A DIMENSÃO HUMANA DE ANÍSIO

 

 

Afrânio Coutinho

 

É uma pena que motivo justo me tenha impedido de estar junto dos que, na Bahia, neste momento, homenageiam a figura imortal de Anísio Teixeira, inaugurando a fundação que tem o seu nome. Cumpriria na oportunidade um dever imperioso de juntar a minha palavra à homenagem ao inesquecível amigo e ao grande baiano cuja inteligência genial e cuja capacidade de construir deixaram marca imperecível na vida intelectual do País. Estas palavras substituem minha presença.

Anísio foi grande entre os que mais o foram.

Era um espetáculo intelectual. Ser eminentemente racional, sua mente passeava soberana por todos os arcanos da problemática espiritual com a segurança e a penetração de um debatedor invencível. Acompanhá-lo numa conversa acerca de qualquer problema filosófico ou educacional constituía um prazer que todos os que privaram de sua intimidade jamais esquecem, porque era inigualável. E que paixão, que fervor, que seriedade, que lógica! Não havia adversário que resistisse à sua pujança intelectual.

Não significa isto que ele fosse um puro homem de inteligência, um intelectual seco e improdutivo. Sua personalidade complexa não se limitava aos devaneios do espírito, sem capacidade de realizações práticas. Ao contrário, era bem o exemplo daquela maneira que o francês definiu com propriedade: penser avec les mains.

Com o pensador admirável, intrinsecamente unido, havia o realizador, capaz de lograr levar à prática as suas idéias. Não somente pensava como fazia. Muitos o acusaram de teórico. Como se pudesse realizar algo no terreno da prática sem partir do pensamento. Costumamos no Brasil apreciar os homens vazios de idéias mas que fazem coisas. Temos horror à teoria. Repelimos idéias e erudição como formas de poluição. Preferimos o homem telúrico, embebido da seiva telúrica, desligado de controle da inteligência. Desconfiamos dos estudiosos, cultos, eruditos, sabedores, para preferir os vazios de formação intelectual e conteúdo de cultura. Competência coisa que não nos interessa. Por isso, o nosso desprezo pelo livro. Temos horror ao livro. Ainda não descobrimos no Brasil que conhecimento e competência só se adquirem com o livro. Daí o nosso vício da improvisação, da superficialidade, da embromação, da desconfiança com o homem de saber e cultura, do técnico e do cientista.

Anísio pensava e agia. Era teórico e, ao mesmo tempo, realizador. Pensava com as mãos.

Que se pode exigir mais? Aí estão ainda hoje de pé as suas realizações, partidas de idéias ricas e seminais. E, como tal, prenhes de possibilidades de serem levadas à prática. Ficaram vivas em nossa memória suas esplêndidas administrações educacionais na Bahia e no Rio de Janeiro; aí estão de pé as criações das escolas-parques; sua admirável atuação no INEP, do Ministério da Educação, é um testemunho de sua capacidade de direção de equipes de estudiosos e pesquisadores; e a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, com a esplêndida biblioteca especializada, foi outra criação modelar de sua inteligência produtiva. E muito mais, sem esquecer sua presença na criação de uma universidade moderna e genuína em Brasília.

Era um homem fonte, e como incomodava por isso mesmo a burrice e o conformismo nacionais! Nós não gostamos desse tipo de homem. Um homem que deseja inovar, criar coisas novas, tirar o País do marasmo pantanal, do deixa ficar como está para ver como fica, do deixa assim mesmo, do conformismo com o status quo, da descrença na possibilidade de melhorar e aperfeiçoar. Porque nesse caldo de cultura putrefeita é que melhor vantagem e partido tiram a mediocridade, a falsidade, os aproveitadores, os falsários de todas as farinhas. A luz, o progresso são incompatíveis com as formas inferiores de vida.

Por isso é que Anísio sempre sofreu, no Brasil, a campanha soez da burrice nacional. Sua luta e sua capacidade de amar e servir ao seu país não sofreram mossa, enquanto, através de 40 anos, se desencadearam contra ele os mais torpes argumentos, as mais sórdidas invectivas, as mais sibilinas invencionices, as mais ignóbeis campanhas, as perseguições mais cruéis. Jamais esmoreceu. Às estocadas da maledicência e as campanhas da felonia e da calúnia, que procuravam esmagá-lo, respondia com o silêncio e com outras realizações, em que eram férteis a sua inteligência privilegiada e a sua capacidade quase inumana de trabalhar e criar.

Sua posição de defensor da escola pública para a qual queria reservar os fundos públicos, foi deliberadamente, interesseiramente, confundida com estatismo e arrolada como comunista.

Aliás, o Brasil tem espírito de nababo no lidar com a sua elite intelectual. Parece que se sente rico demais, de sorte que não se mostra preocupado em bem utilizar os seus rendimentos e, como certos filhos de milionário, vive a orgia da dissipação, a espandongar os recursos que outros, menos dotados, gostariam de poder dispor para as suas mínimas necessidades.

Não sabemos aproveitar os nossos homens de inteligência. Desperdiçamo-los como se de nada valessem, ou como se um país só encontre meios de enriquecimento e progresso no trabalho material, constituindo os valores intelectuais um luxo indispensável.

Temos uma forte herança, que nos veio da obscurantista colonização lusa, de envolver em suspeição os intelectuais. A nossa história está repleta de fatos que provam essa assertiva, a culminar na mais famosa, a conjuração dos intelectuais de Vila Rica, em que foi sacrificada a fina-flor da intelectualidade mineira, o grupo mais

alto a que atingiu a literatura da fase colonial. Se Tiradentes ficou como símbolo da rebeldia popular, em que lavrava desde os primeiros tempos contra Portugal e seus dedos-duros, os árcades mineiros deram o exemplo do sacrifício intelectual contra a opressão e o reacionarismo. É que só um país mentalmente subdesenvolvido, só um país cujo corpo social não dispõe do tecido conjuntivo para defender-se e se torna altamente permeável à circulação dos miasmas que o destroem, só um país com essa consistência é que encara com suspeição a sua intelligentsia e procura policiar as palavras, como outrora faziam os nefandos vice-reis que nos exploravam.

A vida toda, foi Anísio vítima do mau costume brasileiro, por incapacidade de analisar e avaliar homens, fatos, idéias, de pregar etiquetas nas costas dos que não se ajeitam dentro dos currais ideológicos ou políticos do momento. É fascista, comuna, reacionário e quejandos epítetos, como se uma individualidade complexa coubesse em fórmulas simplistas, como se uma personalidade intelectual autêntica pudesse definir-se de maneira grotesca e absurda, segundo um redutivismo primário.

Nós nos damos ao luxo de considerar suspeitos, subversivos, desnecessários os nossos homens de elite intelectual.

Triste do povo que desconfia de sua intelectualidade e suspeita da palavra. Relegada à sombra da clandestinidade é que ela se torna perigosa e explosiva. Nada a detém.

Ao contrário, o que se deveria impor como programa inteligente era a conquista da inteligência, era o uso da força intelectual pelo bem comum e dentro de um clima de liberdade.

A figura de Anísio é a própria imagem da inteligência brasileira, que o Brasil desperdiçou, porque parece ter medo das luzes que dimanam das mentes esclarecidas. Que se pode esperar de uma nação que escorraça os representantes de sua cultura ?

Porque defendeu sempre o ensino público, foi Anísio arrolado, pelos interesses leigos e religiosos do privatismo educacional, nas hostes comunistas e perseguido, forçado a exilar-se para encontrar no estrangeiro quem tivesse olhos para ver melhor a sua inteligência invulgar e sua capacidade de realização.

Como é frequente, a história é que afinal pode julgar com justiça e isenção os nossos melhores homens. Todo o seu programa em favor da escola pública no Brasil está hoje sendo compreendido na sua realidade. E é toda a sua obra educacional, as suas teses de filósofo da educação e de realizador que estão sendo compreendidas e vistas como dessas que honram qualquer país, e que grandes países gostariam de ter quem as realizasse. É o caso por exemplo do seu notável livro, agora publicado, sobre o ensino superior no Brasil, obra genial de verdadeiro estadista da educação, como lhe chamou Hermes Lima.

Foi assim esse grande brasileiro, a quem celebramos agora com a justiça da posteridade, inscrevendo o seu nome numa obra destinada a continuar a obra luminosa que ele abriu para o bem do nosso país: a Fundação Anísio Teixeira.