ANÍSIO TEIXEIRA

 

 

Antônio Houaiss

 

É um momento de me emocionar. É que as razões sentimentais e afetivas que me ligam a Anísio Teixeira fazem que, apesar da pequena diferença de idade que existe entre mim e ele, eu sinta, realmente que fui um filho espiritual de Anísio Teixeira. E o fui, na plenitude do termo, por dois ou três pormenores que vou tomar a liberdade de lhes contar. Em 1931, pouco depois de ser ele empossado na direção da Instrução Pública do Distrito Federal, eu era aluno de um estabelecimento secundário (meu primeiro título foi de perito-contador), a Escola de Comércio Amaro Cavalcanti. Nela se instituiu, sob inspiração dele, uma das primeiras e grandes tentativas de autonomia escolar no ensino brasileiro. Que significava isso? A disciplina escolar seria gerida pelos próprios alunos. Houve um professor que era, digamos, o orientador dessa disciplina. Assumiu, assim, mas a disciplina era gerida por alunos eleitos. Tive o privilégio, sempre um pouquinho assanhado, de ser eleito o chefe geral da disciplina da Escola de Comércio Amaro Cavalcanti. Em breve, entramos em conflito, eu e o sucessor do professor que instituíra a autonomia. O diretor da Escola não vacilou em me expulsar. A Escola entrou em conflito, entrou em greve e, no terceiro dia de greve, ele me chamou para parlamentar comigo. E disse-me: "Já apurei tudo sobre a sua vida. Já sei que você é filho de uma família pobre, muito pobre. Sei que você é o quinto filho dessa família. Sei que você tem aptidões para o estudo, sei que você gosta de estudar. Não posso sacrificar, a título nenhum, um aluno como você. Mas, peço que você compreenda minha situação. Tenho que contemporizar com um diretor que é muito mais velho que nós". Era um venerando senhor o diretor da Escola, que fora induzido pura e simplesmente, a expulsar-me. "E você terá que pacientar. Peço que você me ajude nisso", disse ele. Veja a humildade desse homem! Claro, saí chorando. Vi lágrimas também nos olhos de Anísio Teixeira. Eu naturalmente, em prantos, me retirei. E dias depois ele conseguia transferir esse diretor para uma outra escola, a fim de que não perdesse a face com o meu retorno, eu diria que quase triunfal.

Poucos anos depois, ainda sob Anísio Teixeira, tive o privilégio de inscrever-me para a cadeira de Português, de Latim e de Literatura no ensino que ele dirigia. Houve alguma coisa de inspirado nisso, porque, dois anos depois, ele inaugurava a Universidade do Distrito Federal, universidade essa para a qual me inscrevi e na qual me formei em Letras Clássicas, embora o título que eu viesse a ter me iria conceder apenas o privilégio de ser nomeado para o cargo que eu já havia conquistado por concurso.

Dessa Universidade, quero ressaltar o fato de que nela lecionou uma equipe de grandes professores franceses e italianos, alguns revezando-se entre o Rio de Janeiro e São Paulo, naquele então. Esse processo foi, creio, de uma fecundidade impressionante. Tive o privilégio de ser aluno de Fortunat Strowsky, de Eugène Albertini, de Michel Perret, de Edouard Bourcier, de uma série de professores, que não só ensinavam suas disciplinas como nos ensinaram a ensinar. E aí creio eu que houvesse um dos aspectos mais fecundos da ação de Anísio Teixeira, que deve ser também aqui ressaltado.

Mas essas são as razões, digamos, personalíssimas que me fazem lembrar-me dele com esta veneração e carinho, veneração e carinho que foram recapitulados aqui pelo nosso Diretor Executivo, quando lembrou que fui o primeiro imortal eleito após a morte de Anísio. Até porque, como a eleição dele iria ser depois da minha posse, recebi dele um telefonema em que ele queria combinar dia e hora para me visitar, o que evidentemente dispensei, dizendo que o meu voto era dele à hora e no momento que ele quisesse.

Mas ficou de Anísio muito mais. O tempo todo de minha vida sempre cogitei de ler tudo que ele havia escrito e aprender com ele o pouco que posso saber sobre o problema educacional brasileiro. Não sendo professor militante há muito tempo, por circunstâncias ligadas à minha evolução profissional, a questão, entretanto, me angustia enormemente.

E eu gostaria de ressaltar dois ou três aspectos da obra e da pesquisa de Anísio Teixeira. Notem que ele se preocupou muito com a história colonial brasileira dos séculos XVI, XVII e XVIII. Descreveu bem o processo de transmissão institucionalizada desse período, no Brasil e na Europa. Mas o fez sobretudo pensando na estratificação social com que inauguramos o século XIX. Porque, realmente, a história está revelando que, até inícios do século XIX, a humanidade não teve coletividade nenhuma com mais de 2% de literatados. Até a Revolução Francesa, quando o Abbé Grégoire luta por um ensino nacional de francês (só 1/16 da população francesa falava o francês naquela época). Esse Abbé Grégoire iniciou a unificação do francês na França, por um processo de escolarização que se transformou em modelo para a humanidade, de tal maneira que, na Europa Ocidental, em 1850, cinqüenta anos após a Revolução Francesa, a literatação era de 50% da população e no fim do século já era de 100%. Inauguraram o século XX com 100% de literatação a França, a Inglaterra, o norte da Itália e os estados alemães unificados em forma de império. Mas, infelizmente, a Península Ibérica ficou com 2% até 1850 e só chegou a 50% pelo fim do século XIX.

O Brasil da época de Tiradentes não deve ter tido mais de 0,5% de literatados. No ano da Independência teria pouco mais que isso. Esses são dados com os quais quero ressaltar que, realmente, a inauguração do ensino do povo é um fato que se faz apenas a partir do século XIX para cá. E nesse sentido o atraso brasileiro é incomparavelmente grande. Somos devedores a Anísio Teixeira de que o seu ideal está inteiramente por ser cumprido ainda. Ele postulou um ensino de qualidade que fosse extensivo a todos os brasileiros.

Aceitou que esse ensino de qualidade beneficiasse apenas parcialmente uma fração da população brasileira, na medida em que as condições econômicas não permitissem mais. Mas sempre achou que as condições econômicas permitiriam muito mais, porque, realmente, nesse sentido, foi um transformador de nossa sociedade. O fato de termos hoje um percentual de 18% de verbas destinado à educação no âmbito federal constitui uma conquista espantosa. Entretanto, é um índice vergonhoso, se comparado com o resto do mundo. Porque, alegando que temos quarenta milhões de analfabetos estamos criando uma magia estatística que não é verdadeira. Desafio que possamos provar isso: um país que, neste ano, publicou cento e oitenta milhões de livros, neles incluídos os livros didáticos, e por conseguinte publicou um livro e pouco por habitante, está ainda no paleolítico da história da educação. Estamos necessitando, realmente, de fazer a revolução sonhada por Anísio Teixeira. Quando nos conformamos com um currículo escolar do ensino de base no qual se intrometem três períodos de aula, cometemos um crime coletivo. Praticamente, matamos o ensino primário brasileiro. Quaisquer que sejam os estudos desenvolvidos em termos de educação no mundo, o tempo humano nunca foi objeto de poupança, o tempo humano de formação. Quando, quase que supersticiosamente, a fórmula dos oito por oito é preconizada pela UNESCO como mínima para uma grande formação de ensino básico, isso significa que, com menos de oito anos contínuos, com oito horas por dia, durante duzentos e quarenta dias por ano, nenhuma criança se faz. Qualquer que seja o avanço tecnológico do ensino, quaisquer que forem os instrumentos, isso será impossível. E pode ser mensurado. É impossível e pode ser mensurado.

O fim da Idade Clássica, pelo IV ou V século, foi com um número de profissões que deviam ser em torno de cinqüenta. O nosso eminente Rafael Bluteau, no início do século XVIII, para o seu dicionário latino-português, buscava o seguinte: como escrever em latim o que se dizia em português. Evidentemente, tratava-se de uma mera correspondência entre o português e o latim, mas com um obstáculo: as inovações culturais havidas entre o V século d.C. e a época em que ele escrevia, o início do século XVIII, levaram a que nem sempre tudo tivesse correspondência em latim. E um dos ensaios brilhantes do dicionário dele é grupar noventa e dois nomes portugueses de profissões humanas e a forma de dizê-las em latim. Porque só havia em latim cinqüenta e poucas delas.

No século XIX, Augusto Comte, em um de seus estudos de epistemologia, chegou a quatrocentas e cinqüenta palavras designativas de ciências, artes e profissões. E, para a reunião da I UNCTAD, em 1964, a UNESCO teve de fazer, a pedido do Secretário-Geral das Nações Unidas, uma relação das profissões, ciências e técnicas existentes no mundo contemporâneo, que chegaram a vinte e quatro mil. Hoje em dia, supõe-se que tenhamos trinta mil especialidades como atividades humanas. A pulverização do saber, no bom sentido, acarreta esse quadro novo, que é absolutamente fantasmagórico, se visto em cotejo com o fim do século XVIII.

Qual foi a projeção disso? Anísio Teixeira insistiu sempre, ao longo de todos os seus estudos, que a ênfase tinha que ser no ensino da língua. Era ufanismo, era superstição nacionalisteira? Não! É que ele compreendia que sem a chave da língua as outras chaves não existem. O que quero com isto dizer é que, no mundo contemporâneo, qualquer língua de cultura está exigindo um aprendizado que corresponde àqueles oito por oito mínimos. Uma língua como a nossa, que no século Xll chegou a ter três mil palavras, não mais; que termina o século XV com em torno de oito mil palavras; que chegou ao século XVIII com em torno de oitenta mil palavras; que em meados do século XIX está com cento e cinqüenta mil palavras, hoje tem quatrocentas e cinqüenta mil palavras. Ninguém pode tê-las na cabeça, e ninguém quer que isto aconteça, mas qualquer homem culto de qualquer país com esse número de palavras tem a chave: sabe como ler, sabe como consultar dicionários. Tem os dicionários à sua disposição, as enciclopédias, e obras de referências.

Esse é o quadro trágico do Brasil. Não temos alcance verbal para, sequer, ter a chave onde encontrar as palavras. A nossa televisão é cada vez mais achincalhante a esse respeito. Anísio Teixeira dava prioridade ao estudo da linguagem e, se possível, ao tempo da criança na escola. É graças a isso que um dia teremos educação integral. Essa educação integral, evidentemente, não presume que venhamos todos a ter ensino superior. Mas o quadro das profissões modernas mostra que os analfabetos já não podem existir no mundo de hoje. Não podem exercer uma profissão com a qual possam justificar a sua existência na Terra. E os analfabetos não têm culpa de serem analfabetos. A culpa dos analfabetos é que os alfabetizados não souberam dar o quanto necessário para eles. Nessa medida, compreender-se-á por que, entre essas trinta mil profissões, 99% delas pedem entre ensino técnico a ensino superior, no mínimo.

 

O homem está condenado a realizar o sonho de Anísio Teixeira. O homem está condenado a estudar. É uma condenação tão boa, que, quando se estuda bem, na boa escola por ele preconizada, se tem felicidade, que aumenta na medida em que se pode estudar mais.

Anísio Teixeira foi um profeta do saber, da cultura e da transformação social, sobretudo da transformação social. Foi um dos homens mais cultos deste país, mas ao mesmo tempo o menos exibicionista dos homens cultos deste país. Toda a produção intelectual de Anísio Teixeira é motivada por seu desejo de transformação social. O que ele foi, acima de tudo, foi um educador voltado para a prática da educação e da administração. E por causa dessa prática, que demandava conhecimento teórico, é que fez os seus livros. Ele não foi um teórico que se fez prático. Ele foi um homem que essa dialética do fazer e do conhecer acompanhou permanentemente. Lembrem-se de que, num momento de ostracismo, a prática que ele desenvolveu foi a de um minerador, de um exportador, de um comerciante e de um tradutor de obras que ele achava relevantes.

Anísio Teixeira merece a Fundação que foi criada hoje. E espero que os diretores dessa Fundação se devotem a ela com amor e carinho, porque não faltarão brasileiros para acompanhá-los nessa grande obra.