POLÊMICA

COM O JORNAL "A TARDE"

 

ESTAMOS

EM PLENA REVOLUÇÃO SOCIAL

 

 

Discurso de Anísio Teixeira, publicado na edição de 21/07/49

 

 

Meus colegas estudantes:

Não vos venho falar - obedecendo ao convite com que me honrastes - como mais velho. Tão extraordinários são os nossos tempos, que até esta diferença ou distância, se quiserdes, está apagada. Somos todos hoje velhos, ou somos todos moços, tão precoce é, por um lado, o vosso amadurecimento e tão palpitantes são, por outro lado, as nossas perplexidades e desajustamentos. E ser moço não é, em parte, viver ainda esta fase de busca e de coordenação que todos estamos vivendo? E ser amadurecido ou velho não é alimentar as determinações, as seguranças e, por vezes, as obstinações de modo nenhum raras, hoje, entre os jovens? Convenhamos, pois, que somos todos, mais ou menos, da mesma idade, para que vos possa falar de igual para igual, sem falsos constrangimentos nem diferenças falsas, mas com a franqueza e o abandono de companheiro e colega.

Estes congressos de estudantes com que, há doze anos, vindes saudavelmente agitando o país, são, por si mesmos, um sinal dos velhos tempos e comprovam a observação que acabo de fazer do vosso amadurecimento e, simultaneamente, a das grandes mudanças de nossa época.

Destinam-se, em essência, não a iniciar debates, mas a participar do grande e comum debate dos povos e dos indivíduos, em face da revolução social em curso no mundo inteiro. Porque este é o fato que temos de encarar frontalmente e friamente, se é que desejamos entender os problemas de nosso tempo.

Não estamos preparando, não estamos esperando, nem estamos evitando a revolução. Estamos em plena revolução social e estamos nela desde, pelo menos, os fins da década anterior a trinta. Nosso problema não é, pois, o de fazer a revolução, mas o de dirigí-la e orientá-la para o maior bem do mundo e o menor sofrimento social. Como a revolução industrial de ontem, não se faz pela vontade dos homens mas pela eclosão de forças acima do controle humano.

Em que consiste, entretanto, essa revolução, que sentimos em volta de nós, e cujo curso já está marcado pelo maior cataclisma da história - a última guerra - e que, ainda assim, tão ligeira é a memória humana, muitos dentre nós, parece, agora, já estarem dela despercebidos?

As tendências fundamentais dessa revolução já se acham definidas com razoável consenso de opinião. Não se trata de matéria política e controvertida mas de verificação de sociólogos e pesquisadores sociais e, em rigor, de história, de história contemporânea, desta história que tanto ignoramos, talvez por apenas vivê-Ia em vez de a aprendermos na escola e nos livros. Julian Huxley, para citar um cientista mais do que um pensador político, condensa a revolução de nossa época nas três grandes tendências seguintes, que, de um modo ou de outro, se encontram em operação em todas as nações do mundo, sejam revolucionárias ou não. (Porque, como diz ele, muito bem, muitos hoje fazem revolução, como Monsieur Jourdain fazia prosa, sem o saberem). A primeira tendência é a da subordinação do econômico-financeiro ao não econômico-financeiro, a subordinação do dinheiro e da riqueza a motivos sociais. A segunda, é a tendência para a ação planejada em substituição ao atomismo do laissez-foire da revolução industrial. A terceira, é a tendência para maior unidade e integração social, com o desaparecimento progressivo das divisões sociais e a sua inevitável seqüela de iniquidade econômica.

Antes de prosseguir, tranqüilizemos, de logo, as consciências que, suportando, embora perfeitamente, o impacto dessas grandes tendências ou forças, recusam-se, entretanto, a ouvir alguém chamá-las pelo nome de revolução e ainda menos de revolução social.

Não lhes alteramos o contorno por lhes dar o verdadeiro nome. Elas são, queiramos ou não, a revolução social. E a sua atuação é clara e manifesta em todas as nações, desde a velha Inglaterra e as velhíssimas China e Índia, até a novíssima Israel. De todos os países, talvez sejam os Estados Unidos a nação em que o fenômeno é menos consciente, mas, nem por isto, deixam as forças a que nos referimos de ali atuar. E para prová-lo, bastariam o New Deal da era rooseveltiana e hoje o plano Marshall na sua política exterior, a despeito das intenções que o alimentem, e a vitória de Truman e de seus planos e programas, na política interna. O perigoso é não reconhecer tais tendências como revolucionárias ou não nos ajustarmos às suas imposições, tornando mais doloroso o processo inevitável de transformações por que passa a sociedade. Mas se a revolução é inevitável, não é inevitável a forma que pode ela assumir. Aí é que se abrem as alternativas que estão sob o controle da vontade humana. Pode a revolução assumir a forma totalitária ou democrática. A forma totalitária foi esmagada no último grande embate violento da guerra e todos esperamos que jamais ressurja, e a forma democrática se dividiu em duas modalidades, a das democracias populares do oriente e a das democracias socialistas ou pré-socialistas do ocidente. O entendimento entre estes dois estilos democráticos parece difícil mas não de todo impossível. Estamos a viver, agora mesmo, um momento de esperança, com a diminuição das tensões entre o leste e o oeste.

Este é um dos grandes problemas de nosso tempo, em que a penosa operação de rever os nossos conceitos e as nossas fórmulas e clichês mentais, o penoso trabalho de repensar os nossos pensamentos e julgamentos é mais urgente e mais necessário. O fato é que precisamos e devemos chegar a algum entendimento, pois não poderemos sofrer nova guerra, tão alto chegou o poder destrutivo do homem. O conflito entre os dois estilos de democracia, em que hoje se divide o mundo, pode e deve ser superado pacificamente. E ai de nós, se não for possível tal superação!

A base comum, que deverá ou poderá permitir tal entendimento, está em que ambas as modalidades democráticas buscam os mesmos objetivos - o bem-estar de todos os indivíduos e a sua participação em uma coletividade socialmente integrada e ativa. O conflito está no modo e no método de conseguir tais objetivos comuns.

Tenhamos a honestidade de reconhecer que, em ambos os métodos, há virtudes e perigos. Entre as democracias populares, o perigo está em poder a determinação de apressar a revolução social levá-la ao ponto de trair os seus fins, tornando-se, assim, insensivelmente, totalitária, sob o pretexto de guardar a unidade de ação.

Nas democracias ocidentais, o perigo é o oposto, levando à liberdade individual, pode-se levar a revolução a se perder em anarquia e confusão, que poderão gerar a contrapartida da ditadura totalitária.

As virtudes seriam a da eficiência entre as democracias populares e a da cooperação e participação conscientes e voluntárias nas democracias ocidentais, além de julgarem estas poder dirigir a revolução com a preservação mais equilibrada dos valores acumulados do esforço humano.

O debate desta tese não é ocioso no campo internacional, antes sumamente urgente, mas não tem razão de ser no campo nacional, onde o povo brasileiro já fez a sua escolha, no mais livre dos pleitos. Somos uma das democracias ocidentais pré-socialistas do mundo contemporâneo, conduzindo a nossa revolução pelos métodos moderados, brandos, pacíficos e livres do ocidente. Estes métodos podem ser velhos e clássicos no mundo anglo-saxônio, mas são novos, novíssimos em nossas plagas e constituem, só por si, um dos aspectos da revolução brasileira.

Por meio deles estamos realizando a nossa revolução política e se atentarmos em que temos de aprender a lidar com estes novos métodos políticos, ao mesmo tempo em que também processamos a nossa revolução social, logo podemos ver quanto é difícil e árdua a missão que pesa sobre os nossos ombros.

Uma coisa seria levar a efeito a revolução de métodos políticos, nos sossegos do século dezenove, com uma ordem econômica estável e uma sociedade que embora julgada, ao tempo, tumultuada, hoje nos parece acadêmica e requintada como uma edição popular do século dezoito. E outra, concretizar, como estamos concretizando, o governo representativo, o voto livre e verdadeiro, em plena efervescência social, com a transformação econômica, a súbita participação de todos nos benefícios da civilização e a eclosão de seções novas, populares e inesperadas no conjunto de forças em operação na vida do país.

Esta é a contradição mais viva da cena contemporânea brasileira e que explica, em parte, algumas decepções que o movimento de 1945 já registra em sua marcha. Estamos a fazer a nossa revolução política. Restabelecemos as instituições livres, elegemos um congresso constituinte, votamos uma constituição e fundamos governos livres em todos os estados e todos os municípios. Criamos, em todo o país, a autoridade impessoal da lei, restabelecemos a igualdade jurídica, restaurando a república, fundamos os partidos políticos e nacionais e conseguimos que toda essa nova aparelhagem funcionasse com o mínimo de acidente e de atrito, sem lançar mão, nem uma só vez, de remédios excepcionais. Se tudo isto fosse feito no século XIX, ou no princípio deste século, a obra política do país seria, por todos os padrões, considerável. Mas, estamos a aprender e a iniciar a democracia política em pleno segundo quartel do século vinte, quando as forças econômicas e sociais deflagradas, originariamente, pela primeira guerra mundial e poderosamente fortalecidas pelo segundo cataclisma universal, exigem e impõem algo de mais profundo e radical que uma simples revolução política.

Decorre daí este vago sentimento de crise e de frustração em que se debate certa parte da opinião pública e que importa examinemos para descobrir o verdadeiro sentido dos acontecimentos. Não resta dúvida que a aparelhagem política do país funcionou, um pouco, sob o deslumbramento de sua própria liberdade e produziu menos do que seria necessário. Não resta dúvida que pouco fizemos, ou fizemos menos do que poderíamos fazer, no campo do que seria a direção e orientação da revolução social. Não fomos além do que já havíamos ido na subordinação do econômico, embora os planos da recuperação do S. Francisco, da Companhia de Energia Hidro-Elétrica do S. Francisco e os esforços do Conselho Nacional do Petróleo sejam modestos exemplos, no sentido daquela subordinação. Com efeito, são todos projetos que o regime do lucro e do laissez-faire dificilmente empreenderiam. Não chegamos, até agora, a aprovar o plano SALTE, que era outro passo promissor no sentido da ação planejada. Pouco fizemos salvo como obra de assistência, para a integração social das muitas parcelas em que se divide o país e, sobretudo, para a integração de grande grupo de população rural e dos não sindicalizados das cidades que vegetam ainda em nível quase sub-humano.

Pouco fizemos, também, no setor da legislação complementar da constituição, que em suas seções mais importantes, como a da educação e a dos direitos econômicos e sociais, está ainda por se cumprir.

Tudo isto parece-me constituir a bagagem negativa destes primeiros anos de reconstrução nacional. Mas, tudo isto é algo de tremendamente difícil e que se tornou ainda mais difícil, em face das contingências da reconstrução política e do erro basilar da nossa divisão tributária.

Apesar de havermos restabelecido a federação, só muito modestamente demos começo a uma melhor redistribuição da renda tributária do país. A responsabilidade de administrar as populações brasileiras está com os municípios e os estados, mas estes pouco recebem para dar cumprimento às suas funções e deveres. A União continua com a parcela agigantada de cerca de 60% da arrecadação total do país, deixando aos estados alguns 30% e aos municípios cerca de 10%. Deste modo, não foi sequer possível aproveitarmo-nos da saudável descentralização federativa, pela qual parte do país desenvolveria seus planos de trabalho, mesmo que faltasse ao Centro unidade e concerto de ação para traçar os seus.

Os estados, porém, são pobres e os municípios, paupérrimos e, enquanto esta situação não se alterar, viverão tão rigorosamente subordinados à União, que a própria federação será muito mais de forma do que de essência. Não alinho, contudo, estes déficits do nosso esforço reconstrutivo para efeito de desânimo, mas para que sintamos a dificuldade da tarefa ...

Todos estes déficits provêm da divisão de forças políticas em que se debate a nação. Não poderemos empreender o grande esforço coletivo necessário para dirigir e guiar as forças econômicas e sociais, que sacodem o país sem unidade consciente de propósito, e, sem um grande programa comum que suscite a necessária integração social. Para essa unidade, precisamos de uma mobilização total da opinião pública e para essa mobilização precisamos de uma campanha contínua de esclarecimento.

Por isto mesmo é que nenhum esforço foi mais lucidamente patriótico no país, do que o do acordo entre os partidos mais diretamente responsáveis pela nova ordem estabelecida, acordo que visou e conseguiu aquele mínimo de unidade indispensável para chegarmos, como chegamos, até aqui, sem soçobrar completamente em nossa experiência de redemocratização.

O que desejo acentuar, acima de tudo, é que este acordo não representa, como poderia parecer a alguns, apenas o apoio ao governo, mas a consciência da necessidade de unidade de propósito para que se possa conduzir um movimento do vulto dos movimentos políticos e sociais de hoje.

Seria algo de insensato pensarmos que hoje se podem reproduzir aquelas cenas de situação e oposição, tão comuns no período da simples democracia política do século dezenove ou começos deste século.

Os problemas, em que se debatem hoje os povos, já não têm mais a simplicidade nem a linearidade daqueles tempos e, de um modo ou de outro, a unidade, um mínimo de unidade se impõe para que a obra de governo não se esterilize e para que a nação não venha a perecer. Seja nos Estados Unidos, onde funciona ainda, em muito, apenas a democracia política e industrial, ou seja na Inglaterra onde já vigora, em grande parte, a democracia social, a unidade sempre se estabelece em face das circunstâncias de caráter social.

Com efeito, não estamos lidando com problemas tão fáceis, que nos seja possível dar-nos ao luxo de divisões personalistas ou partidárias, sem maior lastro ideológico. Quando os partidos têm ideologias semelhantes, força é que se unam, se não querem perecer e fazer que, com eles, pereça o regime.

A lição, assim, que me ocorre tirar da atual conjuntura brasileira e que vos trago, hoje, nestas palavras que, sendo de saudação, são também de exame e de tentativa de esclarecimento, é a de que o Brasil marcha, como todos os demais povos, dentro da grande tempestade social de nossa época. Em plena tempestade não cabe aos homens se dividirem, mas unirem-se, não para deter a tempestade, pois as tempestades não se detêm, mas para conduzirem o barco ao destino almejado, utilizando para isto os próprios ventos da borrasca.

Tais situações pedem união, pedem unidade de ação, como os períodos de guerra. Os estudantes brasileiros foram os líderes da unidade de ação durante a guerra. Que o sejam de novo hoje, pois os problemas da paz têm agora a gravidade e a urgência dos problemas da guerra.

Toda a nossa vigilância tem que se exercer contra os que nos queiram desviar do regime democrático, para nos lançar em aventuras de perigosa divisão das forças nacionais. Precisamos preservar o pouco - mas que é muito sob tantos aspectos - que conseguimos desde 1945 e preparar-nos, para o próximo período de governo, com uma sucessão que nos torne possível ainda maior unidade do que a obtida, com o modesto mas salutar entendimento político, realizado sob a presidência, constitucionalmente exemplar, do atual primeiro magistrado do país.

O país confia, para isto, na força de opinião da juventude universitária, que hoje aqui se reúne, em congresso, sob os céus da Bahia, no ano de suas festas quadricentenárias. As circunstâncias permitiram que a Bahia se encontre, neste ano de tanta significação para ela, sob o governo do maior de seus filhos vivos, vivendo uma hora que se pode chamar, sem exagero, de renovação, com a sua confiança restabelecida, a sua união política realizada, a sua paz social assegurada e o seu ritmo de trabalho acelerado tanto quanto lhe permitem os recursos.

Mas estas mesmas circunstâncias, por outro lado, não permitiram que estivesse presente esse seu grande líder político e governador, no momento em que a mocidade do país se reúne, em sua terra, para os seus debates anuais. Ninguém, como ele, se sentiria tão bem neste instante, dirigir, com mais autoridade, mais calor e mais entusiasmo, as saudações da Bahia. Sinto, como sei que sentis, que não o tenhamos entre nós, para nos dizer a todos as palavras de confiança e de fé, que lhe quereríamos ouvir, nesta hora de preocupação e de esperanças em que vive o Brasil.