O PENSAMENTO LIBERAL

NA OBRA DE ANÍSIO TEIXEIRA

 

GUSTAVO LESSA

 

 

 

 

A DÉCADA entre 1920 e 1930 estava em moda proclamar-se o aniquilamento definitivo da democracia representativa e das idéias liberais nela corporificadas. Por uma coincidência curiosa, nessa mesma época recrudesceram entre nós os rumôres de ter sido enterrada a teoria da evolução. Foi o período áureo dos reacionários disfarçados em iconoclastas. Não escapou nem mesmo o determinismo na física, o que fêz Einstein dizer mais tarde, desoladamente, quanto lhe era difícil compreender a influência da moda no pensamento científico.

Hoje, porém, já se pode anunciar aos ideocidas: "Les morts que vous avez tués se portent à merveille".

Aqui, porém, só vamos preocupar-nos com o pensamento liberal. Claro é que êle tem evoluído através dos séculos. Desprendidos do tronco robusto murcharam alguns galhos, como, por exemplo, a doutrina da abstenção governamental na esfera econômica. Outros, porém, se conservam perenemente floridos. Para definir os mais importantes dentre êstes, é pertinente recorrer aqui a John Dewey, reconhecidamente o maior inspirador das concepções filosóficas e educacionais seguidas por Anísio Teixeira.

Dewey, num artigo dedicado a Oliver Wendell Holmes, membro do Supremo Tribunal Federal em seu país, toma como epígrafe uma citação de Helmes (1). Nela é dito, em resumo, que, se os homens prestarem a devida atenção às vicissitudes das lutas das crenças no passado, compreenderão que os objetivos mais elevados só podem ser atingidos por meio do livre comércio das idéias, e que a melhor maneira de apurar a verdade das idéias é expô-las à competição. E conclui: "De qualquer maneira essa é a teoria da nossa Constituição. É um experimento, como tôda vida é um experimento". Dewey faz o seguinte comentário, que define lapidarmente o que é para êle e para Holmes a fé liberal:

"Fôsse eu selecionar uma única e curta passagem na qual se sintetizasse a têmpera intelectual do mais distinto dentre os pensadores juristas do nosso país, julgo que escolheria esta. Ela contém, a despeito de sua brevidade, três idéias proeminentes: crença nas conclusões da inteligência como a fôrça finalmente dirigente na vida; na liberdade de pensamento e de expressão como uma condição necessária para compreender-se êsse poder de direção pelo pensamento, e no caráter experimental da vida e do pensamento. Essas três idéias afirmam a essência de um tipo de fé liberal que, ao meu ver, é o único destinado a perdurar".

Não caberia aqui analisar como êsse tipo de pensamento liberal permeou a obra dewyana. Veremos aqui alguns exemplos de sua influência na obra de Anísio Teixeira.

Em "Educação Progressiva", escrita em 1933, depois de falar no impacto da ciência e do progresso industrial sôbre a sociedade de nosso tempo, êle acrescenta:

"A terceira grande tendência do mundo contemporâneo é a tendência democrática. Democracia é essencialmente o modo de vida social em que "cada indivíduo conta como uma pessoa". O respeito pela personalidade humana é a idéia dessa grande corrente moderna". (1)

Adiante mostra como tal idéia pode influir na educação, dizendo que a escola "deve hoje preparar cada homem para ser um indivíduo que pense e que se dirija por si, em uma ordem social, industrial eminentemente complexa e mutável". Depois de frisar que a "velha escola de ouvir" deve ser substituída pela "nova escola de atividade e de trabalho", mostra em todo um capítulo como essa transformação pode ser operada.

Três anos depois, em "Educação para a Democracia", êle assinala "a profunda afinidade entre educação e regime democrático" e reitera uma verdade secular tantas vêzes proclamada pelos políticos e tantas vêzes desconhecida na realidade: "Democracia sem educação e educação sem liberdade são antinomias em teoria que desfecham, na prática, em fracassos inevitáveis". Termina o capítulo sôbre a universidade e sua função dizendo: "Dedicadas à cultura e à liberdade, as Universidades estão sob o signo sagrado, que as fêz trabalhar e lutar por um mundo de amanhã, fiel às grandes tradições liberais da humanidade". (2)

Seja-nos permitida apenas mais uma citação, e esta bem recente, extraída de uma aula inaugural sôbre o ensino científico e o mundo atual, pronunciada, em 1955, na Universidade do Rio Grande do Sul e inserta na obra intitulada "A educação e a crise brasileira". É aí que êle afirma mais calorosamente a sua fé democrática: No fundo do regime democrático de govêrno descansa o velho conselho Kantiano: o homem é o fim de si mesmo. É necessário que não se sinta êle utilizado nem pelo Estado, nem por oligarquias, nem por outrem - mas livre em sua devoção, em seu trabalho, em sua vida. Nesta medida se sentirá responsável e, como tal, um ser social e moral". (3)

O núcleo, pois, irredutível do pensamento liberal em Anísio Teixeira pode ser talvez assim sintetizado: progresso real, o progresso estável da humanidade só será conseguido através da livre expressão das idéias. Êle defende as suas convicções com uma tal veemência que, na época da histeria macártica nos Estados Unidos, os seus amigos o ouviram dizer que êsse país se estava identificando com os regimes totalitários. Houve aí sem dúvida um grande exagêro, que o seu autor a esta hora provàvelmente terá reconhecido: de um lado, as leis elaboradas naquela época correspondiam ao sentimento popular, revoltado com as revelações da infiltração do fanatismo ideológico em centros governamentais de pesquisa científica devotada à segurança nacional; de outro, apesar disto, as manifestações contra essas leis eram ouvidas em todo o país. E, por fim, algumas delas acabaram sendo invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal, baluarte das garantias constitucionais que sempre mereceu o aprêço de grandes juristas, entre os quais cumpre destacar Rui Barbosa.

Não podemos deixar de referir aqui que a campanha de Anísio Teixeira por mais recursos financeiros, a fim de ser difundido entre nós o ensino público, primário e médio, foi acoimada de ter uma inspiração totalitária. Mas os acusadores deveriam saber que nessa difusão estamos atrasados de uns cem anos. Em tôda a metade do século passado, o pensamento liberal clamou por ela, e foi vitorioso em vários países.

Êsse mesmo pensamento, pela voz de Stuart Mill, pediu a descentralização não só do ensino como de diversas outras tarefas governamentais. Ora, ninguém no Brasil a tem pregado mais incisivamente do que Anísio Teixeira. A sua bandeira de combate é a municipalização do ensino. (1) É lícito objetar-e que tal devolução de podêres, em virtude da apatia local criada por séculos de centralização, devesse ser realizada entre nós cautelosa e progressivamente. Mas o radicalismo com que o Prof. Anísio Teixeira defende a idéia mostra o seu repúdio completo a um contrôle central ideológico da educação popular. E isto deveria bastar aos espíritos desapaixonados.