CIÊNCIA E ARTE DE EDUCAR
Anísio Teixeira, 1957
Agradeço ao amigo - mestre - Professor Fernando de Azevedo o privilégio de vos falar, ao encerrar-se este seminário de educação, com o qual se inauguraram, em 1957, as atividades do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, confiado, afortunadamente, à sua alta e sábia direção.
Este Centro, como os seus congêneres, o Brasileiro e os demais centros regionais, representam elos no esforço continuado com que o Brasil tem procurado acompanhar o desenvolvimento da arte de educar - a educação - nos últimos cinqüenta anos, desenvolvimento que se caracteriza por uma revisão de conceitos e de técnicas de estudo, à maneira, dir-se-ia, da transformação operada na arte de curar - a medicina - quando se emancipou da tradição, do acidente, da simples "intuição" e do empirismo e se fez, como ainda se vem fazendo, cada vez mais científica.
Todos sabemos que isto se deu com a medicina, devido aos progressos dos métodos de investigação e de prova. O desenvolvimento das ciências que lhe iam servir de base e das técnicas científicas de que iria cada vez mais utilizar-se e mesmo apropriar-se, levaram a medicina a um progresso crescente, com a aplicação cada vez mais consciente de métodos próprios de investigação e de prova. São desse tipo - claro que sob os influxos dos progressos mais recentes ainda de outras ciências - os desenvolvimentos que desejamos suscitar na educação, com o cultivo, nos centros de pesquisas, que se estão fundando no Brasil, dentre os quais este de São Paulo é o mais expressivo, de métodos próprios de investigação e prova no campo educacional.
Como a medicina, a educação é uma arte. E arte é algo de muito mais complexo e de muito mais completo que uma ciência. Convém, portanto, deixar quanto possível claro de que modo as artes se podem fazer científicas.
Arte consiste em modos de fazer. Modos de fazer implicam no conhecimento da matéria com que se está lidando, em métodos de operar com ela e em um estilo pessoal de exercer a atividade artística. Nas belas-artes, ao estilo pessoal chegamos a atribuir tamanha importância que, muitas vezes, exagerando, consideramos que a personalidade artística é tudo que é necessário e suficiente para produzir arte. Não é verdade. Mesmo nas belas-artes, o domínio do conhecimento e o domínio das técnicas, se por si não bastam, são, contudo, imprescindíveis à obra artística.
A educação pode, com alguns raros expoentes, atingir o nível das belas-artes, mas, em sua generalidade, quase sempre, não chega a essa perfeição, conservando-se no nível das artes mecânicas ou práticas, entendidos os termos no sentido humano e não no sentido de maquinal, restritivo apenas quanto a belo e estético.
O progresso nas artes - sejam belas ou mecânicas - se fará um progresso científico, na medida em que os métodos de estudo e investigação para este progresso se inspirem naquelas mesmas regras que fizeram e hão de manter o progresso no campo das ciências, ou sejam as regras, para usar expressão que não mais se precisa definir, do "método científico".
A passagem, no campo dos conhecimentos humanos, do empirismo para a ciência foi e é uma mudança de métodos de estudo, graças à qual passamos a observar e descobrir de modo que outros possam repetir o que observarmos e descobrirmos e, assim, confirmar os nossos achados, que se irão, de tal maneira, acumulando e levando a novas buscas e novas descobertas. Se esta foi a mudança que originou os corpos sistematizados de conhecimentos a que chamamos de ciências, um outro movimento, paralelo ao das ciências, e dele conseqüente, mas, de certo modo autônomo, foi o da mudança das "práticas" humanas pela aplicação do conhecimento científico. Ao conhecimento empírico correspondiam as práticas empíricas, ao conhecimento científico passaram a corresponder as práticas científicas. As práticas, com efeito, fundadas no que a ciência observou, descobriu e acumulou, e, por seu turno, obedecendo aos mesmos métodos científicos, se transformaram em práticas tecnológicas e, deste modo renovadas, elas próprias se constituíram em fonte de novos problemas, novas buscas e novos progressos.
Com o desenvolvimento das ciências físicas e matemáticas e depois das ciências biológicas, as artes da engenharia e da medicina, obedecendo em suas "práticas" às regras científicas da observação, da descoberta e da prova puderam frutificar nos espantosos progressos modernos. Algo de semelhante é que se terá de introduzir na arte de educar, a fim de se lhe darem as condições de desenvolvimento inteligente, controlado, contínuo e sistemático, que caracterizam o progresso científico.
Não se trata, pois, de criar propriamente uma "ciência da educação", que, no sentido restrito do termo, como ciência autônoma, não existe nem poderá existir; mas de dar condições científicas à atividade educacional, nos seus três aspectos fundamentais - de seleção de material para o curriculum, de métodos de ensino e disciplina, e de organização e administração das escolas. Por outras palavras: trata-se de levar a educação para o campo das grandes artes já científicas - como a engenharia e a medicina - e de dar aos seus métodos, processos e materiais a segurança inteligente, a eficácia controlada e a capacidade de progresso já asseguradas às suas predecessoras relativamente menos complexas.
Está claro que essa inteligência da arte de educar a afasta radicalmente das artes predominantemente formais, como a do direito, por exemplo, à qual, me parece, temos, como país, uma irresistível inclinação a identificar a educação. Com efeito, embora não caiba aqui a análise aprofundada dessa inclinação, os sinais são muito evidentes de que ainda consideramos educar antes como uma arte dominantemente formal, à maneira do direito, do que como uma arte material, à maneira da medicina ou da engenharia.
Fora essa tendência distorciva, mais entranhada quiçá do que o imaginamos e que importa evitar, a introdução de métodos científicos no estudo da educação não irá determinar nada de imediatamente revolucionário. As artes sempre progrediram. Mas, antes do método científico, progrediram por tradição, por acidente, pela pressão de certas influências e pelo poder "criador" dos artistas. Com o método científico, vamos submeter as "tradições" ou as chamadas "escolas" ao crivo do estudo objetivo, os acidentes às investigações e verificações confirmadoras e o poder criador do artista às análises reveladoras dos seus segredos, para a multiplicação de suas descobertas; ou seja, vamos examinar rotinas e variações progressivas, ordená-las, sistematizá-las e promover, deliberadamente, o desenvolvimento contínuo e cumulativo da arte de educar.
Não se diga, entretanto, que tenha sido sempre este o entendimento do que se vem chamando de ciência da educação, à qual já aludimos com as devidas reservas. Pelo contrário, o que assistimos nas primeiras décadas deste século, e que só ultimamente se vem procurando corrigir, foi a aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional.
De outro lado, tomaram-se de empréstimo técnicas de medida e experiência das ciências físicas e se pretendeu aplicá-las aos fenômenos psicológicos e mentais, julgando-se científicos os resultados porque as técnicas - tomadas de empréstimo - eram científicas e podiam os tais resultados ser formulados quantitativamente.
Houve, assim, precipitação em aplicar diretamente na escola "conhecimentos" isolados de psicologia ou sociologia e, além disto, precipitação em considerar esses "conhecimentos" verdadeiros conhecimentos.
A realidade é que não há ciência enquanto não houver um corpo sistemático de conhecimentos, baseados em princípios e leis gerais, que lhes dêem coerência e eficácia. Aí estão as ciências matemáticas e físicas com todo o seu lento evoluir até que pudessem florescer nas grandes searas das tecnologias, que correspondem à sua aplicação às práticas humanas. Logo após vem o ainda mais lento progresso das ciências biológicas e a agronomia, a veterinária e a medicina como campos de aplicação tecnológica.
Para que as "práticas" educativas possam também beneficiar-se de progresso semelhante, será preciso, antes de tudo, que as ciências que lhes irão servir de fontes se desenvolvam e ganhem a maturidade das grandes ciências já organizadas. Até aí há que aceitar não só que o progresso seja lento, mas que seja algo incerto e, sobretudo, não suscetível de generalização. Mas antes progredir, assim, tateando, sentindo os problemas em toda a sua complexidade, mantendo em suspenso os julgamentos, do que julgar que podemos simplificar a situação, considerá-la puramente física ou biológica e aplicar métodos e técnicas aceitáveis para tais campos, mas inadequados para o campo educativo pela sua amplitude e complexidade.
Convém, realmente, insistir na distinção entre o campo da ciência e do conhecimento em si e o campo da aplicação do conhecimento e da prática ou da arte. Bastaria, talvez, dizer que a ciência é abstrata, isto é, que busca conhecer o seu objeto num sistema tão amplo de relações, que o conhecimento científico, como tal, desborda de qualquer sistema particular, para se integrar num sistema tão geral, que nele só contam as relações dos conhecimentos entre si; e que a "prática" é um sistema concreto e limitado, em que aqueles conhecimentos se aplicam com as modificações, alterações e transformações necessárias à sua adaptação à situação. Por isto mesmo, não produz a ciência, não produz o conhecimento científico, por si mesmo, uma regra de arte, ou seja uma regra de prática.
Leis e fatos, que são os produtos das ciências, ministram ao prático não propriamente regras de operação, mas, recursos intelectuais para melhor observar e melhor guiar a sua ação no campo mais vasto, mais complexo, com maior número de variáveis da sua indústria ou da sua arte. A velha expressão: na prática é diferente, é um modo simples de indicar essa verdade essencial de que a ciência é um recurso indireto, é um intermediário e nunca uma regra direta de ação e de arte. A ciência é uma condição - e mesmo uma condição básica - para a descoberta tecnológica ou artística, mas não é, ou ainda não é essa descoberta. Quando se trata de tecnologia das ciências físicas, o processo prático não chega à exatidão do processo de laboratório, mas, pode chegar a graus apreciáveis de precisão. Mas, se a tecnologia é a de um processo de educação, podemos bem imaginar quanto as condições de laboratório são realmente impossíveis de transplantação para a situação infinitamente mais complexa da atividade educativa.
Não quer isto dizer que a ciência seja inútil, mas que a sua aplicação exige cuidados e atenções todo especiais, valendo o conhecimento científico como um ingrediente a ser levado em conta, sem perder, porém, de vista todos os demais fatores.
Em educação muita coisa se fez em oposição a esse princípio tão óbvio, com a aplicação precipitada de conhecimentos científicos ou supostamente científicos diretamente como regras de prática educativa e a transplantação de técnicas quantitativas das ciências físicas para os processos mentais, quando não educativos, importando tudo isto em certo descrédito da própria ciência.
Para tal situação concorreu, sem dúvida, o fato de nem sempre haverem sido as "práticas educativas" as fornecedoras dos "dados" do problema, como deverá ser, se tivermos de contar com a ciência para nos ajudar a progredir na arte de educar. E em segundo lugar, concorre certa impaciência de resultados positivos que aflige tanto - hélas! - as ciências jovens que servem de fonte e base a uma possível arte de educar menos empírica e mais científica.
Com efeito, tais ciências não nos irão dar regras de arte, mas conhecimentos intelectuais para rever e reconstruir, com mais inteligência e maior segurança, as nossas atuais regras de arte, criar, se possível, outras e progredir em nossas práticas educacionais, isto é, nas práticas mais complexas da mais complexa arte humana.
Tudo, na realidade, entra nessa prática. A nossa filosofia, concebida como o conjunto de valores e aspirações, as ciências biológicas, psicológicas e sociais, todas as demais ciências como conteúdo do ensino, enfim, a cultura, a civilização e o pensamento humano em seus métodos e em seus resultados. Prática desta natureza e desta amplitude não vai buscar as suas regras em nenhuma ciência isolada, seja mesmo a psicologia, a antropologia ou a sociologia; mas em todo o saber humano e, por isto mesmo será sempre uma arte em que todas as aplicações técnicas terão de ser transformadas, imaginativa e criadoramente, em algo de plástico e sensível suscetível de ser considerado antes sabedoria do que saber - opostos tais termos um ao outro no sentido de que sabedoria é, antes de tudo, a subordinação do saber ao interesse humano e não ao próprio interesse do saber pelo saber (ciência) e muito menos a interesses apenas parciais ou de certos grupos humanos.
Mas toda essa dificuldade não é para que o educador se entregue à rotina, ao acidente ou ao capricho, mas muito pelo contrário, busque cooperar na transição da educação do seu atual empirismo para um estado progressivamente científico.
Dois problemas diversos avultam nessa transição. Primeiro, é o do desenvolvimento das ciências-fonte da educação. Assim como as ciências matemáticas e físicas são as ciências-fonte principais da engenharia, assim como as ciências biológicas são as ciências-fonte principais da medicina, assim a psicologia, a antropologia e a sociologia são as ciências-fonte principais da educação.
Enquanto estas últimas não se desenvolverem até um mais alto grau de maturidade e segurança, não poderão dar à educação os elementos intelectuais necessários para a elaboração de técnicas e processos que possam constituir o conteúdo de uma possível "ciência de educação". E este é o segundo problema. Porque, ainda que as ciências-fonte quanto à educação estivessem completamente desenvolvidas, nem por isto teríamos automaticamente a educação renovada cientificamente, pois, conforme vimos, nenhuma conclusão científica é diretamente transformável em regra operatória no processo de educação. Todo um outro trabalho tem de ser feito para que os fatos, princípios e leis descobertos pela ciência possam ser aplicados na prática educacional.
Na própria medicina, com efeito, atrevo-me a afirmar, os princípios e leis da ciência servem para guiar e iluminar a observação, o diagnóstico e a terapêutica, não se impondo rigidamente como regras à arte médica, regras de clínica, regras imperativas da arte de curar.
A ciência oferece, assim, a possibilidade de um primeiro desenvolvimento tecnológico, fornecendo à arte melhores recursos para a investigação dos seus próprios problemas e, deste modo, sua melhor solução. Num segundo desenvolvimento, também tecnológico, oferece recursos novos para o tratamento e a cura, mas, a arte clínica continua sendo uma arte de certo modo autônoma, a ser aprendida à parte, envolvendo métodos próprios de investigação e análise, de registro dos casos, de comparações e analogias, de experiência e tirocínio, em que, além de um conteúdo próprio mais amplo do que os puros fatos científicos, sobressaem sempre o estilo pessoal do médico, a sua originalidade e o seu poder criador. A ciência, aliás, longe de mecanizar o artista ou o profissional, arma a sua imaginação com os instrumentos para seus maiores vôos e audácias.
Ora, o mesmo é o que há de ocorrer no domínio da educação - da arte de educar. Neste, o campo precípuo ou específico - atelier, laboratório ou oficina - é a sala de classe, onde oficinam os mestres, eles próprios também investigadores, desde o jardim de infância até a universidade. São as escolas o campo de ação dos educadores, como o dos médicos são os hospitais e as clínicas.
Os especialistas de ciências autônomas são grandes contribuintes para a chamada ciência médica, como serão para a que vier a se chamar de ciência da educação, mas nenhum resultado científico, isto é, o conhecimento de cada ciência, mesmo ciência básica ou ciência fonte, é por si um conhecimento educacional ou médico, nem dará diretamente uma regra de ação médica ou educacional. Tais conhecimentos ajudarão o médico ou o educador a observar melhor e, assim, a elaborar uma melhor arte de curar ou uma melhor arte de educar.
Tomemos uma ilustração qualquer. Sejam, por exemplo, os testes de inteligência, que se constituíram, por certo, um dos mais destacados recursos novos da "ciência" para a técnica escolar. Para que servem eles? - Para diagnosticar com maior segurança limites da capacidade de aprender do aluno. Se os tomarmos apenas para isto, aumentaremos sem dúvida os nossos recursos de observação e conhecimento do aluno e melhor poderemos lidar com as situações de aprendizagem, sem perder de vista as demais condições e fatores de tais situações.
Se, porém, ao contrário, tomarmos esse recurso parcial de diagnóstico mental como uma regra educativa e quisermos homogeneizar rigidamente os grupos de QI idêntico ou aproximado e proceder uniformemente com todos os seus componentes, não estaremos obedecendo à complexidade total da situação prática educativa e muito menos a nenhuma "ciência de educação", pois esta não reconheceria tal classificação como válida, reconhecendo hoje que a situação é totalmente empírica, incluindo fatores entre os quais o QI é apenas um só complexo da situação "aluno-professor-grupo-meio" em que se encontra o aprendiz.
Nem por isto será, entretanto, inútil o conhecimento do QI, pois a alteração da capacidade de aprender do aluno passa, em face dos dados do QI, a ser vista e estudada sob outra luz.
A ciência, assim, como já afirmamos, não oferece senão um dado básico e jamais a regra final de operação. Esta há que ser descoberta no complexo da situação de prática educativa, em que se encontrem professor e aluno, levando-se em conta todos os conhecimentos científicos existentes, mas, agindo-se autonomamente à luz dos resultados educativos propriamente ditos, isto é, de formação e progresso humano do indivíduo, a que visam tanto aqueles conhecimentos quanto estes resultados.
Nesta fase é que vimos entrando ultimamente. Há um real amadurecimento entre as ciências especiais, fontes da educação, superados os entusiasmos das primeiras descobertas. Com relação aos testes de inteligência, até o nome vem sendo hoje evitado, preferindo-se o nome de teste de aptidões diferenciais, pois já se reconhece que estamos longe de medir o famoso g ou fator geral, mas medimos apenas uma série de aptidões decorrentes da cultura em que se acha imersa a criança e não inteiramente independente da educação anterior. Não é isto nenhum descrédito para os testes chamados de inteligência, mas, pelo contrário, um progresso, uma precisão.
Prejudicial, talvez, foi antes o excessivo entusiasmo anterior. A precipitada aplicação de produtos ainda incertos de "ciência" à escola parece haver exacerbado certos aspectos quantitativos e mecanizantes, conduzindo ao tratamento do aluno como algo abstrato a ser manipulado por critérios de classificação em grupos supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta.
Com relação à "ciência" do ato de aprendizagem o mesmo novo desenvolvimento se pode observar. Compreende-se melhor que "aprender" é algo de muito mais complexo do que se poderia supor e francamente uma atividade prática a ser governada, se possível, por uma psicotécnica amadurecida e não pela psicologia. Ora, quando isto nos distancia das "leis" de aprendizagem, em que se ignoravam, além de muito mais as relações professor-aluno-colegas-meio e se imaginava o aprendiz como um ser isolado e especial que operasse abstratamente, como abstratas haviam sido e não podiam deixar de ser as experiências de laboratório que haviam conduzido às supostas leis de aprendizagem!
Para essa precipitada aplicação na escola, de resultados fragmentários e imaturos da ciência, concorreu também - e merece isto registro especial - uma peculiar prevenção, digamos assim, da ciência para com a filosofia, ou um dissídio entre uma e outra, de alcance e efeito negativos. Explico o que desejo significar.
Como toda ciência foi primeiro filosofia e como seu progresso geralmente se processou com o distanciamento cada vez maior daquela filosofia originária, pode parecer e parece que ciência e filosofia se opõem e os conhecimentos serão tanto mais científicos quanto menos filosóficos.
Ora, tal erro é grave, mesmo em domínios como os da matemática e da física. Mas em educação é bem mais grave. Com efeito, se historicamente o progresso das ciências se fez com o seu distanciamento dos métodos puramente dedutivos da filosofia, não quer isto dizer que as ciências não operem realmente sobre uma filosofia. O seu afastamento foi antes um afastamento de determinada filosofia exclusivamente especulativa, ou melhor "livremente" especulativa, para a adesão a uma nova filosofia de base científica. Como esta nova filosofia foi quase sempre uma filosofia implícita e não explícita, o equívoco pode-se estabelecer e durar.
A realidade é que filosofia e ciência são dois pólos de conhecimento humano, a filosofia representando o mais alto grau de conhecimento geral e a ciência tendendo para o mais alto grau de conhecimento especial. Entre ambas tem de existir um comércio permanente, a ciência revendo-se à luz dos pressupostos e conceitos generalizados da filosofia. Neste sentido, a filosofia nutre permanentemente a ciência com as suas integrações e visões de conjunto e a ciência nutre a filosofia, forçando-se a combinações e sínteses mais fundadas, menos inseguras e mais ricas.
Não se trata do quase equívoco de que a filosofia elabora os fins e a ciência os meios, mas da verdade de que ambas elaboram, criticam e refinam os fins e os meios, pois uns e outros sofrem e precisam sofrer tais processos de crítica e revisão, a ciência criando muitas vezes novos fins com as suas descobertas e a filosofia criticando permanentemente os meios à luz dos fins que lhe caiba descobrir e propor à investigação científica.
A não existência dessa cooperação ou interação, entre a ciência e a filosofia, levou a chamada "ciência da educação" a não ter filosofia, o que corresponde realmente a aceitar a filosofia do statu-quo e a trabalhar no sentido da tradição escolar, a que efetivamente obedeceu, agravando, em muitos casos, com a eficiência nova que lhes veio trazer, os aspectos quantitativos e mecânicos da escola, que lhe teria de parecer - et pour cause - os mais científicos aspectos da escola.
Hoje, felizmente, estamos bem mais amadurecidos e os estudos de educação, que não desdenham das contribuições que lhes terá de trazer a filosofia, também ela cada vez mais de base científica, começam a ser feitos à luz da situação global escolar e de suas "práticas", que urge rever e tornar progressivas em face dos conhecimentos que vimos adquirindo no campo das ciências especiais, ciências-fonte da educação - principalmente a antropologia, a psicologia e a sociologia - não já para aplicar na escola, diretamente, os resultados da investigação científica no campo destas ciências, mas para, tomando tais resultados como instrumentos intelectuais, elaborar técnicas, processos e modos de operação apropriados à função prática de educação.
Os nossos Centros de Pesquisas Educacionais se organizam, assim, num momento de revisão e tomada de consciência dos progressos do tratamento científico da função educativa e, por isso mesmo, tem certa originalidade. Pela primeira vez busca-se aproximar uns dos outros os trabalhadores das ciências especiais, fontes de uma possível "ciência" da educação, e os trabalhadores de educação, ou sejam os dessa possível "ciência" aplicada da educação. Esta aproximação visa, antes de tudo, levar o cientista especial, o psicólogo, o antropólogo, o sociólogo, a buscar no campo da prática escolar os seus problemas. Note-se que os problemas das ciências biológicas humanas originaram-se e ainda hoje se originam na medicina.
É preciso que as ciências sociais, além de outros problemas que lhes sejam expressamente próprios, busquem nas atuais situações de prática educativa vários e não poucos problemas, que também lhes são próprios.
Como na medicina, ou na engenharia, não há, stricto sensu, uma ciência de curar nem de construir, mas, artes de curar e de construir, fundadas em conhecimentos de várias ciências, assim os problemas da arte de educar, quando constituírem problemas de psicologia, de sociologia e de antropologia, serão estudados por essas ciências especiais e as soluções encontradas irão ajudar o educador a melhorar a sua arte e, deste modo, provar o acerto final daquelas soluções ou conhecimentos, ou, em caso contrário, obrigar o especialista a novos estudos ou a nova colocação do problema. A originalidade dos centros está em sublinhar especialmente essa nova relação entre o cientista social e o educador. Até ontem o educador julgava dispor de uma ciência autônoma, por meio da qual iria criar simultaneamente um conhecimento educacional e uma arte educacional. E o cientista social estudava outros problemas e nada tinha diretamente a ver com a educação. Quando resolvia cooperar com o educador, despia-se de sua qualidade de cientista e se fazia também educador. Os Centros vêm tentar associá-los em uma obra conjunta, porém com uma perfeita distinção de campos de ação. O sociólogo, o antropólogo e o psicólogo social, não são sociólogos-educacionais, ou antropólogos-educacionais ou psicólogos-educacionais, mas sociólogos, antropólogos e psicólogos estudando os problemas de sua especialidade, embora originários das "práticas educacionais".
Os educadores -sejam professores, especialistas de currículo, de métodos ou de disciplina, ou sejam administradores - não são, repitamos, cientistas, mas, artistas, profissionais, práticos (no sentido do practitioner inglês), exercendo, em métodos e técnicas tão científicas quanto possível, a sua grande arte, o seu grande ministério. Serão cientistas como são cientistas os clínicos; mas sabemos que só em linguagem lata podemos efetivamente chamar o clínico de cientista.
Acreditamos que esse encontro entre cientistas sociais e educadores "científicos" - usemos o termo - será da maior fertilidade e, sobretudo, que evitará os equívocos ainda tão recentes da aplicação precipitada de certos resultados de pesquisas científicas nas escolas, sem levar em conta o caráter próprio da obra educativa. Com os dados que lhe fornecerá a escola, o cientista irá colocar o problema muito mais acertadamente e submeter os resultados à prova da prática escolar, aceitando com maior compreensão este teste final.
Tenho confiança de que bem esclarecida e estudada essa posição, de que estou a tentar aqui os fundamentos teóricos, ser-nos-á possível ver surgir o sociólogo estudioso da escola, o antropólogo estudioso da escola, o psicólogo estudioso da escola, não já como esses híbridos que são, tantas vezes, os psicólogos, sociólogos e antropologistas educacionais, nem bem cientistas nem também educadores, mas como cientistas especializados, fazendo, verdadeiramente, ciência, isto é, sociologia, antropologia e psicologia, e ajudando os educadores, ou seja os clínicos da educação, assim como os cientistas da biologia ajudam os clínicos da medicina.
Parece-me não ser uma simples nuance a distinção. Por outro lado, isto é o que já se faz, sempre que se distingue o conhecimento teórico, objeto da ciência, da regra prática, produto da tecnologia e da arte. A confusão entre os dois campos é que é prejudicial. É preciso que o cientista trabalhe com o desprendimento e o "desinteresse do cientista", que não se julgue ele um educador espicaçado em resolver problemas práticos, mas o investigador que vai pesquisar pelo interesse da pesquisa. O seu problema originou-se de uma prática educacional, mas é um problema de ciência, no sentido de estar desligado de qualquer interesse imediato e visar estabelecer uma teoria, isto é, o problema é um problema abstrato, pois a abstração é essencial para o estudo científico que vise a formulação de princípios e leis de um sistema coerente e integrado de relações. Os chamados estudos "desinteressados" ou "puros" não são mas do que isto. São estudos das coisas em si mesmas, isto é, nas suas mais amplas relações possíveis. As teorias científicas do calor, da luz, da cor ou da eletricidade são resultados do estudo desses fenômenos em si mesmos, desligados de qualquer interesse ou uso imediato. No fim de contas, a teoria é, como se diz, a mais prática das coisas, porque, tendo sido o resultado do estudo das coisas no aspecto mais geral possível, acaba por se tornar de utilidade universal.
Assim terão de ser e nem poderão deixar de ser os estudos dos cientistas sociais destinados a contribuir para o progresso das práticas educativas, pois do contrário, estariam os cientistas aplicando conhecimentos e não buscando descobri-los. Armados que sejam os problemas, originários da prática educacional mas não de prática educacional, deve o pesquisador despreocupar-se de qualquer interesse imediato e alargar os seus estudos até os mais amplos limites, visando descobrir os "fatos" e as suas relações, dentro dos mais amplos contextos, para a eventual formulação dos "princípios e "leis" que o rejam.
Tais "fatos", "princípios" e "leis" não irão, porém, fornecer ao educador, repitamos, nenhuma regra de ação ou de prática, mas idéias, conceitos, instrumentos intelectuais para lidar com a experiência educacional em sua complexidade e variedade e permitir-lhe elaborar, por sua vez, as técnicas flexíveis e elásticas de operação e os modos de proceder inteligentes e plásticos, indispensáveis à condução da difícil e suprema arte humana - a de ensinar e educar.
Cientistas e educadores trabalharão juntos, mas, uns e outros, respeitando o campo de ação de cada um dos respectivos grupos profissionais e mutuamente se auxiliando na obra comum de descobrir o conhecimento e descobrir as possibilidades de sua aplicação. O método geral de ação de uns e outros será o mesmo, isto é, o "método científico" e, neste sentido, é que todos se podem considerar homens de ciência. O educador, com efeito, estudando e resolvendo os problemas da prática educacional, obedecerá às regras do método científico, do mesmo modo que o médico resolve, com disciplina científica, os problemas práticos da medicina: observando com inteligência e precisão, registrando essas observações, descrevendo os procedimentos seguidos e os resultados obtidos, para que possam ser apreciados por outrem e repetidos, confirmados ou negados, de modo que a sua própria prática da medicina se faça também pesquisa e os resultados se acumulem e multipliquem.
Os registros escolares de professores e administradores, as fichas de alunos, as histórias de casos educativos, ou descrições de situações e de pessoas constituirão o estoque, sempre em crescimento, de dados, devidamente observados e anotados, que irão permitir o desenvolvimento das práticas educacionais e, conforme já dissemos, suscitar os problemas para os cientistas que aí escolherão aqueles suscetíveis de tratamento científico, para a elaboração das futuras teorias destinadas a dar à educação o status de prática e arte científicas como já são hoje a medicina e a engenharia. No curso destas considerações, insistimos pela necessidade de demonstração de nossa posição, na analogia entre medicina e educação. Não sirva isto, contudo, para que se pense que a prática educativa possa alcançar a segurança científica da prática médica. Não creio que jamais se chegue a tanto. A situação educativa é muito mais complexa do que a médica. O número de variáveis da primeira ainda é mais vasto do que o da segunda. Embora já haja médicos com o sentimento de que o doente é um todo único e, mais, que esse todo compreende não só o doente, mas o doente e o seu "meio", ou o seu "mundo", o que os aproxima dos educadores, a situação educativa ainda é mais permanentemente ampla, envolvendo o indivíduo em sua totalidade, com todas as variáveis dele próprio e de sua história e de sua cultura, e mais as da situação concreta, com os seus contemporâneos e os seus pares, seu professor e sua família. A prática educativa exige que o educador leve em conta um tão vasto e diverso grupo de variáveis, que, provavelmente, nenhum procedimento científico poderá jamais ser rigorosamente nela aplicado.
Ainda o mais perfeito método de aquisição, digamos, de uma habilidade, não poderá ser aplicado rigidamente. O educador terá de levar em conta que o aluno não aprende nunca uma habilidade isolada; que, simultaneamente, estará aprendendo outras coisas no gênero de gostos, aversões, desejos, inibições, inabilidades, enfim que toda a situação é um complexo de "radiações, expansões e contrações", na linguagem de Dewey, não permitindo nem comportamento uniforme nem rígido.
É importante conhecer todos os métodos e recursos já experimentados e provados de ensinar a ler, mas, a sua aplicação envolve tanta coisa a mais, que o mestre, nas situações concretas, é que irá saber até que ponto poderá aplicar o que a ciência lhe recomenda, não no sentido de negá-lo, mas, no sentido de coordená-lo e articulá-lo com o outro mundo de fatores que entram na situação educativa.
Sendo assim, podemos ver quanto a função do educador é mais ampla do que toda a ciência de que se possa utilizar. É que o processo educativo se identifica com um processo de vida, não tendo outro fim, como insiste Dewey, senão o próprio crescimento do indivíduo, entendido esse crescimento como um acréscimo, um refinamento ou uma modificação no seu comportamento, como ser humano. Em rigor, pois, o processo educativo não pode ter fins elaborados fora dele próprio. Os seus objetivos se contêm dentro do processo e são eles que o fazem educativo. Não podem, portanto, ser elaborados senão pelas próprias pessoas que participam do processo. O educador, o mestre, é uma delas. A sua participação na elaboração desses objetivos não é um privilégio, mas a conseqüência de ser, naquele processo educativo, o participante mais experimentado, e, esperemos, mais sábio.
Deste modo, a educação não é uma ciência autônoma, pois não existe um conhecimento autônomo de educação, mas é autônoma ela própria, como autônomas são as artes e, sobretudo, as belas-artes, uma delas podendo ser, ouso dizer e mesmo pretender - a educação.
A "ciência" da educação, usando o termo com todas as reservas já definidas, será constituída, na frase de Dewey, de toda e qualquer porção de conhecimento científico e seguro que entre no coração, na cabeça e nas mãos dos educadores e, assim assimilada, torne o exercício da função educacional mais esclarecida, mais humana, mais verdadeiramente educativa do que antes.
Os nossos Centros de Pesquisas Educacionais foram criados para ajudar a aumentar os conhecimento científicos que assim possam ser utilizados pelos educadores - isto é, pelos mestres, especialistas de educação e administradores educacionais - para melhor realizarem a sua tarefa de guiar a formação humana, na espiral sem fim do seu indefinido desenvolvimento.
O Seminário que ora se encerra foi um primeiro contato entre os professores e mestres que trabalham nas classes e os que trabalham no Centro. Esta aproximação tem um sentido: o de associar à pesquisa educacional o mestre de classe. Na classe é que se realiza a função educativa. É dentro da classe, na cabeça, no coração e nas mãos do aluno. Todo o trabalho do Centro visa, em última análise, tornar mais rica, mais lúcida e mais eficaz essa ação educativa. Nada podemos fazer sem o professor e a pesquisa educacional não pode prescindir do seu concurso.
Se o vosso trabalho se libertar do caráter de trabalho de rotina, de acidente ou de capricho e começardes a registrar por escrito o vosso esforço, a manter fichas cumulativas, descritivas e inteligentes, dos alunos, casos-histórias de experiências educativas, todo esse material poderá aqui ser estudado, no propósito de vos ajudar em vossa tarefa, que continuará autônoma e, além disto, mais consciente, mais controlada e mais suscetível de ser repetida e, deste modo, de se acumular e progredir. Não desejamos tanto ser aqui no Centro um estado-maior a elaborar planos para serem cumpridos por autômatos ou semi-autômatos, mas um grupo de colegas a estudar convosco os problemas escolares, com o objetivo de conseguir conhecimentos para que todo o magistério possa conduzir com mais autonomia a sua grande tarefa. Não teremos regras nem receitas a oferecer, mas buscaremos ajudar-vos no instrumental intelectual indispensável à execução de uma das belas-artes e a maior: a de educar.