DEPOIMENTO DE
THALES DE AZEVEDO
Conheci Anísio ainda nos anos 20, no Colégio Antonio Vieira, na Congregação Mariana Acadêmica. Ele já havia concluído seu curso de Direito no Rio, tinha sido aluno do Colégio e eu estava acabando de estudar Medicina. Ambos frequentávamos a Congregação e foi lá que nos aproximamos, de modo que sempre tivemos um relacionamento pessoal. Sempre o tratei de "você" e ele teve comigo muita atenção. Tanto que quando foi Secretário de Educação e Saúde, no governo Mangabeira, me convidou para seu assistente na parte de saúde, paralelo com Milton Tavares na parte de educação.
A INFLUÊNCIA DO PADRE CABRAL
Anísio era, então, um frequentador assíduo da Congregação e um fervoroso católico. Ele escreveu bastante naquela ocasião. Há dois volumes do Anuário Mariano Acadêmico que contém diversos trabalhos seus fazendo exaltado louvor à Companhia de Jesus.
Em 1925, Anísio foi pela primeira vez aos Estados Unidos e voltou com algumas idéias que sensibilizaram o Padre Cabral, o Padre Luiz Gonzaga do Vale Pereira Cabral, que era o Diretor da Congregação e também muito seu amigo. Então o Padre Cabral começou a conversar com Anísio e, por assim dizer, o repôs na linha anterior. Tanto que houve aqui uma manifestação contra o Presidente Pultarco Elias Calles, que promoveu uma grande perseguição religiosa no México, inclusive fuzilou Padre Pro, e Anísio foi quem redigiu um manifesto que se proclamou aqui na Bahia, na ocasião, em novembro ou dezembro de 1927. Fez-se aqui em Salvador uma passeata e esse manifesto foi difundido.
Mas, depois, Anísio fez a segunda permanência nos Estados Unidos, mais demorada, quando frequentou o Teachers College da Universidade de Columbia, em Nova lorque, e aí já voltou com idéias completamente diferentes. O Padre Cabral já não mais conseguiu demovê-lo e ficou na expectativa que Anísio reconsiderasse essa mudança de idéias.
Anísio tinha um substrato antigo na própria família: o pai dele, se não era positivista, era daqueles republicanos tradicionais, velhos republicanos de uma posição um pouco anti-igreja, de modo que não espanta muito a volta dele a esta posição, apesar do fervor que, até tão pouco tempo, mostrara pela Igreja.
A CRIAÇÃO DA FUNDAÇÃO
PARA O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA
Depois, em outro período, encontrei Anísio no Rio, quando era Secretário de Educação do prefeito Pedro Ernesto. Antes do final do mandato do prefeito, Anísio teve de renunciar e voltou à Bahia, indo para Caetité. Mais tarde veio para Salvador, onde se dedicou ao comércio, porque não podia mais intervir em questões de educação nem ter cargo público, pois poscrito estava por Getúlio Vargas, e por mais uma vez tive ocasião de conviver com ele. Quando Mangabeira tornou-se governador, em 1947, convida Anísio para Secretário de Educação e Saúde, e eu aceitei seu chamado para seu assistente na parte de saúde pública.
Nesta situação tive um incidente com Anísio, porque se aposentou o seu Chefe de Gabinete, um burocrata, funcionário, aliás, de muita competência e eficiência. Anísio me chamou e disse: "Olhe, Carminha (que era sua irmã Carmem Teixeira) me disse que você é muito organizado e eu quero lhe botar aí para Chefe de Gabinete". Eu lhe disse: "Mas Anísio, como é que eu, já formado em Medicina,
já professor da Faculdade de Filosofia, vou ser Chefe de Gabinete, para despachar papel, mandar lavar casa, mandar mudar lâmpadas? " - Ah, mas se colabora de qualquer maneira," respondeu ele. Eu tive que recorrer a Jaime Junqueira Aires: "Jaime, você não imagina o que Anísio acaba de me fazer". Tanto que Anísio ficou arrufado comigo e eu com ele durante oito dias. Nós éramos muito pessoalmente próximos, mas durante aqueles dias nem eu ia ao gabinete, nem ele me mandava chamar. Até que um dia me chamou: "Olhe, estou com a idéia de realizar uma pesquisa social que sirva de base para o planejamento de educação, de saúde, de administração pública no Estado da Bahia, e quero que você se encarregue de representar a Secretaria no acordo que firmei com o Departamento de Antropologia da Columbia University." Respondi que ele não poderia fazer nada melhor e, na verdade, foi uma das coisas mais felizes que fiz. Ele deu um apoio extraordinário, um dos motivos pelos quais a pesquisa avançou muito. Foi para realizar essa pesquisa que ele teve a idéia de criar a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia, em função de um dispositivo introduzido na Constituição Estadual de 1947, que fixava um percentual de um por cento da renda do Estado para manter instituição desta natureza.
Em dezembro de 1950 a Fundação foi instalada e começou a funcionar em um prédio na Graça, que pertencera a Lino Meireles, depois derrubado; era vizinho esse prédio do palacete Catharino, onde até hoje funciona o Conselho Estadual de Cultura e no qual sediava uma repartição de Estatística. Anísio foi o primeiro presidente e eu o vice-presidente. Trabalhei na Fundação daí até 1967, tendo sido, inclusive, uma vez, Presidente. Anísio criou, com a Fundação, um organismo mantido pelo Governo do Estado, com verbas limitadas, porém com certa eficácia, porque ele exerceu a Presidência pessoalmente. Havia também um Conselho de oito pessoas, todas nomeadas pelo Governador (ver Apêndice).
MARCOS INICIAIS
DA PESQUISA PROFISSIONAL NA BAHIA
Anísio criou na Fundação um Serviço de Informação Sobre Obras Científicas, um Serviço de Intercâmbio com Instituições Científicas, dentre outras coisas. Eram três ou quatro departamentos, cujo trabalho começou com essa pesquisa social, para a qual inicialmente pensou em convidar o Prof. Donald Pierson, que trabalhava na Escola de Sociologia Política de São Paulo. Mas Pierson estava muito ocupado com a pesquisa no Rio São Francisco. Então indicaram a Anísio um professor da Universidade Columbia, Charles Wagley, que veio trazendo três estudantes de doutoramento em Columbia; nós tivemos seminários com Wanderley Pinho, Nestor Duarte, Diógenes Rebouças, e outros, para pensar em que parte do estado faríamos uma pesquisa, pesquisa essa que foi programada pelo Dr. Wagley, em Nova lorque, com Eduardo Galvão, seu aluno de Antropologia do Curso de Pós-Graduação da Columbia University, naquela ocasião, em que depois veio a trabalhar na Fundação Goeldi, no Pará.
Esse plano básico deu lugar à primeira necessidade de um apanhado sobre a cultura baiana. Fui encarregado de um trabalho dando o esboço do que podia se distinguir no estado da Bahia, de uma região para outra, do ponto de vista cultural. Na base desse trabalho escolhemos quatro localidades que estivessem ativas e progressivas, para serem comparadas com localidades da mesma área, estagnadas e decadentes. Então viajamos pelo interior do estado, eu para uma região, Wagley e um de seus estudantes, Marvin Harris, para mais outras duas, e escolhemos Minas do Rio de Contas para ser comparada com Brumado; Monte Santo com Cansanção; São Francisco do Conde com a Usina São Paulo e havia o plano de uma localidade em Ilhéus, que veio a ser estudada, posteriormente, por Anthony Leeds. Isso deu lugar, então, a um plano de trabalho que, durante cerca de um ano e meio se desenvolveu com aqueles americanos, sempre auxiliados por estudantes brasileiros. Esse material permitiu a produção de uma série de artigos e dois livros publicados nos Estados Unidos: o livro de Bill Hutchinson sobre São Francisco do Conde e o livro de Marvin Harris sobre Minas do Rio de Contas. Tudo isso está relatado num artigo de Charles e sua esposa, Cecilia Wagley, na revista número 6/7, Universitas, publicada pela UFBa em 1971.
Anísio continuou trabalhando na Fundação, que teve uma atuação muito intensa, oferecendo bolsas, sobretudo no país, mas também para o exterior. Embora o principal trabalho financiado tenha sido esse Programa de Pesquisas Sociais no Estado da Bahia, onde Wagley representava a Universidade Columbia e eu o Governo do Estado, a Fundação se distinguiu também por amparar pesquisas de estudiosos baianos na Bahia e fora da Bahia, a partir de planos aprovados pelo Conselho da Fundação, que tinha uma composição de pessoas ligadas à Biologia, Engenharia, Ciências Humanas, Medicina, assim por diante.
A Fundação funcionou primeiro na Graça, depois no Edifício Themis, na Praça da Sé, e mais tarde em um apartamento que o professor Arquimedes Guimarães, quando Presidente, comprou na Rua Gustavo dos Santos, à Rua do Cabeça. Quando foi extinta, desapareceu todo esse material e até hoje não sabemos que destino teve, inclusive um retrato de Anísio que eu havia mandado fazer para inaugurar na Fundação. Quem poderá ter alguma coisa sobre isso é o Dr. João Eurico Matta, porque ele tem o material do Colegiado e também alguma coisa dos boletins mimeografados que foram impressos, etc. Ele é um homem da maior capacidade para produzir um trabalho que recupere um pouco da memória da Fundação, que praticamente foi apagada em 1967, sem nunca haver sido legalmente extinta, quando se criou a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado.
A OPOSIÇÃO DA IGREJA
O afastamento de Anísio da Igreja chocou o meio baiano, embora o arcebispo Dom Álvaro Augusto da Silva, que era um homem muito tradicionalista, mantivesse a amizade pessoal com Anísio até o último dia. O Padre Cabral, porém pessoalmente manteve sempre a expectativa de atrair Anísio de novo à religião.
O problema com a Igreja decorreu mais do programa da Escola Nova, daquele grupo do qual Anísio terminou sendo uma espécie de líder, porque, a despeito de ser o mais moço, era o mais brilhante e, realmente, um grande talento. Aquela idéia de uma escola pública, leiga, gratuita, etc, que afastava a influência da Igreja, inclusive do ensino religioso, deu lugar a que ele fosse mal entendido, no particular, ou pelo menos colocado em uma posição de reserva e de desconfiança, inclusive, o Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, escreveu contra ele, embora mais tarde tenham se aproximado pessoalmente.
Creio que uma das coisas que mais chocaram, naquele período, foi o apoio que Anísio deu a Monteiro Lobato e ao uso da literatura desse escritor nas escolas. Monteiro Lobato era um evolucionista e, de uma certa maneira esquerdista. Aqui na Bahia o Padre Sales Brasil escreveu muito contra Lobato. O Padre tinha uma posição de muito destaque aqui, muito inteligente e atuante, tanto que fundou, ao lado da biblioteca Monteiro Lobato, que a Denise Tavares criara, uma biblioteca infantil junto à igreja de São Raimundo, da qual ele era capelão, e isso também serviu para agravar esse choque.
A IMPORTÂNCIA DE RECUPERAR
A MEMÓRIA DE ANÍSIO
Creio que o principal a respeito de Anísio seria a realização de um trabalho muito cuidadoso, profundo, a respeito da personalidade e da vida dele. Porque as biografias existentes, inclusive a de Hermes Lima apanham Anísio a partir de certa altura, dos anos trinta e tantos, mas é preciso conhecer Anísio desde o começo, desde menino. Em Caetité deve haver material sobre isso, sobretudo do período de formação dele no Colégio São Luiz, dos estudos dele, companheiros que teve, professores dos quais ele se aproximou, trabalhos que escreveu e assim por diante.
Deve haver coisas deixadas por escrito que precisam ser analisadas, examinadas e comentadas, para serem conhecidas não apenas na forma em que deixou, mas comentadas de maneira competente. Por exemplo, Anísio esboçou um livro sobre a idéia da cultura brasileira, que encarregou Djacir Menezes de organizar. Então, com coisas dessa natureza, é possível refazer suas idéias e seu fascinante talento, uma biografia, por exemplo, ao alcance dos escolares, porém traçando um perfil exato; uma biografia melhor documentada para efeito da sua memória, para conservação do culto a sua personalidade, será desafio a um intelectual de preferência seu contemporâneo, testemunha - entre outros dados - de sua admirável integridade moral e intelectual.