DEPOIMENTO DE

LUÍS HENRIQUE DIAS TAVARES

 

 

Há dois momentos do meu conhecimento de Anísio Teixeira. Há um primeiro momento, que eu considerarei familiar, em que Anísio Teixeira era referido como personalidade da educação e da cultura brasileira, merecedor de toda a admiração e todo o respeito. Esse primeiro momento deve ser explicado: O Dr. Anísio Teixeira foi casado com Emília Ferreira, que era irmã de Lídia, que foi casada com Nestor Duarte, meu primo querido, um dos homens mais cativantes e generosos que a intelectualidade baiana conheceu. O segundo momento, foi o momento da vida. Eu conheci o Dr. Anísio no governo de Otávio Mangabeira e mais pessoalmente vim a conhecê-lo só em 1955.

 

"TENHO POR NORMAL ESTIMAR OS REBELDES"

 

Em 1955 eu estava muito desejoso de fazer um doutorado de História em São Paulo. Recentemente tinha sido criada a CAPES (Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior) da qual Dr. Anísio era Diretor. Candidatei-me e obtive uma bolsa da CAPES. Fui para São Paulo e logo senti que não era o que estava procurando. Passei no Rio de Janeiro e pedi uma audiência com o Dr. Anísio, com quem eu não tinha, até aquela altura, conversado e fui apresentar a ele o meu problema. Ele escutou-me e perguntou-me se eu era parente de Nestor Duarte.

Disse-lhe que era primo de Nestor e aí ele veio com uma nova pergunta: "Você foi o autor de dois artigos contra a minha administração na Secretaria de Educação?" Eu disse: "Fui, Dr. Anísio, e tenho muita vergonha desses artigos, que foram escritos nas circunstâncias da ocasião. Eu, jornalista, comunista, militante disciplinado, tive a tarefa de comentar o discurso com que o senhor inaugurou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro e, na nossa perspectiva, o discurso do senhor não nos atendia e foi isso que eu expus". Ele disse-me: "Não, não estou lhe indagando por qualquer motivo além do que eu registrei e, também, porque você fez esses artigos é que eu o estou escutando". "- Estou convencido de que eu não era nada mais do que um total ignorante e estava cometendo uma bobagem. Eu não tinha condições de comentar um discurso do senhor". "- Mas foi uma das únicas pessoas que contestaram a minha fala e eu tenho por normal estimar os rebeldes", disse ele.

Esse foi meu encontro com Anísio, e na mesma hora ele decidiu que eu não devia abrir mão daquela bolsa, que eu devia continuar, conseguindo que o mestre Wanderley Pinho aceitasse ser meu orientador no tema que eu estava me propondo a estudar, aqui mesmo na Universidade Federal da Bahia. Respondi à CAPES, enviei o aceite do Dr. Pinho e ganhei a condição de bolsista, de uma maneira bastante informal, pois ligado a uma Universidade que não tinha um curso de pós-graduação como era a Universidade Federal da Bahia naquela época. Foi daí que realizei minha tese de concurso em 1961: "O Movimento Revolucionário Baiano de 1798".

 

A AÇÃO DO CENTRO REGIONAL

DO INEP (CRINEP) NA BAHIA

 

Nesse mesmo ano de 1955, ainda na condição de bolsista, o Dr. Anísio mandou-me procurar para que eu participasse de um levantamento coordenado por Jaime Abreu, que deveria conduzir a um trabalho: O Sistema Educacional Baiano. Aceitei e a tarefa que recebi foi a de estudar, levantar bibliografia e fontes para estudar a educação baiana, a história da educação baiana. Do que levantei, o material reunido, fez-me o livro que foi editado em 1959 com o título: "Fontes para o Estudo da Educação na Bahia". A exemplo desse livro, desejava o Dr. Anísio que existissem outros, de todos os Estados. Infelizmente só existiu esse, incompleto porque só estava no primeiro volume. O segundo nunca foi publicado, perdeu-se nos papéis do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Esse material perdido constava de livros sobre educação publicados na Bahia, escritos por baianos ou residentes na Bahia, e de discursos, relatórios, manuais didáticos, escritos por baianos ou residentes na Bahia, um material surpreendentemente grande.

De bolsista passei para contratado do Centro Regional de Pesquisas Educacionais, sem abandonar o trabalho com o Dr. Pinho, mas ele foi para um segundo plano. Dediquei esses anos, de 1956 até 1959, a levantar material para o estudo da história da educação baiana, material que deu como resultado, além do já citado "Fontes para o Estudo da Educação na Bahia", também um pequeno artigo-súmula "Evolução Educacional Baiana", que está publicado em um dos volumes da Revista Arquivo da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e, deu-me depois, com um pouco mais de dedicação específica, o livro "Duas Reformas da Educação Baiana" - a Reforma orientada pelo Conselheiro Sátiro Dias e a Reforma que Anísio Teixeira realizou em 1925, no governo de Francisco Nunes Marques Góes Calmon.

Em seqüência, trabalhando no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, na condição de documentalista, tive várias ocasiões de conversar com Anísio Teixeira, quando ele vinha, quase todos os meses, acompanhando e fiscalizando sua obra de educador do Brasil inteiro, observar a construção da Escola-Parque e de todo o Centro Educacional que ele havia concebido. Tínhamos conversas, que muitas vezes demoravam-se, no grupo que se reunia em torno dele. Era um grupo muito diversificado. Nele às vezes estava Jaime Aires, quase sempre estava Hildérico Pinheiro, estava sempre Luiz Ribeiro de Senna e outras pessoas mais próximas da família do Dr. Anísio. Os temas eram muitos: educação, evidentemente; o quadro político nacional; o comportamento político de personalidades brasileiras e

os comportamentos do povo brasileiro. Em todos esses temas havia um que era permanente: O Brasil. Dr. Anísio era obsessivo amante do Brasil, país que ele amava de tal forma que tinha repetidos acessos de irritação ao examinar o quadro de atraso do nosso país. Muitas vezes escutei-o dizer que o Brasil era uma jovem índia, frase que ele tornou mais enfática depois de conhecer a Índia e de conhecer - não podia deixar de conhecer - a miséria brasileira, as condições subumanas de trabalho e de vida da imensa população do Brasil e da Bahia.

 

O ADMINISTRADOR PÚBLICO

 

O mestre Anísio era um administrador informal. Era um notável e eficiente administrador público. Ele fazia o que era preciso. Ele nunca se prendia às famosas regras burocráticas. Tenho até uma história, que tem certo sabor de piada, mas que é ilustrativa do antiburocratismo de Anísio Teixeira: Pouco depois de tomar posse no cargo de Diretor do INEP foi-lhe apresentado o problema da falta de máquinas de escrever. Um funcionário declarou a ele que os serviços estavam deficientes por causa da falta de máquinas de escrever e ele perguntou: "Temos verbas para comprar máquinas de escrever?" O funcionário respondeu: "Temos Dr. Anísio, está no orçamento". "- Verbas para a compra de quantas máquinas?" "- 25 máquinas". Ele decidiu imediatamente: "- Compre todas hoje, quero vê-Ias todas as 25 hoje à tarde". O funcionário observou: "- Não pode ser Dr. Anísio, eu tenho que fazer uma licitação pública". E ele disse: "- Primeiro você faz a compra das máquinas, depois você faz a licitação". Outros exemplos existem, eles mostram que Anísio era um administrador ágil, fazia o que tinha de fazer, estaria assim, provavelmente, muito sem proteção para as regras exigidas pelo Tribunal de Contas, mas as suas contas sempre foram aprovadas.

O pretexto para a perseguição que ele sofreu após o golpe militar de 1964 está relacionado com esta maneira de administrar. Um processo evidentemente calunioso, cheio de preconceitos, elaborado e construído por pessoas que não podiam compreender Anísio Teixeira, não podiam compreender esse administrador antiburocrático e informal. Quiseram segurá-lo por detalhes burocráticos na aplicação de verbas que ele movimentou audaciosamente para que a Universidade de Brasília existisse. Mas em todos os inquéritos, os IPMs que o mestre Anísio respondeu, pôde demonstrar a sua total lisura de administrador público.

 

A NATURAL SIMPLICIDADE

 

A minha lembrança de Anísio é uma lembrança muito cara. Ele era um personagem que estava na minha emoção, não só pela sua inteligência, pela sua criatividade, mas também pela sua dimensão humana, por ser um homem simples, extremamente simples, cioso da sua importância, cioso da sua validade, do seu valor, mas simples, estremamente modesto. Recordo-me, por exemplo, de um episódio, uma dessas visitas do Dr. Anísio à Bahia, muita gente em torno, quando ele já estava embarcando no carro em direção ao aeroporto. Uma empregada doméstica do CRINEP dirigiu-se a ele e pediu-lhe que levasse um embrulhinho para uma irmã, que também era doméstica e morava no Rio de Janeiro, a quem ela indicaria onde devia buscar o embrulho. O mestre Anísio imediatamente a atendeu, abriu a sua imensa e impossível mala de despacho e colocou o embrulho. Em torno dele várias pessoas estranharam que aquela empregada doméstica tivesse se dirigido a ele para pedir que carregasse um embrulho, mas para ele aquilo foi um ato simples, normal, que ele incorporou com a maior naturalidade.

Os episódios desse Anísio generoso, compreensivo são muitos. Nos caminhos da vida, nas vezes em que eu ia ao Rio, passava algumas horas conversando com ele. Tínhamos longas conversas que eram sobre o Brasil, sobre o povo brasileiro. Ele fazia-me indagações de história e tinha suas expressões de surpresa e espanto com a referência de alguns acontecimentos, alguns personagens, mas era o Brasil sempre a sua preocupação.

Mais um exemplo do cuidado humano do mestre Anísio Teixeira: Em uma dessas visitas ele levou-me para conhecer e conversar com um jornalista baiano que tinha sido redator-chefe de "A TARDE" e que era também médico, cuidava de Medicina Legal e se desterrou da Bahia por ter perdido um concurso para a cátedra desta especialidade, Armando de Campos, era esse o seu nome. Esse senhor estava doente, tinha eczema e não era muito agradável visitar um eczêmico. Pois Anísio Teixeira, com muitas ocupações, com muitos problemas, retirava um pedaço da manhã de todos os domingos para visitar esse amigo a quem ele conhecera no período em que fora Diretor da Instrução Pública na Bahia. Esse senhor era um homem taxativo nas suas opiniões, era um sectário e que tinha muita raiva dos políticos, alguns dos quais amigos ou conhecidos do Dr. Anísio. Pois o Dr. Anísio escutava pacientemente as queixas, as acusações do Campos, discutia e opunha-se a certos juízos, mas era na maioria das vezes um homem carinhoso, atento, aguardando que o Campos lhe fizesse qualquer solicitação para atender. Eu fui testemunha de visitas ao Campos com toda essa composição de discussão, debate acalorado, acusações e de atenção da parte do mestre Anísio.

Essa característica de simplicidade, de humanidade do Dr. Anísio, a meu ver poderia ser explorada no sentido de levar-se às escolas primárias, de maneira teatralizada, o personagem Anísio Teixeira. Isso, aliás, é alguma coisa que as escolas precisam fazer: construir pequenas peças de um ato só, revivendo personalidades brasileiras em determinadas circunstâncias. Não é muito difícil fazer uma peçazinha revivendo Anísio Teixeira inaugurando o Centro Educacional Carneiro Ribeiro; Anísio visitando as escolas, o que ele fazia diariamente; ou Anísio conversando com as professoras. Eu conheço um episódio que daria um pequeno ato muito ilustrativo: Certa feita o Dr. Anísio, Secretário de Educação, foi visitar uma escola que ele construíra, estava portanto nova e observou que estavam, em uma sala, vários quadros sem ser colocados na parede. Ele estava em uma das suas fases de cansaço, fases nas quais ficava com uma enorme tendência à irritação e comportava-se irritadamente. Perguntou por que não tinham colocado aqueles quadros nas paredes e as professoras que ali se encontravam disseram que era porque faltava quem os colocasse. "-"Mas como?", disse o mestre Anísio. "Colocar um quadro na parede pede apenas que exista o quadro, a parede, o prego e o martelo!". E daí, de repente, em uma inspiração disse: "Vamos fazer o seguinte, vamos verificar nessa sala quem sabe colocar um quadro na parede". Não sei para que ele teve essa inspiração, pois o resultado foi desastroso. Cada uma das professoras que tentou, uma martelou o dedo, a outra entortou o prego, a outra esburacou a parede, ninguém soube colocar o quadro. Ele próprio subiu em uma cadeira, colocou o quadro certo, pôs o prego no lugar, bateu o martelo no lugar e o quadro lá ficou. Só um homem com a sua grandeza comporta-se dessa forma, e observe-se que ele estava sob o ímpeto da irritação, de não pequena irritação.

 

INOVADOR NA BAHIA, EDUCADOR NO BRASIL

 

No período do governo Góes Calmon o grande mérito da atividade educativa de Anísio Teixeira foi a sistematização da educação na Bahia. Ele é quem lidera de maneira persistente, sistemática e consistente, a criação de um sistema educacional na Bahia. Antes dele há várias tentativas, há vários ensaios, mas uma verdadeira construção do sistema educacional só existe com Anísio Teixeira, com a sua Reforma, em 1925.

No período extremamente criativo em que foi Secretário de Educação no Governo de Otávio Mangabeira, o seu grande mérito foi ter se tornado o líder da escola pública, da escola para todos, da escola como um direito universal, e de ter lutado com todas as forças por essa escola. Ele dizia a todos, mas muito especialmente aos que tinham o comando político do país, que a nação tinha que gastar muito dinheiro com a educação. Ele dizia: "A educação é cara, tem de custar muito dinheiro, porque é somente com a educação que nós podemos construir o Brasil e fazer dele o grande país que todos desejamos".

Daí ter tido confronto com os donos de escolas particulares, com os iniciadores das escolas particulares em nível superior, de ter tido confronto com o deputado Carlos Lacerda, a quem ele admirava e em quem ele encontrava uma capacidade de liderança muito grande, mas de quem, afinal, pelos repetidos exemplos de mau caráter, ele se afastou quando verificou que aquela defesa da escola particular, que o deputado Carlos Lacerda fazia, era um jogo político para se construir como grande líder da direita brasileira.

 

O BRASIL QUE ELE DESEJAVA

 

O mestre era um homem desejoso de profundas reformas no Brasil. Queria um Brasil diferente daquele no qual nasceu, cresceu e trabalhou. Como deveria ser esse Brasil? Penso que ele desejava um Brasil democrático, um Brasil em que as alternativas democráticas se encontrassem presentes em todas as ocasiões e em tudo. Um Brasil que ficasse parecido com os Estados Unidos. Devo registrar que os Estados Unidos foram uma das grandes admirações do mestre Anísio Teixeira, onde ele foi, primeiro numa visita, em 1927, e depois para um período de estudos em 1928. Por lá ele e Monteiro Lobato estiveram muito juntos, quando se tornaram grandes amigos. Eram capazes de levar dias seguidos conversando e discutindo. O assunto era sempre o mesmo: o Brasil, como tirar o Brasil da situação de atraso pela educação. A educação seria a força revolucionária para tirar o país do atraso.

Toda a sua vida, toda a sua ação, uma ação enérgica, dinâmica, sem qualquer formalismo, foi para mudar o Brasil pela via da educação. Várias vezes conversamos a respeito disso e ele repetia que essa era a forma que ele via. Não tinha, portanto, esse grande homem, qualquer sedução pelas formas revolucionárias profundas. Admirava a grande Revolução Francesa, mas ao mesmo tempo a abominava pelos seus aspectos mais radicais. Tinha enorme admiração pela grande Revolução de 1917 na Rússia, a Revolução que fez a União Soviética mas, também abominava as formas radicais, as formas mais violentas, daí ter uma verdadeira atitude de condenação ao período de Joseph Stalin à frente da União Soviética.

Não tinha, assim, uma visão revolucionária, no sentido das mais profundas mudanças nas estruturas sociais e econômicas, ele tinha, ao meu ver, uma visão de exigência reformista profunda, larga, extensa no sentido democrático, que desse ao povo brasileiro as maiores alternativas, as maiores opções para ser dono do seu próprio destino e para dirigir o nosso país. Mas ele só via essa forma pelo caminho democrático, e acreditava que a educação era a via pela qual o povo brasileiro alcançaria essa capacidade de reforma, de profunda reforma e de modificação do Brasil.