ANÍSIO TEIXEIRA OU A INTELIGÊNCIA
FERNANDO DE AZEVEDO
UMA TARDE DE JUNHO de 1929 (não poderia precisar a data) apareceu-me em meu gabinete de trabalho, no Rio de Janeiro, um jovem educador que havia pouco chegara da América, onde estivera em viagem de observação. Vinha acompanhado de um amigo comum, Eduardo Agostini, e trazia-me carta de Monteiro Lobato, então nos Estados Unidos. Ei-la no seu texto integral:
"Fernando. Ao receberes esta, pára! Bota pra fora qualquer senador que te esteja aporrinhando. Solta o pessoal da sala e atende o apresentado pois êle é o nosso grande Anísio Teixeira, a inteligência mais brilhante e o maior coração que já encontrei nestes últimos anos de minha vida. O Anísio viu, sentiu e compreendeu a América e ahi te dirá o que realmente significa êsse phenômeno novo no mundo. Ouve-o, adora-o como todos os que o conhecemos, o adoramos e torna-te amigo delle como me tornei, como nos tornamos eu e você. Bem sabes que ha uma certa irmandade no mundo e que é desses irmãos, quando se encontram, reconhecerem-se. Adeus. Estou escrevendo a galope, a bordo do navio que vai levando uma grande coisa para o Brasil: o Anísio lapidado pela América. Lobato."
Fechei a carta que acabara de ler, e voltei-me novamente para Anísio: uma série interminável de conversações teve, nesse primeiro encontro, o comêço mais feliz a que podia aspirar.
Monteiro Lobato viu Anísio Teixeira com olhos de ver e externou, por palavras calorosas, um julgamento definitivo. Tudo o que dêle me disse, foi tomando forma e vida na palestra que tivemos naquela tarde inesquecível. Ganhei o dia ao ter a fortuna de conhecer de perto, porque só de nome a conhecia, a figura admirável que tão profundamente o impressionara. Àquele homem, ainda môço, de constituição franzina e de aparente fragilidade física, bastou falar para se impor a todos os que o ouviam. Não foi possível, diante do seu poder de atração, "soltar o pessoal da sala", como queria o nosso grande Monteiro Lobato. Êle nos conquistou a todos, sem o procurar, pela lucidez e fôrça comunicativa da inteligência, a que dava um encanto particular a simplicidade de maneiras. Confesso haver tido logo o pressentimento de seu destino e do papel que lhe estava reservado na história da educação no país. Quando se levantou, já éramos amigos, como previra e desejava Lobato que tinha inteira razão ao afirmar a existência, no mundo, de "uma certa irmandade" e " ser desses irmãos, quando se encontram, reconhecerem-se. O Diretor Geral da Instrução no Distrito Federal, que o recebia em plena campanha de uma reforma radical de ensino, reanimou-se, nas suas ásperas lutas, com a volta ao Brasil do ex-Diretor da Instrução no Estado da Bahia que, no govêrno Góes Calmon, ascendera a êsse cargo aos 23 anos. Parecia-me surgir, com Anísio Teixeira, o sucessor destemeroso com que sonhava, para retomar, completar e enriquecer a obra que eu havia iniciado e se achava então em franco desenvolvimento. Passados quatro anos, em 1932, êle, de fato, viria a sê-lo com a mesma idade em que fôra eu convocado para êsse posto e com a mesma chama e a mesma crença no homem e nas virtudes da educação.
O professor baiano que já na mocidade se apresentava com autoridade magistral, devia entrar logo em ação e não tardaria a acrescentar ao prestígio do intelectual de alto nível o de reformador, de cuja capacidade e audácia empreendedora nos dariam a justa medida suas iniciativas e realizações na capital do país. De 1924 a 28, em que dirigiu a instrução na Bahia, até hoje, a sua vida teve de oferecê-la em holocausto à educação nacional, de que foi um abnegado servidor e líder autêntico mas também um prisioneiro a que nunca faltaram duras mortificações. Se se proceder a um balanço de suas atividades nesses trinta e seis anos, será fácil verificar que se concentram tôdas elas na educação e se repartem, auxiliando-se mùtuamente, pela administração escolar, pelo magistério e pela participação intensa no debate educacional no plano brasileiro e em assembléias internacionais. Mas, administrador, mestre e debatedor à sua maneira, segundo estilos próprios de pensamento, de vida e de ação. Dos seus cursos universitários na Europa e na América trouxe, como êle o declara, "um programa de luta pela educação no Brasil". E foi tão pertinaz quanto fiel às suas convicções, na execução, em tôdas as oportunidades que se lhe ofereceram, do programa que se traçou. Não de retificações, nesse ou naquele ponto, nem de progressos parciais, nem de medidas fragmentárias e isoladas. Mas de "luta" aberta e total, de transformações radicais de estrutura, de mentalidade e de métodos. De luta, sem transações. Pois, quando por três vêzes e em uma dessas, por um longo período (1938-1945) se recolheu à vida privada, fazendo-se minerador e exportador de minérios, não foi por desenganos nem deserção mas compelido pela força das circunstâncias. Cessadas, não (porque nunca lhe deram tréguas), mas reduzidas as intolerâncias e hostilidades que o haviam condenado ao isolamento, - a uma espécie de exílio em seu próprio país, - ei-lo de novo a postos, na vanguarda da batalha pela educação no Brasil.
De sua passagem, curta ou longa, pelos cargos que exerceu, deixou, por isso mesmo, pela fidelidade aos seus ideais e pelas suas técnicas próprias para realizá-los, marca inapagável e profunda. E tão profunda que por vêzes embaraçava administrações posteriores e lhes tornava difícil deviar-se dos sulcos rasgados pela máquina reconstituída senão inteiramente criada e posta por êle em movimento. O reformador começava por meter abaixo instituições arcaicas, remover entulhos, revolver e aplainar terreno para atacar o trabalho, em que realmente se compraz, de fabricação ou de lavra e semeadura. Revolver para replantar. Exit qui seminat seminare semen suum. Demolir para reconstruir. Diretor do Departamento de Educação, de 1932 a 1935, e, nesse ano, Secretário da Educação e Cultura, do Distrito Federal, na administração Pedro Ernesto; Secretário da Educação e Saúde, na Bahia, de 1947 a 1951, no govêrno de Otávio Mangabeira; Secretário Geral da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (CAPES), desde 1951; diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), desde 1952, e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, o trabalho exaustivo que empreende, é, em todos êsses cargos, o de um espírito crítico e criador, atraído pela "idéia de reforma", por idéias novas, mas sempre disposto a submetê-las à prova da experiência, - a única, por certo, capaz de lhes testar a validade. A administração, para êle, não é um fim, mas suporte e instrumento, e vale na medida em que lhe permite, com a organização racional dos serviços, maior rapidez e eficácia na realização de seus planos de trabalho. É por isso que se costumava dizer, na Bahia, segundo depoimento de Odorico Tavares, que "Anísio Teixeira, como Secretário da Educação, infringia, cada semana, um artigo de regulamentos administrativos, mas a cada momento realizava uma grande coisa em favor do ensino" (1).
Numerosas e do maior alcance as iniciativas que tomou e as obras que empreendeu, com espírito prático e positivo, no Distrito Federal, mais tarde, na Bahia, onde já havia feito, na mocidade, a sua primeira experiência no plano educacional, e mais recentemente, no Ministério da Educação em que concentrou, para irradiá-las pelo país, suas atividades renovadoras. Não há setor da educação brasileira em que não se encontre obra de sua mão, inspirada por êle ou marcada de suas influências, nem problema que não tenha enfrentado para lhe dar solução mais adequada. Das questões relativas à infra-estrutura, constituída dos edifícios e instalações escolares, das bibliotecas, laboratórios e museus, passa com o mesmo zêlo às que dizem respeito à formação profissional, seleção, aperfeiçoamento e especialização do magistério de todos os graus por meio de cursos no país ou de bôlsas de estudos no estrangeiro. Se ataca com vigor as que concernem à expansão da rêde escolar, multiplicando escolas primárias, não se interessa menos pelas que se levantam no campo da prática e observação de novas técnicas de ensino e da verificação de seus resultados em escolas experimentais. Analisa, no empenho de resolvê-las, as que se referem à organização interna de escolas, mas para, em seguida, numa visão de conjunto, abordar os problemas implicados na articulação das unidades dos diversos tipos e graus, na circulação horizontal e vertical dos estudantes no interior dos sistemas, e na reestruturação dêstes em bases mais sólidas e segundo novas perspectivas. Quando o supomos dominado pela paixão de um problema que examina, discute e tenta resolver, podemos estar certos de que outro já lhe disputa o lugar nas suas cogitações. É que a largueza de vistas, aliada ao ímpeto empreendedor, não lhe concede deter-se em nenhum dos setores da educação sem ter presentes as suas interrelações e a necessidade, em conseqüência, de acudir às repercussões de uns sôbre os outros.
Certamente, essas incursões muito rápidas em domínios diferentes, essa inquietude e maneira trepidante de trabalho podem dar a impressão de instabilidade e de qualquer cousa de tumultuário que levou Gilberto Freyre, ao comparar dois reformadores brasileiros, a qualificar Anísio Teixeira como a "desordem romântica" e ao outro, como a expressão da "ordem clássica". Mas a "ordem clássica" dêste provém menos de sua formação humanística do que de uma política radical de educação; e à base da desordem, aliás aparente, de Anísio o que reside é o espírito, não romântico, mas crítico e experimental: o gôsto de investigar e discutir, de pôr à prova, de lançar-se a uma nova experiência. Um dos objetivos mais altos de tôdas as suas lutas é o de "elevar a educação à categoria do maior problema político "brasileiro"; o outro, não menos importante, o de lhe dar "base científica e técnica", de associar a educação e as ciências sociais, fomentar a pesquisa, teórica e empírica, para traçar, à luz de seus resultados, os planos de reforma e de ação. É sempre, por isso, um ambiente de laboratório, de ácidos e retortas, o que se respira quando o grande educador assume, não o comando, - palavra que êle rejeitaria, - mas a liderança efetiva, coordenadora e estimuladora, dos negócios da educação. Tudo pesquisar, experimentar e, sobretudo, discutir, debater. Vem desde sua administração no Distrito Federal a luta que sustenta, há quase trinta anos, contra o diletantismo e a improvisação, para substituir doutrinas contestáveis ou caducas, idéias superficiais e primárias por monografias e estudos críticos, baseados em pesquisas e levantamentos, isto é, na observação dos fatos e reflexão sôbre êles. Parece-lhe, e com razão, ultrapassada a época de trabalho, sem coordenação e sem crítica, de amadorismo, de falseamentos e reformas cerebrinas, nessa matéria tão difícil e complexa em que as imprevisões e fantasias são carregadas de tremendas conseqüências práticas. Daí, dêsse interêsse constante, depois de tantos e tamanhos esforços, a criação, afinal, em 1955, por iniciativa do Ministro Abgar Renault e sob a inspiração de Anísio Teixeira, dos Centros de Pesquisas Educacionais, a que se abre, no Brasil, um vasto campo nessa ordem de investigações.
Entre os elementos que mais fortemente lhe caracterizam as atividades no plano administrativo, acha-se ainda o fato de estar sempre nelas presente e atuante, como uma fôrça propulsora, a sua paixão pelos problemas do homem e da sociedade de seu tempo. Tôda a sua filosofia da educação que, para êle, não é mais do que a teoria geral da formação do homem, resulta, como parte de uma larga concepção de vida, compreendida em todos os seus aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos. O espírito crítico e perquiridor, - o filósofo, em uma palavra, pensando e repensando idéias, não deixa em paz o administrador, nem o mestre que é, dêle se desprende, renunciando em qualquer momento ao magistério, na cátedra quando a tem, na tribuna do conferencista, no debate em reuniões e congressos, no diálogo onde quer que encontre um interlocutor interessado por problemas humanos. Nos intervalos entre uma administração e outra, nas horas que lhe deixam livres suas ocupações ou que subtrai às atividades quotidianas, ensina filosofia de educação, ministrando cursos de sua especialidade, de 1928 a 30, na Escola Normal da Bahia, entre 32 e 36, na Escola de Educação do Distrito Federal e, mais recentemente, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. É professor, nesse Instituto, da matéria de sua preferência e, desde 1957, rege a cadeira de Administração Escolar na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Mas Anísio Teixeira, que se graduou, em 1929, em Ciências de Educação pela Columbia University, nos Estados Unidos, nunca se limitou a ensinar, nesse período de mais de trinta anos, aos alunos que lhe freqüentaram os cursos. Êle exerce o magistério de filosofia de educação e de filosofia, tout court, ensinando por tôda parte à maneira socrática. Ensinando, sim, o querer, sem o propósito de ensinar e sem ares de professor, nessas constantes conversações que convidam a refletir e com que se enraíza o pensamento de uns, se abala o de outros e se enriquece o de todos.
Com suas qualidades de expositor, em que não se sabe que mais admirar se a clarividência, se a extraordinária facilidade de expressão verbal, não podia confinar as influências do seu pensamento renovador às fronteiras do país. O seu nome há muito tempo que as ultrapassou, conquistando na Europa e na América reputação e prestígio que poucos brasileiros terão alcançado na esfera da educação. Às viagens de estudos e observação, entre 1927 e 1929, seguiram-se, depois de longa permanência entre nós, muitas outras, e estas sempre para atender a convites dos mais significativos, como a que empreendeu a Londres, em 1946, a fim de exercer as funções de Conselheiro para o Ensino Superior, na Unesco (1946-47), e as que teve de fazer à Europa, aos Estados Unidos, a países hispano-americanos, México, Argentina e Chile, para participar de reuniões ou de conferências internacionais. Não se contam, por serem de todos os anos senão em cada mês, as que vem efetuando, em saltos de avião, a quase todos os Estados em que se lhe reclama a presença, quer para atender aos deveres de seus cargos no Ministério, quer para acudir a convocações de sociedades e instituições educacionais. Mas, tendo tido oportunidades para fazer a volta do mundo, êle não faria pròpriamente senão a volta de si mesmo e dos problemas de educação e cultura. Anísio viaja só com livros, idéias e teorias, para debatê-las, retificá-las em uns pontos e completá-las em outros, no convívio com homens do mesmo nível, e proceder à confrontação sistemática de pontos de vista, sôbre a base e à luz da experiência estrangeira. Em suas viagens e peregrinações não há nada de um conquistador de paisagens, de um encantado pelos costumes exóticos, de um turista à procura de sensações novas, como é freqüente em época em que o vapor, a eletricidade e o avião acabaram por pôr o exotismo ao alcance de todo o mundo. De volta de suas viagens nunca lhe ouvi uma observação sôbre paisagens e costumes dos países que visitou, nem o surpreendi em atitude que denunciasse prazer ou interêsse diante do mundo exterior, a que parece permanecer alheio, como indiferente se mantém, ao menos na aparência, diante dos pratos que lhe servem à mesa, quando conversa, debatendo idéias e problemas...
O que êle é, antes de tudo, é um pensador; é realmente, o de pensar e debater, o ofício a que se dedicou, e, quando um indivíduo dispõe, para exercê-lo, da destreza de espírito, rapidez de raciocínio e capacidade de comunicação, que Anísio Teixeira possui, não surpreende o poder prestigioso que o acompanha, como uma sombra, por tôda parte. Em cada um de nós as qualidades (e os defeitos, entram por igual na composição da personalidade) combinam-se e se hierarquizam sob o império de uma que prepondera a tôdas as outras com fôrça bastante para governá-las. Em Anísio, a que predomina e constitui o núcleo em tôrno do qual se agrupam e giram, como satélites, as demais, é a inteligência. Lucidez; agilidade dialética que se desenvolve às vêzes às expensas da firmeza objetiva; aptidão especial no encadeamento lógico das idéias; coragem em aceitar as conclusões ainda as mais audaciosas a que o conduza o raciocínio, - e daí o poder, não raramente explosivo, do seu pensamento, - eis o que define e marca o tipo dessa inteligência que, quando não persuade, seduz e a muitos põe em sobressaltos. Êle tem a consciência de sua clareza e velocidade de pensamento e, por vêzes, parece mesmo entreter-se em exercícios de virtuosidade, menos para armar ao efeito do que pela alegria de uma constante aventura intelectual. Vive êle mais na surprêsa e na criação do que na monotonia e na rotina, atraído pelo risco, pelo "nunca pensado", pelo apetite do inexplorado e do novo, pelo impulso para as imagens do seu sonho, pelo pensamento, refletido sempre, mas inteiramente livre no processo de elaboração. Das três posições que se podem tomar entre dois extremos, e que com tanta finura analisou Miguel Unamuno, - a extremista, heróica, em que optamos francamente por um ou outro, a eclética, em que se procura conciliar os contrários, num esfôrço para harmonizá-los, e a de permanente inquietação interior, é esta última a de Anísio Teixeira que, não se decidindo por nenhum dêles, tende a fugir a soluções radicais, sempre inclinado a rever suas idéias e a discuti-las.
Em um de seus contos, de uma trágica ironia, e que tem por título "O sonho de um homem ridículo", fala Dostoiewsky de um homem que "se sentia triste quando olhava para os outros". E por quê? "Porque (confessa a estranha personagem) êles ignoram a verdade e eu a conheço. Oh! como é doloroso ser o único a conhecer a verdade! E pensar que êles jamais a conhecerão! ÊIes nunca poderiam compreendê-la... Antes de ter descoberto a verdade, muito me angustiava parecer ridículo. Ah! eu não parecia: era!" O drama de Anísio é o contrário do que viveu o homem que o genial romancista russo apanhou em pleno sonho e a quem só torturava parecer ridículo "antes de haver descoberto a verdade". Pois triste se sente êle quando olha para aquêles que se julgam de posse da verdade e nela se instalaram como em casa própria, e não se sentiria ridículo senão em pensar por um momento que êle a conhecesse, enquanto os outros a ignoram. Para êle que tem o gôsto da análise, a obsessão da crítica e o hábito de reflexão, o que importa é menos conhecer a verdade do que procurá-la, menos tê-la descoberto do que persegui-la. Prefere, por isso, aguçar nos outros o senso crítico, estimular nêles a liberdade de julgamento, indicar-lhes o caminho para que descubram senão a verdade, os alimentos de que se nutrem os espíritos fortes. Êle assemelha-se a certas aves, um de cujos gêneros traz o nome "lndicator", e que tem a capacidade de indicar aos nativos os caminhos que levam aos ninhos de abelhas selvagens onde se pode encontrar mel. Com seus cantos guiam pessoas e animais até o sítio em que se acham as colmeias e que elas anunciam, ao se aproximarem, pousando em árvores, chilreando e arrepiando as asas. É do resto dos favos abandonados, senão da própria cêra, que se alimentam, depois de se retirarem, satisfeitos, os que elas conduziram aos ninhos cheios de mel...
O poder de sedução que exerce, - professor, conferencista ou conversador, - provém, de fato, não sòmente de sua destreza dialética, de sua vivacidade, da originalidade de seu pensamento e da espontaneidade de expressão, como também dessa rara capacidade de sugerir, de indicar caminhos e abrir perspectivas novas. Onde pousou seu espírito, em um de seus mergulhos, pode-se estar certo de que vale a pena a gente deter-se: é um campo novo a explorar. Em discursos e conferências, nas intervenções em congressos ou reuniões de que participamos, em nossas longas e repetidas palestras ( e êle tem o segredo da arte da conversação), o que me prende, ao ouvi-lo, é a clareza com que põe os problemas, é a finura da análise, a fôrça dos argumentos e a maneira engenhosa de ordená-los, e, - o que nos agrada de modo particular e a tantos inquieta, - a coragem de levar o raciocínio às suas últimas conseqüências. Com a palavra, quando se sente atraído para o debate, ou com a pena na mão, entregue dòcilmente à sua inspiração, êle tem tôdas as audácias. A inquietação intelectual, a chama perene em que se consome, não se manifestam senão nos olhos muito vivos, sempre à busca de alguma cousa, olhando longe e por cima, e no seu ar ardente, surprêso e por vêzes desencantado. Quem o vê pela primeira vez, - a êsse homem simples, esquecido de si mesmo, acessível, mas um pouco esquivo, não terá de sua personalidade, antes que êle fale, senão traços muito leves para lhe esboçar o retrato. Êle opõe à primeira imagem que dêle se tenha feito um tanto apressadamente, a mobilidade, o vigor e os contrastes de sua natureza que só aparecem, na verdade, e se vão destacando nìtidamente depois que começou a falar, e à medida que discorre perante não importa que pessoa ou auditório. A impressão de sua presença adquire então, com suas palavras, profundidade e extensão, e continuará a palpitar no ambiente: delas todos os que o ouvem, levam, com uma recordação inapagável, um choque em suas idéias, mas também um enriquecimento do espírito, mesmo quando se recusam a abrir-se para novas direções.
Não impressiona pela gesticulação, que a tem sóbria, nem pela mobilidade de máscara, que é pobre de expressões, nem pela voz que não tem módulos nem variedade de tons. Eloqüente? Sim, mas à sua maneira, sem quaisquer dêsses recursos oratórios de que tantos outros se utilizam, em graus variáveis, ora deslizando pela curva do eufemismo, ora comprazendo-se na ironia sutil ou ferina, na fuga das reticências, no jôgo dos matizes ou no sorriso envenenado, ora impertigando-se, dogmáticos e severos, na rigidez das afirmações, ora arredondando períodos para arrebatar auditórios. Por não querer interessar e prender senão pelo que diz, pelo que suas palavras têm de substancial, dir-se-ia empenhado em despojar-se de meios e artifícios capazes de deslocar a atenção dos que o ouvem, para algo que não seja o seu pensamento. Nada, pois, armado ao efeito, nada também calculado na sua atitude, que resulta apenas de sua maneira de ser e do seu esfôrço de concentração mental. Preocupado com o problema que analisa e discute, com "o que diz", desinteressa-se de tudo o mais. O que impressiona, quando discorre, numa linguagem, sem colorido e sem imagens, é a fidelidade a si mesmo e às suas idéias. Tão fiel e atento a elas que não se preocupa com as reações que possam provocar. Daí, nos debates, a freqüente expressão de espanto, quando uma objeção, cortando-lhe o fio do raciocínio, o desperta de sua conversa consigo mesmo. Anísio Teixeira fala com uma sinceridade radical, como se estivesse pensando em voz alta, e é tal a rapidez de pensamento que dá às vêzes a impressão de um prestidigitador que joga com idéias. Mas, na verdade, êle ama demais as idéias para brincar com elas. À sua inteligência, viva, flexível e ágil, alia-se uma alta probidade intelectual, tão alta e pura que, com ser êle grande por suas iniciativas, ainda se me afigura maior pelo que é do que pelo que fêz.
Mas tôda essa inteligência, com sua capacidade crítica e especulativa, e os instrumentos intelectuais que se forjou, êle os pôs inteiramente a serviço da educação. É nesses domínios que sempre atuou, como uma fôrça criadora em movimento e com qualquer cousa de apostólico. Sendo mais um raciocinador, um lógico, um debatedor, mas incapaz de se deixar aprisionar nas malhas de um sistema, cruzou todos os setores da educação, como um despertador de idéias, estimulador do espírito crítico, incentivador de debates, terrível agente de mudança. Do estado em que vive, de inquietação e efervescência intelectual, passaram a participar, sacudidas nas suas práticas rotineiras, a administração e a política educacional do país. Apesar de tôdas as resistências, ruíram velhas muralhas que enquadravam a organização escolar, e outras se abalaram em seus fundamentos. Se tem sido, porém, da maior importância o seu papel de reformador de mentalidade e de estruturas, êle o tem exercido como um ministério, com zêlo e desprendimento exemplares. Ultrapassada a crise religiosa que sofreu na mocidade (era para a vida sacerdotal que então se julgava chamado), orientou-se firmemente em outra direção, com a primeira experiência educacional na Bahia e seus estudos, entre 1928 e 29, nos Estados Unidos. Foi êsse, no seu próprio testemunho, "o ano de revisão (ou conversão?) filosófica". Foi um e voltou outro. Partiu crente e retornou agnóstico. Mas, conservando-se idealista impenitente. A educação, a formação do homem, passou a ser a "sua religião", como se sente no ardor quase religioso com que se consagrou a êsse apostolado leigo. Êle sabe não bastar que uma verdade (ou o que se tenha por tal) "exista para que os homens a vejam. É necessário, como lembra Romain Rolland, que ela tenha vida". E soube Anísio dar vida às idéias, em sua peregrinação pelo país e pelo mundo, e com tanta esperança no homem e tamanha fé nas virtudes da educação que elas se mantiveram vivas e operantes ainda quando ventos fortes provocavam a ruptura das amarras que o prendiam à administração. Pois no ostracismo, em seu escritório comercial na Bahia, se lhe acontecia abordar problemas educacionais, era como se estivesse em plena luta e parecia então descarregar o espírito de suas mais caras cogitações que, de aprisionadas, se amotinavam, passando logo ao primeiro plano nos intervalos dos negócios. (1)
No entanto, com ser o que é, com tantos e tão grandes serviços prestados à educação nacional, poucos terão sofrido, nesse campo, as hostilidades com que se procura bloquear a ação dos líderes pertinazes e inamoldáveis. Fôrças reacionárias, de origens aparentemente diversas, se têm mobilizado para lhe quebrar os pulsos e pô-lo fora de combate ou, por outras palavras, para alijá-lo dos postos de direção que, para êle, nunca foram senão de trabalho e de sacrifício. Êle tem sido o nosso "grande perseguido", - alvo constante de implacáveis acusações que não se cansa de rebater, menos pelo desejo de confundir adversários do que no empenho de restaurar a verdade. Para muitos, êsse notável e abnegado educador não passa de um elemento subversivo, anti-clerical e até mesmo anti-religioso, comunista tanto mais perigoso quanto mais encoberto e dissimulado. Essas acusações que, a poder de repetidas, se vão inculcando, em certos grupos, como verdadeiras, em que se apoiam? Em fatos? Mas entre suas iniciativas e realizações não há uma só que possa justificá-Ias. Em suas idéias? Mas afinal quais são as idéias por que se tem batido com mais fé e entusiasmo? Elas se encontram, claramente expostas, em aulas e conferências, em comunicações de tôda ordem, em artigos, entrevistas e cartas abertas, e, sobretudo, nos livros que já publicou e são trabalhos de primeira ordem, dos mais importantes já publicados sôbre educação em língua portuguêsa. Que é sua obra Vida e Educação? Uma introdução sôbre a pedagogia de John Dewey, filósofo americano. Em outro livro, anterior a êste, que data de 1928, o que estuda, são Aspectos Americanos de Educação (1928). No volume Educação Progressiva (1932), que é uma introdução à filosofia da educação, inspira-se em John Dewey e outros pensadores, americanos e inglêses, e o que tem sob os olhos, quando escreve Em Marcha para a Democracia (À margem dos Estados Unidos), 1934, é ainda o exemplo americano que tão profundamente o impressionou.
A leitura de qualquer dessas obras basta para nos levar à convicção de que não estamos em face de um socialista, de idéias avançadas. Nem de um materialista. Nem mesmo de um anti-clerical. Mas daquele mesmo "Anísio lapidado pela América", que viu e apontou Lobato há mais de trinta anos. Não é para a Rússia Soviética, mas para os Estados Unidos que ainda tem voltados os olhos e o pensamento. "Por sua fé na razão, na evidência e demonstração e por sua crença na eficácia da luz natural "é antes, nesse sentido, um racionalista, mas que não aceita o conflito entre a razão e a experiência e tende antes a procurar na prova dos fatos objetivos a legitimidade de suas idéias e teorias. Essa posição não se opõe, porém, ao seu pragmatismo ao menos numa das acepções, em que se pode tomar a doutrina e que nos "reconduz, como observa Lalande, a uma atitude singularmente vizinha da do racionalismo". Individualista, fiel aos mais altos valores da tradição liberal, - liberdade e verdade, opõe êle a tôda interferência da opressão e da fôrça a independência e a liberdade do juízo individual. Êle tem, porém, com a fé na razão, a consciência de suas limitações, de suas fraquezas e desvios, e um sentido extremamente vivo da relatividade das cousas. Se não as leu, parece ter sempre em vista as palavras de Goethe, quando observa serem "as hipóteses como que canções de berço com que os mestres embalam os discípulos: o observador escrupuloso capacita-se dos limites de sua inteligência e reconhece que o número de problemas aumenta à medida que aumentam os conhecimentos". Daí, e não só daí a sua inquietação interior e a tendência manifesta de submeter a constante revisão crítica, pela análise e pelo debate, livre e em alto nível, idéias e doutrinas. De sua formação inicial, quando ainda adolescente, sob a influência de educadores jesuítas, ficaram-lhe, além do amor à cultura, o espírito lógico, o gôsto da argumentação, mas foi sua viagem aos Estados Unidos, de importância decisiva na sua vida, que lhe trouxe o espírito crítico, o interêsse pela observação e experiência, o culto da liberdade e das instituições democráticas e o sentido, embora não completo, da civilização atual.
Êsse filósofo e político da educação que agitou com suas idéias e iniciativas trinta anos da vida educacional do país, tem sido um servidor fiel das instituições democráticas, e é no interêsse delas que tem procurado organizar, mediante reformas sucessivas, todo o sistema nacional do ensino. Para êle, a verdadeira democracia "é muito mais do que um sistema político: é uma fé inquebrantável na dignidade da pessoa humana". Tivesse o poder nas mãos ou estivesse ao seu alcance, e já teria cumprido o grande dever da democracia, que seria para lbsen, como para êle próprio, "fazer de cada cidadão um aristocrata feliz", estabelecendo medidas que assegurassem igualdade de oportunidades para todos. "A aspiração dos países americanos (escreve Luis Reissig) é a da oportunidade de organizar a nação sôbre melhores bases, dispondo de instrumento econômico qualificado; mas, para que não malogre, é indispensável que vá adquirindo esta obra um conteúdo social crescente. E como uma obra dessa natureza adquire tal conteúdo? Não mais que uma solução; subordiná-la a uma política democrática". (1) Pois é a essa política democrática que se tem esforçado Anísio Teixeira por subordinar a educação no país. Mas à política democrática para uma sociedade industrial, de base científica e técnica, que reclama, para subsistir e desenvolver-se, profundas transformações de estrutura econômica e social. Em face da vida e da civilização contemporânea, a posição que assume Anísio Teixeira é, certamente a "atitude prometeica", que se caracteriza pelo domínio tecnológico do meio físico e social e é a um tempo a de países socialistas como a Rússia Soviética ou capitalistas como os Estados Unidos. (2) Mas, longe de importar necessàriamente em renúncia à filosofia e à religião, às letras e às artes, ela traz em si o germe de um novo humanismo, inspirado no progresso das ciências e da técnica, e cujas raízes se embebem numa das civilizações antigas que mais poderosamente contribuíram para a civilização ocidental. Quando se fala em civilização ocidental, seria necessário perguntar a que querem referir-se, "se à civilização dos Castelvetro e do Ipse dixit (aquela, - entenda-se bem, - que, com o seu mal digerido Aristóteles torturou Tasso e condenou Galileu) ou à civilização ocidental de hoje que tem suas raízes próximas na cultura européia do século XIX". Porque a primeira é fruto de um humanismo predominantemente latino, a segunda, de um humanismo sobretudo grego, genuíno, imediato. É êste o humanismo de Anísio Teixeira.
O homem que êle é, sua posição ideológica e suas convicções compreende-se que, no acesso da luta, sofram, como têm sofrido, deformações, inconscientes ou calculadas, a ponto de o desfigurarem, e dêle e de suas idéias nos oferecerem uma imagem diferente. Deformações resultantes não só das paixões, suscitadas pelo choque de princípios e de interêsses, como também de visões unilaterais em que não se levam em conta a complexidade e as oposições aparentemente irredutíveis de seu caráter e temperamento. Que as suas idéias, porém, são as que se apontam nessa análise sumária, é fácil verificar, confrontando o Anísio Teixeira como eu o vejo, com o Anísio Teixeira por êle mesmo. Na entrevista que, em 1942, deu ao "Diário de Notícias" da Bahia, e em que êle próprio reconhece "uma espécie de auto- biografia", declara o eminente educador, então comerciante e industrial: "Com uma filosofia que procura não distinguir pensamento de ação, achei a chamada vida prática tão sedutora quanto a chamada vida intelectual. Foi uma bela ocasião de demonstrar a mim mesmo que vencera realmente os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito". Pois não é o pragmatismo que tomou aos americanos e, particularmente, a William James e a John Dewey, - um de seus mestres e o maior de seus inspiradores, o que êle confessa nessa passagem de sua palestra com Odorico Tavares? Pouco antes, nesse mesmo documento, sintetizava seu pensamento educacional, ao referir-se às atividades, depois de 1930, no campo federal, primeiro, e em seguida, no Distrito Federal: "A revolução produzira o necessário clima de renovação. Procurei durante perto de cinco anos elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da república e da democracia, distribuí-Ia por todos na sua fase elementar, e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática, eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata". No estudo em que trata da Universidade e Liberdade Humana (1954); no livro sôbre A Educação e a Crise Brasileira (1956) e no vigoroso trabalho Educação não é Privilégio (1927), que é um brado de alarma, tôdas as teses que defende, as idéias por que se bate, estão impregnadas do mesmo espírito republicano e democrático quanto na consciência da necessidade de ajustar a educação, para lhe dar vida e eficácia, à diversidade das condições concretas, e fazer dela um instrumento de mudança e de progresso.
O ponto de vista em que se coloca, para defender a escola pública e lutar, como o tem feito, por seu aperfeiçoamento e por sua eficácia, não é a de um "totalitário" nem mesmo o daqueles que entendem ser a educação uma função eminentemente pública, um direito e um dever do Estado. Pois, ao contrário de muitos de nós, não só admite a escola particular, mas "gostaria de vê-Ia mais independente, mais verdadeiramente particular, mais diversificada da escola pública e em franca emulação com esta". Tem êle combatido o sistema de equiparações e propugnado o exame do Estado, para as escolas particulares? Sem dúvida. Sua posição a êsse respeito é clara e conhecida de todos. Não é a "escola socialista" que propugna, mas a liberdade do ensino, confessional ou leigo, do qual não reclama senão a eficácia e a excelência, não admitindo outra ingerência do poder nessa esfera senão pelo exame do Estado. Êsse mesmo era o ponto de vista de um jesuíta eminente, seu antigo mestre e amigo, o Pe. Luiz Gonzaga Cabral, cuja opinião recorda Anísio em documento de que tenho cópia, e é da maior significação. "Dizia-me em 1916 o Pé. Cabral (escreve Anísio) que o sistema de preparatórios lhe parecia muito melhor do que o da intervenção do govêrno nas escolas religiosas. Como jesuíta preferia mil vêzes poder dar educação como lhe parecesse dever ser dada e depois levar seus alunos ao exame oficial, a sofrer que o Estado lhe viesse a dizer como devia ser essa educação". Mais adiante, referindo-se às suas idéias e tendências, em matéria de ensino, declara expressamente quais são elas e donde lhe vieram; "Se os que me julgam, conhecessem um pouco melhor o ensino inglês e o ensino americano, veriam que minhas idéias se filiam realmente ao ensino anglo-saxônio. Estou hoje convencido de que a sabedoria das instituições inglêsas ou americanas está prêsa à premissa da confiança no homem. Suas instituições são livres porque ali se confia no homem e se lhe dá a responsabilidade pelo que faz. Isto, sòmente isto, é o que defendo para o Brasil".
Podia ser mais positivo e categórico? E não é isso, exatamente isso, que tem afirmado e repetido, com a mesma clareza e energia, em artigos, conferências e entrevistas? No entanto, êsse homem que se proclama "individualista e acredita no indivíduo e na sua capacidade de ser livre e responsável"; cujas idéias se filiam às que predominam nos países anglo-saxônicos e regem seu ensino e suas instituições políticas; que, reconhecendo embora o papel e todo o significado da escola pública, chegaria a dar às escolas particulares uma liberdade que só agora começam a disputar, pode lá ser apontado como comunista ou socialista, e perigoso para as instituições democráticas? Se êle "vê a educação em grande, em relação com tôda a vida do povo e com os demais problemas da vida"; se a quer atenta aos interêsses da criança e do adolescente quanto aos da sociedade em que vivem e a que devem preparar-se para servir, num regime de liberdade, não será certamente em suas idéias fundamentais que se pode encontrar a explicação das tendências que lhe opõem e das acusações com que se obstinam em alvejá-lo grupos conservadores e reacionários. Tôda essa campanha, tão impiedosa quanto injusta, que tem sofrido com paciência edificante, tem, afinal, uma única origem, - a inteligência que é o eixo de sua personalidade e lhe dá um extraordinário poder de choque e de provocação. Oh! a inteligência, essa inimiga! A inteligência, a verdadeira inteligência, como observa Manuel Garcia Morente, em pequeno estudo sôbre Talleyrand, "é tão pouco corrente entre os homens que sua existência e atuação produzem estupor e, com a admiração que desperta, se mistura um vago sentimento de terror, como se se tratasse de uma força sôbre-humana, - ou infra-humana, - demoníaca, mágica e quase criminal!" Êsse, o pecado original de Anísio Teixeira, sempre às voltas com o demônio da inteligência. Era preciso, pois, torcer-lhe as idéias e desfigurá-las para destruir êsse homem, - máquina de pensar, moinho de moer idéias, mas também de reduzir a pó superstições e preconceitos, de triturar dogmatismos. Como nêle não existe "o trágico contraste entre o aspecto de eternidade e persistência de tradições e os progressos inquietantes do espírito racionalista e utilitária", a sua inteligência assusta, pela universalidade de compreensão, pelo que tem de livre e por essa misteriosa sedução do imprevisto, do inacabado, do que está sempre se ordenando sem nunca se ordenar de todo...
Nas investidas contra Anísio Teixeira esquecem-se os seus adversários e detratores de que afinal, como lembra Nietzsche, "contra a superioridade alheia só existe uma salvação que é o amor", e de que a superioridade, neste caso, é tanto mais amável quanto menos faz, por instinto ou cálculo, para se impor aos outros. Ela tem por companheiras a modéstia e a desambição, e, longe de procurar inculcar-se, altiva ou desdenhosa, parece antes pedir desculpas, tomada de surprêsa quando a reconhecem. Certamente, a característica dominante da personalidade dêsse educador é, como já observei, a inteligência, e um de seus traços mais persistentes, a paixão das idéias e do debate, impelida com uma força até o frenesi e uma convicção que se reveste de certa grandeza. Se é pela penetração de suas análises, pela dialética e fôrça persuasiva que exerce um papel demolidor, metendo a riso preconceitos, condenando exclusões e encorajando protestos, não destrói senão para reconstruir, para pôr em lugar de cada idéia ou instituição que abalou ou fêz desmoronar, alguma cousa de novo no plano das idéias e no das instituições. "Grandes destruidores, grandes adoradores"! Mas, com ser uma inteligência, ágil e robusta, em ação, - e contra isso, sobretudo, é que reagem, assustadas, a mediocridade e a rotina, - é também uma admirável figura humana: o desprendimento, o espírito público e a capacidade de dedicação igualam o poder de sua ação intelectual. Êle tem sido, na educação, o estimulador e o servidor das grandes causas, dando tudo sem pedir nada, a não ser licença para trabalhar em paz, porque nunca a admitiu para pensar e dizer o que pensa com uma coragem que vai até à audácia, uma independência até à rebeldia. Êsse audacioso que se manifesta na liberdade de juízo e de crítica e na tomada de posições é, porém mais do que se cuida, um tímido. Parece às vêzes assustar-se êle próprio quando percebe que seu pensamento vai longe demais para o seu meio, e se arrisca, por isso, a ser incompreendido ou mal interpretado. Pela amplitude de horizonte mental, o cidadão que êle é, de uma pátria, eleva-se às alturas de um cidadão do mundo, de um mundo melhor, mais compreensivo e humano, mais justo e unido, sem fronteiras.
Eu conheci Anísio Teixeira, como já lembrei, logo depois de sua volta ao país, de uma viagem aos Estados Unidos, onde havia feito no Teachers College, da Columbia University, o ano regular de 1928-1929, graduando-se nos últimos dias de maio. Êsse foi (escreve-me êle) "um período extraordinàriamente significativo em minha vida, que se iniciou com a descoberta de Dewey, o conhecimento de Lobato e o encontro com v. no Rio, entre junho de 28 e junho de 1929. Tenho a impressão que foi nesse ano que me encontrei comigo mesmo". A amizade fraternal que desde então nos uniu, e é conhecida de todos, pode-se supor, pelo que tem de profunda, haja influído no meu julgamento sôbre Anísio Teixeira. E quando não, essas apreciações, no que trazem de calor, podem naturalmente ser levadas à conta de uma velha afeição. Mas, não só penso ser capaz de juízos objetivos como também, para formular sôbre êle opiniões seguras, tenho vivido as duas condições necessárias à exatidão de julgamentos: os longes e pertos, a distância e o convívio. Na história de nossa amizade, os períodos de contatos diretos foram sempre intervalos, numerosos, mas muito curtos, entre longas ausências. Não me faltaram, pois, oportunidades de ouvi-lo, de tê-lo sob os olhos, de observá-lo de perto, mas meses e anos a fio, em que as circunstâncias nos mantiveram afastados, permitiam-me sair-lhe da intimidade e ganhar a distância suficiente para julgá-lo mais friamente, fora de quaisquer influências de contatos pessoais, de cuja falta me compensavam suas cartas, raramente longas, mas freqüentes. Aos que o conhecem e com êle privaram, como eu, não poderá surpreender, na visão geral e em seus detalhes, no retrato e em cada um de seus traços principais, o meu testemunho, creio que fiel, mas leal e franco, sôbre o nosso grande Anísio Teixeira. Êle é um dêsses homens, tão unos na diversidade de seus aspectos e tão simples na complexidade de sua estrutura intelectual e moral, que não enganam a ninguém: um dêsses raros que, impressionando fortemente de longe, pelo que escreve e realiza, só ganham em serem vistos de perto.
Educador entre os mais eminentes que já teve, não digo o país, mas a América Latina, e cuja figura avulta na galeria dos instauradores de uma era nova para a educação no Brasil, poderia tomar por suas as belas palavras de Vieira: "A maior glória do meu sempre fiel e desinteressado amor, o qual se prezará daqui por diante a servir aos futuros, pagar aos passados não dever nada aos presentes." Se um grupo numeroso de educadores e o que têm de mais alto as elites intelectuais do país lhe fazem justiça, e certo que a nação não lhe pagou nem lhe reconheceu ainda, em todo o seu valor e significado, os serviços que há mais de trinta anos lhe vem prestando sem desfalecimentos. Mas Anísio Teixeira, a quem a França já distinguiu, concedendo-lhe a Cruz de Oficial da Legião de Honra, e a Unesco tomou por seu Conselheiro para o Ensino Superior, pouco importam as incompreensões e hostilidades, com que aqui se procura ferir-lhe o nome e solapar-lhe a obra de reconstrução educacional. Basta-lhe a consciência de ter egrègiamente merecido da educação e da cultura no país. Pois, como pondera o mesmo Antônio Vieira, "pouco fêz ou baixamente avalia suas ações quem cuida que lhas podiam pagar os homens". Se êle fôsse capaz de desprêzo pelos que nunca chegaram a compreendê-lo, eu lhe lembraria, com Renan, que "há uma espécie de elevação de alma que só se adquire pelo hábito do desprêzo". Mas êle prefere a que provém menos dêsse hábito do que de sua capacidade de tolerância, perdão e também de esquecimento. Em suas memórios confessa Thiers que, em sua vida pública, "aprendera a tudo perdoar e nada esquecer". Tendo-lhe caído sob os olhos essa página, Bismarck, o Chanceler de Ferro, anotou-lhe à margem: "No entanto, um pouco de esquecimento não faria mal à generosidade do perdão". É assim que pensa e procede Anísio Teixeira, contra quem, mais do que contra qualquer um de nós, se voltaram, brandidas com violência, as armas da reação. É bem possível que desapareçam, sem deixarem rastos de sua passagem os que mais o tem combatido e negado; mas êle ficará na história da educação em que já se incorporaram seu nome, sua vida e sua obra, como homem de pensamento e de ação.