POLÊMICA

COM O JORNAL "A TARDE"

 

EDITORIAIS

EM RESPOSTA AO DISCURSO

 

 

O DISCURSO DO SR. ANÍSIO - 23/07/49

 

A mocidade brasileira, reunida em seu Xll Congresso Nacional de Estudantes teve o privilégio, que outros povos perderam nas guerras de implacáveis ditaduras, de usar seus constrangimentos da liberdade de convicções e de expressão, características das legítimas democracias. Como acentuou o Sr. Anísio Teixeira, no excelente discurso que proferiu na abertura do Congresso, o regime democrático não teme a liberdade da palavra nem as divergências de pensamento.

O eminente educador, cuja oração "A Tarde" teve ensejo de divulgar, mostrou aos jovens convencionais que o clima do progresso e da reforma social, por que aspira toda a humanidade, é o da ordem e da confiança entre os homens e os grupos que se empenham pelo bem-estar comum, motivo pelo qual manifestou-se, com toda oportunidade, pelo fortalecimento dos acordos entre os partidos mais diretamente responsáveis pela ordem democrática brasileira, e pelo apoio à atuação "constitucionalmente exemplar, do atual primeiro magistrado do país". O seu estudo dos problemas administrativos e políticos do Brasil, na parte final do mesmo discurso, foi uma análise realmente apta a esclarecer e orientar a mocidade, tantas vezes levada a malbaratar os seus melhores sentimentos em lutas por desígnios cuja malícia os seus instigadores encobrem com a sedução de generosas aspirações. A demagogia dos que se ufanam da inglória tarefa de "organizar o descontentamento popular", não podia ter recebido golpe mais certeiro do que a demonstração, feita por um espírito esclarecido, de que, apesar de inevitáveis imperfeições, o regime vigente no país é do melhor quilate burocrático.

Todavia, alguns conceitos emitidos nessa oração têm suscitado debates, como o que ocorreu há dias na Assembléia Legislativa Estadual, em que felizmente intervieram ponderações de natureza a moderar certos juízos sobre aquele consagrado homem público. Também folgaríamos em poder aplaudir sem reservas, como outras vezes tivemos a satisfação de fazer, os pensamentos expressos noutros trechos daquele discurso. É na parte inicial, de mais denso conteúdo doutrinário, que se encontram imprecisões capazes de contribuir, menos para esclarecimento dos jovens a quem se dirigiu, do que para a confusão e a indistinção moral e intelectual reinantes em nosso tempo. Referimo-nos às considerações de S.Sa. sobre as formas que pode assumir a "revolução social", sobre o caráter dos regimes políticos atuais, e os objetivos dos sistemas sociais dos nossos dias.

Estamos numa época em que o pensamento vence tantas batalhas quanto os exércitos, - e os regimes de força têm sabido aproveitar-se dessa verdade, melhor que as democracias, bombardeando a humanidade, com as suas "guerras de nervos", as suas campanhas ideológicas, as suas ofensivas intelectuais. A palavra e a inteligência necessitam, portanto, ser utilizadas especialmente quando se endereçam à mocidade, de maneira a não poderem ser exploradas nem empregadas para fins que não estejam nos intentos de quem as empregam.

Presta-se particularmente a isso o tópico em que S.Sa. afirma que "a forma totalitária foi esmagada no último grande embate violento da guerra" e que "a forma democrática se dividiu em duas modalidades, a das democracias populares do oriente e a das democracias socialistas ou pré-socialistas do ocidente". É igualmente estranho dizer-se que entre os tipos de governo do ocidente e do oriente há objetivos comuns, e que "o conflito está no modo e no método de conseguir tais objetivos comuns".

Em jogo, na hora atual, os destinos da civilização cristã, com a sua transcendente inspiração e as suas instituições sempre acessíveis ao aperfeiçoamento, não consideraríamos cumprido aquele dever de vigilância pelos impostergáveis direitos humanos se deixássemos de expor, serenamente, essas nossas discordâncias e de passar a examiná-las mais detidamente, cumprindo assim o dever, a que não faltamos, de guiar e esclarecer a opinião pública.

 

A OUTRA METADE DA VERDADE - 25/07/49

 

Indicamos anteontem os pontos frágeis do discurso do Sr. Anísio Teixeira no congresso estudantil, aqueles trechos em que o ilustre reformador do ensino público baiano, menos claro e exato do que noutras partes de sua oração, descobriu o flanco a certas restrições, e aos reparos a que o dever da verdade, diria Ruy Barbosa, obriga a imprensa democrática.

Julgamos carecer de qualquer consistência, por exemplo, a afirmativa de que o totalitarismo foi esmagado inteiramente na última guerra - coisa que dita assim, sem mais explicações, é apenas meia verdade. E a verdade é para ser dita por inteiro, particularmente quando é um educador quem fala à mocidade.

Não há dúvidas de que foram vencidas as variedades de autoritarismo que pesavam sobre os povos da Alemanha, Itália, Japão; desbaratadas como governos organizados e estabelecidos, sendo, no entanto, possível que persistam atitudes mentais e esperanças de espíritos ávidos de subserviência e descrentes da capacidade do homem para conduzir-se como ser civilizado, sem necessidade da intimidação policial ou dos aparelhos de compressão das vontades livres. Acordes nesse particular com o autor do discurso, discordamos da sua incompleta afirmação.

No consenso dos juristas, dos filósofos e sociólogos, e da opinião pública bem informada, são totalitários todos os regimes nos quais o Estado é a ultima ratio, o fim último da vida nacional, o supremo valor, o sumo critério da ordem natural e jurídica, a exclusiva fonte da verdade, do poder e do direito. Nenhum outro poder limita o seu arbítrio ou julga seus atos ou coíbe os seus desvarios! Os indivíduos, os grupos, a nação, desamparados da justiça que é facciosa e partidária, sem órgãos representativos que exprimam sem constrangimento a sua verdadeira vontade, sem o refúgio espiritual da Igreja que é silenciada ou corrompida, vegetam humilhados ao sabor da tirania. Para impor essa espécie de ordem, em que a personalidade humana é submergida, sem direitos, no anonimato da massa escrava, - esses regimes mobilizam a violência e a coação, instauram o terror pela espionagem, legitimam a delação e a calúnia, destroem as consciências e as entorpecem, desde a escola, com os mitos paranóicos do messianismo estatolatra, deformam a alma da juventude no culto da força, lançam contra os exércitos e as nações a petulância fanática das "tropas de assalto" e das milícias políticas, estrangulam a imprensa, liquidam os partidos e os parlamentos, expurgam as universidades dos que separam a ciência da política, vão finalmente ao supremo escárnio de rasgar as bandeiras nacionais, substituindo-as pelas insígnias privativas do "partido único", estatal e servil, instrumento imoral da minoria que detém a força. Algemadas pelas autocracias totalitárias, as coletividades reduzem-se, na expressão de um pensador inglês, a um estado de "desumanidade organizada".

A nossa época poderia tranqüilizar-se, ainda quando os mais difíceis problemas a desafiassem, se para ventura dos homens a guerra houvesse esmagado definitivamente aquela abominável filosofia política. Desgraçadamente, outros são os fatos. Não é o precário depoimento d'algum papel de arquivo dum passado distante e nebuloso, mas o testemunho presencial de toda a civilização que aponta para uma parte do globo em que centenas de milhões de seres humanos, isolados do resto do mundo, ao qual não conseguem fazer chegar as suas vozes de protesto, sofrem o jugo brutal e cruel, não duma ditadura efêmera ou de uma das formas primitivas de governo, anteriores à filosofia grega ou ao direito dos romanos, mas justamente dum sistema de governo que excede em dureza e tudo quanto a história tem registrado com horror. Ou nada sabemos do significado das palavras, a que o uso universal deu um sentido inequívoco e insofismável, ou e, para além de qualquer sofisma, inconfundivelmente totalitário, o comunismo, tanto na Rússia, na Tchecoslováquia, na China, como na Iugoslávia. Naturalmente esses governos, sabendo da repugnância da humanidade por qualquer sorte de totalitarismo, rotulam-se com a estranha denominação de "democracias populares", desmoralizado eufemismo da sua terminologia de propaganda, insincera, mendaz e felizmente muito inepta.

A outra metade da verdade é esta. Essa metade deve ser dita sobretudo à mocidade, para que não perturbe o seu julgamento ainda imaturo, o benévolo conceito do ilustre Sr. Anísio Teixeira sobre uma suposta democracia atrás da "cortina de ferro".

 

DETRÁS DA CORTINA DE FERRO - 27/07/49

 

A pior injúria que se pode fazer à verdade é nivelá-la ao erro. Sucedeu isso à idéia de democracia, quando o Sr. Anísio Teixeira, no seu discurso aos universitários, nivelou o regime em que o povo exerce a soberania por intermédio dos mandatários que livremente escolhe, com o sistema de Estado despótico no qual a autoridade é imposta e a vontade do povo não tem órgãos legítimos de expressão.

A democracia, na concepção dos povos civilizados, implica numa ordem jurídica em que a lei e a moral limitam o arbítrio do Estado e protegem os indivíduos, a família, as instituições e a nação. A humanidade já estaria reduzida às mais cruas formas de escravidão se, contra todas as injustiças, a democracia não oferecesse remédios: a liberdade de promover a própria reforma das instituições, de realizar melhor a justiça social, sem destruir essas mesmas franquias.

As filosofias e os governos totalitários também pretendem ser democracias. O fascismo dizia-se uma "democracia substancial", e o nazismo era o regime do Herrenvolk, do povo de senhores, que sonhavam o domínio do universo. O comunismo forjou para seu uso a máscara, transparente aliás, da "democracia popular". Mas nessa variedade sinistra de democracia não há lugar para o povo e para a liberdade. O Estado é onisciente e todo-poderoso; a polícia secreta o informa sobre os descontentes, que os tribunais, igualmente "populares" julgam e condenam com critérios fanaticamente partidários. As eleições são a afronta mais vil à nação; em cada eleição, a lista de candidatos é uma só, de membros do partido comunista, mais ninguém. O votante, ou lança na urna uma papeleta com um "sim", que se apura em fazer da chapa única, ou uma outra com um "não", que não se conta. E ao sair da cabine, onde ao entrar receberá as duas papeletas de cores diferentes, mostra aos mesários a chapa que lhe resta. Garantem-se desse modo as vinganças e ... as famosas unanimidades eleitorais das "democracias populares"!

Uma falta no trabalho, uma omissão involuntária, um protesto da hombridade ferida, a queda da produção, uma obra imperfeita, uma palavra inadvertida, um olhar suspeito, um silêncio inoportuno podem destruir inesperadamente uma vida no exílio, no campo de concentração, no trabalho forçado, no pátio de fuzilamento. A polícia secreta mais poderosa, desabusada e sádica de todos os tempos vigia cada indivíduo, à espreita dos insubmissos que põem em perigo a segurança dos privilegiados do regime, aqueles que, depois de aniquilarem a burguesia e escravizarem o povo embriagado de promessas pérfidas, passam a constituir a classe exploradora das demais, com seus altos salários, sua arrogância, seu desprezo pelos humildes, suas mesas de caviar, seus bons vinhos, suas jóias e vestes caras, seus automóveis e casas de repouso, sua vida de prazeres. O direito de greve, a liberdade religiosa, a livre criação artística ou científica não existem senão para a propaganda subversiva no estrangeiro. No paraíso vermelho tudo isso é crime contra o Estado. O Politburo faz a filosofia, o direito, a arquitetura, o desenho, a música, a biologia, a educação; os que não acertam pintar, compor, pensar, versejar segundo as regras do materialismo histórico são denegridos e aviltados, expulsos das academias e universidades, expostos à execração pública e obrigados a penitenciar-se por suas infidelidades, quando têm talento que valha a pena explorar em benefício do marxismo-leninismo. Tudo isso são as "democracias populares"!

Ainda quando admitíssemos essa corrupção dum vocábulo de acepção consagrada, não poderíamos concordar com o eminente educador Sr. Anísio Teixeira em que "ambas as modalidades democráticas buscam os mesmos objetivos - o bem estar de todos os indivíduos e a sua participação em uma coletividade, socialmente integrada e ativa". De modo algum. Os objetivos dum regime cuja eficiência consiste em subordinar totalmente os indivíduos e as instituições à máquina compressora do Estado, não se podem equiparar aos objetivos dum sistema que dignifica e aprimora a liberdade humana, que assegura a cada cidadão a realização de suas virtualidades e constrói a ordem, a coesão social, o trabalho, a civilização, não pelo terror, mas pela cooperação de homens livres. Nem a concepção de bem-estar é a mesma para o totalitarismo materialista, brutalizante e anti-humano, e para uma sociedade realmente democrática capaz de se aperfeiçoar e progredir sem reduzir o homem à escravatura e às degradações mais infames. E quando um homem da qualidade do Sr. Anísio Teixeira, dos seus altos atributos espirituais, fala aos moços uma linguagem que permite situar aquele quadro monstruoso dentro da democracia, cabe à imprensa, como a nossa, realmente servida em todo o curso de sua já longa vida por velhos e provados democratas, o dever de preservar o regime de todas as liberdades legais, de um conceito que o lança na parceria da mais feroz ditadura que o mundo já conheceu.