ANÍSIO TEIXEIRA E A EDUCAÇÃO NA BAHIA

 

JAYME ABREU

 

 

 

O educador, a obra e o meio

 

 

M DOIS PERÍODOS cronológicos, o de 1924 a 1929 e o de 1947 a 1951, se assinalou a passagem do baiano Anísio Teixeira na direção do sistema educacionaI de sua terra.

Em função do tempo variaram, em alguma medida, as condições sócio-culturais com que se deparou e certamente muito mais do que elas, evoluiu a sua filosofia de educador e de homem público.

Dentro dos limites dêste artigo, estreitos para caracterizar obra tão rica de conteúdo, tentaremos sintetizar as linhas mestras de sua atuação num e noutro período, suas afirmações renovadoras, suas notas de identidade e de evolução no tempo, ao lado da caracterização geral de como o meio baiano lhe respondeu à obra de educador.

 

A surpreendente convocação

 

Francisco Marques de Góes Calmon, advogado, banqueiro, professor de História do então "Gymnasio da Bahia", governador da Bahia de 1924 a 1928, sempre se revelara um agudo e alvoroçado garimpeiro de talentos jovens, desde os tempos de professor do "Gymnasio da Bahia".

Em muitos casos interessou-se vivamente por promover oportunidades de aproveitamento, na vida pública, de jovens que lhe haviam impressionado como discípulos.

A conjuntura política baiana de certo modo possibilitava o exercício dessa notória vocação rejuvenescedora do então Governador do Estado.

Lançado Góes Calmon inicialmente como candidato ao Govêrno por seu antecessor, José Joaquim Seabra, e aceito pela oposição, viu depois fugir-lhe o apoio do mesmo, fixado a seguir na candidatura de Francisco Prisco Paraíso e depois da retirada desta, na de Arlindo Leone.

Assim, o govêrno Góes Calmon tinha um positivo caráter de oposição à situação anterior e, dentro da mais sólida tradição cultural brasileira, a ascenção ao poder da oposição é sempre ensejo de largas mudanças de pessoas nos postos-chave da administração.

Anísio Teixeira era, em 1924, um jovem bacharel em direito, de vinte e quatro anos, diplomado em 1922 pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, que, segundo êle mesmo, "dedicara o ano de 1923 à advocacia e assistência política a meu pai, na campanha de sucessão governamental" ().

Buscara em 1924 o Governador, a quem não conhecia pessoalmente, na condição de modesto candidato a promotor público de Caetité, sua cidade natal, da qual era chefe político bem como de tôda a área circunvizinha, seu pai, Deocleciano Pires Teixeira, médico e prestigioso chefe político, figura quase legendária de respeitado líder sertanejo, de sólida fé republicana, no melhor estilo patriarcalista.

Aí deu-se aquilo a que o mesmo Anísio batiza de "o incidente" (1). Góes convida-o para dirigir a Instrução no Estado ao confirmar, no contato pessoal, informações que tivera sôbre os dotes intelectuais do convidado.

Assinale-se de passagem, a respeito do convite para êsse alto pôsto de direção, episódio que não nos parece somenos em suas implicações no perfil psicológico de Anísio Teixeira: no Brasil, e fora dêle, os postos por êle exercidos sempre foram de direção, de liderança, de chefia.

No relance do convite então formulado atingira o Governador o clímax de sua arguta intuição de selecionador de valores, pois ao proceder à ousada convocação acabava de afastar do campo jurídico-político, para projetar no da educação, o jovem que viria a ser figura marcante no cenário da educação brasileira, talvez a que, na república, com mais profundos impactos renovadores lhe tenha sacudido as velhas estruturas.

É o mesmo Anísio quem nos conta da surpresa sua e de seu pai, ante o imprevisível convite que, por isso, à primeira notícia, ensejava-lhe ouvir a indagação paterna sôbre para que cargo fôra convidado dentro da Instrução...

Góes Calmon, todavia, confiava e vimos que confiava absolutamente certo, nas virtualidades intelectuais entremostradas e pressentidas no jovem conterrâneo.

Sugeriu-lhe providenciasse a tradução da obra de Omer Buyse, - Métodos Americanos de Ensino - aconselhou-o a ouvir Carneiro Leão e Afrânio Peixoto sôbre o que fazer e deixou o mais à confiança na inteligência, diligência, espírito público, entusiasmo pelo trabalho do promissor compatrício e ao seu firme propósito de apoiá-lo desenganadamente na árdua tarefa à qual o convocara.

 

A formação inicial humanista-clássica

e sua evolução

 

Que cabedal cultural trazia, então, Anísio Teixeira para a correta desobriga de tão altas e novas responsabilidades profissionais?

Êle mesmo é quem nos responde: "a cultura geral que me deram os jesuítas e os cinco anos de literatura e direito na Universidade do Rio e a humildade e ardor religioso de jovem líder católico (2).

Tão relevantes, todavia, como êsse sólido lastro humanista-clássico, de cultura geral, foram, para o perfeito desempenho da nova função, os intensíssimos estudos especializados por êle feitos, diàriamente, às caladas da noite, com ardor e disciplina monásticas, num prodigioso esfôrço inicial de autodidata.

Êsse primeiro período de sua formação, que prevaleceu até a sua primeira viagem à América do Norte, talvez o pudéssemos batizar, sem maior impropriedade, de um ponto de vista culturalista, como o ciclo latino (francês, especialmente) humanista-clássico, dedutivista, escolástico, de sua formação.

A êle se seguiu o ciclo anglo-saxônico, experimentalista, indutivo-dedutivista, relativista, naturalista, republicano liberal, humanista científico que se consolidou definitivamente com sua segunda viagem em 1928, à América do Norte, por dez meses, como bolsista de curso do "Teachers College", da Columbia University, onde voltou com o título de Master of Arts, em 1929.

Aluno dos jesuítas desde o "Collegio São Luiz" em sua cidade natal e depois no famoso "Collegio Antonio Vieira", em Salvador, é muito nítida a marca inaciana em aspectos positivos de sua personalidade, influenciada muito especialmente pelo padre Luís Gonzaga Cabral, famoso orador sacro.

Aí teria ganho as normas de severa disciplina de trabalho e de fervor ilimitado às causas a que se consagra; aí aprendeu a estudar com método e dedicação que o tornaram aluno exemplar; aí apurou sua vocação de ascetismo pessoal já trazida da frugalidade sertaneja, tão oposta à volúpia barrôca do recôncavo; aí aprimorou o seu agudo senso dialético; ganhou o senso de respeito à hierarquia, a modéstia, timidez e mesmo humildade que não o deixam vida afora.

Tôda a sua formação era então haurida no ambiente de disciplina da numerosa família patriarcal e da hierarquia da ordem jesuítica e essa marca ia encontrar primeiro veículo de expressão no alto pôsto de chefia que lhe era confiado, iniciando a vida pública.

Foi assim, à base dessa formação intelectual lítero-jurídica e religiosa de aplicado aluno dos jesuítas, de fervoroso congregado mariano na Bahia e no Rio, de quase jesuíta, de bacharel em direito e daquela emanada do ambiente doméstico de austero modêlo patriarcalista, que Anísio Teixeira viveu o ciclo a que denominamos latino, de sua formação.

A viagem de observação educacional à França e Bélgica de junho a setembro de 1925, comissionado pelo govêrno baiano e realizada em companhia do já então Arcebispo-Primaz da Bahia, D. Augusto Álvaro da Silva, com quem se hospedou em convento em Paris, teria consolidado as linhas mestras dessa formação que vinha recebendo.

Recorde-se, a respeito, em impressões de viagem publicadas, de sua autoria, a quase angústia que exteriorizava nesse período místico de sua vida, quando tantas vêzes, aulas e conferências da Sorbonne rematavam em aberto, sem o desfêcho em certezas dogmáticas que então o embalavam, deixando-o assim a sofrer a agoniante tortura da "necessidade metafísica do absoluto"...

Há um documento, talvez pouco conhecido, mas bastante representativo das convicções filosófico-políticas de Anísio Teixeira projetadas na educação, a êsse tempo em que Charles Maurras, da "Action Française", era-lhe autor citado admirativamente.

Êsse documento é um artigo publicado na "Revista do Ensino", na Bahia, em novembro de 1924, sob o título "A propósito da escola única".

Nesse trabalho Anísio Teixeira se opõe vigorosamente à idéia de "escola única" como aspiração universal de que a França fazia então ponto essencial de seu programa de política educacional.

Discorda nesse ponto, expressamente, do pensamento exposto em livros de Carneiro Leão e de Anatole France, dêste último quando, em "La Vie en Fleur" resume, com inteira propriedade, o que era o problema da "escola única" em sua feição política e não pedagógica.

Nessa oportunidade escreve o jovem educador, sofrendo evidentemente os influxos do aristocratismo intelectual jesuítico e da velha tradição francesa pela qual o ensino primário era um sistema fechado, isolado dos outros ensinos: "Entretanto, em países de perfeita organização intelectual essas três formas de ensino não se sobrepõem, de modo a poder constituir um só edifício educacional, como a primeira vista fazem supor as próprias designações: primário, secundário, superior.

"O primário é completamente independente e isolado."

E sôbre o ensino secundário, conceitua, ao jeito dêsse dualismo educacional europeu, instrumento estratificador de classes sociais pela escola.

"O ensino secundário, quando bem compreendido, se distancia do ensino primário desde as suas classes preparatórias ou elementares.

"Assim, enquanto uma educação puramente científica ou empírica produz êsses espíritos positivos, que têm dentro da alma fórmulas e etiquêtas para tudo; a cultura, no sentido humanista e clássico, forma essas inteligências ornadas e amadurecidas, com vistas profundas sôbre as cousas e os homens, sem fórmulas nem soluções feitas para nenhum problema, mas com uma noção exata da realidade e que sabem que, concluir é, muitas vêzes, dizer que não se pode concluir..."

Perfilhando o sentido francês da expressão "espírito primário", assinala:

"As classes elementares do ensino secundário não se devem inspirar pois, nesse espírito de profundidade e acabamento, que o ensino primário não requer e não suporta."

E proclama, na linha ainda do velho dualismo "classista", educacional, europeu:

"De acôrdo com a nossa análise, dois ensinos elementares se destacam em uma boa organização intelectual de um país: um, destinando-se a formar o espírito para as necessidades imediatas da vida: o primário; outro, destinando-se a prepará-lo para a cultura amadurecida do curso secundário".

Analisando o pensamento educacional democrático sôbre a escola única, afirma:

"Tornar o ensino primário único e natural limiar do ensino secundário é unificá-los, o que, de certo modo, fere a essência de um e de outro.

"Ou se irá primarizar o Liceu ou secundarizar o ensino primário. Nenhuma das duas cousas é acertada.

"O Liceu (...) treina em alto grau as faculdades do pensamento.

"A Escola Única" encerra ainda uma tirania inexplicável em países verdadeiramente democráticos.

"A Escola Única é uma organização artificial. Impossibilita o ensino particular que, desobrigado das leis e programas oficiais é mais maleável, satisfaz mais completamente às necessidades sociais e nos fornece uma variedade maior de ensino, para a organização intelectual do Estado."

Aí temos, de corpo quase inteiro, uma amostra de seu pensamento, então modelado pela concepção educacional inaciana de seletivismo intelectualista, embebido a êsse tempo de teorias próprias ao velho dualismo educacional francês, temperado apenas pelos laivos de um certo iluminismo pedagógico, filho de uma tendência pessoal insopitável à inquietação intelectual que é uma das marcas definidoras de Anísio Teixeira.

Essa exposição do pensamento político-educacional de Anísio Teixeira, pelos já longínquos idos de 1924, visa a caracterizar não sòmente a posição com que ingressava na seara da educação, como corolário necessário à formação àquele tempo processada, mas principalmente demonstrar o que foi a extraordinária mudança que nêle se processou, ao contato mais prolongado com a cultura norte-americana, com as idéias renovadoras de um período ainda dinâmico e progressista no "Teachers College" da "Columbia University" e, sobretudo, com o fato que positivamente deu rumos novos à sua filosofia de vida: a descoberta de Dewey que o converteu no "Anísio lapidado pela América", na expressão feliz de Monteiro Lobato, a que se refere Fernando de Azevedo. Dewey seria, em relação a Anísio, a suprema expressão daquela plêiade de professôres, Kilpatrik, Monroe, Thorndicke, Kandel, Counts, Cubberley, Alexander, Rugg, cujas aulas freqüentara em período áureo do "Teachers College" da Columbia University".

Aquêles que conhecem mais autênticamente as influências culturais prevalecentes no pensamento de Anísio Teixeira certamente nenhuma dúvida terão de como êle endossaria julgamento global a respeito da América do Norte como aquêle enunciado por Rui Barbosa:

"Não há nenhuma democracia de mais vida, nenhuma constituição mais admirável, nenhuma opinião pública mais realmente soberana que as dessa maravilhosa nacionalidade, cuja vocação evidente no plano da evolução cristã do gênero humano lhe assegura destinos análogos, em poder e esplendor, em utilidade e grandeza, aos dos maiores impérios civilizadores que o globo tem visto, desde o de Roma até ao da Grã Bretanha, desde o que deu ao mundo os códigos eternos do direito privado, até ao que o dotou, com as instituições, hoje universais, da liberdade e do sistema representativo" (1)

Mesmo porque, não guardam distância dêsse julgamento global do imortal baiano, os seguintes trechos de Anísio, referindo-se à América do Norte:

"Se alguma lição tem a América a dar ao mundo, se algum grande ideal sustenta a sua civilização e dá sentido à sua obra, essa lição e êsse ideal se consubstanciam em democracia" (2).

"A sociedade americana moderna é o resultado da mais extensa experiência democrática contemporânea e de uma revolução industrial que fêz estalar tôdas as bases sociais estáticas do passado" (3).

Parece-nos ser ainda de Rui Barbosa a advertência sobre a tristeza do homem que não muda, salvo quando muda para pior.

Tôda evolução na filosofia social de Anísio Teixeira é sintetizável na realizada afirmação democrática de sua conduta de homem público que, "trabalhando no serviço de todos, consagrando-se à honra de todos, fazendo a todos o sacrifício do seu tempo, da sua inteligência e de sua vida", jura e cumpre "servir a todo transe o bem público, embora ire, arme e junte contra mim os interêsses particulares" (4).

Democracia e ciência, eis as duas coordenadas básicas dentro das quais se realiza Anísio Teixeira em pensamento e ação, notadamente a partir daquela fase anglo-saxônica de sua cultura, daquele período (1928-1929) por êle mesmo reputado "extraordinariamente significativo" em sua vida, ano em que "me encontrei comigo mesmo" (5).

 

A obra educacional na

primeira fase (1924-1929)

 

A 9 de abril de 1924 era Anísio Teixeira nomeado Inspetor Geral do Ensino da Bahia, serviço então subordinado à Secretaria do Interior, Justiça e Instrução Pública.

O titular anterior do cargo era, desde longos anos, o bacharel e político Otaviano Moniz Barreto que, licenciado freqüentemente da função pelo exercício de mandatos políticos, "seabrista" que era, aposentara-se quando da nomeação de Anísio. Àquele tempo era o serviço de Instrução Pública, afeto à Secretaria de Interior e Justiça, o de uma modesta, pacata, quase modorrenta repartição, de atividades essencialmente burocráticas. Não se tratava ainda de educação e muito menos o assunto tinha status para se constituir objeto de Secretaria de Educação e Cultura, nessa época em que havia uma muito tênue consciência do papel da educação pública como agente de integração social e dos deveres do Estado democrático de ministrá-la em extensão e características democráticas. Tôda doutrinação a respeito se esgotava em utópica sublimação verbal e o assunto não era ainda objeto de vigorosa demanda social reivindicatória.

Braulio Xavier da Silva Pereira, como titular efetivo e interinamente João Marques dos Reis e Austricliano Honorio de Carvalho foram os Secretários de Estado com os quais serviu Anísio Teixeira no período Góes Calmon e Francisco Prisco de Souza Paraizo foi o seu Secretário de Estado no governo Vital Soares, no período de 1928 a 1929.

Tratava-se de respeitáveis figuras conservadoras da cultura baiana, magistrados, advogados, professôres de direito, engenheiros, homens públicos acatados pelos seus pares e pela sociedade de sua terra, os quais todavia com dificuldade, quiçá desconfôrto, se compunham com os aspectos dinâmicos e revisionistas da inquietude intelectual e pedagógica do jovem titular da Instrução Pública.

Êsse descompasso entre o ritmo dinâmico, a atitude mental do educador revisionista por excelência e os hábitos sossegados, o estilo repousado, tradicionais à cultura baiana e encarnados à feição pelos então Secretários de Estado, vieram afinal redundar no pedido de demissão de Anísio Teixeira, quando não julgou, em novembro de 1929, encontrar cobertura suficiente ao seu "Plano de Reorganização Progressiva do Sistema Educacional Baiano", ocasião em que foi nomeado professor de Filosofia da Educação da Escola Normal de Salvador.

Mas passemos a caracterizar a sua obra no que teve de mais significativo nesse primeiro período, baiano.

Na área do administrador educacional, a Lei nº 1846, de 14 de agôsto de 1925, e o Decreto nº 4312, de 30 de dezembro de 1925, a primeira reformando a Instrução Pública do Estado da Bahia e o segundo aprovando o Regulamento do Ensino Primário e Normal, como documentos inteiriços e acabados, dentro do estilo latino de legislação, marcam positivamente a passagem de Anísio Teixeira de tal modo que, salvo legislação sôbre aspectos parciais e fragmentários, constituíram a lei educacional básica da Bahia por trinta e dois anos, até que o mesmo Anísio a viesse reestruturar fundamentalmente, no govêrno Otávio Mangabeira, em 1947.

Anísio Teixeira sentira, vivamente, a inadiável necessidade de dar um novo diploma legal básico que prestigiasse a causa da instrução em sua terra. Presente a tôda a elaboração da nova lei, integrara, especìficamente, nas comissões de educadores incumbidas da reforma, a Comissão do Ensino Primário, da qual participaram também Landulpho Pinho, Magalhães, Ubaldino Gonzaga, João Gonçalves Pereira, Alfredo Rocha, Alberto de Assis e Arthur Gomes de Carvalho. Sem dúvida, tratava-se de lei com técnica legislativa ao jeito latino, de crença absoluta na lei e no poder do Estado, espraiada, em seu espírito casuístico e regulamentador, por 268 artigos, de acôrdo com a tradição legalista das leis orgânicas, filhas da concepção de um poder demiúrgico das leis como modeladoras da realidade.

Para fazer o contraste com o que ocorre no mundo anglo-saxônico nessa matéria, onde se vê a educação como processo social que implica na mais universal das tarefas, veja-se que quando Anísio Teixeira foi o autor da Lei Orgânica de Educação e Cultura do Estado da Bahia, em 1947, filiado já a êsse espírito de aceitar a sociedade e a opinião pública como os fatôres de imediata influência sôbre a educação, sem mais sujeição ao estilo latino de tentar modelar na previsão da lei a multiforme realidade, tôda esta sua lei não ultrapassou de 94 artigos, pouco mais de um têrço dos artigos contidos na lei 1846, de 1925.

Três aspectos destacam-se, de plano, nessa lei 1846: o prestígio maior que se procura dar ao serviço de instrução pública, mais remotamente a cargo da Inspetoria Geral de Estudos, depois da Inspetoria Geral do Ensino e pela nova lei, da Diretoria Geral de Instrução; a ênfase dada ao problema do ensino primário, ampliado para sete anos de estudos, "dando-lhe um sentido estreitamente condicionado às situações sociais e geográficas de nossa terra, penetrando-o de um largo espírito democrático e universal e fazendo do seu curso a verdadeira pedra angular do sistema de educação estadual" (1); o esfôrço pela ação racionalmente planejada, tècnicamente fundamentada, na linha do bem comum.

O ensino público, no Estado da Bahia, compreenderia então, de conformidade com a lei:

1.º) o ensino infantil;

2.º) o ensino primário elementar;

3.º) o ensino primário superior;

4.º) o ensino complementar;

5.º) o ensino normal;

6.º) o ensino secundário;

7.º) o ensino profissional;

8.º) o ensino especial (para anormais).

O ensino primário elementar seria de quatro anos nas escolas primárias urbanas e de três anos nas escolas rurais, sendo de três anos o ensino primário superior, nas escolas primárias superiores, de inspiração francesa. O ensino complementar seria ministrado em escolas complementares anexas às escolas normais, com dois anos de curso propedêutico à matrícula no curso normal.

Aí devemos nos deter para nos fixarmos numa constante do pensamento de Anísio Teixeira: ontem com o ensino primário superior, hoje com as classes primárias complementares, incorporando ao conteúdo destas os efeitos sociais do nosso processo de industrialização e urbanização, sempre presente nêle a mesma preocupação democrática do aumento de nossa escolaridade comum e obrigatória e a mesma dura, obstinada resistência do nosso aristocratismo social, fazendo ontem com que a escola primária superior se restringisse a uma simples experiência em Cachoeira que não vingou maior expansão e significação e hoje manifestada na resistência a que o aluno com dois anos de classe primária complementar possa, mediante exame, ingressar na terceira série ginasial, situação essa que se verifica no texto da lei de Diretrizes e Bases da Educação, recém-aprovado pela Câmara dos Deputados.

É que a escola elementar, sendo a escola comum à nacionalidade, não classifica socialmente e assim não interessa sua expansão à classe dominante, nem aos que lutam para a ela titularem-se.

A administração da educação tinha no texto dessa lei a seguinte organização: direção suprema do Governador do Estado, auxiliado pelo Secretário do Interior, Justiça e Instrução Pública (incumbido do que dissesse respeito ao ensino primário, secundário, complementar, normal e especial), pelo Secretário da Agricultura, Indústria, Comércio e Obras Públicas (incumbido do que dissesse respeito ao ensino profissional), pelo Diretor Geral da Instrução e pelo Conselho Superior do Ensino.

Como aspecto interessante dessa organização administrativa vemos incumbida do que dissesse respeito ao ensino profissional, a Secretaria de Agricultura, Indústria, Comércio e Obras Públicas, o que talvez fôsse em parte expressão da acentuada dicotomia vigente entre ensino intelectual e ensino profissional.

À Diretoria Geral da Instrução cabia dirigir e superintender administrativa e tècnicamente todo o serviço de ensino primário, secundário, normal, profissional e especial do estado e a integravam as seções de "Expediente e Contabilidade, de Ensino Primário, de Ensino Normal e Especial, de Ensino Secundário, de Ensino Profissional, de Conselhos Escolares Municipais".

O Conselho Superior do Ensino tinha caráter consultivo e sua maior atividade era a de dar pareceres sôbre livros escolares, cabendo-lhe ainda, legalmente, "propor medidas que julgar necessárias não só à administração como à parte técnica do ensino".

Era um Conselho de composição predominantemente técnica, integrando-o, todavia, também o Secretário do Interior, Justiça e Instrução Pública, como presidente, o Secretário da Agricultura e o lntendente Municipal da Capital.

A previsão dos "Conselhos Municipais de Educação" mostra como é firme e antiga no pensamento de Anísio Teixeira a idéia de não fazer do aparelho escolar uma instituição puramente proconsular, superimposta pelo Estado aos municípios, sem participação dos municípios nesse serviço, mesmo quando ainda se distanciava êle, sensìvelmente, de sua posição atual a respeito.

Ao estabelecer, a Lei 1846, como seria exercida a fiscalização do ensino, diz que ficaria ela a cargo dos "chefes de seção de ensino, inspetores regionais, delegados escolares residentes e Conselhos Escolares Municipais".

Êsse Conselho Escolar Municipal tinha "por função estimular o desenvolvimento do ensino primário e, como órgão da administração, fiscalizar o serviço escolar do município e propor as medidas que julgue convenientes a melhor adaptação do ensino às condições locais".

Compunham-no, como conselho de representação social, o Juiz de Direito ou o Juiz Municipal, o Intendente, o Promotor Público e cinco pais de família ("dentre os principais do lugar, escolhidos pelo Diretor de Instrução").

Note-se que por essa Lei 1846 se procedia, como inovação no Estado, àquilo a que Anísio Teixeira denominava "Unificação do Serviço Escolar" (1), nas seguintes bases, que, pelo seu interêsse histórico, valem transcritas:

"Artigo 70 - O ensino primário, a cargo dos municípios, constituirá com o do Estado, um só e mesmo serviço, sob a direção geral, superintendência e fiscalização do Govêrno do Estado.

"Artigo 71 - É reconhecida aos Municípios a competência para criar, manter, transferir e suprimir escolas de instrução primária, dentro de sua circunscrição territorial, subentendido, porém, o exercício dessa competência nos limites da presente lei e de acôrdo com as suas normas e preceitos.

Os professôres para essas escolas serão nomeados pelo Governador do Estado e obedecerão às leis e regulamentos estaduais.

"Artigo 72 - A quota da receita municipal atribuída ao serviço da instrução primária não poderá ser inferior à sexta parte da renda ou receita geral do município, excluída tão-sòmente a receita com aplicação especial, que entrará apenas para aquêle cálculo e cômputo com o saldo ou diferença verificada entre a mesma receita e a despesa a que é especialmente atribuída.

Parágrafo único - É lícito aos municípios criar taxas ou contribuições, especiais, destinadas ao aumento e refôrço da quota de sua receita reservada ao serviço de instrução primária.

"Artigo 73 - A despesa com a instrução primária municipal relativa aos vencimentos do professorado e locação escolar passará a ser paga no Tesouro do Estado, mediante atestados do exercício do magistério nas cadeiras respectivas, passados pelas autoridades com função idêntica relativamente aos professôres do serviço do Estado observadas, ainda, as demais formalidades e exigências regulamentares a respeito.

"Artigo 74 - Para ocorrer à aludida despesa, os intendentes municipais recolherão às coletorias ou estações arrecadadoras do Estado, até o terceiro dia útil de cada mês, a sexta parte no mínimo das rendas dos respectivos municípios, arrecadadas no mês anterior, cumprindo-lhe juntar aos balancetes mensais que deverão enviar ao Governador e ao Tribunal de Contas, documento comprobatório do recolhimento feito".

Justificando esta posição, que sofreu de Anísio Teixeira profundas revisões ulteriores, eis o que dizia então: "Houve quem julgasse ofensiva à autonomia municipal a avocação pelo Estado do serviço de ensino a cargo dos municípios. A constituição federal fixou a raia dessa autonomia municipal de um modo nítido e pouco sujeito a dúvidas: ela se exerce sôbre tudo o que fôr do peculiar interêsse do município". (1)

E ainda, no mesmo relatório: "O serviço de instrução pública é do peculiar interêsse do município? (...) Ora, não são precisos gastos para demonstrar que o serviço do ensino é eminentemente geral. (...) Pode a centralização administrativa do ensino não ser aconselhável. Será porém, sempre legítima. (...) E nunca se entendeu diferentemente na Bahia. A legislação do ensino sempre foi uniforme e única em todo Estado. (...) Não seria contudo, legítima, a unificação administrativa do serviço? (...) Mantiveram-se assim os dispositivos essenciais da lei orgânica municipal sôbre o assunto. Ao município ficam as atribuições de julgar da conveniência ou inconveniência da criação, manutenção, supressão e transferência das escolas: retira-se-lhe, tão-sòmente, a administração da mesma."

Evidentemente teria mudado nossa situação cultural e com ela evoluiu fundamentalmente a posição sempre revisionista de Anísio Teixeira, quanto ao "localismo" educacional. Veja-se, entre outros documentos, o que diz em "Sôbre o problema de como financiar a educação do povo brasileiro" (2): "As escolas seriam municipais e o seu custeio se fundaria nos recursos dos fundos municipais, ajudados pelos auxílios estaduais e federais." E, na tese apresentada ao Congresso Nacional de Municipalidades, em Abril de 1957, "A Municipalização do ensino primário": "Tal regime seria o de escolas locais, administradas por autoridades locais, de órbita municipal, sujeitas à organização da lei estadual e conformadas aos objetivos das leis de bases e diretrizes federais. Isto quanto ao ensino primário,

básico, obrigatório e gratuito a ser oferecido a todos brasileiros".

Mas voltemos à focalização de aspectos relevantes dessa tão importante Lei 1846, de 14 de agôsto de 1925.

Em seu artigo 6.º se diz: "Todo o ensino ministrado pelo Estado é leigo".

Assinale-se que no projeto original, de n.º 169, de 1924, enviado à Câmara, Anísio Teixeira propunha o ensino religioso facultativo nas escolas públicas.

Êsse dispositivo encontrou, todavia, vigorosa e vitoriosa oposição da consciência jurídica, democrática, republicana, da Assembléia Legislativa e do Senado Estadual, neste capitaneada por Vital Henrique Baptista Soares, que não via como acomodar essa faculdade com o respeito ao regime constitucional então vigente e com o espírito laico, republicano, a êsse tempo atuante no país.

Como aspectos relevantes dessa lei podemos destacar os a seguir referidos: a obrigatoriedade dos estabelecimentos industriais do Estado manterem, por grupo de 200 operários, uma escola primária elementar para os filhos dos operários e cursos noturnos de alfabetização para operários analfabetos; as disposições sôbre recenseamento e obrigatoriedade escolar e sôbre caixas, bibliotecas e museus escolares; a defesa da autonomia didática e do princípio da equivalência ao invés do da identidade, quando, no artigo 121, se diz que "as escolas normais, quer oficiais, quer públicas, gozarão de autonomia didática, sendo desnecessária a identidade de programas, exigida porém a equivalência do ensino"; a previsão de criação na Capital, de uma Escola Normal Superior; as disposições sôbre ensino profissional.

Nas Disposições Gerais há artigos cujo só enunciado lhes define o relevante sentido:

"Artigo 241 - O Estado é obrigado a despender anualmente com a instrução pública, no mínimo, a sexta parte de sua renda bruta tributária.

"Artigo 242 - Ficam criadas quinhentas novas escolas primárias elementares que o govêrno localizará onde convier, provendo-as de acôrdo com esta lei."

Outro documento do maior valor em matéria de lei educacional é o Regulamento do Ensino Primário e Normal, de 30 de Dezembro de 1925, complementar à Lei 1846, estendido na minúcia cuidadosa dos seus oitocentos e vinte artigos, dentro da exaustividade própria ao estilo latino de elaboração de leis, o qual Anísio Teixeira reviu tão profundamente na sua fase de inspiração anglo-saxônica, quanto à condensação, flexibilidade e elasticidade próprias às leis, regulamentos, regimentos, instruções, atos administrativos.

Passemos, a seguir, a um balanço crítico das mais relevantes realizações educacionais de Anísio Teixeira nesse período de 1924 a 1928 e vejamos como êle sentiu a situação da instrução em sua terra, a êsse tempo.

Considere-se que em 1923 o serviço de educação pública primária que Anísio recebeu em 1924 estava confiado (ou confinado) a 630 escolas elementares isoladas e a um grupo escolar, mantidos pelo Estado e a cêrca de quinhentas escolas, custeadas pelos municípios, com a matrícula de 23 428 alunos na escola estadual, sem informação fidedigna quanto à matrícula municipal.

Em fins de 1924 a estatística escolar registrava um total controlado de matrícula na escola elementar pública (estadual e municipal) de 47 500 alunos (15% da população escolar); em 1927, mercê dos esforços da administração da instrução, êsse número já chegava ao total de 79 884 (20,54% da população escolar) e quanto à freqüência acompanhou a mesma curva ascendente" (1).

O aumento geral da despesa estadual com a educação entre 1924 e 1927 foi, na moeda da época, de cinco mil cento e dois contos, significando 109% de aumento, entre 1924 e 1927.

Nos moldes então impressos por Anísio Teixeira à sua administração sente-se, desde êsse tempo, a nota profissional da administração educacional planejada, com objetivos nítidos a alcançar e o domínio seguro de fatôres indispensáveis a êsse planejamento, como sejam, entre outros, os relativos ao censo e financiamento escolares.

Em 1929, nas suas "sugestões para reorganização do sistema educacional baiano", evoluiu êle ainda mais nesse sentido da administração educacional tècnicamente planejada, com a proposta de organização do serviço de pesquisa pedagógica, como olhos e consciência crítica do planejamento.

Não é irrelevante assinalar-se que mercê dos continuados esforços por dar à educação pública o papel que lhe cabe no Estado democrático, conseguira a administração Anísio Teixeira que a percentagem de gastos estaduais com a educação sôbre a "receita geral" ascendesse percentualmente de 4,55% em 1924 a 8,47% em 1927; quase assim duplicando.

As unidades escolares teriam subido de 1 127 a l 367 de 1924 a 1927 e o número de professôres e adjuntos cresceu de 1 247 a 1 672, nesse período.

O quadro de promoções na escola primária pública era trágico até o absurdo, em 1924: 9%. Em 1927 se elevava a 27%, índice que, - quem o diz é o mesmo Anísio, - "devia ser a percentagem dos não promovidos e não dos alunos aprovados".

Comenta Anísio, com lucidez, neste seu "Relatório" que vimos citando: "Não há quadro que demonstre mais tremendamente a grave situação das escolas baianas.

"Quais as causas e qual o remédio? Além daqueles motivos apontados, além do absorvente interêsse do professor por alguns alunos que vão fazer exame final, há outras causas gerais que devem ser responsabilizadas pela ineficiência da escola pública.

"Essas causas se podem resumir em duas principais: 1.º) o programa escolar não se adapta às capacidades e interêsse da criança bahiana; 2.º) o sistema de notas e exames não mede, com verdade e objetividade, os conhecimentos dos alunos."

Aliás, êste trabalho, O ensino no Estado da Bahia 1924 - 1928 (Relatório apresentado ao Governador do Estado da Bahia, por intermédio do Secretário do Interior, Justiça e Instrução Pública, pelo Diretor Geral da Instrução), é um lucidíssimo documento analítico da situação educacional baiana e uma definição de propósitos e caminhos a que a mesma devia visar no qual se sente como o jovem administrador que estreara tateando rumos nesta seara, mercê da aguda, inteligente observação do que ocorria na educação na Bahia, dos seus densos estudos e de suas refletidas observações da educação no estrangeiro, já dominava a essa altura o campo com a segurança perfeita de mestre consumado.

Há mesmo conceitos, interpretações, análise e programas de ação que não perderiam a atualidade se hoje enunciados, porque continuariam ensinando.

Vamos tentar reproduzir a seguir, uma seleção de trechos dêste relatório que confirmarão quanto acima dissemos.

A respeito da educação do povo:

"O próprio critério de educação popular estava deturpado. Efetivamente, nesses adiantados princípios do século vinte, o serviço de educação pública ainda estava jungido à velha orientação colonial de educação para uma classe fina da sociedade.

"A idéia de educação universal, de educação como elemento fundamental da vida democrática, não nos havia possuído.

"Éramos um Estado com uma larga população analfabeta de viver primitivo e primitivo estado social e uma diminuta classe de letrados cujos índices de vida foram diretamente copiados das mais amadurecidas classes da Europa."

Assinalando a mudança visada de rumos democráticos:

"Mas o que de logo desejamos registrado é a mudança de orientação. Diante da situação escolar dos princípios de 1924, o govêrno julgou que deveria haver um grande movimento de reorganização, que firmasse uma concepção legítima de escola primária, estabelecesse uma ampla e universal difusão dêsse ensino e prestigiasse, dando-lhe a dignidade de direito, o professor primário.

"Como base da pirâmide do serviço de educação, era para êsse ensino popular que haviam de convergir os esforços centrais do govêrno, certo de que a educação secundária e superior, haveria de chegar, progressivamente, depois que essa necessidade mais elementar e mais emergente estivesse a pique de ser satisfeita.

"Firmado nessa lei, o esfôrço administrativo desenvolveu um plano metódico de ação, colocando o problema do ensino primário no seu lugar de primeiro problema, por ser o mais fundamental na ordem educativa e o mais urgente na ordem dos deveres públicos."

Veja-se a seguir a lucidez diagnóstica e precisão prognóstica contidas na previsão política de Anísio Teixeira:

"O disparate entre nossa aristocracia cultivada e diretora das atividades nacionais e a grande massa popular analfabeta, não constitui sòmente um caso revoltante de ausência de consciência democrática e humana no país, mas, poderá muito cedo refletir-se em conflitos e incompatibilidades capazes de complicar as nossas grandes mas singelas questões, em problemas de crítica e complexa solução."

Sôbre as finalidades da escola elementar, ei-las definidas à perfeição:

"Essa escola primária deve ser, na forma da lei fundamental do ensino, sobretudo educativa, buscando exercitar nos meninos os hábitos de observação e raciocínio, despertando-lhes o interêsse pelos ideais e conquistas da humanidade, ministrando-lhes noções rudimentares de literatura e história pátria, fazendo-os manejar a língua portuguesa como instrumento de pensamento e expressão; guiando-lhes as atividades naturais dos olhos e das mãos mediante formas adequadas de trabalhos práticos e manuais: cuidando, finalmente, do seu desenvolvimento físico, com exercícios e jogos organizados e conhecimento das regras elementares de higiene, procurando sempre não esquecer a terra e o meio que a escola deseja servir, utilizando-se o professor de todos os recursos para adaptar o ensino às particularidades da região e do ambiente baiano."

Analisando objetivamente a evasão escolar:

"Coagidas pela lei, as crianças passarão a freqüentar as escolas pelos quatro anos necessários à sua formação primária. Será entretanto, uma solução insuficiente. A solução real, a solução sociológica deverá transformar a escola. Abrir para o interêsse da criança, uma "escola nova".

"Não há mais tremendo problema em qualquer sistema escolar que êste: atrair a criança para a escola e conservá-la até o mínimo de anos necessário para algum resultado eficiente.

O sistema escolar baiano é, de fato, ainda um sistema escolar de um ano de estudos.

"Ora nada pode a escola transmitir de valor permanente em um ano de estudos."

E com correta visão, tanto mais notável se considerarmos a época em que foi apresentada, ao arrepio de um certo romantismo educacional então muito em voga:

"Despesa extravagante será a que fizermos sem a nítida compreensão de que uma exclusiva e apressada alfabetização não resolve o problema educativo baiano."

"A educação será um fator do desenvolvimento econômico, quando fôr devidamente ministrada. Fora daí, não há nenhuma varinha mágica que multiplique o poder de produção do baiano só porque lhe foi ensinado o jôgo das 26 letras do alfabeto.".

Sôbre a clamorosa situação das promoções na escola primária pública da Bahia escreveu:

"Não só devido a causas diversas e locais de retirada precoce dos alunos da escola, como sobretudo porque a repartição central do ensino, esquecendo o problema das promoções através dos diferentes graus do curso, pôs todo o relêvo no diploma final do quarto ano, fazendo do número de alunos prontos a medida única da eficiência do professor; a escola primária baiana tem sido uma escola não só ineficiente como contrária à sua finalidade democrática.

"O que se dava em 1924?

"Dava-se o seguinte: um sistema escolar com 47 589 alunos, depois de um ano de trabalho, apresentava 4 312 crianças que haviam aprendido e 43 277 que deviam ser reprovadas.

"Não será possível evidência maior da ineficiência da escola."

Caracterizando o que vinham sendo as Diretorias de Instrução, na sua firme posição de luta contra o acidentalismo da ação aleatória em favor da ação tècnicamente fundamentada, observa:

"Com efeito, as diretorias de instrução, entre nós, não têm constituído centros técnicos de pesquisas e estudos das condições do serviço, mas sòmente repartições administrativas que procuram cuidar da parte burocrática do ensino."

Sôbre os programas escolares, numa interpretação que posteriormente o experimentalismo ainda alargaria, quanto aos objetivos de reconstrução social pela escola:

"O programa escolar deve não sòmente adaptar-se ao meio social, mas refleti-lo na escola.

"Êsse primeiro problema de um programa escolar verdadeiramente ajustado às condições da sociedade baiana e brasileira, é trabalho para continuadas pesquisas e cuidadosos estudos, que uma diretoria sem robusta organização técnica não pode empreender."

E mais ainda, ambiciosamente, embora com absoluta legitimidade de propósitos:

"Mas, o programa não só deve ser adequado às nossas condições sociais, como deve ainda adaptar-se às capacidades e interêsse da criança baiana nas suas diferentes idades escolares.

"E então, ao estudo da nossa sociedade, se ajunta o estudo da nossa criança."

Quanto ao sistema de verificação do rendimento escolar, pôsto então à base de rotinas de falho julgamento subjetivo, ainda hoje dominantes:

"É indispensável um sistema de medidas dos resultados escolares, seguro e objetivo.

"Ora, na escola pública, êsse sistema ainda tem a sua base nas notas mensais e nos exames, umas e outras fundadas na opinião do professor.

"Em vez dos exames e das simples notas a juízo do professor, impõe-se a aplicação de tests bem construídos e bem estandartizados, por meio dos quais se possam aferir os progressos do escolar baiano."

Em relação às conseqüências financeiras para o erário da fixação pedagógica nos moldes da escola primária seletivista e, como tal, reprovadora, já a essa época pioneiramente lutando no Brasil pelos critérios de promoção flexível na escola comum, assinalava:

"O número tremendo de alunos que repetem os anos no curso primário, representa alunos com os quais o Estado está despendendo o dôbro, o triplo e o quádruplo do que devia gastar, se a organização escolar baiana fôsse adequada em todo o sentido.

"Os técnicos americanos são hoje acordes em que não deve haver repetições de ano em um sistema escolar.

"Se o curriculum fôr devidamente organizado, de sorte a progredir, através dos graus, à medida que a criança progride através dos anos e, por outro lado, houver um sistema objetivo e científico de medir o progresso do escolar, não deve haver reprovações no sistema escolar."

A respeito do currículo na escola elementar e das dificuldades locais de adoção de uma nova atitude mental a respeito:

"O programa, assim, distanciando-se do antigo ideal de ensinar a ler, escrever e contar, compreende além dêsses três fundamentos, estudos de história e geografia, de ciências e suas aplicações, de agricultura e indústrias locais, de desenho, de trabalhos manuais e domésticos e de música, e ainda educação física e educação cívica."

E em plena linha da plasticidade experimentalista:

"Não só o curso de estudos, como o horário e distribuição de tempo para as diversas matérias, fizemos logo constar que eram simplesmente guias gerais, bastante flexíveis para permitir tôdas as adaptações e sofrer tôdas as revisões que a prática viesse a sugerir.

"Não logramos, porém, elementos para êsse processo de experimentação:

"O professorado não pode ainda acudir a essas solicitações de iniciativa e cooperação com o corpo central da administração.

"Os nossos métodos de ensino e as nossas práticas escolares ainda se prendem exageradamente aos velhos processos de rotina e memorização."

Vejamos êste trecho antológico de teoria da escola, há mais de trinta anos escritos:

"Acima de tudo, o que desejamos é vencer a resistência de uma tradição que compreende a escola como uma casa onde a criança entra para fazer e apreender o que se manda e pelo modo por que se manda.

"Êsse modo é o da repetição ou cópia servil ou o de decorar compêndios.

"Nem a escola desperta ou educa a iniciativa individual; nem a escola concorre para criar um sentimento de originalidade ou responsabilidade; nem a escola desenvolve a capacidade de pensar e agir diante dos problemas reais da vida; nem a escola ensina a criança a posse e o govêrno de si própria; nem lhe oferece oportunidade para habituá-la à vida cooperativa de grupo.

"Falha, assim, a escola à sua finalidade educativa e democrática."

Sôbre "modernização do ensino", jà se sente a êsse tempo o agudo pensador imbuído da noção dos percalços para dar eficiência social à escola, numa sociedade em mudança:

"Se a educação é, em um sentido geral, a influência que exerce sôbre a geração criança, a geração adulta; e se a atual geração adulta continua permanentemente, em vista das oscilações e transformações da vida moderna, a sua reeducação, ver-se-á como êsse problema é de difícil e quase impossível fixação."

Quanto ao correto sentido pedagógico da inspeção escolar, reagindo contra o arraigado vêzo da fiscalização em estilo de correição cartorial, conceituava:

"Impõe-se substituir êsse tipo fiscal da inspeção, por um tipo de assistência técnica, que permita um fecundo trabalho de colaboração para o progresso e aperfeiçoamento da escola."

Assinale-se, a propósito do problema do ensino normal, no tempo em que êste era ainda tão permeado no Brasil pelo espírito de ginásio para môças, como Anísio Teixeira situava o problema com rigorosa precisão:

"A formação do professor primário é, sem contestação possível, a formação especializada de um profissional.

"Daí a necessidade da escola normal, da escola que forma os professôres, ser uma escola profissional.

"Na escola liberal ou de educação geral, a matéria e estudada em relação com o que ela pode fazer com o aluno; na escola profissional com o que o aluno pode fazer com ela.

"O curriculum deve ser organizado tendo-se em vista aquelas matérias que mais diretamente se podem aplicar na prática profissional.

"Representa isto um grande progresso no problema do treino do professor primário, progresso que há de continuar nessas duas direções principais; curriculum cada vez mais estreitamente profissional, e facilidades de prática escolar, cada vez mais amplas."

Analisando a situação do ensino secundário público, fá-lo Anísio com rigorosa precisão diagnóstica:

"Mantém o Estado" (era o tempo do quase monopólio privado da educação secundária que intentam agora restaurar) "um único estabelecimento oficial de ensino secundário, que é, tão-sòmente, um curso acadêmico especializado de preparação para o ingresso nas Faculdades Superiores.

"Está o ensino secundário, nessa sua concepção de curso preparatório para a Universidade, subordinado à legislação federal, que recentemente reorganizou o seu plano de estudos em base mais estritamente acadêmica e clássica, coordenando ainda em seriação obrigatória os diferentes graus do curso".

"Para julgar o regime atual, não direi na sua orientação educacional, que é exclusivamente acadêmica e não social, mas em sua própria organização, basta dizer que todo êle gira em tôrno dos exames do fim do ano".

"O Ginásio, com a sua atual organização, é uma máquina para conservar e alimentar a mentalidade que uma velha e longa associação entre trabalho manual e classe social inferior criou, de uma pretensa superioridade das profissões não manuais."

Defendendo o poder que em nosso regime federativo tem de ser reservado aos estados em matéria de administração educacional, eis o que escreveu Anísio em 1928, como escrevia hoje, 32 anos depois, federalista político e localista educacional convicto:

"Os acordos para o ensino primário, e agora, os acordos para o ensino profissional com que a União tem procurado colaborar com o Estado, nos serviços de ensino, se propõem em bases inaceitáveis ou pelo menos discutíveis pelo Estado, porque a União deseja fazer da subvenção uma intervenção.

"Ora não é viável tal processo.

"A administração de serviços, mesmo aquêles de interêsse nacional, tem maiores possibilidades de se realizarem eficientemente, quando levadas a efeito pelo poder local."

Abordando as características gerais do funcionamento da escola particular, em julgamento que não perdeu oportunidade:

"Tendo, salvo honrosas exceções, o lucro por finalidade, tais escolas difìcilmente podem corresponder às suas responsabilidades.

"Raramente têm prédio próprio, as condições técnicas e higiênicas deixam a desejar, as classes são numerosíssimas, o professorado é ridiculamente remunerado, enfim não podem oferecer senão más oportunidades educativas."

Quanto ao financiamento escolar, citando, persuasivamente, o exemplo norte-americano:

"Os impostos obedecem, cada ano, ao aumento das despesas escolares e, ao lado dos impostos, um movimento contínuo de empréstimos permite o crescente desenvolvimento do ensino.

"Criou-se, porém, ali, uma consciência nacional da preeminência das despesas com a escola, sôbre quaisquer outros gastos e é, sem dúvida, um dos traços da nacionalidade americana o seu entusiasmo e a sua devoção pela educação."

Sôbre o agudo problema do prédio escolar estão emitidas considerações lúcidas e atualíssimas no mérito, ainda que devendo variar no instrumento de efetivação:

"Por outro lado, porém, qualquer processo torna a construção do prédio escolar excessivamente pesada para os orçamentos ordinários e daí a eterna delonga em satisfazer essa suprema necessidade de um sistema escolar em Estado, como o da Bahia, de progresso nascente e de rendas ainda diminutas".

"A solução só poderia ser achada no empréstimo externo, divididas as responsabilidades de sua amortização entre o Estado e as Municipalidades, na base do despendido com os respectivos prédios."

Justificando em têrmos de fatos talvez mais do que em têrmos de doutrina, a medida a que denominou "Unificação do Serviço Escolar", descreveu assim o estado em que encontrou as escolas municipais:

"Da ligeireza com que se ia reduzindo o ensino primário a um curso apressado e empírico de leitura e escrita, poderiam provir, mais tarde, os maiores embaraços quando se cogitasse de efetivar, entre nós, um ensino que preparasse a organização intelectual do país.

"Em municípios e não poucos, os regentes das escolas além de não diplomados eram pessoas do campo, de parcos rudimentos e de cultura primária.

"O número de professôres sem diploma e sem nenhuma prova de elementar competência, em escolas oficiais municipais, passava de uma centena.

"Acrescente-se a êsse estado de coisas a falta total de aparelhamento pedagógico de escola: nem horários, nem programas, nem instruções, nem fiscalização.

"No mesmo nível de desoladora deficiência está o aparelhamento didático dessas escolas.

"O mobiliário, antigo ou lamentàvelmente estragado, e o material pedagógico absolutamente inexistente".

"Como os males eram gerais, geral houve de ser a medida e o remédio."

Em relação ao ensino rural é muito realista a sua tese então esposada, em que pesem os embargos que possam hoje ser opostos à exata pertinência da expressão "profissional".

"O ensino rural não deve ser a simples alfabetização. Mas também, a criança das zonas rurais cedo atirada à vida do campo, em cujos braços repousa, em alta porcentagem, a economia da família, não deve ser retida na escola pelo mesmo tempo que os das cidades ou vilas. Além disso, imediatamente depois do período escolar (ou dentro, por vêzes, dêsse período) êle já vai ter tôdas as obrigações e encargos do trabalho que nos centros urbanos incumbem ao adulto.

"Uma orientação profissional se faz mister na escola rural. A indústria ou agricultura locais devem ser as cadeiras centrais do curso."

É interessante cotejar essa posição então proposta por Anísio Teixeira com a organização de "educação básica", que Mahatma Gandhi propôs e se instituiu, há vinte anos atrás, para adolescentes nativos na Índia.

"De acôrdo com a organização proposta, uma arte, um ofício é o núcleo central ("the core") de todo currículo. Tôdas as outras matérias são correlacionadas com essa arte ou ofício e com o ambiente natural e social" (1).

Temos necessàriamente que nos limitar em relação à tentação de prosseguir expondo trechos e mais trechos dêsse antológico documento definidor de um autêntico administrador educacional, que é o relatório em questão.

A imediata e amarga reflexão que nos ocorre a respeito é sôbre o quanto as poderosas fôrças sociais conservadoras que sobrestaram a plena vigência de programa tão perfeitamente lúcido, contribuíram para o atraso do desenvolvimento democrático e econômico do país.

Parece-nos legítima a abordagem mais minuciosa que estamos empreendendo para tentar definir Anísio Teixeira e sua obra educacional, consideradas suas filosofia social, evolução da mesma e realizações, por nos parecer menos conhecida do meio educacional brasileiro aquela parte do seu labor educacional inicialmente cumprida na sua província natal, (antes de 1930), onde menores são os ecos do que se faz, no cenário nacional.

No novo período governamental que se iniciaria em março de 1928 com Vital Henrique Batista Soares, e que a revolução vitoriosa de 1930 interromperia, não houve, a bem dizer, ensejo a uma maior atuação de Anísio Teixeira na administração educacional de sua terra, porque foi curto o período governamental e, dentro dêle, Anísio estêve dez meses em viagem de estudos ao exterior.

Tendo ido à América do Norte em abril de 1927, comissionado por lei "para estudos de organização escolar", Anísio voltaria à América do Norte, passando na Columbia University dez meses, todo o ano escolar de 1928 a 1929, graduando-se no "Teachers College", como Master of Arts.

Aí então êle mesmo nos conta dos seus propósitos a êsse tempo:

"trouxe, de meus cursos universitários na Europa e América, não sòmente esta paz espiritual, mas um programa de luta pela educação no Brasil" (2).

O primeiro documento vivo dêsses propósitos teriam sido as "Sugestões para reorganização progressiva do Sistema Educacional Baiano", plano que, por não sentir para êle inteiras condições de viabilidade e de autonomia de execução, levou Anísio a se exonerar do pôsto ocupado, em novembro de 1929.

Vamos tentar resumir, em seguida, algumas apreciações e proposições mais relevantes dêsse significativo documento, que demonstra a segurança com que evoluía Anísio no domínio do assunto.

Resumindo a precária situação quantitativa de educação escolar na Bahia, dizia Anísio, no documento acima mencionado:

"Em resumo a situação é a seguinte: em mil crianças em idade escolar, apenas duzentas freqüentam alguma escola; apenas trinta concluem o curso primário elementar; apenas sete obtêm alguma educação secundária; e apenas duas têm os benefícios da educação superior.

O primeiro problema do ensino, na Bahia, é assim o da expansão do sistema escolar."

Passando a seguir à análise de aspectos qualitativos da educação ministrada por êsse sistema, faz observações que pela pertinência implícita não resistimos à tentação de transcrever.

"Quanto à escola primária baiana: a) tem finalidades que não podem ser satisfeitas em quatro anos de curso; b) as matérias não estão devidamente graduadas através dos anos escolares; c) não há relação entre o programa escolar e as atividades ordinárias da vida da criança; d) os métodos de ensino são ainda muito artificiais e livrescos; e) não se desenvolve a iniciativa do aluno, nem se obtém sua participação ativa no trabalho escolar; f) a criança não obtém informação sôbre seus problemas e os de sua terra e sua gente; g) a escola não oferece oportunidade para a formação do caráter.

"Essas circunstâncias tornam a escola elementar alheia às suas funções educativas e democráticas: - no melhor dos casos torna-se uma escola que prepara alunos para as escolas secundárias; de modo geral, não passa de uma simples máquina de ensinar mal a ler e escrever."

Passando à escola secundária, assim sintetiza Anísio suas "mais profundas deficiências":

"centralização administrativa - o contrôle da educação secundária pelo govêrno federal tem sido entendido não sòmente como o meio de se assegurar a unidade da educação, mas também a uniformidade de tôda ela. Isto retira qualquer vitalidade às instituições equiparadas;

"concepção dualística da educação - a escola secundária é considerada entre nós como uma instituição totalmente diferente das escolas profissionais, embora servindo ambas a alunos da mesma idade;

"o velho preconceito com as profissões chamadas manuais, corporifica-se nesse aspecto dualístico da nossa educação para o adolescente;

"isso torna a educação secundária antidemocrática por um lado, e, por outro, antieconômica;

"organização caótica - a organização do nosso Ginásio não obedece a nenhum plano razoável. O seu programa se constitui de tôda sorte de estudos, sem qualquer correlação ou coordenação mútua: embora chamemos êsse programa de "clássico-acadêmico", de fato é uma combinação de línguas modernas, línguas mortas, ciências, matemática, filosofia e sociologia - tudo entretanto ali sem nenhum plano de conjunto e nenhuma orientação uniforme;

"métodos de ensino - as matérias são ensinadas, no Ginásio, teòricamente, isto é, por intermédio de livros, sem nenhuma discriminação do que é ou não importante, do que interessa ou não ao aluno, do que tem ou não utilidade. O professor pré-leciona a matéria e depois toma a lição;

"não há a menor aproximação entre os professôres, nem entendimentos mútuos para o efeito de coordenar inteligentemente os seus cursos. Ensinam as suas matérias, como se as professassem em uma cátedra especializada de Universidade;

"exames - de fato a escola só existe para os exames; os cursos são puramente uma preparação para as provas livrescas e formais."

De que constavam as sugestões básicas de reforma, propostas por Anísio Teixeira? Ei-las aqui sumariadas:

"1. Investigação cuidadosa dos problemas educacionais na Bahia. Os resultados dêsses estudos servirão de base para um programa educacional progressivo e de longa duração.

"2. Expansão do sistema escolar em um sistema modesto de educação secundária.

"3. Revisão geral dos programas. As necessidades locais e os interêsses e aptidões dos alunos serão os fatôres de orientação dessa revisão.

"4. Aperfeiçoamento dos métodos de ensino.

"5. Reorganização das escolas rurais, para cuidar-se intensivamente da educação adulta.

"6. Reorganização das Escolas Normais.

"7. Criação de um "bureau" de investigações pedagógicas na Diretoria Geral de Instrução."

A pesquisa sistemática como fundamento da ação racionalmente planejada era um dos pontos básicos dêsse programa de reforma. Estudos de comunidade já eram propostos para aplicar os seus resultados à vida escolar. Como era igualmente relevante a atenção proposta ao problema da formação do professor primário, visando a que os professôres fôssem também especializados em educação e métodos de ensino, se desenvolvesse um espírito de formação profissional na escola, se organizasse adequadamente a prática do ensino.

Outro aspecto essencial do programa proposto de reestrutura da educação, na linha de aumento da escolaridade pública obrigatória, era o da extensão do sistema escolar público até o nível secundário, aquêle das "junior high schools".

Justificava Anísio: "Parar na escola elementar, deixando que iniciativas privadas, nem sempre devidamente orientadas, cuidem sòzinhas das necessidades educativas de nível secundário ou técnico, é um proceder inaceitável com o qual o Estado foge ao cumprimento de suas responsabilidades de prover um mínimo essencial de educação.

Necessàriamente, programa dêsse teor exigiria para êxito, autonomia na execução, recursos financeiros e técnicos, enriquecimento de quadros profissionais, previsão de cursos de aperfeiçoamento inclusive no exterior, tudo proposto no documento apresentado com o fim de ampliar, dinamizar, atualizar as perspectivas da educação na Bahia. Sem a segurança de obtenção do que era necessário, não permaneceu Anísio.

Antes de chegarmos ao nosso breve esbôço de uma interpretação conjetural do porque a cultura baiana não mostrou maior sensibilidade ao alcance dêsse programa dando-lhe sólido apoio que permitisse sua execução com a permanência de Anísio, vamos aludir a trabalho seu, dêsse tempo, que merece ser realçado, não só porque é um fiel retrato da sua posição educacional pós-América, como por sua excelência em si mesmo e por não ter, talvez, o conhecimento do nosso mundo educacional que era bem tivesse.

Referimo-nos ao "Relatório apresentado ao govêrno do Estado da Bahia pelo Diretor Geral de Instrução, comissionada em estudos na América do Norte".

Êsse relatório foi editado em 1928, "de distribuição gratuita da Diretoria Geral de Instrução" e tinha o título geral de Aspectos Americanos da Educação.

Nesse documento dá conta Anísio do que observara na viagem empreendida em abril de 1927 à América do Norte, comissionado, por lei, "para estudos de organização escolar".

O relatório se divide em duas partes: a primeira sob o título "Fundamentos da Educação"; a segunda intitulada "Aspectos americanos da educação".

Na primeira parte há uma exposição das idéias de Dewey. Na segunda escreve e comenta Anísio o que observou no sistema escolar norte-americano.

Na nota preliminar à primeira parte, escreveu Anísio:

"John Dewey é, na América, o filósofo que mais agudamente traçou as teorias fundamentais da educação americana. A nenhum outro pensador é dado ali lugar mais saliente na sistematização da teoria moderna da educação.

"Apresentar, pois, na Bahia, em breve resumo, tão fiel quanto me foi possível, as idéias com que Dewey fixa o atual sentido de educação, pareceu-me meio talvez favorável, para despertar um interêsse concreto pela revisão de nossas próprias concepções".

Em quatro capítulos, a saber. "Sentido atual de educação", "Educação e Democracia", "Do Método em Educação", "A reconstrução do curriculum escolar", dá-nos Anísio sessenta e uma páginas de introdução às idéias de Dewey, um dos primeiros ou talvez o primeiro estudo sistematizado publicado a respeito no Brasil, em nossa língua, que são ao nosso ver, modêlo de síntese, de clareza, de precisão, de fidelidade, notável a tal ponto, que nos parecia relevante serviço à educação brasileira a reedição dêsse relatório.

Na segunda parte nos descreve Anísio, comentando em cento e uma páginas do maior interêsse, suas observações a respeito do sistema escolar dos Estados Unidos.

São especialmente ricas de conteúdo as páginas dedicadas à caracterização do sistema escolar nas grandes e pequenas cidades, sôbre a Associação Nacional de Educação, sôbre a "escola platoon", muitas de suas observações representando informações de primeira mão para o meio educacional brasileiro da época, apreciadas inteligentemente.

Como teria reagido o meio educacional, e mais amplamente do que êle, o meio cultural baiano, às idéias, e iniciativas de Anísio Teixeira?

Psicològicamente teria havido, de início, nos meios profissionais, uma certa compreensível desconfiança enciumada, em relação ao jovem neo-educador, por parte dos veteranos do "métier".

No espírito dessas reservas se faziam críticas tendo como veículo jornais sobretudo de oposição, nas quais "o verdoso educador" o "bebê", o irrequieto pedagogo" era caricaturado.

No meio legislativo não houve, a bem dizer, debate doutrinário a respeito da filosofia educacional expressa na Lei 1846.

A grande tônica do debate legislativo teria sido manifestada em aspectos jurídicos de área de poder, de legalidade de dispositivos da lei e na questão do ensino religioso facultativo nas escolas públicas.

De público, no meio profissional, o assunto se esgotara apenas em "cartas abertas" discutindo situações de direitos pessoais julgados atingidos. Os quadros profissionais da educação eram então apenas o de professôres de matérias do curso de estudos humanista tradicional.

No interior de organismos técnicos o debate se pôs em têrmos de discussões gramaticais sôbre a forma da lei, em que se comprazia uma sólida, preciosa erudição vernacular, muito ao gôsto baiano.

A maior oposição era cultural, do tipo de resistência passiva, de cepticismo, desconfiança, incredulidade ante as arrojadas "inovações" do môço educador.

Homem que sempre marchou na vanguarda do seu tempo, era natural que entre o molde cultural baiano, predominantemente conservador, estático, e a configuração mental dinâmica de Anísio, uma arritmia essencial se estabelecesse.

É também explicável que aos titulares do poder político quiçá não fôsse agradável a área de autonomia reivindicada por Anísio para a educação, para preservá-Ia de incursões de clientelismo eleitoral.

Assim, a posição de Anísio Teixeira era a de homem aceito e admirado firmemente por um pequeno grupo; admirado por um grupo maior e rejeitado como incômodo, perturbador da tranqüilidade sossegada das rotinas estáticas, por número talvez ainda maior, com interêsses e valores contrariados.

A sua análise de pontos críticos da cultura baiana, muitos dêles chave dos chamados enigmas baianos, era muito desconfortável, talvez mesmo contundente a certa maneira de ser, local, profundamente arraigada.

Depois, a adesão a Dewey e seu experimentalismo viria ainda mais chocar à cultura local, muito impregnada de moldes estáticos, com arraigada adesão a posições teoremáticas ao invés de problemáticas.

Homem que, na linha instrumentalista, jamais se compôs com a palavra senão como instrumento preciso de idéias, inteiramente ao arrepio de uma certa eloqüência de puro esteticismo verbalista formal; que não se encontrou jamais nas estratificações e estamentações de aristocratismos sociais fechados tendo a educação como instrumento, por estas e por outras maneiras de ser, Anísio Teixeira e seu programa educacional foram algo, a êsse tempo, mais para serem escutados e admirados platônicamente, do que para serem compreendidos, aceitos, incorporados e praticados.

 

A obra educacional em sua

segunda fase, de 1947 a 1951

 

Muita água correu por baixo do moinho, nesses longos e densos dezoito anos que decorreram até a volta de Anísio Teixeira, como Secretário de Educação e Saúde do govêrno Octavio Mangabeira, à direção do sistema educacional de sua terra!

Nesse longo hiato Anísio dirigiu, fecundamente, com realizações notáveis, a instrução pública no Distrito Federal, de 1931 a 1935; antes, fôra como Francisco de Campos, o primeiro Diretor do Ensino Secundário do novel Ministério de Educação e Saúde; foi exilado, proscrito da função pública pelo fascismo estado-novista; iluminou a literatura pedagógica nacional com opulenta e copiosa contribuição bibliográfica de traduções, relatórios, artigos, ensaios, livros; a proscrição da função pública o lançou, com sucesso, por dez anos, à vida privada, em cujas iniciativas sentiu superar, vitoriosamente, os dualismos aristocráticos entre tarefas ditas "intelectuais" e tarefas ditas "práticas"; foi conselheiro superior de educação da Unesco; tornou-se figura de proa na educação em seu país e autoridade internacionalmente reputada na matéria, dominando-a, com segura mestria, do jardim de infância aos cursos de pós-graduação universitária.

Quando chegou o momento de optar entre a discreta e vantajosa comodidade da vida privada e a dura, áspera, desvantajosa vida pública, de cujas agruras estava curtido através de penosas provações, foi fiel a si mesmo e não traiu a sua irredutível, inarredável vocação de homem público.

Deixemos que êle mesmo nos narre como se processou essa opção, envolvendo renúncia a imenso negócio privado.

"Resolvi deixar a Unesco e voltar à vida privada. De Paris, fui a Nova York, voei ao Amapá, para examinar as possibilidades do manganês recém-descoberto quase nas fronteiras do Brasil. Estava, porém, marcado que o ciclo que se iniciara em 1945 era de vida publica. Entre um grande projeto industrial e o convite do Snr. Octavio Mangabeira para Secretário de Educação da Bahia, que me chegou, em conferência, pelo telégrafo, fiquei como o último.

"Era a reimplantação da República no Brasil. Octavio Mangabeira governador era milagre igual ao da Unesco. Se nada ou pouco era possível internacionalmente, quem sabe se, nacionalmente, tudo ou pelo menos muito não seria possível?" (1)

Em certa medida justifica-se essa confiança otimista, que a sua vocação de servidor público coloriu de tintas róseas.

Octavio Mangabeira, sob a égide de "maior baiano vivo" subia ao govêrno cercado de um crédito de confiança como poucos e a escolha de um "secretariado que valia um ministério", só fazia confirmar essa alvissareira expectativa.

Anísio era, sem favor, das maiores estrêlas dêsse alto secretariado.

Ao passarmos ao balanço final da obra que lhe foi possível realizar, há todavia que ressalvar no reino dos empreendimentos humanos, "ha mais cousas entre o céu e terra do que sonha vossa vã filosofia", por isto que o homem se é sujeito não é objeto da história.

A caracterização geral da obra educacional de Anísio Teixeira nesse segundo período baiano pode ser definida, essencialmente, no esfôrço pela ação educacional democrática, racionalmente planejada, em tôdas as etapas que definem a ação planejada, no caso, para o bem comum, para a justiça social da escola:

a) diagnóstico e equacionamento das debilidades estruturais;

b) formulação das diretrizes;

c) elaboração de instrumentos para converter diretrizes em ação;

d) fixação e articulação de prioridades, realçando aspectos fundamentais em relação a situações acessórias, fugindo a pseudo-soluções parciais, conjugando para tal, nesse campo, as contribuições dos vários especialistas em ciência sociais.

É preciso considerar, diga-se de passagem, que o obsoletismo de nossa teoria política muito prêsa a concepções liberais já anacrônicas por inviáveis, do puro arbítrio do "laissez-faire", gera uma fossilização, um emperramento, uma inadequação de nossa administração educacional pública que talvez tivesse sentido na velha concepção do papel absenteísta do Estado em educação, como mero aparelho inspetor de "Estudos" ou de "Ensino", na linha, século XIX, do Estado-gendarme, radicalmente diversa daquela que devem representar a liderança e chefia, dinâmicas, agressivas e atuantes, das Diretorias Gerais de Educação, Secretarias ou Ministérios de Educação, no Estado democrático moderno.

Vejamos como Anísio Teixeira, em seus relatórios ao Governador do Estado, diagnosticava e equacionava as debilidades estruturais do sistema educacional que dirigia.

No relatório de 1947:

"Os serviços de educação do Estado resumem-se em um corpo de professôres primários aglomerados nas cidades ou dispersos pelas vilas e povoados, quase todos sem prédios, instalações e assistência técnica, moral ou mesmo administrativa, um corpo de professôres secundários distribuídos por três ou quatro pavilhões de um único instituto secundário, e três institutos de formação do magistério primário, sòmente um com instalações materiais adequadas, mas lamentàvelmente transformado numa confusa e congestionada escola secundária.

"A superintendência dêstes esboços de serviço escolar compete a um departamento de educação que não chega a preencher as funções limitadíssimas de um mero serviço de pessoal.

"Estrangulado e humilhado por tais condições técnicas e materiais enxameiam um professorado e um funcionalismo que, de qualquer modo, merecem nossa admiração, pois, a despeito de tudo, ainda florescem em exemplos nobres de devotamento e de pertinácia.

"O corpo de alunos reflete as condições do serviço. Não chega, no ensino primário, a ter estabilidade nem assiduidade e, no secundário, não chega sequer à aplicação. Para o observador razoàvelmente experimentado cumpre, entretanto, acentuar que nada disto surpreende, parecendo-lhe, antes, que a situação deveria ser pior, diante da improvisação dos meios aplicados para atingir os supostos objetivos educacionais.

E, prosseguindo na caracterização de debilidades estruturais:

"A escola primária vem-se reduzindo a uma escola de alfabetização ineficiente, com perda crescente do prestígio social. E os ginásios encaminham-se para substituí-Ia, sendo improvisados, aqui e ali, com extrema facilidade e perigosa receptividade social. Diante da falência da escola primária, os ginásios tomam as suas funções, com duplo resultado: facilidades de organização, pois são apenas cursos primários avançados, e altíssima compensação, pois servem para dar entrada às classes ornamentais do país, compostas do velho binômio de funcionários e doutores. A situação da Capital, com cêrca de 10 000 alunos nas escolas primárias públicas e 5 500 nos dois cursos secundários oficiais, dá para se perceber o rápido desaparecimento do ensino primário e a inflação do secundário. Há caso de município, no interior do Estado, sem ensino primário digno dêste nome, mas com ginásio quase luxuoso. A ansiedade por ginásios em todo o Estado se, por um lado, demonstra a sêde de educação que, a despeito de tudo, marca o nosso desenvolvimento, por outro, revela pouco sabermos das dificuldades da manutenção de ensino dêsse grau.

"Em ensino profissional, comercial, doméstico e industrial nada mantém a Secretaria, exceto pequena escola primária superior, fundada há mais de vinte anos, em Cachoeira, que não se desenvolveu, mas fossilizou-se, tomando o nome de escola profissional.

"São aspectos curiosos da deformação, que mereceriam, talvez, como fenômeno de desajustamento educativo, maior estudo.

"Dois outros serviços foram esboçados no chamado ensino público na Bahia: o de educação física e o de educação musical. Ambos refletem as condições habituais de obras encomendadas, sem a espontaneidade e o vigor das que decorrem de necessidades sentidas e vividas.

"Obedecendo a ordens e programas do Govêrno Federal e a métodos e orientação mal aprendidos e mal assimilados em cursos federais, os respectivos serviços vivem à custa de uma melancólica compulsoriedade."

E ainda na mesma linha de identificação das maiores debilidades estruturais. dizia no seu relatório de 1949:

"Se o ensino público na Bahia, na capital da Bahia, chegou ao ponto de manter mais de cinqüenta classes primárias em salas de menos de doze metros quadrados, sem o menor resquício de mobiliário ou material, que aliás os locais não comportavam, e isto, sem maior escândalo, é que a escola, como instituição educativa e instrutiva, já se achava em fase final de dissolução, constituindo apenas os remanescentes simbólicos que uma sociedade em decadência guarda, enquanto tais símbolos pagam os que os conservam. Se, no interior, várias escolas sòmente existiam para o efeito de pagamento aos mestres, que se conservaram ausentes anos a fio, é que à escola também ali já se fizera a mesma melancólica mistificação.

"Não importa quanta educação, mas qual a educação que está a criança recebendo. Se a simplificação dos meios e a pobreza dos mestres levam a escola a ensinar à criança a ser inexata, impontual, ineficiente, estúpida, mistificadora, irreal e falsa, está claro que ela não está recebendo, pelo menos um pouco de educação, mas péssima educação. O que se supunha ser apenas pouco é pouco e péssimo e sòmente menos péssimo porque pouco. Se pelo mesmo processo, formos com a educação até ao ensino superior, então teremos muito e péssimo.

"Dêste equívoco de julgar que se pode fazer da educação um processo de faz-de-conta, decorre, em muito, a terrível situação brasileira, em que o problema da educação não é sòmente o de sua deficiência, como acontece em qualquer país, mas o da própria qualidade da educação ministrada. Não é a falta de escolas que nos deve horrorizar no Brasil, mas a qualidade de suas escolas. Ora, como esta qualidade não só, de modo geral, não melhora, mas antes, se agrava, fôrça é insistir neste aspecto do problema."

Do relatório de 1950 pode-se ainda extrair êste inequívoco sinal de patologia educacional:

"No ensino primário, convém não esquecer que ocupávamos em 1946, isto é, no ano anterior ao início da atual administração, o penúltimo lugar entre tôdas as unidades da federação, inclusive os territórios, com 33 alunos por mil habitantes e um deficit de matrícula de 74%, isto é, dávamos escolas a apenas 26% da população escolar."

Formulação das diretrizes - As diretrizes que seriam impressas à educação baiana, estão claramente formuladas no Capitulo Ill da Constituição do Estado da Bahia de 1947, título "Da Educação e Cultura", artigos 117 a 120; no projeto de "Lei Orgânica de Educação e Cultura do Estado da Bahia", de 1947; no "Anteprojeto de Lei sôbre o Ensino Médio, a Formação do Magistério Elementar e a Reorganização do Departamento de Educação e Cultura", de 1950.

A inclusão, na Constituição do Estado da Bahia, do dispositivo que estabelece que "a função de educação e ensino compete ao Estado e será exercida pelo Conselho Estadual de Educação e Cultura, órgão autônomo, financeira e administrativamente, nos têrmos desta Constituição", foi uma primeira batalha vitoriosa de Anísio Teixeira, cujo curso podemos em parte sentir pelo texto do seu discurso proferido na Assembléia Constituinte da Bahia, em 17 de junho de 1947 e pelo teor dos apartes recebidos.

Era o caso de uma absoluta invocação no Brasil em relação aos nossos moldes latinos de contrôle e administração da educação pública, sempre posta em têrmos de uma ação direta do Estado, exercida por funcionários seus.

Tratava-se da instituição de um Conselho de inspiração próxima aos "boards of education" americanos, conselho de representação social e não técnica, cujo técnico era o "Diretor do Ensino e Cultura" e o elo com a administração estadual geral seria representado pelo Secretário de Educação, seu membro nato e presidente.

Quando se reflete, registre-se de passagem, sôbre certas deformações sectárias, ultramontanas, a respeito de uma falaciosa increpação a Anísio Teixeira de arauto de "monopólio estatal da educação" e se pensa sôbre a organização educacional por si proposta, em que a sociedade (muito mais total que o Estado) e a opinião pública seriam as grandes fôrças nos conselhos diretores dos rumos da educação, fica-se estarrecido com o despautério dessa aleivosia capciosa.

Nesse capítulo constitucional são relevantes os dispositivos nos quais se prevê a instituição do "Fundo de Educação" que seria "constituído com os recursos provenientes das dotações orçamentárias do Estado e dos Municípios, outros próprios que a Lei Orgânica lhe atribui e quaisquer contribuições ou doações", bem como aquele em que se prevê que "será facultado ao Conselho delegar, na extensão que julgar conveniente, em cada caso, a função de educação e ensino a Conselhos Municipais de Ensino, a cuja disposição serão postos os recursos necessários retirados do "Fundo de Educação".

Com o propósito de dar cumprimento ao disposto no Capítulo "Educação e Cultura" da Constituição Estadual, já em outubro de 1947, encaminhava Anísio ao Governador do Estado o Anteprojeto de Lei Orgânica de Educação e Cultura do Estado da Bahia.

As linhas mestras dêsse anteprojeto de lei, contido concisamente em 94 artigos, são-nos definidas pelo mesmo Anísio, na Exposição de Motivos respectiva.

Sublinhando que procurara "atender à letra e ao espírito" do texto constitucional, realça que "todo o anteprojeto é uma afirmação da confiança que o Estado, em pleno renascimento democrático, deposita na instituição que, por excelência, arma o povo para a conquista da igualdade fundamental entre os homens, a escola. Por isto mesmo sublinha, com intencional relêvo, o caráter político da educação, que constitui o direito dos direitos.

"Longe vai, com efeito, a fase do desenvolvimento democrático em que se supunha que a escola devia ser neutra e apolítica. Desafiados pela própria evolução das instituições democráticas, precisamos fortalecer aqui e podar e restringir ali, pois aprendemos - e a que preço! - que a democracia não se realiza por si mesma, mas é um produto da vontade organizada e de um propósito lúcido para a conquista dos seus objetivos. Tanto vale dizer que a democracia se faz, dia a dia, mais desenganadamente intencional, consciente e política. Dentre as instituições a fortalecer em sua luta pela eficácia está, mais que qualquer outra, a escola.

"A igualdade de oportunidades, não é atingida pela escola tradicional, de pura instrução. A escola há de se fazer o centro da vida e de hábitos do cidadão, para que o pobre possa vencer a sua terrível desvantagem de não haver nascido no ambiente civilizado e rico de estímulos dos favorecidos da fortuna."

Pondo em têrmos exatos a posição dessa lei orgânica estadual em face do que deveria ser (e não está sendo!) a lei federal, geral, de Diretrizes e Bases da Educação, escreve Anísio quanto a esta última:

"Esta lei que, por fôrça da Constituição Federal, deverá ser uma lei descentralizadora, não poderá fixar mais do que os padrões - digamos externos - da educação, ficando todo seu conteúdo para o desenvolvimento local, de acôrdo com os recursos humanos e materiais do Estado."

Em relação ao ensino particular veja-se a posição de Anísio, tão em contradição com o que lhe atribuem detratores gratuitos, como a do "exterminador totalitário" da escola privada:

"Os colégios particulares deverão florescer com perfeita liberdade de desenvolvimento, como uma ala mais flexível do ensino público, naturalmente mais rígido e sujeitos apenas aos requisitos externos que forem estabelecidos, dentro das limitações do requerido pela legislação federal.

"Libertando o ensino particular dos liames da equiparação, não se fecham, entretanto, suas possibilidades de sanção oficial, mediante o exame nos estabelecimentos do Estado."

Quanto a diretriz básica, aquela relacionada com o ensino obrigatório. Anísio a coloca nos seguintes têrmos:

"A obrigatoriedade escolar ficou estabelecida devendo ampliar-se gradualmente até a constituição do completo parque escolar primário do Estado.

"O problema tem dois aspectos, o da matrícula de tôdas as crianças e o da conservação de tôdas as crianças matriculadas na escola, pelos cinco anos regulamentares.

"Ficou o Conselho com os recursos legais para a solução de ambos os aspectos."

Quanto ao caráter experimental do que se intentava:

"O govêrno e a administração dos serviços de educação tiveram, como era de rigor, um desenvolvimento maior. Além de se fixarem os deveres e atribuições do novo organismo de direção de ensino e cultura, procurou-se definir o campo de sua ação regulamentar, deixando-se para a flexibilidade dos regulamentos e das instruções muito do que, por falta de um órgão dessa natureza, vinha sendo consagrado em lei, com real prejuízo do espírito de ensino e experimentação que deve presidir a implantação e a expansão dos serviços de educação e cultura em nosso país."

Aí vale a pena dar-se ênfase a como Anísio, fugindo deliberadamente ao fetichismo latino pela estática imobilista das leis, mesmo numa lei como essa, orgânica porque organizatória de um sistema estadual de educação, continha-a nos limites de normas e diretrizes básicas, deixando aos regulamentos, regimentos, resoluções, instruções, atos administrativos, tôda a plasticidade necessária à boa execução do ato educacional.

Reiterando esta firme diretriz, afirma:

"De qualquer modo, a lei não passa de um sistema de faculdades, dependendo a educação dos que delas fizeram o magistério e os administradores do ensino.

"Arte e ciência, como a medicina ou engenharia, as fontes da educação não estão nas leis, mas na perícia, competência e visão dos seus servidores. Os legisladores baianos confiam nesses servidores baianos da educação, que são os seus professôres."

Sôbre as bases gerais em que se estabelecia o financiamento da educação, escrevia:

"O Fundo de Educação, se está previsto com ampla possibilidade de desenvolvimento, por outro lado, tem sua aplicação sujeita ao mais rigoroso contrôle.

"Está no crescimento dos recursos do Fundo a esperança de virmos a ficar à altura da gravidade do problema escolar."

Sôbre o magistério, pedra angular na edificação de um sistema escolar, nos têrmos a seguir punha Anísio as diretrizes fundamentais do seu exercício:

"O magistério entra na categoria de uma verdadeira profissão, sujeito o seu exercício à licença, por exame de estado, isto é, exame oficial que deverá ser organizado em condições, por um lado, de aproveitar as vocações onde quer que apareçam, e, por outro lado de consagrar regime em que o candidato possa, sucessivamente, ampliar o campo do seu exercício profissional. Com relação ao magistério oficial, institui o anteprojeto o regime de salário progressivo, pelo qual todo professor pode, por seu mérito, e competindo apenas consigo mesmo, ascender na escala de vencimentos até o máximo da tabela respectiva."

Êsse renovador anteprojeto recebeu substitutivo, apresentado à Comissão de Finanças da Assembléia Legislativa, pelo Deputado José Mariani, seu relator na mesma Comissão.

Houve, nesse substitutivo, acréscimo de vinte artigos em relação ao número dos mesmos no original e tinha a finalidade, revelada pelo autor, de mitigar tudo quanto lhe pareceu excessivo na mudança em relação ao molde cultural brasileiro, porém, buscando sempre "ter realizado o pensamento contido na Constituição Baiana".

O autor do substitutivo sublinhou com propriedade que "a lei orgânica que o govêrno pede ao legislativo não é um conjunto de normas técnicas sôbre o ensino, mas uma atitude política diante do problema da educação."

Testemunhamos pessoalmente como a elaboração dêste substitutivo foi efetivamente feita com a audiência de Anísio Teixeira, artigo por artigo, de maneira a constituir uma fórmula com a qual se podia compor.

Em verdade, não houve maior alteração nas normas essenciais do projeto primitivo. Problemas de nosso direito administrativo em face da lei, situações jurídicas de um modo geral e zelos vigilantes para evitar uma transição julgada brusca em relação aos nossos moldes culturais, constituíram a preocupação dominante do autor do substitutivo, que preservava, em suas linhas mestras, o pensamento diretor do anteprojeto original.

Agora seria, lògicamente, como dizia o autor do substitutivo, confiar que "o papel do legislador é cumprir honesta e lealmente o texto constitucional", "cumprir a Carta Política tal como se nos depara, nos seus escopos fundamentais".

Anísio Teixeira esperou e esperou a vinda dessa Lei Orgânica, que obedeceria normas constitucionais. . .

No seu relatório de 1948 se lê: "O tempo não permitiu que a Assembléia Legislativa votasse a lei complementar a êsse capítulo da Constituição, a Lei Orgânica do Ensino, ficando, assim, a Secretaria privada dos podêres legais necessários para dar início à reforma".

Depois, porém... tudo foi silêncio, e a Lei Orgânica que daria forma de cumprimento aos dispositivos constitucionais sôbre educação, não veio nunca, levando a educação na Bahia a sui-generis situação de ter, até hoje, um aparelho escolar estruturado em bases que contrariam frontalmente o que dispõe a respeito a Constituição do Estado.

A que se atribuir tão singular ocorrência? A nós nos parece que a três causas fundamentais, enumeradas sem propósito de graduação prioritária.

A primeira, a uma concepção de que um plano de educação para o Estado, não era algo assim de tão básico, de tão fundamental como programa de govêrno. Era algo que devia correr os riscos da sua própria sorte na tramitação legislativa, como se ainda estivéssemos no Estado-século XIX, cujo absenteísmo educacional se refletia nas "Inspetorias" de Estudos ou de Ensino, ao invés da liderança da educação, própria ao Estado democrático moderno e exercida pelas "Diretorias" ou "Secretarias" de Educação e Cultura.

A segunda, influenciada pela primeira, a uma rigorosa, estrita reverência à teoria da autonomia das esferas de poder, executivo, legislativo, judiciário.

A terceira, representada pelos sustos de muitos, de que a educação pudesse escapar a certas influências pessoais, diretas, muito úteis a alimentação de prestígios eleitorais, ainda que, em alguns casos, a dano da educação.

Em resumo, não houve providência de endôsso firme do executivo à lei, como ocorreu no tempo de Góes Calmon no qual, todavia, vale ressaltar, a situação do executivo em relação aos partidos políticos então existentes, dava ao Govêrno uma maior fôrça na Assembléia Legislativa.

Em seu relatório de 1950, afirmava Anísio Teixeira, ainda teimosamente esperançado quanto à vinda da lei:

"Em educação, nutrimos a esperança de ver votada a Lei Orgânica do Ensino e a sua primeira lei complementar, cujo anteprojeto já foi elaborado, de reforma do ensino médio e de formação do magistério e de restruturação da carreira do professor primário e dos órgãos de administração técnica do ensino. Organizado que seja o Conselho de Educação e Cultura do Estado, as demais leis já serão objeto de seu estudo e elaboração."

Nesse "anteprojeto de lei sôbre o ensino médio, a formação do magistério elementar e a reorganização do departamento de Educação e Cultura", de autoria das Superintendências Gerais de Educação e do Ensino Secundário, Normal e Profissional, sob a supervisão de Anísio Teixeira, apresentado em janeiro de 1950 e encaminhado pelo Executivo ao Legislativo se visava, nos seus 88 artigos, enquadrar a educação nos moldes que deveriam ser os da Lei Orgânica e ganhar endôsso legislativo a certas medidas já tornadas, como, entre outras, as da instituição de Divisões e Superintendências, que a prática viria a demonstrar corresponderem a necessidades sentidas e, por isto, inadiáveis na adoção.

Entre os aspectos mais relevantes dessa lei, podem citar-se os relacionados com a reestrutura do Departamento de Educação e Cultura, onde funcionaria o seu Conselho Técnico, e que teria sua ação exercida através das seguintes Divisões: de Administração; de Prédios e Aparelhamento Escolar; de Pesquisas, Planos Educacionais e Estatística; de Ensino Elementar; de Ensino Médio; de Difusão Cultural com as Superintendências, Serviços e Seções correspondentes.

Reestruturava-se o funcionamento dos cursos de nível médio, procurando-se retificar a tendência ao exclusivo fomento a ensejos de oportunidades na linha do intelectualismo acadêmico; previa-se a transformação do Instituto Normal, da Bahia, com ênfase na sua Escola de Professôres, em seus vários estágios; conferia-se autonomia administrativa aos vários ginásios integrantes do Colégio Estadual da Bahia; legislava-se sôbre o funcionamento dos Centros Regionais de Educação.

Propunha-se o funcionamento do serviço de orientação educacional; criavam-se, no ensino secundário, com objetivo de integração, as seções de matérias com os respectivos professôres-chefes e conselhos técnicos; instituia-se a função de dirigente escolar de atividades extra-classe; reclamava-se o certificado de aprovação na quinta série primária para habilitação ao exame de admissão ao curso secundário; exigiam-se provas para aceitação dos transferidos para escolas oficiais; estruturava-se a organização dos cursos profissionais de nível médio.

No que respeitava à formação do magistério elementar estabelecia-se fôsse a mesma feita nos níveis médios de primeiro e de segundo ciclos (regente e normalista) e, em nível superior, sempre com possibilidade de acesso e com seleção à base de provas de aptidão.

No curso de estudos dessas escolas, nos níveis de segundo e terceiro graus, havia, entre outras, as seções de educação, de prática de ensino e de matérias de ensino.

Elaborava-se a carreira do magistério no ensino secundário e exigia-se o estágio probatório como o remate necessário à prova de habilitação para ingresso no mesmo.

Concedia-se o salário progressivo, instrumento de obtenção de vantagens financeiras, conferidas ao magistério e aos técnicos, por quinqüênio, não à base exclusiva de tempo de serviço, mas de tempo eficaz de serviço, objetivamente apurado.

Cuidava-se, nesse anteprojeto, de revigorar os quadros dirigentes do Departamento de Educação e dos estabelecimentos de ensino médio; fixava-se o quadro do magistério elementar em números condizentes com as necessidades; previa-se a criação de internatos e semi-internatos no Instituto de Educação e em ginásio situado em área da capital onde era mister maior assistência ao educando; descentralizava-se a educação mediante o funcionamento das delegacias regionais de ensino no interior, "destinadas a funcionarem como pequenas diretorias regionais de educação".

Êsse anteprojeto teve, no que lhe era essencial, o mesmo melancólico malôgro da Lei Orgânica, quanto à aprovação legislativa.

Concluiu-se o govêrno Octavio Mangabeira sem que fôsse êle aprovado pela Assembléia Legislativa e, no govêrno seguinte, foi transformado numa pura e simples lei de cargos, vencimentos e vantagens, que a mais não se alçou o interêsse efetivo sôbre o assunto.

 

As prioridades básicas - Ei-las definidas a seguir, conforme o relatório de 1948:

 

Ensino primário - "a obra de recuperação do ensino primário tem de atingir o prédio escolar e seu aparelhamento, o professor e o aluno. Primeiro, há que exigir um teto para cada escola. Não é possível continuar-se com a "escola-professor". o mestre é um elemento sem dúvida essencial, mas não pode trabalhar sem local e material adequados. A escola sem prédio é uma demonstração do conceito "escola formalidade", ou de escola para mistificar a necessidade de educação da população mais pobre.

"Como não podemos, entretanto, construir imediatamente tôdas as escolas públicas necessárias, ter-se-á de organizar um plano de escolas provisórias, semiprovisórias e permanentes.

"A escola provisória, nos casos extremos, poderá ser um simples galpão, admitindo-se qualquer cobertura. A escola semiprovisória será de material mais permanente, mais ainda extremamente econômica. A escola definitiva compreenderá diversos tipos, desde o mínimo até o compreensivo.

"Ao lado dessa reinstalação da escola elementar, deve processar-se a reforma do magistério primário. A formação de professôres é a pedra angular da reconstrução do ensino."

 

Ensino secundário - "devemos oferecer educação pós-primária ou secundária a uma porcentagem apreciável da população escolar. Nessa educação, começaremos a proceder as semi-especializações do trabalho humano. Os cursos, aí, terão endereços de cultura geral, comercial, doméstica e industrial e se destinam ao preparo das múltiplas elites de uma democracia.

"Imaginamos uma rêde de sete a onze centros regionais de educação. Em tais centros, manteremos escolas normais e escolas secundárias (com os cursos de cultura geral, comercial, doméstica e industrial) com regime de externato e internato. Nos internatos, serão matriculados os alunos mais dotados dos municípios pertencentes à região." Era a idéia da expansão gradual do sistema escolar até o nível de segundo grau, reivindicada por Anísio desde o tempo de Vital Soares, em 1929.

 

No ensino superior - "em ensino superior, o Estado limitar-se-á à Fundação Baiana de Ciência instituída na Constituição. Essa Fundação terá três grandes departamentos de ciências físicas, ciências biológicas e ciências sociais". A criação desta Fundação, assinale-se, foi uma realização das mais ricas de virtualidades da gestão de Anísio.

 

As realizações mais significativas e os instrumentos visados para a execução dos planos. Nas primeiras palavras do seu relatório de 1949, assinalava Anísio:

"Depois de mais de um ano de administração dos serviços educacionais do Estado, cumpre-nos registrar a situação pouco satisfatória dos mesmos, a despeito de esforços, por vêzes extenuantes, dos que tiveram a responsabilidade de seu desenvolvimento."

Um trabalhador infatigável da ordem de Anísio utilizando a expressão "extenuantes", é bastante para dar a medida do que foi o árduo trabalho de sua administração, diàriamente realizado até altas horas da noite, e, tantas vêzes, por domingos e feriados, sem descanso!

Os percalços para atingir as metas visadas eram muitos e vários, podendo ser identificados desde a falta de lei indispensável, até os problemas de natureza técnica e financeira e, talvez mais essencialmente, na atitude de arraigada resistência à mudança, por inércia cultural.

De qualquer modo, os resultados colhidos não deixaram de representar um grande, vigoroso impulso à expansão do sistema educacional baiano, como se pode aferir mediante a exposição de alguns dos seus aspectos mais definidores.

Começando pela utilização da contribuição das ciências sociais à educação como instrumento básico a um planejamento conseqüente da mesma, foi significativo o esfôrço em prol dos estudos de ecologia regional, resultando em trabalhos ricos de virtualidades de exploração, como aquêle sôbre as Áreas Ecológicas da Bahia, coordenado por Charles Wagley e Thales de Azevedo, os estudos de comunidades, como os efetuados sôbre o recôncavo por L. A. Costa Pinto, e os constantes dos livros de Marvin Harris Town and Country in Brazil, e, de H. Hutchinson, Village and Plantation Life in Northwestern Brazil.

A expansão quantitativa e qualitativa da escola primária, como indispensável agência educativa comum à nacionalidade, constitui uma indiscutível constante no pensamento educacional, democrático, de Anísio Teixeira, que, como administrador escolar pode responder vantajosamente à aflita pergunta de Almeida Júnior: "E a Escola Primária"?

Documento expressivo dessa firmeza de convicções de Anísio em tôrno à prioridade da escola primária para todos se encontra em discurso na seção de encerramento da Terceira conferência Nacional de Educação, promovida pela ABE, em São Paulo, em setembro de 1929, onde estêve representando a Bahia.

A êsse tempo discutia-se nessa Conferência, vivamente, a questão de escola elementar de dois anos para todos, que Sampaio Dória justificava para São Paulo, como o caminho para obter a escolarização básica comum.

Em que pese a simplificação implícita a essa drástica redução do período escolar primário, contra a qual posteriormente tanto lutaria Anísio, o fato da prevista extensão da escola a todos, o levava a se manifestar favoràvelmente a essa organização, como contingência provisória.

Leiamo-lo: "Mas não teve, de logo, o serviço público de educação a presunção de poder assim se organizar, integralmente. O paulista, antes de tudo, não é um visionário. A sua imaginação, adestrada na realidade imediata de sua luta diária pela vida, não se entusiasma senão pelos ideais praticáveis e exequíveis.

"Fôsse preciso reduzir os cursos até o mínimo, não importava, contanto que se estendesse ao máximo o número de paulistas que por êles viessem a ser favorecidos."

No seu período de administração educacional de 1947 e 1951, foi notável o que realizou a respeito, conforme buscaremos demonstrar.

Jogando com dados estatísticos de 1946 a 1949, verifica-se que nesse período a matrícula na escola elementar estadual subiu de 120 133 até 258 393 alunos e a freqüência de 81 636 a 176 272; o ensino supletivo, de adultos, teve sua matrícula crescida de 62 822 para 90 447 de 1947 a 1949; as unidades escolares estaduais subiram de 2 155 a 5 009 em 1949; o seu corpo docente de 2 479 a 6 232 professôres; a média, de alunos, por mil habitantes, subiu de 33 em 1946, para 63 em 1949!

Ao lado dessa considerável expansão quantitativa no campo do ensino elementar, todos os demais aspectos do problema mereceram vigoroso ataque da administração.

A questão de prédios escolares foi daquelas que ganhou os mais seguros critérios planejados de expansão e de eficácia.

O serviço respectivo, dentro da Secretaria de Educação e Saúde, beneficiou-se seja de uma harmoniosa e constante fertilização de ponto de vista do educador parar com os engenheiros construtores, seja pelo fato de, da planta à execução final da obra, ser um empreendimento inteiramente dentro da Secretaria de Educação, ao invés de ser confiada a sua execução a uma outra Secretaria, distante do educador, no caso a de Viação e obras Públicas.

Esta foi uma reivindicação firme de Anísio, não fácil de obter, mas que se realizou com os melhores resultados.

O que se efetuou no particular de prédios escolares, seja no caso das escolas rurais, em cooperação com o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, seja no planejamento para os núcleos urbanos, das escolas mínimas, das escolas nucleares, das escolas compreensivas, honra, sem favor, a capacidade técnica de uma administração.

O modêlo para expansão e restauração da escola primária na Bahia, expresso no Centro Popular de Educação designado Centro Educacional Carneiro Ribeiro é algo, positivamente, sem similar no aparelho educacional brasileiro e onde está a inspiração para a nossa autêntica escola primária, adequada aos grandes centros urbanos nacionais.

Como afirmava Anísio no discurso inaugural do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, - "é contra essa tendência à simplificação destrutiva que se levanta êste Centro Popular de Educação. Desejamos dar, de novo, à escola primária, o seu dia letivo completo. Desejamos dar-lhe os seus cinco anos de curso. E desejamos dar-lhe o seu programa completo de leitura, aritmética e escrita, e mais ciências físicas e sociais, e mais artes industriais, desenho, música, dança e educação física.

"Além disto, desejamos e a escola eduque, forme, hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare, realmente, a criança para a sua civilização - esta civilização tão difícil por ser uma civilização técnica e industrial e ainda mais difícil e complexa por estar em mutação permanente. E, além disto, desejamos que a escola dê saúde e alimento à criança, visto não ser possível educá-la no grau de desnutrição e abandono em que vive.

"Tudo isto soa como algo de estapafúrdio e de visionário. Na realidade, estapafúrdios e visionários são os que julgam que se pode hoje formar uma nação pelo mundo por que estamos destruindo a nossa.

"Daí esta escola, êste centro aparentemente visionário. Não é visionário, é modesto. O comêço que hoje inauguramos é modestíssimo: representa apenas um têrço do que virá a ser o Centro completo. Custará, não apenas os sete mil contos que custaram êstes três grupos escolares, mas alguns quinze mil mais. Além disto, será apenas para 4 000 das 40 000 crianças que teremos, no mínimo, de abrigar nas escolas públicas desta nossa cidade. Deveremos possuir, e já, não só êste como mais 9 centros iguais a êste.

"A escoIa-classe aqui está: é um conjunto de 12 salas de aula, planejadas para o funcionamento melhor que fôr possível do ensino de letras e ciências, com disposições para administração e áreas de estar. É uma escola parcial e para funcionar em turnos. Mas virá integrá-la, a escola-parque. A criança fará um turno na escola-classe e um segundo turno na escola-parque. Nesta escola, além de locais para suas funções específicas, temos a biblioteca infantil, os dormitórios para 200 das 4000 crianças atendidas pelo Centro e os serviços gerais e de alimentação.

"Além da reforma da escola, temos o acréscimo deste serviço de assistência que se impõe, dadas as condições sociais. A criança, pois, terá um regime de semi-internato, recebendo educação e assistência e alimentação."

Êste lúcido e generoso plano de uma escola "platoon" aprimorada, ainda está distante de realização na sua previsão total. Foi mesmo preciso que Anísio drenasse posteriormente recursos do INEP, para que prosseguisse o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, no bairro proletário da Liberdade.

Mas o que, vitoriosamente, já existe parcialmente e os resultados obtidos são suficientes para que seja êle verdadeira Universidade do Ensino Elementar, que edifica e convence os que o visitam, embora, infortunadamente, seja insuficientemente conhecido do meio educacional brasileiro, como fonte de segura inspiração a realizações outras em sua linha, tão oportunas ao Brasil que se industrializa, urbaniza e democratiza.

A seleção do magistério primária por concurso foi norma invariável da administração Anísio Teixeira.

Os esforços por um ponderável suprimento de mobiliário, livro didático, material escolar, conseguiram, atingir índices bastante elevados.

A Biblioteca Central de Educação, instalada na Capital e que deveria constituir o núcleo central da rêde de bibliotecas escolares em cada sede municipal, foi outra iniciativa de larga visão e cuja continuidade beneficiaria eficazmente o sistema escolar da Bahia.

 

Os Centros Regionais de Educação - Êstes Centros constituíam um dos instrumentos mais acarinhados por Anísio, para realização de seu plano educacional, de expansão ordenada, autêntica, gradual e conseqüente, da escolarização pública.

No seu relatório de 1948, assim se refere Anísio a êles:

"Além do sistema de educação elementar a que acabamos de nos referir, ao Estado cumpria organizar seu sistema de ensino médio ou secundário. Para êste fim, foi seu território dividido em dez zonas ou regiões, localizando-se em cada uma delas um Centro Regional de Educação, destinado a oferecer oportunidades de educação pós-primária ao grupo mais selecionado de alunos das escolas elementares.

"Os Centros Regionais de Educação devem compreender:

I - Jardim de Infância

II - Escola Elementar modêlo

III - Escola Normal

IV - Escola Secundária, com seções:

a) de cultura geral

b) de cultura doméstica

c) de cultura técnico-industrial

d) de cultura comercial

V - Parque escolar

VI - Centro Social e de Cultura

VII - Internatos."

No relatório de 1950, aludindo à expectativa do início de construção dêsses Centros em Barra, Joazeiro, Beira, Itabuna, Conquista e Caetité, "graças à cooperação do Ministério da Educação", escrevia Anísio, já traindo uma ponta de melancolia ante as dificuldades para que se concretizasse o seu plano: "A Capital também funcionará como um dêsses Centros, o primeiro e o maior, compreendendo os municípios do recôncavo baiano.

"O Colégio da Bahia e o Instituto Normal constituirão os seus núcleos principais, auxiliados pelos ginásios e de bairro.

"Infelizmente, ainda não pôde ter início nenhuma das construções projetadas. Considerar-nos-emos felizes se pudermos dar início à construção do Ginásio do Garcia, cujo projeto se acha completo e a escolha de terreno feita e o preço de aquisição convencionado".

Nem mesmo o início de construção dêsse magnífico Ginásio do Garcia, um primor de arquitetura pedagógica funcional, onde se realizaria na Bahia e quiçá no Brasil, um primeiro Centro Compreensivo de Ensino Médio devidamente planejado, foi efetuado.

Nada obstante a falta de obtenção por Anísio dêsses canais de realização básicos à vigência do seu plano educacional, nem por isso deixaram de ser substanciais as iniciativas de sua gestão no campo do ensino médio.

A criação dos ginásios de bairro da capital, ampliando a ação do Colégio da Bahia e descongestionando-o, (Nazaré, ltapagipe, Liberdade) foi uma delas, não sem encontrar rejeições de alguns burocratas federais e estaduais, ferrenhos no seu inibidor fetichismo pela lei interpretada strictu sensu, formalìsticamente.

No interior também abriram-se ginásios estaduais nas Escolas Normais de Feira de Santana e Caetité e auxiliou-se, técnica e financeiramente, o Ginásio Municipal de Ilhéus.

Instituíram-se cursos de iniciação profissional no Ginásio da Liberdade, bairro proletário da Capital; de 1948 a 1950 cresceu de quase trinta por cento o número de matriculados entre os de escolas secundárias estaduais e bolsistas mantidos pelo estado; renovou-se, substancialmente, o equipamento didático, especialmente para o ensino de línguas e de ciências.

Obras dignas de realce foram as de instalação do laboratório de ciências naturais, com anfiteatro, no ginásio de Nazaré e a importante construção do Pavilhão Anfiteatro de Química, com Laboratório e Sala de Professôres, no Colégio Estadual da Bahia, dando condições a uma aprendizagem individual da matéria, digna de ombrear-se com o que de melhor existir no continente.

O aspecto qualitativo na docência do ensino médio foi outro aspecto sèriamente visado na administração Anísio Teixeira.

A tradição mais recente era de fases discricionárias em que a investidura definitiva na docência era questão de simples arbítrio pessoal dos detentores do poder, à base de prestígio político.

Para normalizar êsse extravagante estado de coisas, mais de cem severos e eficazes concursos foram efetuados para as escolas secundárias da capital e interior, com resistências que se mediam pelos mandados de segurança impetrados ao judiciário.

Todo o plano educacional de Anísio, orgânico e articulado à base de prioridades racionalmente estabelecidas, repousava substancialmente, como dizia êle em seu relatório de 1948, em "recursos humanos, recursos de dinheiro e recursos de continuidade e de tempo. Por isto, é que, o Conselho de Educação precisa de autonomia e de flexibilidade. Impossível realizar tais planos sem financiamento adequado. O recurso ao empréstimo é inevitável. O Conselho autônomo e com fontes apropriadas de recursos é o órgão natural para tentar êsse empréstimo pelo qual cada pai de criança no Estado venha a contribuir com suas economias para a edificação da escola de seu filho e dos filhos do seu filho. A apólice escolar será o novo instrumento de reconstrução escolar da Bahia. As verbas orçamentárias se destinarão a pagar-lhes os juros seguros e fiéis dêsse, empréstimo sagrado."

 

A reação do meio - Evidentemente não houve, na volta de Anísio, a desconfiança enciumada, as reservas que ocorreram quando de sua investidura em 1924. Já se consolidara êle, notàvelmente, como profeta da educação, fora de sua terra, mundo afora!

O debate havido em tôrno aos seus planos, seja no meio político como profissional, não teve como tema central a propriedade de sua política educacional, nem a estrutura organizatória prevista para o aparelho escolar.

Foi um debate, na parte parlamentar, essencialmente sôbre aspectos jurídicos, especialmente sôbre questões de área de poder do novíssimo Conselho, cuja criação a Constituição determinava.

Na área profissional, o interêsse se cingia quase exclusivamente aos aspectos relacionados com situações funcionais, seus direitos, vantagens e também deveres. No meio cultural o que se sentia, de um modo geral, era a mesma velada e tenaz resistência à mudança, característica dos estados de inércia cultural.

Nenhuma demonstração mais cabal dessa resistência à mudança do que a negativa à sanção da Lei Orgânica que viria cumprir a Constituição.

Anísio assim o reconheceria, ao sublinhar, em seu relatório de 1950:

"ao lado disto, cumpre, talvez, ressaltar que dado o feitio paradoxalmente formalista de nossa sociedade, o fato de não se achar a nova ordem de cousas consolidada por legislação adequada dificultou a sua efetivação.

"De qualquer modo, chegamos ao ponto em que é indispensável a lei para configurar eficazmente a descentralização administrativa, que se impõe, a fim de se dar ao ensino primário e ao seu professor, condições de trabalho ordenado, estímulo e progresso.

"Por isto é que o projeto de lei elaborado pelos técnicos do Departamento de Educação e que, à primeira vista, só devia ser votado após a Lei Orgânica do Ensino, tornou-se urgente, levando-nos a pedir a sua aprovação antes mesmo da lei constitucional da educação."

Como já dissemos, anteriormente, tão pouco essa lei foi concedida e êste conjunto de circunstâncias, fortemente impeditivo, bem explica a distância entre o programado e o realizado, êste evidentemente não pouco, antes pelo contrário, todavia distanciado do muito mais que se desejara e planejara para a educação na Bahia.

A propósito dessa tenaz resistência à mudança no setor profissional, ocorre-nos episódio ilustrativo, que testemunhamos. Em certa solenidade em escola pública, o orador, antigo professor da casa, derramou-se em sua oratória frente a Anísio, numa veemente repulsa a tudo quanto implicasse em escola ativa, em renovação pedagógica, num típico caso de fixação em velhas concepções, em antigas estruturas pedagógicas, em tôrno de cuja perenidade fazia desenganada profissão de fé.

Não menos significativa foi a sentença de certo parlamentar, invectivando a reforma de Anísio: "tudo tem ali é filosofia e nada mais". E prosseguia afirmando que "discordava da aplicabilidade dessas avançadas teorias educacionais em nosso meio, sobretudo porque elas não correspondem devidamente à realidade econômica e cultural em que vive enquadrado o nosso povo".

O campo escolar é, habitualmente, uma área de inércia cultural das mais herméticas à frutificação de novas teorias e nova práticas e esta atitude de resistência pedagógica ao novo parece encontrar na cultura baiana concordância de clima cultural particularmente favorável.

Vai na afirmativa simples propósito descritivo e não intenção valorativa.

Nem seria, aliás, caso para estranhezas mais profundas quanto à lerdeza de mudanças na escola numa sociedade estática, se nos ocorre o cotejo com o que Harold Rugg, da Columbia University, nos conta, nos mesmos casos onde há perceptível defasagem entre a escola e modelos sociais dinâmicos, como seria o caso norte-americano: "Nem uma só vez, em século e meio de história nacional, o curriculum escolar coincidiu com o dinâmico da vida americana" (1).

Por outra parte, será procedente reconhecer que sem alienadamente repudiar seja a administração a arte de fazer o possível, Anísio não é homem de realizar-se nos estritos limites do reformador strictu sensu, no oportunismo da promoção de pequenas, parciais, limitadas, conciliadoras reformas, acidentalmente disseminadas aqui o acolá, para obter progressos, sem tocar nas estruturas profundas.

Sua mais acentuada tendência, sua vocação mais autêntica e que constitui sua glória e seu tormento é a do coerente revolucionador de estruturas caducas, que não se arreceia de levar ao fim suas premissas básicas, procurando agir estruturalmente, fundamentalmente, de modo a atingir em tôda sua extensão o organismo global, na linha do que lhe parece próprio reestruturá-lo, redirigi-lo.

Não é por acaso que já em 1928 escrevia, em Aspectos Americanos da Educação, em plena linha experimentalista: "qualquer escola cujos ideais fôssem estáticos - a aquisição de certas formas de cultura ou de certas habilidades fixas, - faltaria ao preceito fundamental de coincidir com a sociedade de que ela deve ser o reflexo. A escola, como a sociedade, deve manter o espírito de inquérito constante, de permanente hospitalidade a novos "standards", de simpatia e cooperação com as mudanças e os progressos.

"A sociedade democrática deve ser uma agência em contínua atitude reorganizadora, correlativa àquele estado."

Anísio Teixeira, com modéstia e sutileza que lhe são próprias, assim condensa o balanço dessa fase de tão árduo esfôrço: "O que foram êstes quatro anos, você sabe tão bem quanto eu. Não fizemos muito. Mas que prazer e que alegria trabalhar, como trabalhamos, em um govêrno notável pelo que fêz de palpável e concreto mas sobretudo excepcional pelo que realizou de invisível: a justiça, a liberdade e a confiança" (1).

A fé de um depoimento - Quanto em nós coube buscamos dar a êste documento, a maior objetividade de exposição e isenção de julgamento. Não cremos que nosso aprêço a Anísio Teixeira, que ao nos convocar para o seu grupo nos ressuscitou o gôsto pelo trato dos problemas de educação, perdido no exercício rotineiro de uma inspeção de ensino esvaziada de conteúdo, tenha projetado os matizes da tendenciosidade afetiva no balanço crítico de sua obra educacional na Bahia. Não nos parece têrmos escrito um panegírico, mas uma análise refletida, donde não desertou o espírito crítico.

Em verdade devemos, lealmente, confessar que, ressalvadas as legítimas reservas de Anísio em admitir o grave risco de ter discípulos, ninguém, mais do que êle, teria socràticamente nos influenciado a formação profissional, no exercício diário do agridoce privilégio de cooperar com êle, homem público de excepcional altitude e largueza de vistas.

Esta condição de antigo companheiro de trabalho nos impele a referir aqui alguns episódios autênticos, significativos para se delinear seu exato perfil, tão deformado por julgamentos distantes ou tendenciosos.

Vamos citar apenas três episódios ocorridos ao tempo do govêrno Mangabeira, que demonstram a firmeza de suas convicções, insuscetíveis de serem transacionadas por consideração de conseqüências de natureza pessoal.

Ao aprovar a Assembléia Legislativa da Bahia subvenção à Universidade, não vacilou Anísio em justificar e obter o veto governamental, não, evidentemente, pelo mérito em si da proposição, mas em face da escassez de recursos para atender a necessidades outras, mais fundamentais, mais ingentemente prioritárias da educação baiana. Êsse episódio de perigosa coragem quanto de estóica firmeza de convicções, gerou-lhe, inicialmente, incompreensões emocionais que o tempo todavia sarou completamente, para honra dos nêle envolvidos.

Outro episódio significativo foi o de negar auxílio, de sua Secretaria, pretendido por alta, respeitável figura da hierarquia católica, seu amigo fiel de tôdas as horas, para a instituição de Universidade, cuja duplicação autêntica na Bahia lhe parecia de todo inviável.

Ainda outro fato demonstrativo da firmeza de suas convicções, no caso quanto à conveniência do localismo educacional, foi o de declinar firmemente, incomovível às seduções do mando, da direção, pelo Estado, do ginásio municipal de Ilhéus, quando, fazendo embora todo o empenho em ajudá-lo, não admitia ficasse êle fora da órbita da direção municipal.

É bem que se saiba ser Anísio, humanamente, um afetivo profundo, que sofre e faz sofrer aos que o cercam, quando o ferem as malignidades da incompreensão, deturpação, adulteração de seu pensamento e de sua obra, com as enviesadas estreitezas do sectarismo obscurantista.

Vale também ser conhecido que ninguém menos sectário, menos ortodoxo, mais flexível, experimentalista, tolerante, dialèticamente aberto aos contrários no irrepreensível exercício da função pública, do que êle.

Na ação estadual e federal teve sempre, ao seu lado, em postos-chave, convictos católicos militantes e êles aí estão vivos, para informarem se em algum tempo e de alguma forma, jamais, nem de leve, pretendeu insinuar-lhes qualquer coação ou mesmo restrição à sua ação.

Por último, uma tentativa de definição, não no sentido justificador e defensivo, o que seria absurdamente incabível, mas apenas como esfôrço de caracterizar e esclarecer convicções.

Cremos, à base de nossa interpretação, que a posição pessoal de Anísio Teixeira em relação à questão de escola pública e ensino nela de religião, poderia ser sintetizada dentro do ponto de vista de Dewey: "a religião organizada, como nós a conhecemos, é autoritária; ela clama por um monopólio de verdades absolutas e valores que a investem como impositora de seus dogmas a quem quer que alcance.

"Tal imposição é liminarmente antitética à função própria da escola pública que não está sujeita a qualquer espécie de dogmas; aprendizagem é um processo aberto e experimental, sem nada de exclusivamente impôsto."

Por assim pensar, se é que interpretamos à justa o seu pensamento, republicanamente não é legítimo que qualquer inquisidor, em nome de intempestivo Tribunal do Santo Ofício lhe peça meças, pois esta será uma convicção de garantida livre consciência pessoal que, de modo algum, Anísio transporta para impor no exercício da função pública, onde age como legítimo e atento pluralista cultural.

Se quisermos, à guisa de ilustração sôbre sua personalidade, defini-lo à base de uma filosofia, não o seria, ao nosso ver, como materialista, o que sua obra intelectual estaria longe de confirmar, congruentemente.

Sendo o pragmatismo a sua filosofia educacional é importante considerar, em primeiro lugar, que do ponto de vista de suas aplicações à vida escolar, é exata a observação de John L. Childs: "mesmo as práticas educacionais de muitos que rejeitam suas idéias filosóficas básicas, têm sido profundamente influenciadas pelo programa de Dewey de reconstrução escolar".

Salvo para círculos dominados por uma atitude sectária de regressivismo cultural obscurantista, é correta a assertiva do mesmo John L. Childs, ao sublinhar que êsse programa de reconstrução escolar "vale tanto para os leaders de escolas privadas e confessionais como para o sistema público de escolas seculares, ambos os grupos tendo se beneficiado das formulações educacionais de Dewey".

Registre-se outrossim que muitas das acusações a Dewey correm por conta da ignorância sôbre o mesmo, como ainda John L. Childs pertinentemente sublinha: "Um dos infortúnios de Dewey é que êle tem sido discutido, debatido, deplorado e devotamente louvado, muito mais do que tem sido lido".

Quanto à questão de materialismo, idealismo e pragmatismo é discutível a posição materialista atribuída a êste último, por idealistas, solipsistas ou teológicos.

Se é exato que Albert Pinkevich escreveu, em 1929, que Dewey exerceu uma "tremenda influência" sôbre a educação soviética e que êle estava "infinitamente mais próximo a Marx" que qualquer educador de seu tempo, não se deve, todavia, perder de vista as influências idealistas nos primórdios da vida de Dewey que levam alguns dos seus exegetas, como por exemplo Frederic Lilge (John Dewey, 1859-1959, Reflections on his Educational and Social Thought), a afirmar: "Dewey foi um hegeliano durante seus anos de graduação em John Hopkins.

"Mas, gradualmente, por volta de 1890, êle despojou-se do idealismo e desenvolveu seu próprio método de pensamento que é o do naturalismo pragmático."

O que é certo, todavia, é que para exegetas atuais do materialismo ortodoxo como, entre outros, Roger Garaudy (A Teoria Materialista do Conhecimento, Presses Universitaires de France, 1953) o pragmatismo não é senão "uma variante do idealismos", o "idealismo da ação", uma alienação agnóstica flutuando à deriva entre o idealismo e o materialismo, "bordando arabescos entre os temas fundamentais de Berkeley, Kant ou Hegel", tomando, parcialmente, a eficácia, a utilidade como critérios de verdade, em "oposição radical" ao materialismo que "mostra que o pensamento não é útil, eficaz, senão enquanto reflete a realidade objetiva, independente do homem e na medida em que a reflete fielmente".

Seria o pragmatismo, segundo essa análise, nada mais do que "uma forma nova da sofística e da escolástica", uma pura "mitologia da decadência".

Fica o tema aqui apenas suscitado pelo interêsse que encerra, capaz de justificar especulação mais aprofundada por especialistas na matéria, o que evitaria simplificações ao jeito daquelas habituais às improvisações brasileiras, tantas vêzes carentes de segura fundamentação.