ANÍSIO TEIXEIRA
E A LUTA PELA ESCOLA PÚBLICA
Florestan Fernandes
Anísio Teixeira foi um dos homens mais ilustres da história do pensamento brasileiro. A Fundação e o ato que estamos vivendo são muito pequenos em comparação à grandeza de Anísio Teixeira e à dimensão da sua obra.
Conheci Anísio Teixeira no fim da década de 50 e sempre tive um convívio com ele muito agradável e ao mesmo tempo estimulante. Era um homem generoso e compreensivo, um homem sempre pronto a dar, o protótipo do educador. O educador prevalecia em todas as suas ações e chega a ser inacreditável que as mãos da ditadura militar tenham se erguido contra esse homem ao qual nós todos devemos, e que ele tenha sofrido incompreensão, incerteza e amargura, em vez de receber honras, compensação e carinho. Por isso este ato é importante. Nós damos à sua família, todos nós, aquilo que ele não recebeu. Mas tenho certeza de que todos aqui compreenderão que essa é uma doação a Anísio Teixeira que não nos redime, que não nos justifica, mas mostra que a grandeza humana é imorredoura.
Compete-me tratar do aspecto mais palpitante da sua atividade. Falar da relação de Anísio Teixeira com a defesa da escola pública é falar de todo o Anísio Teixeira. Por isso eu teria de lembrar em primeiro lugar sua trajetória como educador.
Os sociólogos gostam de usar um conceito, empregado por Wright Mills, o sociólogo norte americano, rebelde, que se chama a imaginação sociológica. Com relação a Anísio Teixeira teríamos de compreender a imaginação pedagógica. A imaginação pedagógica é uma imaginação que não tem fronteiras, nem na Ciência, nem na Arte, nem na Filosofia. Mas, se é para ir ao fundo do que é a Pedagogia, ela é uma imaginação filosófica.
O que havia de fundamental na personalidade de Anísio era o fato de ele ser um filósofo da Educação nascido num país sem nenhuma tradição cultural, para que florescesse uma personalidade com essa envergadura e com tal vocação. Foi o nosso primeiro e último filósofo da Educação. E, devemos assinalar em primeiro lugar, que como pedagogo ele reunia um saber teórico muito amplo, que pode ser aferido por uma Biblioteca toda que selecionou para ser publicada pela Companhia Editora Nacional. Todas as grandes obras do pensamento, da investigação, da análise comparada e da História da Educação ou da Administração Escolar estão nessa coleção de Atualidades Pedagógicas. Por ali podemos medir a grandeza do pensamento de Anísio Teixeira, os autores com os quais ele conviveu e aos quais ele deve a sua formação. Apesar de sua experiência religiosa, não sobrou em sua mente espaço que estrangulasse a curiosidade agnóstica e profunda do filósofo que nega a Metafísica para afirmar a Ciência e para fazer da Pedagogia a rainha de todas as ciências.
Em dado momento de sua vida, o pedagogo que teve maior importância para ele era também um filósofo, era também um homem de grande envergadura, John Dewey, educador norte-americano que se tornou um mestre do pragmatismo. O fato é que John Dewey impregnou a Filosofia da Educação e a prática da educação nos Estados Unidos de um sentido construtivo que fez com que seus discípulos fossem os rebeldes da educação. Num país com dois partidos, que são partidos da ordem, ele conseguiu fazer da reflexão pedagógica uma linha mestra do pensamento inventivo pelo qual muitos dos seus discípulos realizaram grandes revoluções, revoluções autênticas nas comunidades em que trabalhavam. Comunidades em crise, comunidades que haviam esgotado sua capacidade de crescimento econômico, encontraram na educação a espinha dorsal de sua recuperação econômica, social e cultural. Isso mostra uma tese que os sociólogos sempre defenderam: A da interação dialética que existe entre educação e mudança social. A educação não é só produto da mudança, ela gera mudança. Ela não é só produto da revolução social, ela gera a revolução social. E Anísio sentia atração pela filosofia de Dewey provavelmente porque sabia que no Brasil era através da educação que nós deveríamos realizar a nossa revolução nacional.
Por aí podemos completar o outro aspecto desse pensamento abstrato, que não diz respeito à teoria pedagógica mas diz respeito à compreensão da história do Brasil. Com aquele seu ar alheio, de debatedor em permanente abertura para o diálogo, Anísio Teixeira era uma pessoa profundamente identificada com a história do Brasil. E via em nossos problemas educacionais todos os dramas da nossa formação racial, econômica, cultural e política. Sob certos aspectos ele foi o que melhor aproveitou as reflexões de Nestor Duarte, seu amigo, sob outros aspectos complementou o pensamento de Nestor Duarte. Ele via o quanto o nosso passado colonial sempre esteve presente no atravancamento da renovação educacional. Via claramente como o patrimonialismo, o mandonismo e o clientelismo vigentes no antigo sistema colonial, posteriormente nos dois Impérios, com a escravidão, como tudo isso impregnava o brasileiro, especialmente o brasileiro rico e poderoso, o brasileiro dos estamentos senhoriais, de desprezo pela educação. A educação tinha importância para as elites, só para as elites. Ele traçou penosamente em Educação não é Privilégio, de uma maneira rápida, mas suficientemente profunda, esta trajetória dramática da educação na sociedade brasileira. E mostrou como a República trouxe consigo uma promessa, como os grandes ideólogos da revolução republicana, com muitos educadores paulistas à frente, ergueram bandeiras educacionais que têm valor permanente, e como tudo isso não serviu para nada, porque realmente nós fomos incapazes de criar numa República aquilo que um desses educadores chamava a educação do povo, como contraproposta à educação do príncipe. "Sob o Império, sob a Monarquia, é preciso educar o príncipe, sob a democracia é preciso educar o povo". Essa frase ele tirou de Caetano de Campos. Ele cita longamente vários desses autores que lograram introduzir inovações mas não lograram converter o ensino público em valor social primordial no Brasil. Portanto, não era ele um sonhador, alguém que pretendesse, no plano da pedagogia, ignorar as realidades mais duras do solo histórico em que estava trabalhando, se ele tomava em consideração os grandes sistemas educacionais de nossa época, se se incorporara a uma corrente altamente inovadora de educadores que foram chamados de defensores da escola nova, o que levou a que fossem chamados de Os Pioneiros da Educação Nova.
Mas esses pioneiros não encontraram aqui nenhum campo para que suas atividades tivessem continuidade. Eles foram alçados muitas vezes ao poder público. Eles realizaram obras de grande alcance, mas o que acontecia com essa obra é patente no que se pode ver hoje na Escola-Parque: a inovação de um dia não é o valor do dia seguinte. A inovação de um dia é o lixo do dia seguinte, porque no dia seguinte, ao sair um governante lúcido e empreendedor, tudo o que foi feito é posto de lado e volta-se à estaca zero. Por este destino passaram Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e outros. Agora importa salientar que Anísio tinha a compreensão teórica e prática dos problemas educacionais brasileiros, projetando esses problemas dentro de nossa realidade. Isso é muito importante até por um pequeno artigo que saiu na revista do INEP, de defesa da Lei de Diretrizes e Bases e de ataque aos adversários das posições assumidas pelos Pioneiros da Educação Nova. Nesse artigo modelar, que é antológico, ele recapitula praticamente e a nossa história, faz uma síntese dela, para compreender o nosso presente. Portanto, ele era incapaz de usar a imaginação pedagógica sem ligar essa imaginação às duas vertentes, a teórica e a histórica, para que a prática resultante fosse uma prática imbricada no avanço necessário e nas possibilidades concretas.
Há um segundo ponto que precisa ser enfatizado: Quando se fala em Anísio Teixeira e em sua luta pela escola pública, quase sempre se lembra da sua campanha, com outros companheiros, alguns da mesma geração, outros de gerações mais novas. Eu estive envolvido nesse processo. Mas sempre se pensa nas pugnas que ele travou, na primeira linha de batalha, para impedir que o Brasil permanecesse um país atrasado. A primeira coisa que se evidencia na obra de Anísio Teixeira, como educador, não é essa pugna teórica, são as realizações que ele fez. Realizações precoces do jovem de 24, 25 anos e que vão quase que até o fim da vida dele, nos vários cargos públicos que ocupou e o que conseguiu realizar em cada uma das atribuições que teve de assumir na administração pública do ensino, quer como Diretor, quer como Secretário de Educação, quer como uma pessoa que abriu novos campos para a pesquisa educacional dentro do Ministério da Educação. Cada etapa da sua vida, desde 1924, 1925 está vinculada a realizações, não a um embate estéril, mas à tentativa de introduzir mudanças através da educação. Este é um elemento fundamental.
Ele era um homem tímido, retraído, mas era um batalhador incansável e, se tivesse oportunidade de ousar, ousava. Ele fez isso em todos os cargos que ocupou como e enquanto educador. Esse aspecto tem sido pouco lembrado. É o educador militante. É o educador que compreende claramente que a mudança na esfera da educação não é mera retórica, ela é ação, ela é transformação social. E isso ele tentou fazer de uma maneira magnífica, de maneira exemplar, sem paralelo. Apenas o país foi incapaz de reter as inovações que ele introduziu e que poderiam ter se multiplicado se realmente nós vivêssemos em uma sociedade democrática.
Na sua análise sobre a formação histórica do Brasil serviu-se do mesmo conceito de Caio Prado Júnior a respeito de revolução brasileira, na controvérsia a respeito do conceito mais adequado para designar as grandes transformações que iriam se dar em torno da década de 30 e de 30 para cá. E ele compreendeu que a revolução brasileira tinha de resgatar a educação. Tinha de ser, principalmente, uma revolução da educação. Portanto, é na esfera prática, na ação cotidiana do educador que nós encontramos a encarnação mais viva e mais alta do defensor da escola pública. Defender a escola pública não consiste em fazer discurso, consiste em abrir novos caminhos para atingir outros fins. E ele palmilhou todos esses caminhos, na medida de seu alcance, e deixou atrás de si, apesar de todas as limitações das descontinuidades da sociedade brasileira, um legado rico, que até hoje está vivo, e eu tive a oportunidade de dizer, no Ministério da Educação, no auditório em que se prestou uma homenagem a Anísio Teixeira, através do INEP, que o INEP encarnava uma das realizações que ele já tomou constituída, mas não pronta e acabada, não aperfeiçoada, não polida, não colocada dentro de uma perspectiva que era aquela exigida pela complexidade da situação histórica brasileira.
Por fim, existe o terceiro ponto: Nessa revolução brasileira, na qual Anísio Teixeira e os seus companheiros de geração votaram tanta confiança, depositaram tantas esperanças, nessa revolução os educadores avançavam tanto quanto podiam, tentando exercer influência sobre o conteúdo da Constituição de 1934. O que ela tem de inovador na área de educação vem desses homens. Posteriormente, na Constituição de 1946, a mesma coisa se repete. E mais tarde, na elaboração do projeto de Lei de Diretrizes e Bases, que partiu do Ministro Clemente Mariani, a mão desses educadores estava, senão indelével e exclusiva mas era a principal fonte de todas as proposições novas que se abriam para praticar aquilo que, na sua geração, foi uma preocupação essencial. Vejamos bem, na fundação da Escola-Parque, Anísio Teixeira pensava em defender a qualidade do ensino, concretamente. No que mais ele pensava? Em ampliar as oportunidades educacionais, isto é, tornar a educação democrática. No que mais? Em impedir que os menores abandonados ficassem entregues à miséria e ao relento. E sonhava com uma Escola-Parque que fosse um semi-internato, ou até um internato, coisa que não conseguiu fazer. Aí estão preocupações centrais, que outros colegas de geração descobriram pela mesma via da experiência concreta, em reformas educacionais que foram feitas em diferentes regiões do país, principalmente no Rio de Janeiro, na Bahia e em São Paulo. A grande preocupação de todos eles era a descentralização do ensino. Impedir que o Estado se perdesse nas tarefas burocráticas e estabelecesse normas inflexíveis para o ensino de 1º grau e de 2º grau. Permitir que a escola tivesse autonomia de funcionamento e pudesse crescer como uma instituição viva, incluindo valores como a liberdade, a liberdade de ensino concebida como a liberdade de ensinar e não como a liberdade de escolher a escola para colocar os filhos, com recursos públicos, em escolas particulares; e a grande tríade que consistia na defesa da escola pública ou do ensino público gratuito, laico e universal. Preocupação, além disso, de abrir o ensino para o talento, de modo que os jovens de origem pobre pudessem ter acesso ao ensino de 2º grau e ao ensino superior.
Travaram-se muitas batalhas em torno dessas diretrizes. Só havia uma preocupação de Anísio Teixeira que não mais diz respeito aos sentimentos e aos valores que podem corresponder à situação presente, era a obsessão pelo exame de estado. Afora isso, tudo que ele defendeu continua atual, válido e ao mesmo tempo imperativo. Nós não podemos ir além, porque são os limites estabelecidos pela mente humana, quando se pensa em democratizar o ensino, em criar oportunidades educacionais gratuitas, em eliminar as barreiras que tornam a educação um privilégio. Anísio Teixeira foi o campeão na luta contra a educação como privilégio. Ele sempre quis banir esse mal do solo brasileiro, para que a educação fosse um valor universal, acessível a todos, capaz de criar no Brasil uma revolução brasileira que fosse realmente democrática em todos os seus aspectos.
Hoje há uma controvérsia a respeito da posição desses educadores, que são acusados de educadores vinculados ao pensamento pedagógico burguês. De fato, estiveram vinculados ao pensamento pedagógico burguês, embora Anísio Teixeira tenha sido acusado de marxista, tendo sido defendido pela Associação Brasileira de Educação dessa acusação, que naquele momento era terrível e representava o ostracismo. Mas essa pedagogia burguesa era uma pedagogia avançada, e nós, até agora, por tinturas socialistas ou marxistas autênticas, não fomos muito além, a não ser na reflexão de caráter abstrato.
Por isso devemos a Anísio Teixeira esta homenagem. Ele foi um homem de seu tempo. Mas, dentro de seu tempo, o seu pensamento não defendia meia revolução, defendia toda a revolução. E, por essa razão, ele merece de nós esse preito de carinho, de respeito e de homenagem fraternal, pela qual todos nos expurgamos de uma miséria da qual fomos contaminados, independentemente de nossa vontade. Muito Obrigado.