ANÍSIO TEIXEIRA, EPlSÓDlOS
DE SUA VIDA E DE SUA LUTA
PÉRICLES MADUREIRA DE PINHO
NíSIO TEIXEIRA não é homem a quem se precise acrescentar adjetivos. Pensador, filósofo, reformador educacional, professor, administrador, animador de idéias. O Anísio verdadeiro, sem os tons de fantasia e lenda que se criaram, é também um indivíduo terno, sensível a tôdas as realidades da vida, tendo para com os amigos e companheiros minúcias de atenção e carinho, raras nos que, como êle, são dotados de intensa vida interior.
Homem de ação e homem de luta, sua atitude em favor da escola pública e seu apêlo às ciências sociais para que venham enriquecer os estudos pedagógicos, são momentos recentes de uma vida há 35 anos dedicada à educação.
Cabe a outros, neste volume, o exame dos aspectos do pensamento e da ação de Anísio Teixeira.
Aqui nos propomos apenas reunir fatos e episódios de sua vida, que ajudem a conhecê-la e interpretá-la, sobretudo aos que tão mal a conhecem e interpretam.
Originário do sertão baiano, de gente autêntica da nossa sociedade rural, Anísio Teixeira nasceu em Caetité, na vertente oriental da Serra do Espinhaço, território das bacias hidrográficas do Rio São Francisco e do Rio das Contas. Sede de bispado, com uma Escola Normal, Caetité é dos mais importantes centros do sertão baiano. Ali nasceram Cezar Zama, humanista e tribuno, Conselheiro Joaquim Spínola, jurisconsulto, e o médico Dr. Manoel Rodrigues Lima, governador do Estado (1892 a 1896), todos parentes dos Teixeira.
O nome Caetité vem da Língua indígena - caita-ete (mato de pedra real) - por ter sido encontrada, no local escolhido para a instalação da Vila, enorme pedra granítica saindo da mata.
A família Teixeira domina uma grande extensão de terras e nela se distribui numerosa por vários municípios: Caetité, Guanambi, Urandi, etc...
Deocleciano Pires Teixeira, pai de Anísio, médico e político, o próprio filho o definiu
"Uma encarnação das virtudes patriarcais enriquecidas ou modificadas pelos ideais republicanos, a que não faltava uma nota de rebeldia voltaireana" (1).
Lembro-me de, na minha primeira infância, ouvir, em nossa casa, constantes referências ao prestigioso chefe sertanejo. Um dos meus tios maternos, engenheiro agrônomo pela Escola de São Bento das Lajes, iniciou carreira em Caetité, nos fins do século passado. E aludia aos seus tempos de sertão falando no solar dos Teixeira, no velho Deocleciano, que o acolhera naqueles ásperos começos de vida.
Num dos raros documentos autobiográficos de Anísio, êle depõe:
"Cresci neste ambiente de austeridade patriarcal e veemência intelectual e cívica". (1)
Começou sua formação lá mesmo no sertão, no Instituto São Luís, com os padres jesuítas. Os estudos secundários seriam continuados ainda com os padres da Companhia, no Colégio Antônio Vieira, de Salvador. Entre seus mestres, o que mais influência sôbre êle exerceu foi o pe. Luiz Gonzaga Cabral, jesuíta português expulso de sua terra com os companheiros, pela revolução republicana de 1910. Ouçamos as próprias palavras de Anísio:
- "Durante os 12 ou 14 anos de discípulo de jesuítas, entre 1911 e 1923, tive a experiência dos ardentes conflitos religiosos, absorvendo com intensidade e paixão a formação intelectual e religiosa que me proporcionaram os padres. Tanto a formação intelectual como a religiosa eram, de exceção, para os tempos e o meio brasileiro; e isto alimentava e aguçava a inquietação mental. Um jesuíta de valor incomum, o Pe. Cabral, conseguiu afinal o que chamaria de minha conversão. Rendi-me ao catolicismo e fiz mesmo o projeto de entrar para a Companhia de Jesus. Cristão novo, vivi ardentemente meu sonho loyoleano durante o meu curso acadêmico em que fui destacado congregado mariano na Bahia e depois no Rio. (2)"
Foi realmente excepcional, como êle próprio reconhece, a formação intelectual de Anísio Teixeira. Quando chegou a Salvador, recém-formado, em 1923, hospedou-se numa pensão francesa na Rua da Vitória, quatro ou cinco casas depois da em que residíamos. E a excepcionalidade da cultura e do talento do rapazinho foi notada por um homem de rara sensibilidade, ali também residindo, Michel Poncet, que a transmitiu a meu pai, na minha presença, em têrmos os mais calorosos.
Poncet era um francês típico, com o patriotismo exaltado de soldado da 1ª Grande Guerra, ainda tão recente. Trabalhava na Bahia como representante de uma casa importadora de fumos, mas a inteligência era a matéria-prima que o interessava. Em poucos anos dominava o português com perfeição que jamais vi em outro compatriota seu. Apaixonou-se pela literatura brasileira e a conhecia em todos os seus segredos. O acaso fê-lo encontrar-se com Anísio, de quem seria admirador e amigo fidelíssimo até a morte prematura, em 1949, lá mesmo na Bahia que êle tanto compreendeu e amou.
Aquêle ano de 1923 era fervilhante, cheio de esperanças de uma nova era no Estado, pois as hostes políticas, sob a direção de Rui Barbosa, já tinham Ministro no Govêrno da República e se preparavam para alcançar o Govêrno Estadual. O falecimento de Rui, a 1º de março daquele ano, não arrefeceu o ânimo dos oposicionistas baianos cujo natural candidato a governador era Francisco Marques de Góes Calmon, banqueiro, professor, de singular agudeza intelectual, aliada à capacidade administrativa. De início com o apoio de Seabra e depois enfrentando candidato oficial, Góes Calmon foi eleito e empossado no govêrno, em março de 1924.
Deocleciano Teixeira era dos chefes sertanejos que apoiaram Góes Calmon; e Anísio então prestava assistência política ao pai. Não tardou que o faro intelectual do novo Governador nêle descobrisse algo mais do que o modesto pretendente à promotoria pública de Caetité. O jovem de 23 anos foi convidado para o alto cargo vitalício de Inspetor Geral de Ensino, exercido, há longos anos, por uma nobre figura de senador estadual. O espanto com a escolha, fora de todos os moldes e tradições da época, pode ser definido pelo telegrama do velho Deocleciano ao próprio Anísio. "Que lugar lhe reserva Calmon na Inspetoria Geral de Ensino?" Nem o pai, nem ninguém poderia crer que um rapaz, cujo físico ainda fazia mais jovem, passasse a dirigir, logo o ensino, naquela Bahia patriarcal dos anos de 20.
Calmon era porém uma revolução. Seu Govêrno foi marcado exatamente pelas iniciativas mais arrojadas, por escolhas sem precedentes de auxiliares e secretários de Estado.
Embora a Inspetoria de Ensino fôsse formalmente subordinada à Secretaria de Interior e Justiça, Anísio foi desde o início um auxiliar direto do Governador. Seus relatórios e documentos iniciais estão convenientemente apreciados neste volume.
O que recompomos é a atmosfera com que foram recebidos os primeiros sacolejos de Anísio na velha estrutura do ensino da Bahia. Os jornais, mesmo os que apoiavam o novo govêrno, criticavam "os estouvamentos do jovem inspetor". Anísio lançava as bases de ampla reforma, absorvendo ràpidamente tudo que lhe passava pelas vistas sôbre educação, naqueles poucos meses. Tinha os alicerces de uma cultura geral muito sólida. Êle próprio vê, no que chama "êsse incidente" - a direção do ensino no seu Estado - o divisor de águas entre o noviço dos jesuítas e o Anísio Teixeira que êle veio a ser.
"Consultada a Companhia de Jesus, achavam os padres que o fato (a direção estadual do ensino) de tão extraordinário estaria a indicar que a vontade de Deus talvez fôsse que lavrasse eu no campo do apostolado leigo e não nas fileiras jesuíticas. Confesso que me desconcertou a facilidade com que os jesuítas dispuseram de minha suposta vocação. (1)"
É necessário que se recomponham palavras e fatos referentes à revisão filosófica a que Anísio se submeteu, para que não seja ela desfigurada em lendas e calúnias, como as que se criaram a respeito.
A primeira viagem à Europa, no ano seguinte - 1925 - para observar os sistemas escolares da França e da Bélgica, foi na companhia do arcebispo Dom Augusto, o atual Cardeal da Silva, seu amigo de sempre. Estou a ver o embarque, em navio, que os levava ao Pôrto de Bordéus (era assim, à portuguêsa, que Dom Augusto pronunciava o nome do pôrto francês), e ouço ainda o Pe. Cabral, ao deixarmos o navio, dizer a ambos: - "Muitas invejas os acompanham".
Da Europa trouxe Anísio novos conhecimentos, novo material para a reforma da educação. Dessa época um período de estudos intensíssimos, em sala que alugou num casarão do bairro da Sé. Para lá fugia horas inteiras, escapando dos atropelos do gabinete de Diretor e da estreiteza do quarto da pensão em que continuava a residir. Uma noite deixou-nos no Palácio da Aclamação, logo depois de um daqueles inesquecíveis jantares com que os Calmons reuniam diàriamente amigos, para aproveitar "três horas cheias de estudo na Sé". Disse isso com a bôca cheia d'água, de quem ia deliciar-se. Não esqueci nunca e episódio pelo contraste com a minha inapetência para os estudos do curso, naquele primeiro ano de faculdade.
Meu pai, já então Secretário de Polícia e Segurança Pública de Calmon, quase diàriamente nos dava Anísio como exemplo de seriedade no estudo e capacidade no trabalho. Dentro do ritmo de renovação do govêrno a que servia, êle transformou a Penitenciária do Estado. Os detentos passaram a trabalhar em amplas oficinas. Na festa com que se comemorou o acontecimento houve a comunhão dos sentenciados. A emoção dos presentes já era intensa e maior foi quando Anísio Teixeira, Diretor do já então Departamento de Instrução Pública, marchou entre os presos para a mesa da comunhão com a sua fita de congregado mariano. Foi a última vez que vi Anísio católico, pois dentro de alguns meses seguia para uma viagem de estudo, nos Estados Unidos, da qual voltou já completado o que êle o chama de terceiro ciclo de sua vida:
"Em que revivi o embate da adoIescência entre as duas filosofias que lutavam em meu espírito. Por volta de 1927 senti haver superado essas mortais contradições reconciliando-me com a filosofia que primeiro me influenciara, a do espírito naturalista e científico, de que me tentara afastar o ultramontanismo católico dos jesuítas. Trouxe, de meus cursos universitários na Europa e América, não sòmente esta paz espiritual, mas um programa de luta pela educação no Brasil. (1)"
Vencera na Bahia o 1.º tempo dessa luta, mas quando voltou para o segundo, um novo período governamental no Estado já não oferecia as mesmas condições. Anísio, não encontrando as mesmas possibilidades de realizar, preferiu voltar à América para um curso regular na "Columbia University". O estudante ainda não desaparecera depois de quatro anos de Diretor Geral.
De estudante era sua atitude e seu aspecto. Recordo fato curiosíssimo daqueles dias quando minha avó, já quase aos 90 anos, apontou Anísio que passava ante nossa casa: - "Está porque o ensino de hoje é mau; enchem um menino tão pequeno de livros, como êsse que vai aí". Não era outra a impressão que dava o rapaz de pequena estatura, sempre em passo acelerado, sobraçando pastas e livros.
Na América foram dez meses de intenso aprendizado, ouvindo aulas de grandes mestres, inclusive de John Dewey, depois do qual obtinha o diploma de Master.
O regresso à Bahia já foi em época pré-revolucionária. O ano de 1929 marcou o início do grande conflito político que desaguaria na revolução do ano seguinte. Foi o período em que Anísio mais freqüentou nossa casa, na Rua da Vitória. A biblioteca aberta a um grupo de jovens, do qual faziam parte Aluízio de Carvalho, Nestor Duarte, Alberico Fraga, Luiz Viana, João Mendes, Nelson Pinto, Jaime Aires, era ponto de encontro e, debates a que não raro comparecia Anísio com um tipo de cultura e de ginástica intelectual, que era para todos uma novidade e um encanto. Estávamos nos aproximando de momentos que seriam decisivos do destino do País. Tôdas aquela divergências sôbre fórmulas políticas, sistemas econômicos, organização de ensino, tudo aquilo viria a ter, em breve, oportunidade de aplicação.
A Revolução de 30, como é natural, em face da relativa proximidade, ainda não tem história. É de tôda oportunidade que se vão reunindo depoimentos parciais, fixando situações e atitudes, para que essa história venha a ser escrita. Não resta dúvida que os da geração nascida no comêço dêste século, a que pertence Anísio, viviam naqueles dias enorme inquietação. Os valores tradicionais, cujo desaparecimento hoje muitos lamentam, não nos satisfaziam mais. A verdade é que a compustura, a idoneidade moral e intelectual das figuras que nos dirigiam, não compensava nossas decepções com o regime. As nomeações para cargos eletivos, os conchavos de gabinete em que se escolhiam chefes de executivo nos Estados e na Capital de República, tudo isso nos dava uma sensação de sistema frustrado. Não coincidia com o que líamos, com o que sabíamos que era o regime democrático autêntico, praticado em outras terras: o conceito da escola pública, da educação com oportunidade para todos, o Estado democrático como um Estado aceito e não impôsto, distinção fundamental do Estado totalitário eram idéias que Anísio nos trazia, em têrmos novos.
Não tendo sido possível a continuação de seu plano educacional, na Bahia, êle era, naqueles meses de 30, apenas o professor de Filosofia da Educação na Escola Normal e o animador de idéias nas rodas intelectuais que freqüentava. A nós do grupo de estudantes da "Cultura Jurídica" nos deu alguns artigos brilhantíssimos sôbre "Educação e Democracia", publicados nos cinco únicos números da revista.
A revolução estalou afinal. Naquele agitado três de outubro em que os conflitos de rua, na Bahia, foram muito graves. Lá não havia revolucionários em número suficiente para tal movimento mas agitadores de todos os matizes e procedências valeram-se do momento para depredações e arruaças que marcaram, tràgicamente, o 4 de outubro de 1930, na pacata cidade do Salvador. E a pré-revolução, que contava com as simpatias da mocidade intelectual ligada ao velho regime, teve desde logo a impressão que, se vitorioso o movimento, traria, para a Bahia, dias muito penosos. Daí o grupo a que pertencia Anísio não ter tido qualquer simpatia pela vitória da Revolução, no dia 24 do mesmo mês. Respirávamos até então os ares do século 19. Se geralmente se admite que aquêle clima durou na Europa até a 1.ª Grande Guerra, no Brasil nossa "belle époque" acabou em outubro de 1930.
Quando à Revolução, o ambiente baiano não deve ser confundido pelo historiador do futuro com os dos grandes centros do País, onde houve real mobilização da opinião pública contra o sistema político vigente. Deocleciano Teixeira, nos seus últimos dias de vida, foi dos chefes sertanejos que ficaram absolutamente solidários com a República deposta. Anísio não teve assim qualquer afinidade com o movimento e passados os primeiros tempos da refrega chegou ao Rio de Janeiro, conforme suas palavras - "sem trabalho, nem emprêgo". E êle mesmo reconheceu - "A revolução produzira o necessário clima de renovação".
Por mais ligado, individualmente, a homens do regime que caíra, era impossível ao jovem intelectual não sentir a realidade que alteara os problemas de educação e saúde ao nível de uma Secretaria de Estado, nela colocando homem da autoridade intelectual de Francisco Campos. Que procurava responder à questão social com um Ministério do Trabalho confiado a político da altitude de Lindolfo Collor.
É preciso não confundir a Revolução de 30, em si mesma, com as distorções que ela sofreu mais tarde. O ano de 1931 foi particularmente auspicioso para os que tinham fé nos novos rumos do País. Não se vislumbrava ainda qualquer sinal de ditadura indefinida. Francisco Campos não tardou em convocar Anísio. Confiou-lhe o setor do ensino secundário, ainda emaranhado na organização do Conselho Nacional de Ensino, presidido pelo prof. Aloisio de Castro. Na equipe principal do Ministério recém-criado estavam Lourenço Filho, Abgar Renault, Carneiro Felipe, Hahnneman Guimarães, Rodrigo de Melo Franco e outros da mesma fôrça intelectual e moral.
Anísio reinicia o trabalho penoso de reformador educacional. Poucos meses depois, Pedro Ernesto na Prefeitura do Distrito Federal o nomeia para a Diretoria de Educação. Começa um dos grandes períodos da vida de Anísio; 4 anos de intensíssimo trabalho de reforma que da Escola Primária vai até à criação da Universidade do Distrito Federal. A Diretoria transforma-se em Secretaria de Educação e Cultura, abrem-se escolas e grupos em todos os bairros, reforma-se o Instituto de Educação, organiza-se a Biblioteca Central de Educação, publicam-se manuais para a escola elementar, até de pesquisas educacionais já se cogita naqueles longínquos anos de 30.
A Universidade do Distrito Federal é porém o coroamento de uma obra. Foi a única tentativa no Brasil, até hoje, e por isso mesmo tão cedo malograda, de torcer a nossa aversão ao espírito universitário. Afrânio Peixoto colabora no recrutamento de professôres estrangeiros, Gilberto Freyre cede afinal sua resistência em aceitar cargos, seduzido pelo plano da nova Universidade, buscam-se os valores em todos os ramos do conhecimento. Nenhum sectarismo, nenhum partidarismo. A política partidária, essa então não era considerada, sequer, na grande obra de Anísio Teixeira. As eleições gerais de 1934 não perturbaram em nada o trabalho.
Nada adiantou tudo isso para opor-se ao movimento da Aliança Nacional Libertadora e às articulações do partido comunista, o Brasil foi então varrido por uma das maiores vagas de reacionarismo que já passaram por nós. Captaram-se tôdas as fôrças de reação, permitindo a decretação do estado de guerra em 35 e culminando no golpe de Estado de 37. Nessa voragem tudo era levado de roldão. E a obra de Anísio, como a de Pedro Ernesto e a de outros homens que se identificaram com os interêsses populares, foi inopinadamente sustada.
O grande Prefeito, coagido pela pressão ambiente, teve a fraqueza de permitir o sacrifício de Anísio, aceitando sua demissão dias depois da intentona revolucionária de 27 de novembro de 1935. A carta em que Anísio a solicitou é um documento lapidar em que alude "à trágica confiança na violência" tão marcante naqueles dias sombrios. Uma obra tôda ela de democrata perfeito, absolutamente identificado com o Estado Democrático, oposto às formas de Estado Totalitário, era assim confundida com a agitação extremista que se procurava reprimir.
Anísio, um dos homens que mais confiam na pessoa humana, cuja dignidade para êle é uma religião, ser misturado com suspeitos de movimento comunista, é um dêsses desatinos que os períodos revolucionários oferecem e 25 anos após são inacreditáveis para os que tenham hoje liberdade de consciência nos seus julgamentos.
Anísio começa um outro ciclo de sua vida que foi o da atividade editorial, experiência de alta valia a produzir resultados também quando de sua volta ao Serviço Público.
Entre 1936 e 1938 traduziu, para várias editôras, Wells, Adler, Dewey que êle considera "meus mestres em democracia e crença no homem". Era ainda uma atividade intelectual e assim proibida a um homem livre, naquele tempestuoso início de Estado Novo. Até as viagens para os rincões do sertão baiano tinham de ser por terra, em caminhos que não se poderiam chamar de estradas, tão rústicos e pouco transitados.
Seriam quase 10 anos de vida privada entre Caetité, Salvador e rapidíssimas passagens pelo Rio e São Paulo. Comerciante, industrial, minerador, exportador, Anísio foi tudo isso com os mesmos entusiasmos e os mesmos ritmos de trabalho com que fôra intelectual e reformador educacional. Tal fase de sua vida é assim por êle mesmo definida:
"Com uma filosofia que procura não distinguir pensamento de ação, achei a chamada vida prática tão sedutora quanto a chamada intelectual. Foi uma bela ocasião de mostrar a mim mesmo que vencera, realmente, os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito. (1)
As vigílias do estudioso foram substituídas pelas madrugadas do trabalhador, visto às 6 horas da manhã, no cais do Pôrto de Salvador, inspecionando o embarque de minérios, naqueles duros anos de guerra. Difìcilmente há um intelectual que valorize tanto o trabalho em quaisquer das suas formas, como Anísio. Nas suas atividades práticas como nas de educador êle tem pelo trabalho manual o mesmo fascínio que pela ciência e pela arte. Lembra Gilberto Amado que certa feita, num restaurante em Paris, olhava embevecido a correção de um garçom ao abrir uma garrafa de vinho. E me dizia: "A fôrça dêste país é que êste homem tem pela sua profissão o mesmo amor que os artistas, os cientistas e os homens de pensamento". Anísio tem observações idênticas que explicam muitas das suas iniciativas de educador.
A vida lhe correu feliz nos tempos de perseguido e banido da ação pública. Foi o período em que lhe nasceram os quatro filhos, que lhe floresceram lucros materiais que jamais a vida pública lhe proporcionou, antes e depois.
Mas um homem de espírito da fôrça de Anísio tinha de retornar às atividades intelectuais no mesmo campo da educação. Terminada a 2.ª Grande Guerra, quando as Nações Unidas se estruturavam para a paz, surgiu em Londres a UNESCO (United Nations Educational Scientific and Cultural Organization), dirigida por Julian Huxley, colaborador de Wells na "Ciência da Vida", livro que Anísio traduzira em 1936. O cientista e filósofo inglês convidou diretamente Anísio, exportador de minérios na Bahia, para Conselheiro de Educação Superior no organismo internacional que então surgia.
O ano de 1946 passou-o entre Londres e Paris, retomando contacto com o mundo que a guerra isolara e com as atividades intelectuais de que o regime discricionário o proscrevera. Êle assim define aquêle ano de ressurreição da humanidade:
"Foi com êste espírito, que procuramos trabalhar, neste ano divisor de água que foi 1946, quando parecia possível a existência de um mundo só, em que a UNESCO seria o supremo Ministério da inteligência e da cultura, com o perfeito entendimento entre os povos e, fecundando a terra, o livre comércio, em todo o mundo, de informações e conhecimento, destinados a promover as realizações não sonhadas da paz e da variedade na unidade. (2)"
Sua atuação no órgão internacional está definida pela dificuldade com que dêle o deixaram sair e pelos esforços feitos mais tarde para que a êle voltasse.
Em comêço de 47, já sem compromisso com a UNESCO, Anísio regressa ao Brasil por Nova lorque e está no Amapá em vésperas de se integrar num grande projeto industrial, aproveitando o manganês ali recém-descoberto. Ao mesmo tempo, na Bahia, Otávio Mangabeira está organizando o Secretariado para um grande govêrno. Anísio é considerado indispensável na Secretaria de Educação e, localizado no Amapá, o futuro Governador da Bahia transmitiu-lhe o convite, em conferência pelo telégrafo. Pediu êle algumas horas para refletir e participou aos companheiros de projeto industrial, entre êles, norte-americanos, o dilema em que estava, a decidir-se naquela noite. Um dêles, que melhor o conhecia, previu logo que, por maiores que fôssem as vantagens do negócio, a resposta seria fatalmente pela volta ao serviço público, na sua província. Odorico Tavares, o jornalista que entrevistou Anísio na pequena autobiografia que vimos citando, comenta a passagem nos seguintes têrmos:
"É preciso que se saiba que abandonando o Amapá e ficando com "o último" (o convite), deixava Anísio Teixeira um dos maiores negócios que já se fizera no Brasil: a concessão do minério de manganês cujas jazidas são as maiores do mundo. Entre a concessão pràticamente sua e servir à sua terra, ao lado de um amigo seu, preferiu a segunda fórmula. É um capítulo a ser dito e com vagares sôbre um homem e um grande homem a quem, geralmente, não se faz justiça como merece, pois injustiças cercam, em todos os tempos, temperamentos e personalidades como a sua. (1)"
Valeu o sacrifício, pois, em outros capítulos dêste volume, ver-se-á quanto realizou Otávio Mangabeira no govêrno da Bahia no setor da educação, pela mão de Anísio Teixeira. 18 anos depois de ter deixado o mesmo pôsto, voltava êle para retomar os mesmos horários de trabalho, os mesmos esforços, para "elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro". Êle considerou e foi realmente um período de reimplantação da república no Brasil, hoje ameaçada pelos que pretendem copiar sistema de ensino das monarquias européias, no que êles têm de menos democrático e humano.
Terminado o govêrno Mangabeira, pensou Anísio em retornar à vida privada, dispondo ainda de todos os elementos que nela deixara. Iniciava-se, porém, o govêrno constitucional do presidente Getúlio Vargas, em 1951, e o Ministro da Educação era o baiano Ernesto Simões Filho. Vale recordar os dias que antecederam a formação do novo govêrno, em janeiro de 1951. Simões F.º esforçou-se por obter apoio de todos os seus amigos políticos, saindo dentre êles um ministro baiano, jovem e capaz. Citava Aloisio de Carvalho e Anísio Teixeira como possíveis ministros da Educação, no govêrno a iniciar-se e Nestor Duarte, como ministro da Agricultura, pasta que acabara de ocupar no seu Estado, se a escolha do Presidente pendesse para êsse Ministério. Já foi dito e repetido que todos êsses esforços de Simões visavam o prestígio da Bahia, procurando êle poupar-se, como já se poupara não se candidatando a qualquer pôsto nas eleições do ano anterior. Sua ambição, muito justa mas não expressa, era ser Governador do Estado. Há os que não crêem em tal versão dos fatos, mas insistimos no nosso depoimento pois, na residência da Av. Portugal, presenciamos reuniões de parlamentares baianos mais ligados a Simões, em que êle pugnava pela união no govêrno a iniciar-se, com um ministro que poderia ser Aloísio, Anísio ou Nestor. As incompatibilidades com Getúlio Vargas não permitiram a maioria dêsses elementos apoiar o plano político de Simões e dai êle próprio ter sido o escolhido. Do contrário a Bahia ficaria excluída do Ministério.
Ao partir para seu Estado depois da posse, Simões levava como objetivo principal trazer Anísio, que não pudera fazer Ministro, para seu conselheiro e guia na Pasta que lhe fora confiada. O cargo de Diretor do Departamento Nacional de Educação era pelos títulos, não pelas atribuições, o que parecia mais indicado. Anísio recusou, alegando que a Diretoria se esvaziara de sentido e que a centralização, que o Ministério representava, era um completo desacôrdo com as suas idéias, expressas em livros e ação administrativa. Ao regressar Simões Filho confidenciou sua decepção e não perdeu esperanças de que em breve contaria com Anísio em outro pôsto. A balança dêle para medir capacidade era muito precisa. E via em Anísio o homem que tôdas as inteligências livres vêem. Falava, diàriamente, em seu futuro colaborador, naqueles meses de 1951.
A idéia de uma Campanha para aperfeiçoar o ensino de nível superior adquiriu forma numa colaboração com Rômulo de Almeida, então assistente técnico da Presidência da República. Em nossos entendimentos para redigir o projeto de decreto, pensávamos em Anísio para dirigi-Ia e submetido o nome, ao Presidente, recebeu dêIe entusiástica aprovação. A aceitação do convite constituiu a maior alegria do Ministro e de seus colaboradores mais íntimos. Todos festejamos, como uma nova era para a educação no Brasil, a reintegração de Anísio em seu quadro de âmbito nacional.
Transfere-se Anísio para o Rio, 16 anos após o banimento de 1935. Embora em fim de ano, sua atividade foi logo extraordinária para colocar nos trilhos a nova Companha - a CAPES - hoje tão reputada pela obra que vem realizando. Recrutamento de pessoal, aluguel de salas, instalação, publicação dos primeiros documentos, tudo se fêz no ritmo que só Anísio sabe dar aos seus empreendimentos.
Em abril de 1952, desapareceu bruscamente, numa catástrofe aérea, Murilo Braga, jovem diretor do INEP. O golpe foi muito violento para todos da equipe do ministério, mas não havia como demorar a escolha de substituto. Simões não teve um minuto de dúvida e fixou-se logo em Anísio, para levá-lo ao próximo despacho com o Presidente. Getúlio Vargas nessas oportunidades era assediado pelos mais íntimos e lhe foram então apresentados nomes de muito valor para a direção do INEP. A um dos postulantes foi muito franco o Presidente: - "Para cargos dêsse porte o Ministro da Educação tem sempre um baiano de indiscutível merecimento". E foi assim narrando o episódio que êle deu inteiro apoio à nomeação de Anísio Teixeira."
É preciso fazer esta justiça a Getúlio Vargas, muitas vêzes apontado como absorvente e anulador de Ministros. Durante os dois anos e meio em que servi ao lado de Simões Filho, não vi nunca uma indicação ou parecer do Ministro ser recusado ou contestado pelo Presidente.
A admiração dêle pela inteligência e cultura de Anísio revela quanto os episódios de 1935 foram estranhos a deliberações e opiniões suas. Poucos meses depois da nomeação de Anísio, tendo recebido de poderoso grupo de pressão a estranheza de que tivesse seu govêrno recrutado elemento "tão nìtidamente esquerdista", Getúlio Vargas enviou os reclamantes ao Ministro da Educação, dizendo ser problema que envolvia idéias e julgamentos afetos exclusivamente àquele Ministério. Simões era para casos tais de uma bravura singular. Repeliu a insinuação malévola com a maior energia e superioridade: - "O Dr. Anísio Teixeira tem um pensamento de educador expresso em livros e obras administrativas. Aceitarei, para discutir, qualquer denúncia que indique nas suas palavras e nos seus atos a filiação doutrinária que se lhe procura dar". E recomendou ao gabinete providenciasse vários exemplares de trabalhos de Anísio que foram enviados aos censores, para facilitar a réplica nos têrmos em que o Ministro solicitara. Não é preciso dizer que o incidente morreu aí, no silêncio dos gabinetes, e deve ser conhecido hoje, para que se possa fazer justiça a homens e situações, e também para exemplo do quanto a fôrça de idéias, honestamente defendidas, pode enfrentar com vantagem os mais poderosos.
Anísio aceitou a direção do INEP exatamente por ser um órgão de estudos, onde êle antevia as realizações que pode traçar e executar, nestes oito anos de trabalho.
No seu discurso de posse já está contido um programa que não faltou. Basta reler alguns trechos daquele documento.
"O Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos tem de tentar uma tomada de consciência na marcha da expansão educacional brasileira, examinar o que foi feito e como foi feito, proceder a inquéritos esclarecedores e experimentar, medir a eficiência ou ineficiência de nosso ensino."
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"Para restabelecer o domínio dêste elementar bom-senso, em momento como o atual, em que a complexidade das mudanças impede e perturba a visão, são necessários estudos cuidadosos e impessoais, de que o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverá encarregar-se com o seu corpo de técnicos e analistas educacionais, mobilizando ou convocando também, se preciso e como fôr possível, outros valores humanos, onde quer que se os encontre."
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"As funções do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos deverão ganhar, em a nova fase, amplitude ainda maior, buscando tornar-se, tanto quanto possível, o centro de inspirações do magistério nacional para a formação daquela consciência educacional comum que, mais do que qualquer outra fôrça, deverá dirigir e orientar a escola brasileira, ajudada pelos planos de assistência técnica e financeira com que êste Ministério irá promover e encorajar todos os esforços úteis e tôdas as iniciativas saudáveis, que as energias insuspeitas da liberdade e da autonomia irão fazer surgir em todo o Brasil.
Os estudos do INEP deverão ajudar a eclosão dêsse movimento de consciência nacional indispensável à reconstrução escolar. (1)"
Todos os setores do INEP foram realmente dinamizados por Anísio Teixeira, que não tardou em criar novas Campanhas de Educação: Campanha do Livro Didático e Manuais de Ensino (CALDEME), Campanha de Inquéritos e Levantamentos do Ensino Médio e Elementar (CILEME). Para todos êsses novos campos de trabalho êle chamou não só alguns dos velhos companheiros de 31 a 35 como também jovens vocações que se foram afirmando.
Em 1952, quando regressava eu da Europa depois de uma Assembléia Geral da UNESCO, trouxe ao Ministro Simões um relatório, por êle recomendado, sôbre a Casa do Brasil a ser construída na Universidade de Paris. Era um projeto que se arrastava desde 1925 e para o qual Paulo Carneiro, nosso representante permanente na UNESCO, tinha solicitado a atenção do Ministro.
O relatório concluía pela imediata tomada de providências que ainda alcançassem um dos últimos terrenos vagos da Cidade Universitária, onde o Brasil já perdera dois, pelo decurso de prazos sem início de obras. O Ministro ao aprová-lo encaminhou-o ao INEP para as medidas necessárias. Dêsse projeto vem nossa colaboração pessoal junto a Anísio. Nos meses em que ainda chefiávamos o Gabinete do Ministro e nos que se seguiram, tudo que dependesse da iniciativa e ação de Anísio para montagem do projeto recebia pronto atendimento. Êle percebeu de cá as dificuldades burocráticas que existiam em Paris, compreendeu sem que ninguém insinuasse que só a ida à França, por prazo indeterminado, de pessoa exclusivamente dedicada ao assunto, poderia resolver o velho e cabuloso problema. Daí o convite que nos fêz para dirigir in loco o andamento dos trabalhos.
De Paris enviávamos a Anísio, mensalmente, relatórios das marchas e contramarchas. Não raro aludíamos a dificuldades que nos pareciam invencíveis. Só então é que pudemos avaliar a capacidade que tem Anísio de se identificar com todos os empreendimentos sob sua direção. Não nos respondia em cartas oficiais, longas e fastidiosas, mas comentava os nossos relatórios em pequeninas fôlhas de bloco, com bilhetes manuscritos, substanciais, revelando o conhecimento total do assunto e o interêsse em resolvê-lo. Em momentos de desânimo no estrangeiro, quando nos parecia malograda a missão, um bilhetinho daqueles trazia novo alento e a sugestão precisa nos reanimava. Assim chegamos ao êxito completo e vimos em junho de 1959 construída e em funcionamento a primeira Casa do Brasil em universidade estrangeira.
Nas comemorações e publicações sôbre nossa "casa" na Sorbonne, o nome de Anísio não tem o merecido destaque. Êle sempre prefere a penumbra, no momento do êxito e dos aplausos. Dêle entretanto foram as iniciativas mais arrojadas para continuar e finalizar o projeto inicial de Simões Filho. Empenhou verbas do seu Instituto, fêz adiantamentos quando as obras estavam na iminência de paralisação. Assumiu tôdas as corajosas responsabilidades de que raros administradores honestos são capazes.
Os que conhecem Anísio apenas de livro ou de contactos intelectuais, não podem prever que naquele pensador, naquele filósofo, esteja embutido um homem de ação dos mais vigorosos, um administrador minucioso, atento às menores imprecisões dos seus subordinados. Êle só admite coisas bem feitas. Admira do mesmo modo uma página de erudição ou de pensamento, uma fôlha bem datilografada ou uma persiana levantada com habilidade por um contínuo. Os prós e contras de tudo isso êle os dá de pronto, surpreendendo por vêzes o colaborador, que imprudentemente não o julgava capaz de tal atenção. Por isso nem todos podem trabalhar com Anísio, tão imprevista é a cobrança de tarefas. Os auxiliares supõem sempre que lhe escapam os pequenos descuidos e quando menos esperam aquêle homem, de ordinário tão cordial, transforma-se em áspero censor, achando normalíssimo o corretivo e se espantando da hipersensibilidade dos censurados.
Outra dificuldade que se apresenta à colaboração mais estreita com Anísio é o seu poder de adivinhar o que os outros estão pensando. Não adianta qualquer dissimulação diante dêle. Todos os cálculos e subtilezas dos que se julgam espertos são percebidas. Daí muitos relatos que o apresentam como inábil e caprichoso. Os narradores deixam sempre oculto o objetivo real de seus comportamentos e contam casos de intransigências, rudezas, teimosias, onde há apenas percepção, clareza, justiça severamente aplicada. Evidente que um homem com êste dom de ler dentro do pensamento alheio habitua-se à operação psicológica e comete algumas imprudências ... Elas são em tão pequeno número que a média de acêrto dos seus julgamentos desvaloriza equívocos só perceptíveis pelos mais íntimos.
Quando da instalação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Anísio, pondo em movimento sua poderosa máquina de pensar e de agir, reuniu os órgãos de pesquisas e estudos do INEP, a CILEME e a CALDEME e assim compôs as Divisões de Pesquisas Educacionais, Sociais, de Documentação e de Aperfeiçoamento do Magistério, criando modêlo para os Centros Regionais que vieram a se instalar em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Pôrto Alegre e Recife.
Suas viagens multiplicaram-se. Homem portátil por excelência, toma um avião aqui pela manhã, passa algumas horas em Belo Horizonte, de tarde já está em São Paulo. Resolve partir uma hora antes da viagem; o confôrto pessoal para êle não importa. Fica num grupo de trabalho fora do Rio até as 2 horas da madrugada, sem reserva de hotel e sem saber onde vai dormir. Não dispensa uma pasta contendo quilos de papel, onde guarda os documentos mais recentes: cartas, memoriais, livros em original, etc. No avião e no automóvel lê, toma notas, traça esquemas e planos de trabalho, tudo numa velocidade aliada à perfeição, que contraria o falso provérbio, consôlo dos mais lentos.
E vai ao estrangeiro freqüentemente em viagens relâmpago, só para atender compromissos das organizações internacionais que o solicitam. UNESCO, OEA, OPA, o incluem nos seus mais importantes projetos em educação. O homem utiliza rotas aéreas mais curtas, diretamente aos locais de trabalho. Não se sabe de uma passagem pelos grandes centro mundiais de lazer e divertimento. Não se tem notícia de um regresso por via marítima, essas repousantes travessias, fora de sua imaginação e de seus propósitos.
Chegado de Paris, em 55, fui por êle convocado para a instalação material do CBPE, em prédio. Casas da Tijuca e de Laranjeiras, de Botafogo e lpanema, eram visitadas e eliminadas num trabalho que, de tão rápido, não alterava sequer suas pesadas tarefas diárias. Aí pude verificar como seus vetos não são definitivos e que uma reflexão mais demorada, dêle mesmo, resulta muitas vêzes numa volta à sugestão desprezada, tudo num ar de naturalidade que revela a pureza das suas intenções e dos seus objetivos.
O prédio da Rua Voluntários da Pátria, n.º 107, nos surgiu em anúncio que ocultava o enderêço e a instituição que a vendia. Transpostos êstes obstáculos, a primeira vez que Anísio correu à Casa vetou-a liminarmente. Um mês depois, quando já visitara dezenas de outras, Anísio mesmo é que refletindo dá instruções para retomada dos contactos, não se constrangendo em dizer que se equivocara. Dêle foi então todo o entusiasmo e ação concreta para adaptação do edifício. Em poucos meses ali viu funcionando o órgão de estudos e pesquisas com que sonhara desde a posse em 52.
Um dia de trabalho de Anísio entre CAPES, INEP, Faculdade de Filosofia, Instituto de Educação, o Centro, quando não os Centros nos Estados, é alguma coisa que só seus companheiros podem avaliar o que significa. A capacidade normal de um homem de inteligência seria esgotada numa só dessas tarefas. E êle ainda escreve conferências, discursos, declarações à imprensa... Anísio multiplica-se em tudo com a mesma lucidez, o mesmo entusiasmo, numa elasticidade que só se explica pela fôrça do seu espírito, pelas reduzidas proporções de seu físico, permitindo um ascetismo, base de tôda sua incrível atividade.
Ficou-lhe da formação jesuítica, como tanto já se tem repetido e êle próprio não contesta, uma atitude de mortificação diante da vida. Só o trabalho o diverte, seus encantamentos resultam dêle. E como é difícil satisfazer-se com o que êle mesmo realiza! Vive possuído do que na sua própria definição é
"a divina inquietação que faz o homem permanentemente insatisfeito, e permanentemente empenhado na constante revisão de sua obra. (1)"
Nenhuma dissipação o atrai. É um religioso do dever que não perdeu o temor das tentações. Pode ter perdido a fé em Deus, mas continua acreditando no Diabo. De outra maneira não se explica a linha de absoluta temperança em todos os seus hábitos, de sobriedade em tôdas as suas atitudes, de simpleza no trato, compondo a figura de um místico, em contradição com o materialista desabusado dos que não sabem vê-lo.
É impossível escrever sôbre Anísio sem registrar as qualidades de sua palavra, o gôsto pela fluência em tons novos, surpreendentes. A originalidade do pensador reveste-se também de um pitoresco sabor de linguagem, de que raros profissionais das letras são dotados. A vivacidade do seu comentário, a caricatura dos tipos humanos em adjetivação colorida e imprevista, fazem de Anísio conversador dos mais agradáveis. Lembra por vêzes Afrânio Peixoto, embora mais veloz e mais espontâneo do que o seu patrício e amigo, unidos que foram por admiração recíproca, raríssima entre homens de gerações diferentes.
E um homem assim, modêlo de virtudes humanas, pode ser combatido exatamente por defeitos opostos às suas qualidades, por atitudes fantásticas, por convicções criada pelos seus detratores.
Nem mesmo contra seus algozes Anísio adquire qualquer espécie de prevenção, nem se reveste de qualquer espírito de vingança. Tem a magnanimidade, a tolerância dos que não se supõem donos da verdade. Um opositor é para êle elemento útil que o obriga a pensar, a rever as próprias conclusões, a desenvolver argumentos que de outra forma não seriam explicitados.
Seu gôsto pela polêmica não é assim o prazer de ferir o contendor, mas o ideal muito mais alto de convencê-lo. Quando teria motivos para uma reação violenta, que pelo menos devolvesse injustiças, êle surge com o seu raciocínio lógico, despido de qualquer malícia, dizendo o que pensa com clareza e sem o subterfúgio dos esgrimistas profissionais.
Tudo isso porque êle crê no homem. Crê na vitória final dos que são sinceros, dos que são autênticos. O que pensa e realiza é produto dessas crenças e compõe um todo de harmonia e beleza dos mais altos da cultura brasileira.