HIERARQUIA PARA

OS PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO

 

 

Entrevista a Odorico Tavares, 1952

 

Quando, há dez anos, este repórter chegava à Bahia, desejou conhecer Anísio Teixeira. Vários amigos tinham recomendado este contacto, que não deixasse quanto antes de procurar um dos sujeitos mais inteligentes e mais fabulosos deste Brasil. Lembrava-me dos episódios de poucos anos, a sua interferência no ensino do Rio de Janeiro, a criação da Universidade, cercando-se de personalidades as mais significativas para que as realizações de ordem cultural assumissem um caráter vivo e de completa renovação. Verificamos, portanto que, nessa Bahia de 1942, não era tão fácil encontrar o autor de Educação para a Democracia. Nem freqüentava as redações de jornais, nem era visto nas esquinas. "Anísio, diziam-me, é hoje um exportador de minérios, está fabulosamente rico". Outros, desolados, falavam no trânsfuga que deixara um domínio que era seu para se dedicar ao comércio que a guerra atraía pelos grandes proveitos materiais. Era um novo Rimbaud, vamos dizer, dos domínios da educação, que depois de uma obra magnífica se deixava atrair para as especulações comerciais cem por cento.

Quanto a nossa curiosidade ainda prosseguiu, chegavam informações mais vagas, como se a residência de Anísio Teixeira não fosse em pleno coração desta cidade, como se seu escritório não estivesse postado a alguns metros do local onde trabalhávamos. Pouco se sabia da vida de Anísio Teixeira, era como se Anísio Teixeira estivesse a milhares de quilômetros de distância.

 

O PRIMEIRO CONTACTO

 

Estávamos já em plena guerra e foi quando um dia o comandante de um pequeno rebocador de guerra, o comandante Holanda, nos convidou para almoçar em seu navio, nós, Anísio Teixeira e mais duas ou três pessoas. O certo é que nos ficou a impressão agradável do primeiro contacto. Vivíamos um grande momento, acabava o Brasil de entrar na guerra e todas as pessoas que ali estavam, participavam ativamente, à sua maneira, de uma luta que era de todos nós. E causava-nos uma impressão diferente aquele homem que mostrava com clareza as suas idéias, que discutia, que debatia, que expunha com um calor, uma firmeza e uma lógica surpreendentes. A sua dialética cortava como uma navalha afiada e ele era todo calor e entusiasmo pelos problemas. Uma certa nuance de pessimismo havia vez ou outra nas idéias que expunha, mas este homem que desejaria passar por um desencantado, dava uma perfeita sensação de encantamento pela vida, ela a quem não era indiferente, tão cheio de paixão pelos problemas do homem, ele próprio tão cheio de calor humano. Não era um exibicionista que ouvíamos durante todo o tempo. Era antes de tudo alguém que verificava certamente ter encontrado um ambiente de pessoas integradas nos mesmos problemas, vivendo com a mesma avidez o momento que estávamos atravessando e estas pessoas viam nele o homem de saber, e de cultura, e de ação que o mercador de minérios não pudera jamais abafar nem destruir. Daí em diante uma amizade e uma admiração cada vez mais crescentes prosseguiam pelos anos. Saímos dalí perguntando que primarismo íamos mantendo para que pudéssemos afastar das atividades públicas homens como Anísio Teixeira e a Nação se sentisse satisfeita com estas ausências que, no momento, se repetiria em Pernambuco, com Gilberto Freyre. Passaram-se os tempos, restabelecida a debilíssima democracia brasileira, é Anísio Teixeira convocado pela UNESCO. Deixa seu escritório comercial para prestar serviços à grande organização mundial e, num momento, sua missão era delineada em planos tais que sua tarefa equiparava-se no terreno cultural ao que a ONU seria em plano político. Depois a Secretaria de Educação, com o Governo Otávio Mangabeira, numa esplêndida demonstração de seu apreço pelas coisas públicas, abandonando um momento decisivo de sua vida material para colaborar num governo que veio dar à Bahia a grandeza dos velhos tempos. Pôde Anísio Teixeira realizar, e realizar em profundidade, uma experiência das mais belas que o país já assistiu no setor educacional. Aí está uma obra que não pode ser medida pela bitola estreita das regras burocráticas, mas pela visão panorâmica de um experimento cujas conseqüências em favor da disseminação da cultura estão aí e aí ficarão por muitos anos. Costuma-se dizer que Anísio Teixeira como Secretário da Educação, infringia, cada semana, um artigo dos regulamentos administrativos, mas a cada minuto realizava uma grande coisa em favor do ensino e da educação na Bahia e exatamente porque não estava em seu posto para assinar papéis e para vestir a túnica de Nessus dos antiquados regulamentos. Havia quatro anos a realizar, havia uma febre interna de engrandecer, de construir, de transformar, de renovar, de criar em proveito da cultura de um povo, no que este povo tem de legitimamente seu.

 

O RETORNO

 

Concluindo o Governo Mangabeira, voltou ao seu escritório comercial, mas por pouco tempo, pois que um posto de importância lhe estava reservado no Ministério da Educação. E ontem, encontrávamos Anísio Teixeira às voltas com a mudança de sua residência para o Rio, já encerrando mais um ciclo de sete anos, conforme ele explicará mais tarde. Tínhamos marcado encontro para esta entrevista, para um depoimento onde se revelasse um pouco de uma vida ainda tão desconhecida, de uma bela existência tão pouco revelada e tanto deturpada, ao mesmo tempo que nos dissesse algo de idéias que conduziram sua existência para caminhos nem sempre os seus, para encruzilhadas onde encontrara choques e conflitos que sua natureza receberia e reagiria. É um prazer sempre crescente encontrar Anísio Teixeira, com sua agressividade de menino de Caetité amansada pelas doçuras e serenidades do Recôncavo. Sabia já de nossos propósitos, desta entrevista, deste depoimento, em que revelaríamos aspectos ainda não conhecidos por tantos que se interessam pela sua obra e sua personalidade. É fácil de verificar as nossas dificuldades. E fala-nos, por fim, Anísio, de sua infância, de sua adolescência, de sua formação espiritual, de sua participação na vida brasileira, de suas idéias. Fala destes ciclos de sete anos que se sucedem na sua vida, com um tom supersticioso que esconde o homem religioso que vez ou outra dorme dentro dele. E diz Anísio:

 

OS CICLOS DOS SETE ANOS

 

"Velha crença costuma dividir a vida dos homens em ciclos de 5, 7 ou 9 anos. Os ciclos de minha vida parecem ser de 7. O primeiro, importante e invisível como as raízes, foi a minha infância, numa pequena e antiga cidade sertaneja, Caetité, no seio de uma família dividida entre o patriarcalismo em desaparecimento e o republicanismo ardente dos pioneiros da abolição e da República. Meu pai, médico e político, era realmente uma encarnação das virtudes patriarcais enriquecidas ou modificadas pelos ideais republicanos, a que não faltava uma nota de rebeldia voltairiana. Cresci nesse ambiente de austeridade patriarcal e de veemência intelectual e cívica. Lembro-me do seu conselho: ‘Meu filho, não se obedece a homem algum. Obedece-se à lei'. E nisto se contém todo o código republicano da dignidade humana.

O segundo e o terceiro ciclos são os da influência da Companhia de Jesus. A Revolução Republicana de 1910, em Portugal, expulsou os jesuítas lançando um pequeno grupo deles, através do Atlântico até a minha cidade natal. No Instituto São Luiz, entre os jesuítas portugueses, franceses, alemães, suíços e irlandeses, e depois, no Colégio Antônio Vieira da Bahia vi-me arrancado das primeiras influências - aquele deísmo austero, revolucionário e republicano - para o catolicismo ultramontano reacionário, que a Companhia de Jesus, ainda sob a candência do golpe sofrido, trazia para o Brasil.

Durante os doze ou quatorze anos de discípulo dos jesuítas, entre 1911 e 1923, tive a experiência dos ardentes conflitos religiosos, participando, com paixão, da formação intelectual e religiosa que me proporcionavam os padres. Tanto a formação intelectual e religiosa eram de exceção para os tempos e o meio brasileiro; e isto alimentava e aguçava a inquietação mental. Um jesuíta de valor incomum, o Padre Cabral, conseguiu, afinal, o que chamaria a minha conversão. Rendi-me ao catolicismo e fiz mesmo projeto de entrar para a Companhia de Jesus. Cristão novo, vivi ardentemente meu sonho Loyoliano, durante todo o curso acadêmico, em que fui destacado congregado mariano na Bahia e depois no Rio".

 

A AVENTURA RELIGIOSA

 

Anísio faz uma pausa, medita e acrescenta:

"Um incidente, porém, frustrou a minha aventura religiosa e marcou o início do terceiro ciclo. Retardada a minha entrada na Companhia de Jesus, pela oposição dos meus pais e pela prudência dos padres que achavam interessante amadurecesse eu, já formado em direito, a minha vocação com um ano de vida profana, dediquei o ano de 23 à advocacia e assistência política a meu pai, na campanha de sucessão governamental. Eleito Góes Calmon, Governador, vim à Bahia, em missão política. O Governador, a quem não conhecia pessoalmente, convidou-me para dirigir a instrução no estado. Este, o incidente. Consultada a Companhia de Jesus, acharam melhor os padres, que eu atuasse no campo leigo e não nas fileiras jesuíticas. Iniciou-se, assim, a minha vida de educador. Tinha então vinte e três anos. Trazia para a nova profissão a cultura geral que me deram os jesuítas, os cinco anos de literatura e direito na Universidade do Rio, e a humildade e ardor religioso de jovem líder católico. Fiz-me, bem ou mal, um educador. Além dos estudos intensivos que me impôs o cargo, fui à Europa e à América em viagem de observação e, depois, voltei à América para um curso regular na Columbia University. Neste terceiro ciclo, revivi um embate da adolescência, entre as duas filosofias que lutavam em meu espírito. Por volta de 1927, senti haver superado essas mortais contradições, reconciliando-me com a filosofia que primeiro me influenciara, a do espírito naturalista e científico de que me tentara afastar o ultramontanismo católico dos jesuítas. Trouxe, de meus cursos universitários não somente esta paz espiritual, mas um programa de luta pela educação no Brasil. Logo depois de chegado, porém, encerrou-se, com a revolução de 30, este ciclo de minhas atividades públicas. Voltei ao Rio, sem trabalho nem emprego.

Durou pouco, entretanto, o período de chômage. Serviu, apenas, para marcar a separação entre um ciclo e outro. Fui logo chamado para servir à educação no campo federal, primeiro, e depois no Distrito Federal. A Revolução produzira o necessário clima de renovação. Procurei, durante perto de cinco anos, elevar a educação à categoria de maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da república e da democracia, distribuí-Ia por todos na sua fase elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que, então, submergiu o país. Os nossos insignificantes progressos democráticos pareceram perigosos e um obscurantismo, que se julgaria impossível entre nós, determinou um retorno de 180 graus na roda do leme nacional. Por dois anos, ainda andei em atividades intelectuais. Traduzi Wells, Adler, Dewey, meus mestres em democracia e crença no homem. Afinal, mesmo isto tive de deixar de fazer. Fechava-se mais um ciclo de sete anos.

Iniciei o quinto, retornando à vida privada. Comerciante e industrial, fiz-me minerador e exportador até 1945. Com uma filosofia que procura não distinguir pensamento de ação, achei a chamada vida prática tão sedutora quanto a chamada vida intelectual. Foi uma bela ocasião de demonstrar a mim mesmo que vencera, realmente, os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito, etc, etc".

 

A UNESCO

 

Anísio pára e é mais um cigarro. Certa feita o Governador Otávio Mangabeira dizia-nos: "Mandei Anísio passar três dias em Madre de Deus e o fiz usando minhas prerrogativas de Governador. Que ele venha trabalhando menos, e fumando menos ainda. São duas coisas que o homem faz como quem quer ir ao suicídio". Ele relembra então a fase do seu escritório de minérios, um período que chegava aos ouvidos desse repórter como algo lendário. Víamos Anísio Teixeira vendendo toneladas de manganês, com grandes bolsas de pedras preciosas, um Rimbaud de escritório montado, de contabilidade mecanizada, somando milhões e mais milhões. Anísio ri desta visão que tínhamos ao chegar à Bahia e prossegue:

"Um convite da UNESCO, do Prof. Julian Huxley, o colaborador de Wells, na 'Ciência da Vida', cientista e filósofo, veio tirar-me dos escritórios de uma firma de exportação de minérios na Bahia, para o lugar de 'Conselheiro para a Educação Superior' na UNESCO. Voltava, de novo, à atividade pública de sete anos de recolhimento na província.

Esse ano de 1946 constituiu, graças a isto, um rendez-vous com o mundo. Sob a liderança de Julian Huxley, a Organização Mundial para a Educação, a Ciência e a Cultura iniciava os seus primeiros passos com ambição e desassombro, justificando a legenda, com a qual Gide a imaginava inspirada. Gide tomara de Virgílio este verso para indicar-lhe a rota e a responsabilidade:

Cessi; et sublato montes genitore, petive, que se traduziria: ‘Encaminhei-me; e tomando toda a carga do meu patrimônio, procurei alcançar as alturas'.

Foi com este espírito, que procuramos trabalhar nesse ano divisor de águas que foi 1946, quando parecia possível a existência de um mundo só, em que a UNESCO seria o supremo Ministério da Inteligência e Cultura, com o perfeito entendimento entre os povos e, fecundando a terra, o livre comércio em todo o mundo, de informações e conhecimentos destinados a promover as realizações tão sonhadas da paz e da variedade na unidade.

Depressa vimos, porém, que mais uma vez, a vontade dos povos não se realizaria. A guerra fria que se iniciava, logo progrediu e a UNESCO, no fim do primeiro ano de trabalho, recolhia as asas que tentara estender, aprisionada em um "orçamento" menor do que o que iria gastar nesse mesmo ano, em pesquisas atômicas, a pequenina Suíça".

 

O AMAPÁ E A BAHIA

 

"Resolvi deixar a UNESCO e voltar à vida privada. De Paris fui a Nova lorque, voei ao Amapá, para examinar as possibilidades do manganês recém descoberto quase nas fronteiras do Brasil. Estava, porém, marcado que o ciclo que se iniciara em 1945 era de vida pública. Entre um grande projeto industrial e o convite do Sr. Otávio Mangabeira para Secretário de Educação da Bahia, que me chegou, em conferência, pelo telégrafo, fiquei com o último".

É preciso que se saiba que abandonando o Amapá e ficando com o último, deixava Anísio Teixeira um dos maiores negócios comerciais que já se fizera no Brasil: a concessão do minério de manganês cujas jazidas são as maiores do mundo. Entre a concessão praticamente sua e servir à sua terra ao lado de um amigo seu, preferia a segunda forma. É um capítulo a ser dito e com vagares sobre um homem e um grande homem a quem, geralmente, não se faz justiça como merece, pois injustiças cercam, em todos os tempos, temperamentos e as personalidades como a sua. E diz Anísio Teixeira:

"Era a reimplantação da República no Brasil. Otávio Mangabeira Governador da Bahia era milagre igual ao da UNESCO. Se pouco ou nada era possível internacionalmente, quem sabe se, nacionalmente, tudo ou pelo menos muito não seria possível?

O que foram esses quase quatro anos? Você sabe tanto quanto eu. Não fizemos tudo, nem mesmo fizemos muito. Mas que prazer e que alegria trabalhar, como trabalhamos, em um governo notável pelo que fez e realizou de palpável e concreto, mas sobretudo excepcional pelo que realizou de invisível: a justiça, a liberdade e a confiança! Foi este clima que tornou o período Otávio Mangabeira na Bahia um dos grandes períodos de governo em qualquer parte da terra. Todos os Deuses invisíveis da 'Cidade', como os chama Ferrero, desceram sobre a Bahia e, por quatro anos, fomos um dos pontos civilizados e felizes do globo.

Saímos cansados, mas alegres. Imaginei, logo após, um repouso na vida privada. Esforcei-me por ele, mas não o consegui. O meu amigo, Sr. Simões Filho, convocou-me para o seu Ministério. E a velha voz do dever, mais uma vez, me obrigou a aceitar. Estamos em 1952, exatamente quando se encerra mais um ciclo da minha existência".

 

IDÉIAS E ASPIRAÇÕES

 

Aqui, pára Anísio. E as suas idéias e aspirações?

- "Isto, a minha vida. As minhas idéias e aspirações? Creio não ser inexato, ao caracterizar a primeira metade do nosso século como o período em que abandonamos o nosso descuidado lirismo patriótico e iniciamos o estudo de nós mesmos, com o propósito de nos acharmos, primeiro, e, depois, traçar os rumos de nossa marcha histórica. Vivemos, pois, neste século, um período de introspecção e de programas de ação. Todas as agitações do período republicano testemunham esta fase de tomada de consciência do Brasil e de ensaios de reconstrução.

Até o século XIX éramos, como dizia o velho Eça, um país coberto e escondido por um tapete velho e roçado da Europa. De 1900 para cá, somos um país que deseja ser ele próprio, mas sem perder a fidelidade às velhas linhas que ordenam e dirigem a civilização ocidental. Queremos ser um galho da civilização ocidental, com as particularidades de nossa terra e nosso povo, mas alimentados pelas mesmas raízes que alimentam os ramos mais idosos da velha árvore. Essa civilização ocidental é a civilização baseada na ciência e na democracia. A ciência já nos deu os meios de governar o mundo físico e produzir a riqueza necessária para o bem estar humano. À democracia cabe dar-nos os meios de governar os homens com justiça e sem que os poucos explorem os muitos.

As instituições básicas dessa civilização são as instituições educativas. Conforme for a educação, assim serão a ciência e a democracia de um país. Se as escolas elementares dão a todos aquele mínimo de conhecimentos técnicos, hábitos e atitudes, o necessário para que o homem seja um homem, isto é, um cidadão capaz de ver, julgar e decidir por si, teremos a base da democracia, que é o regime do governo de todos para todos e não de alguns para alguns. Se, após essa base, as escolas secundárias e superiores redistribuírem os indivíduos mais capazes dessa massa educada pelas diferentes ocupações semi-especializadas e especializadas, que constituem o quadro das ocupações de uma civilização moderna, teremos produção e ciência e, com produção e ciência, bem-estar e progresso. Logo, a maquinaria fundamental da civilização moderna não é a das fábricas nem a do campo, mas a das escolas, com a qual se farão todas as demais. Porque, entretanto, não consegue o Brasil perceber este truísmo e, longe disto, dia-a-dia, agrava e torna mais difícil a solução de seu problema educacional?

Tenho que concorre, sobremodo, para isto, a defasagem - perdoe-me o galicismo - dos nossos problemas em relação aos problemas do mundo moderno já desenvolvido. Como os países contemporâneos desenvolvidos resolveram o problema de base, que é o da educação popular, entre os fins do século dezenove e os começos deste século, o Brasil deseja figurar entre eles, colocando, como eles, o problema de educação entre os já resolvidos. Ora, isto não é, sob nenhum aspecto, verdade. Não só ainda não integramos em um só todo a nossa população - o que só se pode fazer por uma educação comum para todos - como a própria educação, que conseguimos ministrar a alguns, é de qualidade duvidosa e manifestamente deficiente".

 

A DEFORMAÇÃO

 

"A deformação da visão brasileira, que nos vem da Colônia e do Império, ainda continua, a despeito de cinqüenta anos de análise e crítica desabrida de quase todos os que nos estudaram neste meio século. Continuamos a nos ver como um dos países já civilizados do globo, a entrar 'agora' na fase dos delicados 'reajustamentos' de classes, da expansão de nossas indústrias e da 'revisão' de nossas instituições políticas, quando, na realidade 'estamos na fase da educação popular', de grau absolutamente preliminar para a realização da democracia e com ela, do nosso progresso.

Fomos, até agora, um país que se desenvolveu ao sabor dos impactos externos que recebeu. Todos os nossos ciclos de progresso ou decadência filiam-se a condições externas. Graças à guerra e aos estados de emergência no mundo, somos jogados para cima ou para baixo, sendo tão somente digno de nota a esperteza com que tiramos proveito das circunstâncias favoráveis e pela dissipação com que malbaratamos a riqueza acidentalmente adquirida.

Tal imediatismo de primitivos é uma conseqüência direta de nossa falta de educação. Nem por isto porém, percebemos que a educação é o nosso problema basilar. Pois se já não é para os outros, como há de ser para nós?

Mas a educação não é, hoje, somente a solução retardada em cinqüenta anos de nosso problema basilar, é, agora, também 'um agudo e urgente problema de ordem'.

Com efeito, as condições do próprio mundo exigem hoje o progresso material do BrasiI e este está aí a chegar desordenadamente, desigualmente e inesperadamente. A dinâmica desse progresso fará explodir o Brasil, se não a fizermos acompanhar da 'força estabilizadora' da educação. É só abrir os olhos para ver que, hoje, o processo de emancipação dos homens, isto é, o processo de tomada de consciência dos seus direitos, pode realizar-se sem escolas. Voltamos, com o rádio e o cinema, a ser uma civilização de tradição oral. Não se precisa saber ler para se saber hoje, que se está sendo oprimido. As massas brasileiras estão, por isto mesmo, a acordar. As suas condições são ainda hoje das mais tristes e das mais iníquas. Se o processo de sua emancipação não for acompanhado de um processo de educação, pelo qual se regule e se esclareça o seu progresso, dando-se a cada um a consciência do que se está passando e, por este meio, os recursos para que assumam a sua parcela de responsabilidade na marcha acelerada e irregular, teremos, fatalmente, de registrar do desenvolvimento nacional - agitações senão convulsões do povo brasileiro.

A educação, assim, passa a ser o instrumento, por excelência, de ordem e de desenvolvimento pacífico, sem deixar de ser, por outro lado, o mais significativo instrumento de justiça social que jamais inventou o homem para corrigir as desigualdades provenientes da posição e da riqueza".

 

"QUANTO ME DÓI O BRASIL!"

 

Anísio Teixeira prossegue apaixonado pelo seu sempre renovado amor pelos problemas educacionais.

"Diante disto e, sentimos, como sinto, quanto me dói o Brasil, como diriam os espanhóis, com as mais dilacerantes desigualdades econômicas e a suprema iniquidade de manter milhões de nossos patrícios a vegetar sem recursos, nem direitos, tão estranhos à comunhão brasileira, quanto os ilotas, ou os escravos negros, ou os párias da Índia - como poderia evitar a obsessão em que se me tornou a solução do problema educacional brasileiro? Esta obsessão é, hoje, mais atordoante, em face do problema de ordem e moralidade que se vai, dia a dia, tornando mais e mais urgente e que só poderá ser resolvido pela educação. Dir-se-á, porém, que não tem, como ninguém tem, receitas para resolver esse problema. É verdade. Não tenho, nem há receita. A solução é difícil e gradual e depende de um clima favorável ao grande esforço que tem de ser despendido. Este clima, porém, o governo poderá criá-lo, por meio de uma campanha sistemática de esclarecimento público, pela qual se expliquem ao povo as razões e motivos de se dar a prioridade nº 1 à educação e às escolas, prioridade na importância e conseqüentemente, nos recursos. Depois, será a construção do sistema escolar, com a eficiência e a largueza dos projetos militares e industriais. Estabelecida essa hierarquia para as escolas, tudo mais será conseqüência. Famílias, conjunto, um grande esforço de alunos e professores formarão, em construção e formação do povo brasileiro.

Tenho confiança que, uma vez deflagrado, esse movimento educacional não mais se deteria e poderíamos assistir o nosso crescimento sem os sustos e as apreensões com que vemos hoje o próprio progresso brasileiro, tão cheio de iniquidades e de perigo.

'Irmão, pensai na morte', eram as únicas palavras que um trapista podia dirigir a outro trapista. No Brasil, sugeria Miguel Couto, deveria o brasileiro dirigir-se a outro brasileiro com a saudação:

'Irmão, pensai na educação'. Permita-me que o plagie. Sou apenas mais uma voz, pequena e persistente, no coro de tantas vozes que vêm fazendo ao Brasil, a grande advertência".

Esta "voz pequena e persistente", é uma das poucas e autênticas vozes brasileiras que advertem e clamam pelas soluções dos problemas brasileiros, trazendo uma poderosa e vasta contribuição. Por vezes, se cala, por vezes, a sua ação se imobiliza. Mas, quando convocada, dá ao seu país, dá ao seu Estado, uma obra alicerçada pela experiência, pela cultura e pela paixão de realizar pelo bem público. Uma voz autêntica a de Anísio Teixeira.