IMAGEM DO PENSADOR
M. B. Lourenço Filho
Posição da imagem
ARA FESTEJAR o 60.º aniversário de Anísio Teixeira, companheiros seus, de várias épocas, bem como discípulos e amigos, assentaram em compor este livro. Obra dêste gênero, é evidente, não pode refletir em plano uniforme, como num mural, a grande e nobre vida que tem por objeto. O mais que obtém é uma série de pequenos recortes de espelho, nos quais, em planos variáveis e múltiplas incidências de luz, vem ela a projetar-se, fragmentàriamente. A imperfeição resultante é compensada, no entanto, pela atitude fundamental dos que aqui escrevem, velhos e moços, atitude em que um cálido sentimento domina, exprimindo admiração por um dos grandes da causa a que todos têm procurado servir, em posições e circunstâncias diversas.
Sob a motivação afetuosa que os leva a compor êste singelo brinde de anos, outra, portanto, mais ampla existe, engrandecendo a iniciativa ou imprimindo-lhe mais alto significado social. Procede da reafirmação de valores e ideais comuns, em relação aos quais reconhecem em Anísio um esplêndido polarizador e intérprete, ainda quando de conclusões expressas, ou de alguns de seus pressupostos e métodos, possam dissentir. Sem essa idealidade comum, especialmente no que se relacione com a educação, nenhum povo verdadeiramente constrói uma cultura genuína e, porque genuína, atuante em seus destinos. A grande vocação de Anísio Teixeira tem sido essa, sôbre os demais aspectos de fecunda atividade, na cátedra e na administração escolar. Ainda nestes últimos, ninguém mais do que êle tem concorrido, ou, entre nós de forma tão persistente o tem feito, para tornar os grandes problemas da educação e da cultura um patrimônio comum de reflexão e debate, tomada de consciência e visão prospectiva, em estilo democrático. Numa palavra, Anísio tem-se consagrado a cultivar e a estimular, nessa elevada forma, o pensamento filosófico no ambiente brasileiro.
Afirmar que a educação, em nosso país como em outro qualquer, não tenha estado sempre ligada a reflexões de cunho filosófico seria insensato. A ação intencional de educar visa a influir na formação de crianças e jovens, a qual depende sempre da imagem do homem a ser formado. Tal dependência, todos o sabem, é uma relação fundamental na pedagogia, pelo que não há ação educativa intencional sem filosofia, explícita ou implícita, organizada em sistemas ou dispersa em preceitos de rotina. Não se está, pois, aqui dizendo que Anísio tenha inaugurado entre nossos educadores a reflexão filosófica, afirmação de que êle próprio seria o primeiro a sorrir. Não se pode, no entanto, deixar de afirmar que, por certas circunstâncias de sua formação e carreira, tem êle mais que outrem agitado as bases dessa reflexão, tentando comunicar-lhe um novo espírito e uma nova instrumentação.
Isso significa que, das imagens de Anísio, uma a tôdas as demais enlaça e explica. É a do pensador.
O pensador e a reconstrução da filosofia
Se a essa imagem quisermos colhêr, será então preciso, como preliminar, esclarecer o âmbito e o sentido da renovação a que se alude. E isso, em reduzido espaço, não é fácil fazer, a menos que não receiemos os perigos a que qualquer esquematização, nesse terreno, irremediàvelmente conduz. Ainda assim busquemos fazê-lo, admitindo como ponto de partida que a filosofia seja o reino da determinação dos fins e valores da conduta humana. Há um modo tradicional para êsse efeito, e outro que, não há mais de meio século, se vem constituindo.
Naquele, parte-se de axiomas, verdades que se tomem por evidentes e absolutas, delas tirando-se teoremas e colorários. Podem os axiomas provir da tradição ou dos costumes, e, assim, de um conhecimento "recebido"; podem também apoiar-se em conhecimentos "descobertos", num ramo qualquer da ciência, mediante grandes generalizações, sejam bem fundadas ou não. Em qualquer dos casos, as linhas metodológicas gerais são as mesmas. Quer dizer, coordenam-se noções por via teoremática, obtendo-se sistema de inegável beleza conceitual, e, por isso mesmo, extremamente sedutores. Por sua própria natureza, são êles conclusivos, em estruturas fechadas, pois êsse é o caráter distintivo do pensamento axiomático. Tudo quanto a princípio nêles se ponha, como pressupostos, tira-se por fim e ao cabo, sem acréscimo ou lacuna.
Na renovação, opera-se de modo diferente. Se a filosofia visa a esclarecer valores e, portanto, a regular atividades futuras, deve-se admitir que os próprios pressupostos, também êles, sejam comprovados por seus resultados na ação, não se lhes podendo emprestar caráter absoluto a priori. Que devam ter validade conceitual, ou coerência interna nos arranjos que possibilitem, não se contesta. Essa é uma das condições de estrutura de todo pensamento organizado e comunicável. Mas, se quisermos que a reflexão se projete na conduta, para que esta seja guiada pela inteligência, não por impulso cego e rotina, havemos de verificar também a validade funcional dos pressupostos. Ora, isso produz uma renovação nos cânones filosóficos, pois logo retira à teoremática a sua primazia, por admitir que ela só tenha razão de definir-se em face de uma problemática, objetivamente analisada.
Conseqüências, muito profundas, exercem-se em diferentes direções. Antes de tudo, com isso se aproxima o campo da filosofia e o da generalização científica, nêles admitindo-se certos métodos comuns, embora cada campo guarde os seus objetivos próprios. Não se destrói a atitude primacial do filósofo, sempre em busca de vastas construções teoréticas, impossíveis de dar-se sem alguma forma de pensamento axiomático. Mas juntar-se a ela um novo método, o da compreensão dinâmica das coisas e do mundo, do homem e suas instituições. Além do conhecimento "recebido" e do conhecimento "descoberto", reconhece-se, enfim, que modos de pensar também existam "construídos" pelo homem, segundo suas necessidades e propósitos, e que, na medida de umas e de outros, são incessantemente refeitos, como os aspectos da própria vida, de onde emanam.
As implicações em todos os quadros da filosofia tradicional são inelutáveis: no da natureza do objeto do que se possa conhecer, a antologia; no dos processos de conhecer, a epistemologia; no das regulações das expressões formais do que se conheça, a lógica, e, enfim, nos do sentido da própria ação humana, a axiologia, a que se empresta novo sentido. Eis porque não é dado falar apenas de um novo sistema, mas, realmente, de "reconstrução."
Ao examinar adiante as fontes do pensamento de Anísio Teixeira e algumas de suas formulações originais, ver-se-á que assim realmente ocorre. Diga-se, desde já, porém, que as formas tradicionais e as renovadas correspondem a duas atitudes fundamentais em face da vida e do mundo, e que, esquemàticamente, se podem indicar com os nomes de intelectualismo e instrumentalismo.
Em têrmos singelos, o intelectualismo vê o universo e tudo quanto nêle se contenha como o espectador num teatro, realidades por si mesmas existentes, de que êle colhe e registra observações. Em conseqüência, estabelece uma dicotomia irredutível entre sujeito e objeto, homem e natureza, pensamento e ação. Daí a variação que os sistemas teoremáticos apresentam, segundo se acentuem os primeiros ou os últimos, em cada um dêles: empiristas e racionalistas, naturalistas e idealistas, substancialistas e criticistas, ou o que mais seja. Nada de admirar que a filosofia se tenha constituído, através dos tempos, como uma casa muitas vêzes dividida.
Na outra atividade, tenta-se a conciliação dessas antinomias, por vastos critérios de análise de experiência. Admite-se que o homem "construa" o mundo em que vive e, na medida dessa construção, possa utilizar-se do conhecimento como instrumento de prospecção. Dessa forma, ao invés de começar por axiomas, dêles desdobrando teoremas, há de começar fixar problemas, reais e práticos. Isto é, há de admitir que o conhecimento tenha origem nas suas próprias necessidades e propósitos, ou nas situações de perplexidade que encontre, para adaptação, equilíbrio ou ajustamento, na vida individual ou na existência social e moral.
Pois bem. Em diversos domínios do pensamento e ação social - por exemplo, nos do direito e economia, nos da própria política e assuntos parciais de educação - outros, em nosso país precederam a Anísio, ou, simultâneamente com êle, têm operado. Deveria caber-lhe, no entanto, a dura tarefa de uma proposição mais corajosa, porque mais ampla, dos pressupostos e métodos da renovação, os quais, nos problemas educacionais, acabam por ser reclamados dessa forma, ou em todo o conjunto.
No primeiro mais extenso trabalho que publicou, sôbre organização educacional, Aspectos americanos da Educação, impresso em 1928, essa tarefa é apenas vislumbrada. Já num segundo, de 1930, Por que Escola Nova?, Anísio a considera, embora de modo rápido, por todos os aspectos essenciais. No particular da teoria da experiência, tal como a expõe John Dewey, examina-a no ano seguinte, em pequeno ensaio que faz preceder a tradução de dois estudos dêsse autor, reunidos no volume Vida e Educação. Então, passa a desenvolver o conjunto, entre 1932 e 1935, em cursos do Instituto de Educação, do Distrito Federal, como no volume Educação Progressiva. No ano de 1936, procura dar maior fundamentação à reforma de idéias, colaborando na tradução do grande livro de Dewey, Democracia e Educação, para o qual escreve incisivo prefácio. Por fim, vem a tratar da renovação sob os mais diversos ângulos, teóricos e práticos, em conferências, pequenos ensaios e livros, que tratam de política educacional, organização escolar, lógica, ciência e humanismo, todos publicados a partir de 1950.
Nalguns dêsses trabalhos, de tom expositivo, não apenas divulga, mas oferece contribuição original, como, por exemplo, nos capítulos finais do volume A Educação e a Crise Brasileira, impresso em 1956. Em outros, de tom mais vivo, esclarece pontos de vista dantes expendidos, ou é levado a usar de linguagem quase polêmica, como em Educação não é Privilégio, do ano seguinte. Em qualquer dos casos, seus escritos primam pela elevação do pensamento e linguagem, embora, como aos filósofos sempre ocorre, pela complexidade mesma das reflexões a que se entregam, muitas idéias não possam ser perfeitamente interpretadas fora do contexto geral da obra de cada qual.
Nenhum pensador escapa a tal sorte. Ora impressionam pelo que negam, não pelo que afirmam; ora impressionam pelo que afirmam, não pelo que negam. Dêles coligir só afirmações, ou só negações, será recolher visão parcial. É parcial, no duplo sentido que se empresta ao vocábulo: de percepção de uma só parte, ou de apreciação de alguma coisa segundo nossas próprias emoções, os costumes e a rotina de nosso partido.
Razões do pensador
Para que assim não aconteça, no recorte de espelho em que estamos tentando projetar a imagem do pensador, julgamos que será conveniente utilizar de recursos também funcionais, investigando as razões de sua própria formação. Não existirá nisso singela questão, mas tema muito complexo. Que influências terão levado Anísio a enfrentar a ciclópica tarefa que vem empreendendo e, mais, que circunstâncias para ela o terão habilitado?...
Em sua filosofia, o pensamento tem origem em situações problemáticas, ou seja, em contrastes, dificuldades de adaptação e perplexidade:
"Que é pensar, senão indagar e buscar a solução de um problema, de uma dificuldade? (...) O conhecimento é o resultado de uma atividade que se origina em uma situação de perplexidade e que se encerra com a resolução dessa situação." ()
Assim também, cada nível de experiência se reconstrói, em formas mais elevadas e abrangentes, que ao homem imprimam uma "nova atitude espiritual":
"A velha atitude de submissão, de mêdo e de desconfiança na natureza humana foi substituída por uma atitude de segurança, de otimismo e coragem diante da vida..." ()
Que situações de contraste e problemas de adaptação, cada vez mais amplos, assim terão influído no pensador, desde a infância?... Sim, desde a infância, porque:
"Seja a infância, a idade adulta ou a velhice - tôdas participam ou podem participar do caráter educativo de suas experiências." ()
Embora escasseiem os dados (uma das feições de Anísio é só raramente falar de fatos de sua vida, e escrever, menos ainda), pode-se dizer que sua existência tem decorrido entre situações de forte contraste, na paisagem natural e humana, na vida das coisas e na do espírito.
Filho de tradicional família da Bahia, radicada no centro-sul do Estado, nessa região nasceu ao despontar êste século, aí vivendo até quase os quinze anos. Caiteté, a cidade natal, situa-se entre ramos da Serra das Ametistas, pelas bandas do sul, e os da Garapa, ao norte. No município, alonga-se o divisor de águas, entre as que, escassas, deitam para o Vale do São Francisco, ao oeste, em zona sujeita a fortes estiagens, e as que demandam o Rio de Contas, em cursos perenes que cortam vales férteis, ao leste. Ora, isso de alguma sorte teria influído no menino, dado que:
"Organismo e mundo não existem independentemente, desde que o "mundo" se faz o " meio" de um ser vivo (...) Organismo e meio constituem um todo." (1)
Não havia, porém, apenas contrastes na natureza, mas os da vida social. Opulenta, em outros tempos, a cidade natal lhe oferecia, no particular, vivas desigualdades. Uma parte da população desfrutava padrões elevados; outra, vivia em quase penúria. Centro pastoril, nessa parte da população conservava como que a cultura rudimentar do couro, revivendo um Brasil de antanho, fundado por longo tempo no trabalho servil, dêle tendo recebido os moldes essenciais.
Em seus escritos, não faz Anísio nenhuma referência direta a essas realidades, dado que não o seduz o estilo descritivo, o trato do pitoresco. Não relembra, como faz Nabuco, por exemplo, cenas e fatos que lhe deviam marcar atitudes decisivas na vida adulta, produzindo, já no menino, (e agora, para usar de uma frase de Anísio), "intimações incertas da realidade ao espírito". As observações sôbre as desigualdades humanas são genéricas, vindo a aparecer mais tarde sob forma conceitual:
"... a sociedade achava-se dividida entre os que trabalhavam e não precisavam educar-se e os que, se trabalhavam, era nos leves e finos trabalhos sociais e públicos. . ." (2)
Depois dos quatorze anos, Anísio deve transferir-se para Salvador, a fim de prosseguir estudos. Novos cenários de vida, novos contrastes. Pela primeira vez, após longa viagem a cavalo, toma consciência de mais complexas formas de viver, de que mal ouvira falar: a estrada de ferro, os trilhos prolongados, os fios telegráficos que pareciam atingir o infinito... A locomotiva, resfolegante, impressiona-lhe vivamente a imaginação. Segundo confidência de um de seus irmãos, foi das mais profundas a impressão que nêles causou o engenho. Era a revelação da técnica e seu poder, a das possibilidades que à vida humana logra oferecer a máquina, e que ao rapazinho impunham um esquema de importante significação. Irá dar-lhe expressão, mais tarde, escrevendo:
"Materialmente, o nosso progresso é filho das invenções e da máquina. O homem conseguiu instrumentos para lutar contra a distância, contra o tempo e contra a natureza..." (3)
Na capital do Estado, segue os estudos secundários no venerável Colégio dos Jesuítas, aí recebendo sólida formação humanística, de tipo clássico. É estudante exemplar. De físico reduzido e franzino, não o atraem os jogos e folguedos próprios da idade, mas a leitura, a meditação, a história dos homens e da fé, e, assim, a do progresso moral. Freqüentemente, repete lições aos colegas. Nada de estranhar que, também com freqüência, no colégio se ouvisse: "O Anísio sabe..." "Pergunte ao Anísio...". Não obstante, tem êle profundas dúvidas, interroga os mestres, sobretudo ao bom e compreensivo Padre Cabral. Consigo mesmo, longamente debate idéias:
"Quanto mais é o homem experimentado, mais aguda se lhe torna a consciência dessas falhas, e das contradições e dificuldades de uma completa inteligência do universo. É isso que dá ao homem a divina inquietação, que o faz permanentemente insatisfeito ..." (1)
Para continuação dos estudos, o curso jurídico lhe estava naturalmente indicado, entre os existentes no país, à época. Realiza-o com facilidade e brilho, graças à formação clássica que recebera, vindo a graduar-se, em 1922, pela Universidade do Rio de Janeiro. Então, quer em Salvador, quer na Capital Federal, os contrastes da vida social mais haviam de ferir-lhe a sensibilidade. Numa e noutra, os centros urbanos acompanhavam o tempo. Já os arrabaldes, no entanto, mostravam forte desnível nas formas de trabalho, na vida religiosa e moral, nas vestes, na própria linguagem. Por que tudo isso?... Não seriam as diferenças raciais; havia homens brancos e prêtos nas melhores e nas piores posições, cultos e incultos, adiantados e primitivos. Não eram, estritamente falando, também as de origem familiar. Por que, então, não facilitar, a cada um e a todos, os meios de melhor preparação humana e social?.. . Não era isso, no entanto, o que via:
"Os educados pela escola constituíam uma elite social. A classe dominante é que educava os seus filhos, porque dispunha de recursos para que pudessem êles ficar afastados das atividades práticas e econômicas..." (2)
De volta à Bahia, são as questões gerais de educação e ensino que continuam a preocupá-lo, pelo que emite opiniões com desembaraço e franqueza. Isso o faz notado, e o indica para a direção dos serviços de instrução pública do Estado, cargo que ocupa de 1924 a 1928. É, então, que ensaia uma nova e absorvente experiência que não deveria mais cessar. Em contacto direto com as escolas, logo percebe que o trabalho nelas estava divorciado dos problemas reais da vida dos alunos, e da comunidade a que deviam servir. Em tudo, predominava uma mentalidade formal, que Anísio, mais tarde, assim viria a descrever:
"Objetivos, métodos, processos, tudo passou nela a ser algo muito especializado e, portanto, remoto, alheio à vida cotidiana e indiferente às necessidades comuns dos homens. Daí a pedagogia, os pedagogos, os didatas, gente de ofícios rebarbativos, que só êles entendiam e êles só cultivavam." (3)
Por outro lado, nas mais altas esferas da administração e da política, pareciam os homens insensíveis aos problemas reais do tempo. Quando lhes fala de uma escola comum, ou popular, não discordam da idéia, mas a entendem como uma concessão, não como direito do povo:
"A sociedade brasileira que contava, isto é, a sociedade de "classe", no sentido de classe dominante, dela não precisava. Em alguns casos freqüentava a "escola primária", mas, quando o fazia, transformava também essa escola em escola de classe, exigindo condições econômicas satisfatórias para que se pudesse freqüentá-la: o uniforme e os sapatos, às vêzes, bastavam para delas afastar o povo." (1)
Desejando entender, Anísio incessantemente observava e refletia, buscando igualmente informar-se sôbre a educação em outros povos. No material, para isso coligido, estavam livros norte-americanos que lhe falavam de uma nova compreensão educacional, com maior alcance social e técnico, outros moldes de composição dos estudos e quadros administrativos. A pouco e pouco, um projeto nêle se forma, o de estudar assuntos de educação nesse grande país. Dêsse modo, um dia poderia atuar de melhor forma em sua terra:
"Como nos Estados Unidos, onde foi mais vigoroso e correto o desenvolvimento da "common school", veríamos a ascensão do povo brasileiro, graças à sua unificação, para níveis econômicos cada vez mais altos, sem perda, porém, das suas condições de ocupação e trabalho".(2)
E é assim que, não terminado o ano de 1928, Anísio se decide a partir para os Estados Unidos, onde deveria, no Teachers College, da Universidade de Colúmbia, em Nova York, seguir um curso avançado de educação. Era o primeiro estudante brasileiro a matricular-se em estudos da espécie, nesse instituto.
Razões do ambiente
Em sua resolução teriam influído as impressões de mudança social que, em todo o Brasil se operava, nessa década, em que entrara para a vida pública. Como o autor destas páginas nalguns de seus escritos tem feito notar, os anos 20 estão a pedir especial análise, não só dos acontecimentos e sua trama, mas, do alcance na consciência dos jovens de então. Realmente, em boa parte, pelo menos.
"O meio social, pelos seus estímulos, provoca e dirige nossas atividades". (3)
Nessa década, atingia a maturidade a primeira geração nascida depois da abolição e da república, e, assim, em regime de trabalho livre, o Estado separado da Igreja, de aspirações democráticas. Nela, chegavam até nossa gente as mais diversas repercussões da conflagração de 1914-18, o primeiro acontecimento de dimensões universais que já havia experimentado a humanidade, e as quais tanto na vida material como na vida social e cultural se projetavam. De fato, dava-se um intenso surto de industrialização, desenvolviam-se os meios de transporte e iniciava-se a radiofonia; por outro lado, novos moldes começavam a ser ensaiados na literatura, nas artes plásticas, na própria política. Pela primeira vez, o govêrno federal se lançava a um empreendimento de extensa projeção econômica e social, o do combate às sêcas do Nordeste. Havia-se comemorado o centenário da Independência, e êsse fato levava intelectuais e o próprio povo a pensar no sentido das verbas depender e independer. Falava-se de idéias novas em educação, havia-se fundado uma associação nacional para o seu estudo e, em vários Estados, como no Distrito Federal, processavam-se reformas de ensino, de maior ou menor vulto. Com tudo isso, duas revoltas armadas haviam sacudido o país, preparando a revolução nacional com que o período deveria ser encerrado. Os anos 20 eram de marcada transição. Só então, para nós, verdadeiramente começava o século XX.. .
Anísio o notará num de seus escritos:
"Nos fins da década de 20 a 30, parecia que estávamos preparados para a reconstrução de nossas escolas. A consciência dos erros se fazia cada vez mais palpitante e o ambiente de preparação revolucionária era propício à reorganização." (1)
Ao partir, devia sentir inquietações e alimentar esperanças, entre as quais a de que novos estudos o pudessem preparar para melhor compreender seu próprio país. Não lhe eram estranhas as diferenças de estilo de vida, costumes e atitudes de pensamento entre a América inglêsa e a hispânica. Não obstante, muito maiores do que esperava, seriam os contrastes a registrar entre ambas. Assim como, dez anos antes, se surpreendera com o milagre técnico do caminho de ferro, agora iria notar as imensas transformações que a grande tecnologia pode operar sôbre todo um país, não só em repercussões diretas na vida material, mas na existência social e moral. Primeiro, as impressões de Nova York. Pessoas de tôdas as raças, línguas e credos, em novo e estranho ritmo. Ruído e movimento incessantes, mas ordem e organização:
"A ciência experimental na sua aplicação às coisas humanas permitiu que uma série de problemas fôssem resolvidos e que crescessem essas enormes cidades que são a flor e o triunfo maior da civilização". (2)
Algumas rápidas visitas a outros pontos do país confirmavam a conclusão. No Brasil, a poucas léguas do litoral, as formas de produzir, sentir e pensar, as idéias políticas e sociais enormemente baixavam de nível. Ali, não. Modos de viver mais homogêneos e igualitários estendiam-se por tôda a nação, admitindo a liberdade, como a cada um e a todos impondo maiores responsabilidades... Viviam, sem dúvida, os Estados Unidos grandes dias. A atuação do país na grande guerra reafirmara no povo as convicções da excelência do regime econômico e político que haviam adotado, e procuravam sempre aprimorar com a produção em massa, o voto livre, a organização dos trabalhadores e, sobretudo, os recursos da educação. Sim, o ensino não era privilégio de uma classe, mas a todos oferecia iguais oportunidades:
" ... a escola, como órgão intencional de transmissão da cultura, se viu elevada à categoria de instituição fundamental da sociedade moderna, absorvendo, em parte, funções tácitas ou tradicionais da família, da classe, da igreja e da própria vida comunitária, e passando a constituir, na medida de sua expansão e eficácia, a garantia mesma da estabilidade e da paz de uma sociedade em transformação. . ." (1)
A um jovem com diversa experiência, talvez o impressionassem apenas o tamanho das escolas e os procedimentos técnicos nelas empregados. Para Anísio, porém, o problema central seria outro: alcançar os motivos reais daquele estilo de vida, daquela realidade histórica ou, enfim, da filosofia que a estivesse inspirando. Assim bem o compreenderam, no Teachers College, os conselheiros com que devia compor o roteiro de seus estudos. Não se distinguia, à época, êsse instituto apenas como um dos maiores e mais ativos centros de investigação e elaboração do pensamento educacional em todo o mundo. Fiel às teorias que expunha, proporcionava aos estudantes as mais adequadas condições para desenvolvimento das aptidões de cada qual. Ao estudante brasileiro foram aconselhados, de modo especial, estudos relativos à administração e filosofia da educação.
Nêles, deveria Anísio encontrar resposta para os problemas e inquietações de seu espírito. Não se constituiria essa resposta de fórmulas feitas, mas, sobretudo, teria a forma da conquista de um método.
Razões e método
Anísio possuía razões para pensar, não ainda um método ou, pelo menos, um método com o qual pudesse aplacar suas incertezas e perplexidades. Até então, acumulara contrastes e problemas, dúvidas e inquietações, motivos para refletir, sem domínio de um instrumento que a tudo pudesse imprimir ordem e equilíbrio, série e sistema. O que distingue o pensador do homem comum não é o interêsse pelas coisas e relações que possa observar e comparar, pois isso a todos é dado, pela simples razão de viverem; o que o distingue é o interêsse por uma instrumentação que lhe permita tudo compreender, atingindo uma inteligência do mundo em si mesmo, e de si mesmo no mundo:
"Voltado sôbre si mesmo, o homem especula sôbre a sua própria natureza, sôbre a vida social, sôbre o mundo, sôbre os seus hábitos de pensar, de sentir e de agir e se arma de um poder novo: o de rever e reconstruir êsse pensar, êsse sentir, e êsse agir." (2)
Sobretudo, não havia ainda Anísio encontrado maior harmonia entre os dois tipos de formação que havia recebido: a natural ou empírica, mas autêntica, a do sertão, em pleno contacto com a natureza, suas graças e mistérios,
"... simples e direto resultado das práticas existentes, com acidentais lampejos intuitivos e iluminantes sôbre a natureza humana". (3)
e a vida escolar e social, obtida nas grandes cidades do litoral, apegada a formas e fórmulas, axiomas e silogismos, pelos quais os homens
"... sabem o que já era sabido e ignoram ou esqueceram o modo pelo qual o saber veio a ser adquirido. São guardiães úteis e fiéis, sem dúvida, do saber e até seus adoradores, mas não chegam a ser seus criadores. Por êles, o saber passa a ser um fim em si mesmo, ou se transforma em algo que se acumula inùtilmente ou apenas para os deleites de estática contemplação". (1)
Deve-se observar que estas últimas passagens, como aliás todo o estudo de onde são retiradas, "A universidade e a liberdade humana", não se referem ao caso particular da evolução de Anísio, ou sua vida. São trechos de uma interpretação, com lances originais, da evolução das formas de pensar da humanidade. Não será demais concluir, porém, de todo o conjunto, que elas parecem uma projeção das fases de seu itinerário intelectual, revelando os mais íntimos e persistentes motivos de reflexão:
"A transposição para o campo das instituições sociais das conseqüências do pensamento racional e deliberado, que virá realmente a constituir a integração da sociedade em sua nova fase de liberdade, parece ter logrado início nessa fase... A circunstância da idéia, da análise racional vir, assim, atuar no contexto da ação e criar novos modos de comportamento e de solução dos problemas humanos, revela os dois aspectos fundamentais da liberdade: o da espontaneidade e tolerância do próprio pensamento, isto é, a liberdade da especulação intelectual, e o da incorporação da idéia ao costume e à ação, mediante instituições sociais que promovem, sob nova forma e nova eficácia, os objetivos humanos". (2)
Eis aí o problema central de Anísio como pensador, problema essencialmente filosófico, o do valor da idéia e da ação. Seus têrmos são, aliás, os pólos entre os quais oscila também tôda reflexão pedagógica. Na escola tradicional, que êle conhecia, a idéia era fixada de antemão. Os homens futuros deviam servir a um destino fixado, em instituições que se tomavam como definitivas. Na conformidade dessa idéia, à escola caberia reproduzir e perpetuar um tipo social. Ao menino livre do sertão isso significava, no entanto, uma violência, conclusão que, de forma por certo ainda vaga, ao seu espírito se propunha. Era, no entanto, muito profunda, por isso que levantava outra questão capital da reflexão pedagógica: a dos têrmos da legitimidade da educação, só satisfatòriamente explicada pela compreensão de sua necessidade.
Se a educação não é necessária, não há legítimo direito de interferir espiritualmente nas novas gerações. Assim o dizia tôda a formação humanística clássica que havia recebido, e segundo a qual o espírito é uma criação de Deus para a liberdade. Se o é, não deve a educação justificar-se apenas na plasticidade da criança e do jovem, mas na criação, também livre, de seu destino. Êsse era outro pressuposto fundamental da educação humanística cristã: cada pessoa, um fim em si mesma, não pode nem deve ser dirigida pelas intenções e propósitos de outrem.
Daí, aquêle pensamento acima transcrito, e tantas vêzes repetido, nos escritos de Anísio: "Liberdade de especulação para que novas idéias se incorporem ao costume e à ação, mediante instituições que promovam, sob novas formas e nova eficácia, os objetivos humanos". Que objetivos deveriam ser êsses?... De forma sintética, os da liberdade do espírito.
Os métodos de pensar em que, até então, se havia exercitado respondiam quando muito à questão da necessidade, no intento de conformar as novas gerações a padrões rígidos, os das instituições existentes, com as suas desigualdades sociais, quaisquer que fôssem. E elas não eram apenas econômicas, mas muito mais graves, as de uma exercitação diferenciada das capacidades humanas. Uns deveriam cultivar o espírito, habilitados por uma educação liberal que os destinava às artes do espírito: outros deveriam confinar sua vida na prática das artes comuns, as de lidar com coisas materiais, no trabalho ordinário. A estas últimas os gregos haviam chamado praxis em oposição à areté, a virtude, no superlativo aristoi, donde o têrmo derivado de aristocracia. As outras, que sujavam as mãos, seriam artes sordidae, próprias dos escravos, como cruamente os romanos as viriam qualificar...
Êsse era, ao cabo de tudo, o dilema. Êsse, o ponto de origem de tôdas as reflexões de Anísio, a que o curso de ciências sociais e jurídicas não havia feito senão dar maior nitidez, revelando-lhe o artificialismo de muitas questões de ordem política e econômica. O pensador procurava uma instrumentação, ou ansiosamente buscava novos pressupostos que lhe saciassem aquela fome de justiça cristã e, assim, de fé nas instituições do homem e em seu poder criador.
Nem por outra razão, no ensaio subseqüente, no mesmo livro, sempre fazendo expressa referência à evolução mental do homem, mas, na realidade, projetando as suas próprias inquietações, Anísio vem a escrever:
"O homem, entretanto, continua dividido entre a necessidade de compreender o universo e a si próprio, para obter a sua integração estética ou religiosa, e a necessidade material, contingente, de subsistir. Os problemas mentais para resolver as duas necessidades continuam distintos". (1)
Todo o contexto dos dois ensaios, expressivamente intitulados "A Universidade e a Liberdade Humana", e "O Espírito Científico e o Mundo Atual", parecem confirmar essa conclusão. As inquietações do pensador só encontrariam paz e calma, ou condições de maior segurança, nas mais altas indagações do espírito, no clima das universidades:
"A guardiã dessa razão humana, origem e instrumento do saber, é a universidade, em cujo seio deve palpitar essa suprema esperança humana. (2)
Na esplêndida argumentação que aí desenvolve, a conclusão é inteiramente lógica, mesmo com as implicações de ordem política, que admite, a de um "Estado pluralista", em que tão-sòmente também, segundo crê, poderão existir universidades consagradas a seus verdadeiros fins. Havemos de ver, adiante, as possíveis razões de ambiente que nessas implicações políticas tiveram influência. Na realidade, a universidade a que Anísio se refere é a do tipo que encontrou em Nova York, na Columbia, tribuna aberta ao conflito e debate de tôdas as opiniões, o reino da liberdade do espírito.
Nela, e em particular em sua escola pedagógica, o Teachers College, realmente então se dava um multiforme movimento educacional, de pesquisa e reflexão quanto às formas técnicas de educar, de uma parte, e da análise da mudança social, de outra. O estudo da mudança e seus inevitáveis efeitos na mentalidade dos homens tomava a forma de renovação filosófica. Não se inspirava êsse movimento em nenhum sistema, no sentido teoremático da expressão, mas numa nova atitude ou, enfim, num método que pudesse atender à aguda problemática na civilização contemporânea.
Havia quase dois decênios um pregoeiro dêsse método se destacava, John Dewey, então em pleno apogeu de intensa atividade como professor e escritor. Ao influxo de suas idéias, o pensamento de muitos mestres aí encontrava uma direção comum, não porque apresentasse soluções, ou tôdas as soluções, mas porque ensinava a pensar de uma nova forma, mais ampla ou compreensiva.
O método do pensador
O reduzido espaço dêste ensaio não permite completo exame do método de John Dewey, em que Anísio vai principalmente inspirar-se, para construir, afinal, o seu. Na realidade, há famílias de pensadores, mas cada um deles deve afeiçoar a si mesmo o seu próprio método, compreendendo-se por essa palavra não só a disciplina técnica, como os pressupostos de onde parta, para as construções lógicas que empreenda. Assim, ou Anísio viria a organizar o seu método peculiar, ou já não seria pensador, como é.
Êle próprio, aliás, assinala a riqueza dos pressupostos de Dewey e, assim, a fecundidade ou variedade das direções de seu ensino. Mais de vinte anos depois de haver recebido as lições do mestre americano, observa:
"Um dos seus críticos, procurando examinar os pressupostos dessa filosofia, não se arreceia de enumerar nada menos de dez -organicismo, empiricismo, temporalismo, darwinismo, praticalismo, futurismo, inteligência criadora e evolução emergente, continuidade, moralismo, educacionalismo - cada um dos quais exigiria um estudo cuidadoso". (1)
Dewey a todos êsses pressupostos tenta coordenar, não em verdades feitas que proclame, mas no esfôrço de um tipo de pensamento mais produtivo para a mudança social. Na verdade, êle esboça os fundamentos de uma "sociologia do conhecimento", donde sua extraordinária influência na renovação filosófica de nosso tempo. Não se pode definir a filosofia, explicava, pela natureza mesma do objeto dos conhecimentos; será mais urna atitude para com o mundo e as coisas. Às ciências, cada qual em seu ramo particular, é que devemos pedir as generalizações admissíveis sôbre as coisas. Mas, quando perguntamos que espécie de atitude, permanentemente ativa, devemos ter para com o mundo, então estamos diante de questões filosóficas. A função da filosofia é imprimir coerência a um modo de reagir em face de pluralidades que ocorrem. O conhecimento fundamentado, referido ao que "já aconteceu", é objeto da ciência. Quanto ao ato de conhecer, em si mesmo, aplica-se a coisas "em prospecção", coisas a serem feitas ou a serem tentadas.
Dessa concepção básica, extrai Dewey a conclusão de que uma teoria qualquer, que não influencie a atividade educativa intencional, será inadequada, porque artificial. Se admitirmos a educação como processo de formar atitudes fundamentais de natureza intelectual e moral, perante a natureza e os homens, dever-se-á mesmo definir a filosofia como uma "teoria geral da educação". De qualquer forma, a educação é o laboratório onde as distinções filosóficas são concretizadas e postas à prova.
Vai adiante. A reconstrução a operar-se na filosofia, na educação e nos ideais e métodos sociais, deve ser desenvolvida, "como um todo". Se existe necessidade de reconstrução educativa na hora presente, e se essa necessidade torna urgente que se modifiquem as idéias fundamentais dos sistemas filosóficos tradicionais, isso se deve à mudança também fundamental da vida social contemporânea. E é ela ocasionada por três razões capitais: o progresso da ciência, a revolução industrial e o desenvolvimento das idéias democráticas. A mudança não se poderá fazer com equilíbrio sem uma reforma educativa correspondente, que leve o homem ao exame das idéias e ideais na mudança envolvidos, e, ademais, que exigem revisão no que interesse a idéias e ideais, legados por civilizações mais antigas, diferentes da nossa.
Ora, isso conduz a uma revisão, ou reconstrução, do pensamento filosófico, em suas próprias bases, notadamente quanto à "teoria do conhecimento", pois a função de conhecer passa a ter uma nova dimensão no tempo. Para Dewey uma "idéia" significa sempre algo dinâmico, pensamento em prospecção, e assim, necessàriamente relacionado a desejos, intentos, propósitos e valores humanos. É essa a razão fundamental pela qual a sua pedagogia e a sua filosofia mantêm estreitas relações de interdependência.
Se se pode falar de uma fundamentação filosófica a propósito de seu sistema pedagógico, notam os que o comentam, é tão-sòmente porque, mediante sua observação educativa, Dewey pôde levar a cabo uma compreensão mais larga e sintética da experiência. Uma e outra mostram que a experiência humana não está concluída, não se concluirá nunca, e de tal modo que tomar qualquer coisa isoladamente, ou como absoluta, será desfazer o significado real do pensamento. O valor da filosofia consiste, portanto, não em proporcionar soluções, pois estas são do domínio da ação prática, mas em definir dificuldades e sugerir métodos para vencê-las. É assim possível descrever a filosofia, conclui por dizer Dewey, "como a reflexão que se tenha tornado consciente de si mesma, generalizando sua posição, função e valor na experiência. O pressuposto mais amplo é, enfim, o de uma problemática que constantemente se renove, única razão de ser do espírito.
O exame da obra de Anísio, desde seus primeiros trabalhos, até os mais recentes, mostra-nos que sua atitude fundamental de pensar é, na realidade, essa. Quanto aos últimos trabalhos, verifica-se no entanto que não só as idéias de Dewey nêles influíram, mas também outras e muitas.
Para ser original, cada pensador não há de ter um só mestre, pois nesse caso é levado ao decalque, mas, inúmeros. E muitos mestres tem tido Anísio: o Padre Cabral, em primeiro lugar, que lhe ensinou a arte de analisar o pensamento alheio e o seu próprio; todos quantos no Teachers College ouviu, com êles debatendo as mais elevadas questões; pensadores modernos como Whitehead, por exemplo, que freqüentemente cita; historiadores, sociólogos e economistas: e, ao lado de todos, pensadores antigos, a começar dos gregos.
Num de seus mais recentes escritos, precisamente sôbre "Filosofia e Educação", diz Anísio:
"A generalização do novo método de conhecimento humano (o da ciência) ao campo da política, da moral e da organização social em geral será a grande tarefa das próximas décadas. John Dewey marcou os rumos e balizou as linhas para essa marcha da inteligência experimental por êsses novos campos, marcha que lhes há de dar uma nova ordem, mais humana do que tudo que até hoje tenhamos conhecido... Dewey, cujo centenário de nascimento se celebra, continua a ser um simples precursor. .." (1)
Observa-se que Anísio, em seus últimos trabalhos, toma como problema crucial da cultura contemporânea a defesa e ampliação de nossa herança democrática de direitos e liberdades, numa economia industrial que a todos possa oferecer segurança. Êsse problema, na opinião de muitos, não encontra solução sem economia planificada, com os perigos do crescimento do poder do Estado, e, portanto, pondo em risco a liberdade individual. Encarando êsse ponto, Anísio desenvolve idéias próprias, examinando-as para o caso brasileiro, em nossa época. Quer assim nos parecer que, mais explìcitamente que Dewey, reconhece os princípios explicativos da sociologia do conhecimento, e o papel das ideologias e utopias, no sentido que Karl Mannheim deu a essas expressões. Como pensador, seu problema atual é o do planejamento social "com liberdade".
A originalidade do pensador
Com as repetidas transcrições de Anísio, que fizemos, tentam-se dar, embora sumàriamente, as coordenadas gerais em que se projeta a sua figura de pensador. Contudo, pela própria feição do método com que trabalha, Anísio é um pensador prático, um filósofo que se ocupa de política, um teórico sempre inclinado para as coisas, os fatos, as instituições. Dessa forma, a sua contribuição original, ainda quanto ao pensamento se refira, mistura-se à ação, nela vive e dela extrai a sua fôrça.
Três iniciativas práticas, que certamente serão tratadas com minúcia em outras partes dêste livro, devem ser aqui referidas, pois só em face de uma visão integral do pensamento de seu criador chegam a apresentar perfeita clareza, explicando-o também: a Universidade, em moldes modernos, que procurou estabelecer em 1935, no Distrito Federal; a Comissão Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES); e, por fim, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, devotado ao estudo da cultura do país. Em épocas variáveis, elas constituem, num tríptico, expressão genuína de sua filosofia.
Dado, porém, que o conceito de pensador entre nós ainda se prende aos velhos cânones, os do homem que expõe idéias e apenas as confronte em abstrato, será útil indicar algumas das concepções de Anísio ainda não projetadas na ação. Será útil mesmo porque, com freqüência, elas têm levado seus críticos a lhe confundirem as intenções, pressupostos e métodos.
A primeira delas é a compreensão da sociedade como organismo pluralista - uma "organização de organismos" - não por certo de criação sua, pois é tão velha como William James, mas a projeção que dela faz na realidade brasileira de nosso tempo. Êle a apresenta, expressa, sobretudo no ensaio inicial da segunda parte do livro A educação e a crise brasileira, mas insinua-se em todos os seus trabalhos da última fase, ou a partir de 1935.
A falta de maior consideração dêsse ponto tem levado certos críticos a julgar Anísio tanto um defensor do monopólio do Estado em educação, como, no extremo oposto, propagador de um polianarquismo mal definido. Não há, nêle, porém, nem uma coisa nem outra. Seu fado, aliás, nesse particular, e pelas mesmas razões de origem, é similar ao de Harold Laski, na Inglaterra. Também o político inglês estudou nos Estados Unidos, também êle se embebeu de compreensão pluralista dominante na sociedade norte-americana. A fonte de origem, direta ou indireta, em ambos, é William James e seus continuadores. "Todo objeto no qual se possa pensar, escreveu êsse filósofo, por mais vasto que seja, e seja o que contenha, possui do ponto de vista pluralista um envoltório exterior de uma dimensão qualquer. Cada coisa existe com outras, e de muitos modos... A conjunção e adere ao seguimento de cada frase. E muitas relações nos escapam sempre. . ."
Em Laski, as conseqüências políticas dessa concepção são levadas ao extremo limite, quando por êle aplicadas ao problema geral de Estado. Assim se dá também, com Anísio, quanto aos problemas da organização educacional, em particular. Visto que cada coisa arrasta consigo como que um envoltório, nenhuma instituição pode englobar o domínio de outras, e de modo especial, na educação. A ascendência total do Estado não se justifica: o Estado não é senão um dos grupos a que pertence o indivíduo. Atribuir, pois, a Anísio o princípio do monopólio estatal da educação será desconhecer-lhe a obra, e, precisamente, num de seus aspectos mais originais.
Outro ponto de aplicação pessoal, aparentemente em conflito com êsse, mas só aparentemente, é o da defesa de uma política de desenvolvimento, com regulação ou, ao menos, inspiração estatal. A CAPES, de sua criação, reflete êsse ponto. Mas observe-se que o que êle deseja e que os centros de cultura superior, as universidades, cheguem a ser unidades ativas, numa sociedade pluralista. Segundo pensa, nelas dever-se-á criar tanto um foco de sugestões para a melhoria da vida social e moral, por elevação profissional, como de pesquisas científicas que melhorem a vida material do homem. "As grandes e pequenas tecnologias de nossa época foram elaboradas, em grande parte, para as regiões temperadas do globo, e a civilização a ser implantada numa região tropical, como a nossa, para a qual faltam ainda inúmeros recursos tecnológicos" deverão representar, assim, todo um programa de progresso.
O terceiro ponto original é o reajustamento institucional da escola brasileira, como conjunto. Disso trata o primeiro estudo do livro Educação não é privilégio. Com êle, não preconiza apenas maior eficiência e aproveitamento dos dinheiros públicos, como também a oportunidade de mais ampla experimentação social, e de tal forma que, "uma educação para o desenvolvimento, para o trabalho, para a produção, substitua a educação transplantada e obsoleta, a educação para a ilustração, o ornamento e, no melhor dos casos, para o lazer." Assim, tenta uma teoria "instrumental" do Estado, não por certo simples nem fácil, nem também invulnerável a objeções de diversa índole.
O que aí o inspira, como sempre, é a concepção do Estado pluralista, em função do postulado democrático, em Anísio, como que visceral. Na base, sistemas locais ou municipais, visto que a base geográfica é a naturalmente indicada para a solução dos problemas imediatos e diretos do consumo de "bens", nêles incluídos os da cultura. Não obstante, deverá haver certa supervisão de cada Estado, para assistência técnica e financeira aos municípios, como para desenvolvimento de instituições de segundo grau. Em esfera mais ampla, estaria presente a União, igualmente com uma rêde de escolas médias, profissionais e superiores, de experimentação e desenvolvimento. Manteria "um serviço de classificação das escolas superiores e os de levantamento e estatística em relação aos profissionais de nível superior, seu mercado de trabalho, sua distribuição pelo país, faltas e excessos, e necessidades novas criadas pelo desenvolvimento nacional. Mas os processos, currículos e condições internas do ensino seriam determinados pela consciência profissional dos professôres e especialistas em educação".
Em suma, é numa concepção pluralista que o pensador vê a conciliação de um federalismo funcional, com os direitos individuais e os de grupos, no plano geral da nação. Uma teoria "instrumental do Estado" ou planejamento "com liberdade".
Halo da imagem
Cada imagem tem fundo e forma. Segundo melhor reconheçamos aquêle, mais nìtidamente a esta percebemos, em seu contôrno e perspectiva. Mas podem as imagens, também a dos homens, possuir um halo, maior ou menor, favorável ou desfavorável à percepção comum. No caso do pensador, não só êle resultará dos efeitos de expressão lógica, mas da gama de sentimentos gerais que a envolvam, confundidos com a fôrça de atributos essenciais de sua personalidade.
A nosso ver, dois atributos essenciais existem em Anísio Teixeira e que a êsse respeito devem ser mencionados. O primeiro não se dirá que seja apenas simplicidade e modéstia, mas ascetismo, de formação cristã a mais autêntica, e que lhe impõe moderação em tudo, desde a frugalidade até o desejo de estar oculto na hora de receber aplausos. O segundo é a paixão pelo trabalho, a que se liga intrepidez e determinação na luta, sempre que julgue em causa o bem comum. Não dando importância a si mesmo, no sentido egoístico dessa expressão, vigila no entanto pela marcha da cultura e a existência histórica do país, nelas sentindo que tem uma parcela de responsabilidade, como ser humano e pensamento. E gostaria que todos os homens assim fizessem também.
Essa ambivalência forma a trama de sentimentos não aparentes da vida do pensador, a que não tem faltado lances de dramaticidade, mas da qual se projetam longanimidade, espírito de tolerância, fé na fôrça do espírito e seu poder criador, crença otimista na vida e na cultura.
Ao completar sessenta anos, em sadia juventude, Anísio realiza o milagre de ser assim um impenitente otimista, apanágio dos homens tocados da graça de compreender, projetar e construir, sem que esmoreçam a confiança na fôrça construtora do pensamento.
Tais predicados é que fazem de certos homens grandes figuras morais, isto é, personalidades sem as quais não seriam exatamente os mesmos o seu meio e o seu tempo, se dêles estivessem estado ausentes - e não exatamente os mesmos não só na hora que com êles passe, mas no futuro.