer. Só os grandes estabelecimentos poderão ter variedade de matérias para escolha por parte dos alunos. Os pequenos ficarão no programa nuclear e não apresentarão mais de duas ou três matérias optativas. Vejamos, por exemplo, o caso das línguas. Podemos todos chegar, hoje, a concordar que não é possível no ensino secundário brasileiro, já em fase de franca popularização, pretender-se ensinar mais de uma língua estrangeira. Caberá, então, determinar que não seja obrigatória senão uma língua estrangeira. Os colégios mais ricos, cujos alunos sejam -de exceção, poderão tomar a seu cargo o ensino de mais uma, duas ou três, mas em caráter facultativo.

O Sr. Nestor Jost - Não quero dizer estivéssemos sujeitos a um processo de telepatia, mas V. S. respondeu à segunda pergunta que ia formular, e que seria no sentido da obrigatoriedade do ensino de línguas estrangeiras. Auscultando a opinião nacional, tenho notado séria repulsa contra a exclusão do latim. E devo confessar que sou favorável à exclusão, do primeiro ciclo secundário, também, de línguas estrangeiras. No caso, indagaria:

- Deveríamos fixar tal língua ou dizer, apenas, - uma língua estrangeira?

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - A meu ver, a língua francesa deve ser obrigatória e as outras optativas. E darei a razão dessa escolha.

Somos uma civilização latiria, de origem greco-latina; mas não podemos receber a herança cultural da velha civilização greco-romana diretamente. Não sou contra o latim, porém vejo a impossibilidade de se ensinar à população brasileira a leitura corrente dessa língua e nenhum ensino de língua pode ser considerado eficiente se não chegar ao mínimo da sua leitura fluente. O francês, entretanto, é língua muito próxima da nossa, pode ser muito mais fàcilmente ensinada e se transformará na nossa língua cultural, o que, até certo ponto e certa época, já foi. Receberemos, por intermédio da literatura francesa e das traduções francesas dos autores latinos e gregos, a herança cultural que nos pertence. Como o inglês tem já por si sedução própria - estamos vivendo uma era profundamente inglêsa das relações internacionais - poderá ser pôsto na categoria das matérias optativas. Os alunos pedirão para aprender o inglês ou o aprenderão depois, mas ficará assegurado, na formação brasileira, o uso de uma língua estrangeira.

Defendo o uso obrigatório de um idioma estrangeiro, porque o português ainda não tem literatura suficiente para, por si mesmo, nos educar em tôda a extensão e amplitude da cultura humana. Do contrário, até dispensaria qualquer língua estrangeira, e línguas estrangeiras só seriam ensinadas a quem o quisesse ou delas precisasse. Na atual situação da cultura brasileira, e a ela atendendo, é que uma língua estrangeira me parece indispensável, no ensino secundário. E, como disse, aconselharia fôsse ela o francês, ficando, como optativa, o inglês.

O Sr. Nestor Jost - V. S. defende, também, a descentralização, mas, com respeito ao exame de estado, parece-me, vai haver ainda centralização excessiva nos órgãos estaduais. Não vejo bem a maneira prática de se conseguir resultado satisfatório com as bancas de estado, mesmo porque os constituintes dessas bancas teriam de ser recrutados entre os próprios professôres dos estabelecimentos congêneres.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Não, porém, dos colégios particulares. Se viermos a organizar o exame de estado, procuraremos ter corpos de professôres mais numerosos do que possuímos hoje. O assunto já foi resolvido por muitas nações européias, de maneira que, habitualmente, o de que se precisa é de organizar, nas escolas oficiais, um professorado duplo, capaz, em número e qualidade, de ensinar e examinar. Além dos professôres que estão lecionando, haverá sempre professôres examinando. Se o número de colégios fôr muito grande, evidentemente teremos de nomear maior quantidade de professôres. Na Inglaterra, por exemplo, onde o regime foi pôsto em plena execução, faz-se um revezamento entre os professôres que ensinam e examinam. Os melhores são escolhidos para o regime de exames e, depois, voltam à cátedra, enquanto outros passam a examinar. Os períodos de exame se estendem por todo o ano. O sistema, uma vez adotado, não pode deixar de exigir maior professorado. No Brasil, havendo poucas escolas oficiais, enriquecer-se-ia o magistério de cada uma, devido à nova obrigação, imposta aos professôres, não só de ensinar e examinar seus próprios alunos, como, também, de examinar os alunos das demais escolas por ocasião dos exames de estado.

O Sr. Nestor Jost - A maior dificuldade nossa reside, justamente, na obtenção de professôres.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Para as escolas oficiais, não acredito, desde que elas possam pagar razoàvelmente. Estamos, realmente, com tremenda escassez de professôres para as necessidades da expansão educacional brasileira em geral, mas, quanto aos colégios oficiais, darei um exemplo: Aqui, no Rio de Janeiro, acaba a Prefeitura de precisar para a expansão do seu ensino normal de 120 a 130 professôres secundários. O concurso vai ser aberto para a seleção dêsses professôres e, segundo me informaram, o número de candidatos vai ser de 2.500 a 3.000. Não faltam, pois, professôres secundários brasileiros dispostos a ganharem. O fato é que numerosos professôres ganham ainda muito mal.

O Sr. Nestor Jost - Isso, na Capital da República.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Na Capital da República - concordo. À medida que êsse regime fôsse sendo ampliado porém, e não ficando o processo do ensino integralmente condicionado à qualidade do professor, mas sofrendo a contraprova do exame de estado, grande parte da ineficácia do professor secundário vai desaparecer - não podendo êle sobreviver à ineficácia do seu ensino. Então freqüentando cursos de aperfeiçoamento, estudando entre si, serão êles levados à melhoria gradual. O mecanismo lembrado aqui, na lei de diretrizes e bases, e que propugnei em minha exposição, fará com que os professôres vençam o espírito de rotina em que estão, de certo modo, imersos e entrem em grandes esforços para o seu próprio aprimoramento.

O Sr. Leite Neto - V. S. fêz magnífica exposição sôbre os problemas educacionais no Brasil, focalizando particularidade sobretudo de meu interêsse, na qualidade de relator do Ministério da Educação na Comissão de Finanças. Diz respeito exatamente aquilo que V. S. chamou de ponto fundamental, ou seja, a obtenção de recursos para o desenvolvimento do processo educativo no Brasil.

Examinando, pela primeira vez, na passada sessão legislativa, o orçamento do Ministério da Educação, constatei não estar sendo cumprida a determinação constitucional relativa ao mínimo com que a União deve contribuir para o sistema educativo, relativamente aos Estados e Municípios. Verificamos, assim, na proposta orçamentária para 1952, estarmos muito aquém dos 10% fixados em nossa Carta Magna. Observamos o seguinte:

Na distribuição das dotações para os diversos níveis do ensino no Brasil, contamos, aproximadamente, com setecentos milhões de cruzeiros para o ensino superior; pouco mais de dois milhões para o primário, compreendendo o Fundo Nacional do Ensino Primário; pouco mais de oitenta milhões para o secundário.

Tive oportunidade de demonstrar que, dêsses oitenta milhões, destinados ao ensino secundário, mais de quarenta milhões couberam ao Distrito Federal, sobrando apenas para o resto do território nacional quantia inferior a quarenta milhões de cruzeiros.

Resulta daí a situação atual. A ação do Govêrno Federal, em matéria de ensino secundário em nosso país, decorre da exigüidade alarmante das verbas consignadas para êsse fim.

V. Excia., grande educador, tendo ocupado por mais de uma vez com brilho a Secretaria da Educação de seu Estado e a do Distrito Federal, deve ter observado que não só nos ginásios das capitais, mas também nos em funcionamento no interior, a ineficiência do ensino não é sòmente proveniente da falta de capacidade intelectual do magistério secundário, como ainda da quase inexistência de fiscalização. Não é, pois, motivada pela aplicação de regulamentos, conforme disse V. Excia.

Agora perguntaria qual a sua sugestão face ao ponto por mim focalizado a respeito da desproporção existente entre as verbas destinadas ao ensino superior, num volume aproximado de oitocentos milhões de cruzeiros, e as do ensino primário e secundário, respectivamente, com pouco mais de duzentos milhões e oitenta milhões, acrescendo a anomalia de metade das dotações ser distribuída no Distrito Federal?

A disparidade das verbas é chocante. Ninguém melhor que V. Excia. sabe demonstrar em estatísticas, em matéria de ensino, que cêrca de três milhões de crianças no Brasil procuram as escolas e não as encontram. Infelizmente, os dados patenteiam também funcionarem mais da metade das escolas em prédios impróprios, de aluguéis, sem a adaptação técnica necessária e mesmo sem as mais elementares condições higiênicas. A outra metade fica ainda subdividida: umas se acham instaladas em prédios cedidos e outras, então, constituindo a menor parte, em edifícios construidos propositadamente para ser ministrado o ensino primário.

Assim, tenho a impressão de que - e desejava o seu esclarecimento - tratando-se aqui de questão de política educacional ligada à política financeira, seria mais interessante: primeiro, na lei que pretendemos elaborar, a qual deve ter um sentido prático, estabelecer sanções para os poderes federais, estaduais e municipais, no concernente ao cumprimento do dispositivo expresso na Constituição, quer dizer, com respeito às percentagens sobre os tributos cobrados, para aplicação na educação. Segundo, já que o problema do ensino superior, nestes últimos anos, quanto ao aspecto financeiro, se agravou sobremodo, motivando a federalização de algumas dezenas de faculdades por uma única lei, seria mais aconselhável que a União, em vez de preocupar-se em promover essa federalização em larga escala, procurasse subvencionar as escolas particulares, de acôrdo com a eficiência demonstrada, notadamente as de ensino superior. Estas contribuem para o progresso econômico e técnico do país, como as escolas de engenharia. Assim, não mais a União teria de preocupar-se em elastecer a rêde de escolas federais superiores, dando sòmente as subvenções para as que demonstrassem eficiência. Todavia, indispensável se torna aumentar as dotações orçamentárias para o ensino primário e o médio.

Faço essa consulta a V. Excia. apenas com o objetivo de traçar-me orientação no emitir o parecer sôbre o orçamento do Ministério da Educação no presente exercício.

Agradeço antecipadamente a V. Excia.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Não se trata, parece-me, de consulta, antes de uma proposta, a que dou, sem dúvida, o meu apoio.

Na minha exposição de há pouco disse ser preciso que o Legislativo descobrisse o meio de estabelecer sanções ao não cumprimento do dispositivo constitucional, tão essencial para o desenvolvimento progressivo dos sistemas nacionais de educação. Ao dizê-lo, tive em mira não só os governos estaduais e municipais, como o próprio govêrno federal.

Quanto ao mais, a que V. Excia, fêz amplas referências, vou até além.

As necessidades não são sòmente as indicadas por V. Excia. São em maior número e ainda mais graves, pois, mesmo numa capital, como São Paulo, muitas das escolas primárias funcionam ainda em dois e três turnos. Isto demonstra que se faz mister construir todo um outro sistema escolar para abrigar, devidamente, as crianças atualmente matriculadas. Assim os 20% da renda tributária dos Estados e dos Municípios e os 10% da do Govêrno Federal estão longe de poder bastar para o cumprimento da obrigação constitucional de educação compulsória de tôdas as crianças em idade escolar.

Se, entretanto, houvesse um plano de auxílio aos Estados pela União, êsse plano poderia crescer de ano para ano. Com efeito, sendo a verba da educação um percentual da renda tributária e esta vindo em ascensão constante, cada ano teríamos maiores recursos para atender às deficiências dos Estados e Municípios. Ao invés disto, o orçamento federal se vem consumindo no simples aumento de suas verbas anteriores, sem a devida proporção ou sem atender às peculiaridades do orçamento para a educação, em face dos próprios imperativos constitucionais a respeito.

Seria interessante o estabelecimento de um plano sistemático de auxílio baseado no crescimento constitucional do orçamento da educação. De todos os Ministérios, sòmente o da Educação pode contar com o privilégio de um orçamento sempre crescente. O plano de bôlsas de estudo para o ensino secundário, a continuação dos auxílios para a construção dos prédios escolares, o início de um plano de assistência técnica aos Estados e Municípios, a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, seriam alguns dos serviços novos ou ampliação de antigos a serem atendidos com a parcela do aumento proporcional decorrente do aumento das rendas federais.

Assim, aprovaria plenamente, com o maior entusiasmo, as medidas sugeridas por V. Excia., de enquadrar o orçamento do Ministério da Educação na realidade constitucional, reivindicando os dez por cento da renda tributária, que lhe são compulsòriamente atribuídos.

O SR. PRESIDENTE - Dou a palavra ao Sr. Deputado, Moura Andrade.

SR. MOURA ANDRADE - Dr. Anísio Teixeira, V. Excia. Afirmou, na sua dissertação, considerar o problema da educação estritamente político e não técnico. Daí, haver eu concluído, face essa sua convicção, que Vossa Excelência procura identificar o problema da educação com a própria estrutura da Federação democrática brasileira. Esta a razão pela qual propugna a realização mais urgente possível da declaração constitucional que determina cumprir aos Estados e ao Distrito Federal organizar os seus sistemas de ensino.

Exatamente esta, creio eu, a intenção de V. Excia. Ao caracterizar, como problema político, o da educação. Isto pôsto, verifico que a descentralização propugnada por V. Excia. Não seria plenamente alcançada - queira perdoar-me - no ponto em que argumentou sôbre a constituição de vários patamares pelos quais a educação devia ir passando.

Eu estaria de acôrdo com V. Excia. Nos dois primeiros patamares; no último, entretanto, considero que, em vez de se criar a descentralização, de garantir a autonomia dos Estados no cumprimento dos princípios educacionais, iríamos provocar problema sério, inclusive relativamente à faculdade se permitir cursos superiores com determinado estágio e pelos quais se alcançaria, apenas, um bacharelato e não um direito ao exercício da profissão.

Neste caso, aboliríamos as grandes perspectivas da universalidade do ensino, dentro de um instituto estadual, ou seja, iríamos criar problema seríssimo à subsistência das universidades, para as quais - creio - se deve encaminhar nosso esfôrço.

As escolas particulares, encarregando-se apenas de um estágio do curso superior, viriam desintegrar as próprias universidades que se fôssem fundando, impedindo houvesse aquêle pensamento que caracteriza e fundamenta a universalidade do ensino superior.

Esta a objeção que desejava fazer a V. Excia.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Não defendi pròpriamente isso.

Na questão do ensino superior, reconheço o direito de estabelecer o Govêrno Federal as condições que lhe pareçam melhores para assegurar e garantir o exercício profissional, não em face do capítulo da Constituição relativo à educação, mas em virtude do dispositivo que declara serem as profissões regulamentadas pelo Govêrno Federal.

No Brasil existem presentemente duzentas e vinte e tantas escolas superiores e cêrca de quatorze universidades - digo cêrca porque de um momento para outro se cria uma nova. Quando sugeri os patamares, tinha em mente que mesmo numa universidade, alguma de suas escolas, por exemplo a sua Faculdade de Filosofia, pode não estar em condições de oferecer os cursos além dos de bacharelato. Ficaria, então, a isso limitada até que suas condições melhorassem. Os patamares constituiriam escalas no desenvolvimento das escolas. Não teriam caráter de algo estático ou definitivo. Logo que as devidas condições fôssem criadas, também criados seriam os direitos de expandir os cursos até aos novos níveis. O que se busca é poder fazer isto gradualmente e não impor a tôdas as escolas, novas ou antigas, aparelhadas ou não, com professorado ou sem êle, cursos completos e supostamente idênticos. Não se rompia com a continuidade, ou universalidade, como diz V. Excia., dos cursos superiores, mas assegurava-se, com o seu desdobramento em ciclos, a possibilidade de fazê-los em mais de uma escola superior, nos primeiros anos na escola mais acessível e, nos últimos anos, nas escolas mais distantes, mas melhor aparelhadas.

O Sr. Paulo Sarasate - V. Excia, pensava sobretudo nas escolas de filosofia; nós, nas clássicas escolas de profissões liberais.

O SR. ANíSIO TEIXEIRA - Na própria escola profissional, de nível superior, creio, haveria vantagem, na adoção do que sugeri, considerando todo o panorama nacional. Se uma escola não se acha organizada integralmente para preparar, por exemplo, até o último estágio do curso médico, por falta de recursos e meios adequados, façam os candidatos ao diploma de médico, nela, sòmente o curso fundamental médico, que seria, nas sugestões apresentadas na lei de bases e diretrizes, de quatro anos e, depois dirijam-se a uma escola de medicina de mais alto quilate para fazer os dois últimos anos do curso profissional, pròpriamente dito.

Claro que, uma vez tomada essa medida, os Estados, cujas escolas superiores se acharem em condições de proporcionar apenas o curso fundamental, deveriam dotar os seus de bôlsas os seus alunos de estudo para a conclusão dos estudos em cidades mais adiantadas, onde as escolas fôssem aparelhadas e equipadas para o curso completo. O ensino superior passaria a se desenvolver por dois modos: pela criação de novas escolas, como se vem fazendo, mas limitadas a ministrar, até que se aparelhassem devidamente, os cursos básicos, e pelo sistema de bôlsas de estudo, que dariam aos seus estudantes oportunidades para terminar os cursos nas escolas dos centros mais adiantados do país.

O Sr. Paulo Sarasate - E se o indivíduo não voltar mais?

O SR. ANÍSIO TEIXElRA - Não importa.

A vários governadores do Norte, com quem tive entendimentos, fiz a sugestão para corajosamente organizarem o serviço de bôlsas.

Se o Estado, por exemplo, de Alagoas, que já dispõe de algumas escolas superiores, resolvesse instituir anualmente cinqüenta bôlsas para médicos, quarenta para engenheiros e trinta para bacharéis, proporcionando aos estudantes, muito bem selecionados, as condições para estudarem no Rio, São Paulo, Minas, Recife, onde quer que fôsse, êles voltariam como todos nós voltamos quando não havia senão duas ou três escolas superiores no país.

Castro Alves estudou em Recife, formou-se em São Paulo e voltou à Bahia; Rui Barbosa, do mesmo modo. Muitos e muitos estudaram e ainda estudam em outros Estados e voltam ao de origem para trabalhar. Aliás, tudo depende do mercado de trabalho que, felizmente, está aumentando prodigiosamente, por tôda a parte, enquanto, por outro lado, se está saturando nos grandes centros do Rio de Janeiro e São Paulo. Talvez mais cedo do que se pensa, se venha a processar a marcha inversa do centro para as regiões em desenvolvimento do Brasil, cujo crescimento já começa a se fazer sentir fora daqueles grandes focos do progresso nacional nos últimos setenta anos.

Não sei se respondi a V. Excia. completamente.

O Sr. Moura Andrade - V. Excia. respondeu-me quase satisfatòriamente. Entretanto, não desejo reiterar a pergunta, porquanto entendo que talvez a tese de V. Excia. pudesse ser aplicada desde que se mantivesse o princípio adstrito às escolas públicas, sem se estender à iniciativa particular, o que iria colidir com o princípio constitucional que declara livre tal iniciativa.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Mas continuaria livre, apenas seriam estabelecidas condições legais para o funcionamento de cursos apenas básicos ou de cursos básicos e profissionais.

O Sr. Moura Andrade - Assim, Dr. Anísio Teixeira, quero agradecer sua atenção e, ao fazê-lo, manifesto a grande satisfação que todos tivemos em ouvir tão ilustre autoridade na matéria. V. Excia. possìvelmente será interpelado ainda por outros dignos colegas.

Desejo, entretanto, salientar a verdade daquelas palavras pronunciadas por V. Excia. no decorrer de sua exposição: o espírito de liberada de jamais vai para a anarquia.

V. Excia. sempre foi um espírito livre, um homem independente na apreciação dêsses assuntos. Daí essa perfeita ordenação, êsse grande método que alcançou. Por fôrça da natureza de seu espírito e da vida a êles consagrada, conseguiu V. Excia. atingir a alta posição de que desfruta na consideração de todos os seus concidadãos.

O SR. PRESIDENTE - Dou a palavra ao nobre Deputado Rui Santos.

O Sr. Rui Santos - Valendo-me do dispositivo regimental que permite aos elementos estranhos à Comissão participarem de sua reunião, quero fazer um comentário de curioso em tôrno da parte que ouvi da exposição do Professor Anísio Teixeira. Minha curiosidade decorre principalmente da atração exercida em matéria educacional, talvez sem querer, pelo próprio Professor Anísio Teixeira, que, nessa questão, tem sido uma das autoridades que mais procuro ler e seguir.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Sou apenas mais velho do que pareço.

O Sr. Rui Santos - Desejo ainda ponderar que, com satisfação, ouvi V. Excia. focalizar dois pontos em sua exposição. Primeiro, a descentralização. De fato, a centralização excessiva, verificada no sistema educacional brasileiro, constitui o fator principal da situação em que nos encontramos.

O segundo ponto, para que o Professor Anísio Teixeira nos chamou a atenção, é o relativo ao processo de fiscalização. Realmente existe um tipo de educação por carimbo, quer dizer, olha-se apenas se o processo tem o carimbo em

ordem, e vão para diante. Se se acha sem carimbo mister se torna voltar para carimbar. Apenas isso, até hoje, se faz na educação brasileira.

Estimei que S. Excia, houvesse deixado claro o aspecto mais importante da lei de diretrizes e bases, que é o da interpretação do sistema educacional. Em que consiste. Talvez, assim, logremos o entendimento do sistema consubstanciado na Constituição, e de que a lei cogita.

Acompanhei, embora mais ou menos à distância, os trâmites do anteprojeto da lei de diretrizes e bases. Desde 48, quando chegou a esta Casa, bato-me por êle - lamento não se ache presente o Deputado Coelho de Sousa, mas o Deputado Eurico Sales poderá dizê-lo - a ponto de quase tornar-me persona non grata nesta Comissão, porque solicitei a designação de comissão especial para dar parecer a respeito dessa lei, que se encontrava, sem andamento, neste órgão, embora não por sua culpa.

Nessa lei de diretrizes e bases, há dispositivos indiscutìvelmente regimentais, aqui e ali, que precisam ser retirados. A meu ver, também no tocante ao ensino primário e secundário, a lei de diretrizes e bases deve estabelecer o que eu chamaria o mínimo básico a êsses cursos, de que dependeriam os sistemas educacionais estaduais para aplicá-los e adaptá-los a cada localidade.

Isso figura, mais ou menos, no projeto de diretrizes e bases. Não ouvi o comentário de V. Excia. sôbre êsse ponto, porque precisei comparecer ao plenário.

Outro aspecto, também, a meu 'ver falho, é o concernente ao Conselho de Educação, sendo mais falha ainda a êsse respeito a mensagem enviada recentemente a esta Casa pelo Govêrno.

Acho que o Conselho de Educação é um órgão para ser criado, na Lei de Diretrizes e Bases, com muita seriedade. No Conselho - penso - deve repousar a maior responsabilidade do andamento ou da reforma que teremos de aduzir no sistema educacional brasileiro e nos sistemas estaduais. Precisamos, por exemplo, evitar a nomeação dos membros do Conselho para virem, por determinado período, receber aqui apenas o jéton. Convém sejam os membros do Conselho homens que devotem suas vinte e quatro horas do dia à educação. Digo vinte e quatro horas, porque o problema educacional precisa de gente que não venha pleitear mais uma sessão para mais um jéton, ou menos uma por ser feriado e receber o jéton. O bom Conselheiro, mesmo nos sonhos, tem que estar às voltas com a educação nacional. O Conselho de Educação tem de sofrer, segundo me parece, alteração. Não pode ficar como figura na lei e, muito menos, como consta da mensagem que nos veio.

Como o Deputado Leite Neto aludiu ao orçamento, vou também referir-me ao do Ministério da Educação.

Lastimável é que as verbas globais do Fundo do Ensino Primário sejam mais ou menos paradas no orçamento. Ano a ano elas só sofrem elevação, decorrente da própria receita, quando se eleva a arrecadação do impôsto adicional, destinado à educação.

Ninguém se lembra de acrescentar mais um pouco em face das necessidades reais do Brasil, das contingências atuais. Mas, há na proposta de agora ponto que refuto. Não sei mesmo se é legal, se se enquadra no espírito do Fundo do Ensino Primário - o destaque de dez milhões de cruzeiros para a sucursal do Pedro II. Não protesto contra a medida, quando há necessidade de várias sucursais, mas contra o destaque, que a Câmara tem evitado, sempre que um deputado pleiteia para seu Estado isto ou aquilo.

Lamentável abra o projeto do Poder Executivo o precedente, porque, uma vez adotado para o Distrito Federal, ninguém impedirá que eu faça um destaquezinho para a Bahia, o Deputado Moura Andrade deseje um para São Paulo ou o Deputado Peixoto para Minas Gerais e assim por diante.

Dessa forma, morrerá a verba.

Desejava ainda comentar ponto a que V. Excia. fêz referência e não ouvi sua opinião, mas a que aludiram os nobres Deputados Moura Andrade, Leite Neto e Paulo Sarasate.

Estou inteiramente de acordo com S. Exas.: por que não se cogita, por exemplo, no que toca à profissão médica, de estabelecer dois tipos de médicos, um mais fraco, para jogar-se no interior, e um mais capaz, para ficar na capital? Precisamos evitar o que se deu com os meus colegas, quando me diplomei. Não estou exagerando, tenho plena certeza. Vou relatar os fatos como se passaram.

Quando me formei, indispensável se tornava colocar à porta do consultório ou da residência a especialização. Então, por conta própria, deliberava-se da especialização: partos... sífilis... Geralmente se adotava aquela, porque há muita necessidade, o número de clientes é sempre maior tratando-se de "doença" obrigatória, digamos assim. Outros escolhiam sífilis, pois, num país onde todos são sifilíticos, a concorrência é grande; outros juntavam sífilis e parto. Assim, a especialização era a constante do cartaz, a do anúncio.

Convém estabelecer realmente para o médico o básico até quatro anos. Senão, vejamos:

Um indivíduo me procura para tirar-lhe uma pedra do estômago. Tenho de dizer não me achar em condições de fazê-lo e aconselhar-lhe um especialista. E o especialista será o homem que, além do curso que tem o médico, possua a especialização.

Se me procura um sujeito para uma trepanação, para lhe tirar um tumor, ou fazer uma secção, terei de declarar: não posso, procure outro, porque não fui até aí: Esta será a atitude honesta e certa.

Divirjo, portanto, do Deputado Leite Neto e Paulo Sarasate. A meu ver, precisamos nas profissões determinar o que vem depois, como especialização natural. Assim, tôdas as profissões constituem etapas, realmente andares.

Estas as considerações apressadas e curiosas que desejava fazer, lamentando ter perdido uma parte da sua exposição, Professor Anísio Teixeira, mas satisfeito por verificar que, realmente, o espírito do projeto é defendido por V. Excia. Aliás eu não esperava outra atitude de quem não só participou, quando não oficial, particularmente, da elaboração do projeto que tem um belíssimo relatório a respeito da parte de autoria do Professor Almeida júnior.

O SR. ANÍSIO TEIXEIRA - Estou de acôrdo com as ponderações de Vossa Excelência, acrescentando que não fala como curioso, mas como uma das autoridades nesse campo. Não me canso de frisar que a educação é o problema em que todos nós temos de opinar, pois cada um possui uma parcela respeitabilíssima de experiência no processo educativo.

Ora, um professor, como o Professor Rui Santos, com sua larga experiência do ensino superior, é dos que mais têm autoridade para opinar a respeito do assunto que estamos debatendo.

Estou de pleno acôrdo com tôdas as declarações de S. Excia., salvo as suas expressões excessivamente generosas a meu respeito e que, entretanto, agradeço.

O SR. PRESIDENTE - Professor Anísio Teixeira, a Comissão de Educação e Cultura registra, nesta tarde memorável, a eficiente colaboração de V. Excia. no grande trabalho que deve executar de elaborar o projeto de lei de bases e diretrizes para a educação nacional. V. Excia. correspondeu inteiramente à nossa expectativa. Nessa certeza, fizemos o convite para que viesse a esta Casa. Mais uma vez agradeço a sua colaboração e asseguro-lhe a disposição dêste órgão técnico de empenhar todo o seu patriotismo na melhor solução do intricado problema da educação.