A ARTE DE EDUCAR – a
educação – nos últimos cem anos, passou por um desenvolvimento que se
caracteriza por uma revisão de conceitos e de técnicas de estudo, à maneira,
dir-se-ia, da transformação operada na arte de curar – a medicina – quando se
emancipou da tradição, do acidente, da simples "intuição" e do
empirismo e se fez, como ainda se vem fazendo, cada vez mais científica.
Todos sabemos que isto se
deu com a medicina devido aos progressos dos métodos de investigação e de
prova. O desenvolvimento das ciências que lhe iam servir de base e das técnicas
científicas de que iria cada vez mais utilizar-se e, mesmo, apropriar-se,
levaram a medicina a um progresso crescente, com a aplicação cada vez mais
consciente de métodos próprios de investigação e de prova. São desse tipo –
claro que sob os influxos dos progressos mais recentes ainda de outras ciências
– os desenvolvimentos que desejamos suscitar na educação, com o cultivo, nos
centros de pesquisas, que se estão fundando no Brasil, de métodos próprios de
investigação e prova no campo educacional.
Como a medicina, a educação
é uma arte. E arte é algo de muito mais complexo e de muito mais completo que
uma ciência. Convém, portanto, deixar quanto possível claro de que modo as
artes se podem fazer científicas.
Arte consiste em modos de
fazer. Modos de fazer implicam no conhecimento da matéria com que se está
lidando, em métodos de operar com ela e em um estilo pessoal de exercer a
atividade artística. Nas belas-artes, ao estilo pessoal chegamos a atribuir
tamanha importância que, muitas vezes, exagerando, consideramos que a
personalidade artística é tudo que é necessário e suficiente para produzir
arte. Não é verdade. Mesmo nas belas-artes, o domínio do conhecimento e o
domínio das técnicas, se por si não bastam, são, contudo, imprescindíveis à
obra artística.
A educação pode, com alguns
raros expoentes, atingir o nível das belas-artes, mas, em sua generalidade,
quase sempre, não chega a essa perfeição, conservando-se no nível das artes
mecânicas ou práticas, entendidos os termos no sentido humano e não no sentido
de maquinal, restritivo apenas quanto ao belo estético.
O progresso nas artes –
sejam belas ou práticas – se fará um progresso científico, na medida em que os
métodos de estudo e investigação para este progresso se inspirem naquelas
mesmas regras que fizeram e hão de manter o progresso no campo das ciências, ou
seja as regras – para usar expressão que não mais se precisa definir – do
"método científico".
A passagem, no campo dos
conhecimentos humanos, do empirismo para a ciência foi e é uma mudança de
métodos de estudo, graças à qual passamos a observar e descobrir de modo que
outros possam repetir o que observarmos e descobrirmos e, pois, confirmar os
nossos achados, que assim se irão acumulando e levando a novas buscas e novas
descobertas. Se esta foi a mudança que originou os corpos sistematizados de
conhecimentos a que chamamos de ciência, um outro movimento, paralelo ao das
ciências e dele conseqüente mas, de certo modo autônomo, foi o da mudança das
"práticas" humanas pela aplicação do conhecimento científico. Ao conhecimento
empírico correspondiam as práticas empíricas, ao conhecimento científico
passaram a corresponder as práticas científicas. Com efeito, as práticas
fundadas no que a ciência observou, descobriu e acumulou, e, por seu turno,
obedecendo aos mesmos métodos científicos, se transformaram em práticas
tecnológicas e deste modo renovadas, elas próprias se constituíram em fontes de
novos problemas, novas buscas e novos progressos.
Com o desenvolvimento das
ciências físicas e matemáticas e, depois, das ciências biológicas, as artes da
engenharia e da medicina, obedecendo em suas "práticas" às regras
científicas da observação, da descoberta e da prova puderam frutificar nos
espantosos progressos modernos. Algo de semelhante é que se terá de introduzir
na arte de educar, a fim de se lhe darem as condições de desenvolvimento
inteligente, controlado, contínuo e sistemático, que caracterizam o progresso
científico.
Não se trata, pois, de criar
propriamente uma "ciência da educação", que, no sentido restrito do
termo, como ciência autônoma, não existe nem poderá existir; mas de dar
condições científicas à atividade educacional, nos seus três aspectos
fundamentais – de seleção de material para o currículo, de métodos de ensino e
disciplina, e de organização e administração das escolas. Por outras palavras:
trata-se de levar a educação para o campo das grandes artes já científicas –
como a engenharia e a medicina – e de dar aos seus métodos, processos e
materiais a segurança inteligente, a eficácia controlada e a capacidade de progresso
já asseguradas às suas predecessoras relativamente menos complexas.
Está claro que essa
inteligência da arte de educar a afasta radicalmente das artes
predominantemente formais, como a do direito, por exemplo, com a qual, aliás,
temos, como país, uma irresistível inclinação a identificar a educação. Com
efeito, embora não caiba aqui a análise aprofundada dessa inclinação, os sinais
são muito evidentes de que ainda consideramos educar antes como uma arte
dominantemente formal, à maneira do direito(1), do que como uma arte material,
à maneira da medicina ou da engenharia.
(1) Também o direito não é puramente uma arte formal, mas, não faltam os que o
julgam algo de meramente convencional, se não de arbitrário.
Fora essa tendência
distorsiva, mais entranhada quiçá do que o imaginamos e que importa evitar, a
introdução de métodos científicos no estudo da educação não irá determinar nada
de imediatamente revolucionário. As artes sempre progrediram. Mas, antes do
método científico, progrediram por tradição, por acidente, pela pressão de
certas influências e pelo poder "criador" dos artistas. Com o método
científico, vamos submeter as "tradições" ou as chamadas
"escolas" ao crivo do estudo objetivo, os acidentes, às investigações
e verificações confirmadoras e o poder criador do artista, às análises
reveladoras dos seus segredos, para a multiplicação de suas descobertas; ou
seja, vamos examinar rotinas e variações progressivas, ordená-las,
sistematizá-Ias e promover, deliberadamente, o desenvolvimento contínuo e cumulativo
da arte de educar.
Não se diga, entretanto, que
tenha sido sempre este o entendimento do que se vem chamando de ciência da
educação, à qual já aludimos com as devidas reservas. Pelo contrário, o que
assistimos nas primeiras décadas deste século e que só ultimamente se vem
procurando corrigir foi a aplicação precipitada ao processo educativo de
experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas,
mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas
para a aplicação educacional.
De outro lado, tomaram-se de
empréstimo técnicas de medida e experiência das ciências físicas e se pretendeu
aplicá-las aos fenômenos psicológicos e mentais, julgando-se científicos os
resultados porque as técnicas – tomadas de empréstimo – eram científicas e
podiam os tais resultados ser formulados quantitativamente.
Houve, assim, precipitação
em aplicar diretamente na escola "conhecimentos" isolados de
psicologia ou sociologia e, além disto, precipitação em considerar esses
"conhecimentos" verdadeiros conhecimentos.
A realidade é que não há
ciência enquanto não houver um corpo sistemático de conhecimentos, baseados em
princípios e leis gerais, que lhe dêem coerência e eficácia. Aí estão as
ciências matemáticas e físicas com todo o seu lento evoluir até que pudessem
florescer nas grandes searas das tecnologias, que correspondem à sua aplicação
aos problemas práticos da vida humana. Logo após vem o ainda mais lento
progresso das ciências biológicas e a agronomia, a veterinária e a medicina
como campos de aplicação tecnológica.
Para que as
"práticas" educativas possam também beneficiar-se de progresso
semelhante, será preciso antes de tudo que as ciências que lhe irão servir de
fontes se desenvolvam e ganhem a maturidade das grandes ciências já
organizadas. Até aí, há que aceitar não só que o progresso seja lento mas
também algo incerto e, sobretudo, não suscetível de generalização. Antes,
porém, progredir assim, tateando, sentindo os problemas em toda a sua
complexidade, mantendo em suspenso os julgamentos, do que julgar que podemos
simplificar a situação, considerá-la puramente física ou biológica e aplicar
métodos e técnicas aceitáveis para tais campos, mas inadequados para o campo
educativo, pela sua amplitude, variedade e complexidade.
Convém insistir, realmente,
na distinção entre o campo da ciência e do conhecimento em si e o campo da
aplicação do conhecimento e da prática ou da arte. Bastaria, talvez, dizer que
a ciência é abstrata, isto é, que busca conhecer o seu objeto num sistema tão
amplo de relações, que o conhecimento científico, como tal, desborda de
qualquer sistema particular, para se integrar num sistema tão geral, que nele
só contam as relações dos conhecimentos entre si; e que a "prática" é
um sistema concreto e limitado, em que aqueles conhecimentos se aplicam com as
modificações, alterações e transformações necessárias à sua adaptação à
situação. Por isto mesmo, não produz a ciência, não produz o conhecimento
científico, por si mesmos, uma regra de arte, ou seja, uma regra de prática.
Leis e fatos, que são os
produtos das ciências, ministram ao prático não propriamente regras de
operação, mas recursos intelectuais para melhor observar e melhor guiar a sua
ação no campo mais vasto, mais complexo, com maior número de variáveis da sua
indústria ou da sua arte. A velha expressão: "Na prática é
diferente", é um modo simples de indicar essa verdade essencial de que a
ciência é um recurso indireto, é um intermediário e nunca uma regra direta de
ação e de arte. A ciência é uma condição – e mesmo uma condição básica – para a
descoberta tecnológica ou artística, mas não é, ou ainda não é
essa descoberta. Quando se trata de tecnologia das ciências físicas, o processo
prático não chega à exatidão do processo de laboratório, mas pode chegar a
graus apreciáveis de precisão. Todavia, se a tecnologia reporta-se a um
processo de educação, podemos bem imaginar quanto as condições de laboratório
são realmente impossíveis de transplantação para a situação infinitamente mais
complexa da atividade educativa.
Não quer isto dizer que
ciência seja inútil, mas que a sua aplicação exige cuidados e atenções todo
especiais, valendo o conhecimento científico como um ingrediente a ser levado
em conta, sem perder de vista, todos os demais fatores.
Em educação, muita coisa se
fez em oposição a esse princípio tão óbvio, com a aplicação precipitada de
conhecimentos científicos – ou supostamente científicos – diretamente como
regras de prática educativa e a transplantação de técnicas quantitativas das
ciências físicas para os processos mentais, quando não educativos, importando
tudo isto em certo descrédito da própria ciência.
Para tal situação concorreu,
sem dúvida, o fato de nem sempre haverem sido as "práticas
educativas" as fornecedoras dos "dados" do problema, como deverá
ser, se tivermos de contar com a ciência para nos ajudar a progredir na arte de
educar. E em segundo lugar, concorre certa impaciência de resultados positivos
que aflige tanto – hélas! – as ciências sociais ou humanas que servem de
fonte e base a uma possível arte de educar menos empírica e mais científica.
Com efeito, tais ciências
não nos irão dar regras de arte mas conhecimentos intelectuais para rever e
reconstruir, com mais inteligência e maior segurança, as nossas atuais regras
de arte, criar, se possível, outras e progredir em nossas práticas
educacionais isto é, nas práticas mais complexas da mais complexa arte
humana.
Tudo, na realidade, entra
nessa prática. A nossa filosofia, concebida como o conjunto de valores e
aspirações, as ciências biológicas, psicológicas e sociais, todas as demais
ciências como conteúdo do ensino, enfim, a cultura, a civilização e todo o
pensamento humano em seus métodos e em seus resultados. Prática desta
natureza e desta amplitude não vai buscar suas regras em nenhuma ciência
isolada, seja mesmo a psicologia, a antropologia ou a sociologia; mas em todo o
saber humano e, por isto mesmo, será sempre uma arte em que todas as aplicações
técnicas terão de ser transformadas, imaginativa e criadoramente, em algo de
plástico e sensível suscetível de ser considerado antes sabedoria do que saber
– opostos tais termos um ao outro no sentido de que sabedoria é, antes de tudo,
a subordinação do saber ao interesse humano e não ao próprio interesse do saber
pelo saber (ciência) e muito menos a interesses apenas parciais ou de certos
grupos humanos.
Mas toda essa dificuldade
não será pretexto para que o educador se entregue à rotina, ao acidente ou ao
capricho, mas estímulo a buscar cooperar na transição da educação do seu atual
empirismo para um estado progressivamente científico.
Dois problemas diversos
avultam nessa transição. O primeiro, é o do desenvolvimento das ciências –
fonte da educação. Assim como as ciências matemáticas e físicas são as ciências-fonte
principais da engenharia, assim como as ciências biológicas são as
ciências-fonte principais da medicina, assim a psicologia, a antropologia e a
sociologia são as ciências-fonte principais da educação.
Enquanto estas últimas não
se desenvolverem até um mais alto grau de maturidade e segurança, não poderão
dar à educação os elementos intelectuais necessários para a elaboração de
técnicas e processos que possam constituir o conteúdo de uma possível
"ciência de educação". E este é o segundo problema. Porque ainda que
as ciências-fonte quanto à educação estivessem completamente desenvolvidas, nem
por isto teríamos automaticamente a educação renovada cientificamente, pois,
conforme vimos, nenhuma conclusão científica é diretamente transformável em regra
operatória no processo de educação. Todo um outro trabalho tem de ser feito
para que os fatos, princípios e leis descobertas pela ciência possam ser
aplicados na prática educacional.
Na própria medicina, com
efeito, atrevo-me a afirmar, os princípios e leis da ciência servem antes para
guiar e iluminar a observação, o diagnóstico e a terapêutica, não se impondo
rigidamente como regras à arte médica, regras de clínica, regras imperativas da
arte de curar.
A ciência oferece, assim, a
possibilidade de um primeiro desenvolvimento tecnológico, que fornece à arte
melhores recursos para a investigação dos seus próprios problemas e, deste
modo, sua melhor solução. Num segundo desenvolvimento também tecnológico,
oferece recursos novos para o tratamento e a cura, mas a arte clínica continua
sendo uma arte de certo modo autônoma, a ser aprendida à parte, envolvendo
métodos próprios de investigação e análise, de registro dos casos, de
comparações e analogias, de experiência e tirocínio, em que, além de um
conteúdo próprio mais amplo do que os puros fatos científicos, sobressaem
sempre o estilo pessoal do médico, a sua originalidade e o seu poder criador. A
ciência, aliás, longe de mecanizar o artista ou o profissional, arma a sua
imaginação com os instrumentos e recursos necessários para seus maiores vôos e
audácias.
Ora, o mesmo é o que há de
ocorrer no domínio da educação – da arte de educar. Neste, o campo precípuo ou
específico – atelier, laboratório ou oficina – é a sala de aulas, onde
oficiam os mestres, eles próprios também investigadores, desde o jardim de
infância até a universidade. São as escolas o campo de ação dos educadores,
como os hospitais e as clínicas são o dos médicos.
Os especialistas de ciências
autônomas são grandes contribuintes para a chamada ciência médica, como serão
para a que vier a se chamar de ciência da educação, mas nenhum resultado
científico, isto é, o conhecimento de cada ciência, mesmo ciência básica ou
ciência-fonte, é por si um conhecimento educacional ou médico, nem dará
diretamente uma regra de ação médica ou educacional. Tais conhecimentos
ajudarão o médico ou o educador a observar melhor, a diagnosticar melhor e,
assim, a elaborar uma melhor arte de educar.
Tomemos uma ilustração
qualquer. Sejam, por exemplo, os testes de inteligência, que se constituíram,
por certo, um dos mais destacados recursos novos da "ciência" para a
técnica escolar. Para que servem eles? – Para diagnosticar com maior segurança
limites de capacidade de aprender do aluno. Se os tomarmos apenas para isto,
aumentaremos sem dúvida os nossos recursos de observação e conhecimento do
aluno e melhor poderemos lidar com as situações de aprendizagem, sem perder de
vista as demais condições e fatores de tais situações.
Se, porém, ao contrário,
tomarmos esse recurso parcial de diagnóstico mental como uma regra educativa e
quisermos homogeneizar rigidamente os grupos de Q.I. idêntico ou aproximado e
proceder uniformemente com todos os seus componentes, não estaremos obedecendo
à complexidade total da situação prática educativa e muito menos a nenhuma "ciência
de educação", pois esta não reconheceria tal classificação como
válida, reconhecendo hoje que a situação é totalmente empírica, incluindo
fatores entre os quais o Q.I. é apenas um no complexo da situção
"aluno-professor-grupo-meio" em que se encontra o aprendiz.
Nem por isto será,
entretanto, inútil o conhecimento do Q.I., pois a alteração da capacidade de
aprender do aluno passa, em face dos dados do Q.I., a ser vista e estudada sob
outra luz.
A ciência, assim, como já
afirmamos, não oferece senão um dado básico e jamais a regra final de operação.
Esta há que ser descoberta no complexo da situação de prática educativa, em que
se encontrem professor e aluno, levando-se em conta todos os conhecimentos
científicos existentes, mas agindo-se autonomamente à luz dos resultados educativos
propriamente ditos, isto é, a formação, o progresso, o desenvolvimento humano
do indivíduo em questão, ou seja, o aluno.
Nesta fase é que vimos
entrando ultimamente. Há um real amadurecimento entre as ciências especiais,
fontes da educação, superados os entusiasmos das primeiras descobertas. Com
relação aos testes de inteligência, até o nome vem sendo hoje evitado,
preferindo-se o nome de testes de aptidões diferenciais, pois já se reconhece
que estamos longe de medir o famoso g ou fator geral, mas medimos apenas uma
série de aptidões decorrentes da cultura em que se acha imersa a criança e não
inteiramente independente da educação anterior. Não é isto nenhum descrédito para
os testes chamados de inteligência, mas pelo contrário, um progresso, uma nova
precisão.
Prejudicial, talvez, foi
antes o excessivo entusiasmo anterior. A precipitada aplicação de produtos
ainda inacabados de "ciência" à escola parece haver exacerbado certos
aspectos quantitativos e mecanizantes, conduzindo ao tratamento do aluno como
algo abstrato a ser manipulado por critérios de classificação em grupos
supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar
por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta.
Com relação à
"ciência" do ato de aprendizagem o mesmo novo desenvolvimento se pode
observar. Compreende-se melhor que "aprender" é algo de muito mais
complexo do que se poderia supor e francamente uma atividade prática a ser
governada, se possível, por uma psicotécnica amadurecida e não pela psicologia.
Ora, quanto isto nos distancia das "leis" de aprendizagem, em que se
ignoravam, além de muito mais, as relações professor-aluno-colegas e se imaginava
o aprendiz como um ser isolado e especial que operasse abstratamente, como
abstratas haviam sido e não podiam deixar de ser as experiências de laboratório
que haviam conduzido às supostas leis de aprendizagem!
Para essa precipitada
aplicação na escola de resultados fragmentários e imaturos da ciência,
concorreu também – e merece isto registro especial – uma peculiar prevenção,
digamos assim, da ciência para com a filosofia, ou um dissídio entre uma e
outra, de alcance e efeito negativos. Explico o que desejo significar.
Como toda ciência foi
primeiro filosofia e como seu progresso geralmente se processou com o
distanciamento cada vez maior daquela filosofia originária, pode parecer e
parece que ciência e filosofia se opõem e os conhecimentos serão tanto mais científicos
quanto menos filosóficos.
Ora, tal erro é grave, mesmo
em domínios como da matemática e da física. E em educação é bem mais grave. Com
efeito, se historicamente o progresso das ciências se fez com o seu
distanciamento dos métodos puramente dedutivos da filosofia, não quer isto
dizer que as ciências não operem realmente sobre uma filosofia. O seu
afastamento foi antes um afastamento de determinada filosofia
exclusivamente especulativa, ou melhor, "livremente" especulativa,
para a adesão a uma nova filosofia de base científica. Como esta nova
filosofia foi quase sempre uma filosofia implícita e não explícita, o equívoco
pôde se estabelecer e durar.
A realidade é que filosofia
e ciência são dois pólos do conhecimento humano, a filosofia representando o
mais alto grau de conhecimento geral e a ciência tendendo para o mais alto grau
de conhecimento especial. Entre ambas tem de existir um comércio permanente, a
ciência se revendo à luz dos pressupostos e conceitos generalizadores da
filosofia. Neste sentido, a filosofia nutre permanentemente a ciência com as
suas integrações e visões de conjunto e a ciência nutre a filosofia, forçando-a
a combinações e sínteses mais fundadas, menos inseguras e mais ricas.
Não se trata do quase
equívoco de que a filosofia elabora os fins e a ciência os meios, mas da
verdade de que ambas elaboram, criticam e refinam os fins e os meios, pois uns
e outros sofrem e precisam sofrer tais processos de crítica e revisão, a
ciência criando muitas vezes novos fins com as suas descobertas e a filosofia
criticando permanentemente os meios à luz dos fins que lhe caiba descobrir e
propor à investigação científica.
A não-existência dessa
cooperação ou interação, entre a ciência e a filosofia, levou a chamada
"ciência da educação" a não ter filosofia, o que corresponde
realmente a aceitar a filosofia do status quo e a trabalhar no sentido
da tradição escolar, a que efetivamente obedeceu, agravando em muitos casos,
com a eficiência nova que lhes veio trazer, os aspectos quantitativos e
mecânicos da escola, que lhe teriam de parecer – et pour cause – os mais
científicos aspectos da escola.
Hoje, felizmente, estamos
bem mais amadurecidos e os estudos de educação não desdenham das contribuições
que lhes terá de trazer a filosofia, também ela cada vez mais de base
científica, e começam a ser feitos à luz da situação global escolar e de suas
"práticas", que urge rever e tornar progressivas em face dos
conhecimentos que vimos adquirindo no campo das ciências especiais,
ciências-fonte da educação – principalmente a antropologia, a psicologia e a
sociologia – não já para aplicar na escola, diretamente, os resultados da
investigação científica no campo destas ciências, mas para – tomando tais
resultados como instrumentos intelectuais – elaborar técnicas, processos e
modos de operação apropriados à função prática de educação.
Os Centros de Pesquisa
Educacional(2) se organizam, assim, num momento de revisão e tomada de
consciência dos progressos do tratamento científico da função educativa e, por
isto mesmo, têm certa originalidade. Pela primeira vez, busca-se aproximar uns
dos outros os trabalhadores das ciências especiais, fontes de uma possível
"ciência" da educação e os trabalhadores de educação, ou seja, os
dessa possível "ciência" aplicada da educação. Esta aproximação visa
antes de tudo, levar o cientista especial, o psicólogo, o antropólogo, o
sociólogo, a buscar no campo da "prática escolar" os seus problemas.
Note-se que os problemas das ciências biológicas humanas originaram-se e ainda
hoje se originam na medicina.
(2) Referência aos Centros de Pesquisas Educacionais criados pelo Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos. Este trabalho foi escrito para a sessão de
encerramento de um dos seus seminários.
É preciso que as ciências
sociais, além de outros problemas que lhes sejam expressamente próprios,
busquem nas atuais situações de prática educativa vários e não poucos
problemas, que também lhes são próprios.
Como na medicina, ou na
engenharia, não há, stricto sensu, uma ciência de curar nem de construir,
mas, artes de curar e de construir, fundadas em conhecimentos de várias
ciências. Assim os problemas da arte de educar, quando constituírem problemas
de psicologia, de sociologia e de antropologia, serão estudados por essas
ciências especiais e as soluções encontradas irão ajudar o educador a melhorar
a sua arte e, deste modo, provar o acerto final daquelas soluções ou
conhecimentos. Ou, em caso contrário, obrigar o especialista a novos estudos ou
a nova colocação do problema. A originalidade dos Centros está em sublinhar
especialmente essa nova relação entre o cientista social e o educador. Até
ontem o educador julgava dispor de uma ciência autônoma, por meio da qual iria
criar simultaneamente um conhecimento educacional e uma arte educacional. E o cientista
social estudava outros problemas e nada tinha diretamente a ver com a educação.
Quando resolvia cooperar com o educador, despia-se de sua qualidade de
cientista e se fazia também educador. Os Centros vêm tentar associá-los em uma
obra conjunta, porém com uma perfeita distinção de campos de ação. O sociólogo,
o antropólogo e o psicólogo social não são sociólogos-educacionais, ou
antropólogos-educacionais, ou psicólogos-educacionaís, mas sociólogos,
antropólogos e psicólogos estudando problemas de sua especialidade, embora
originários das "práticas educacionais".
Os educadores – sejam
professores, especialistas de currículo, de métodos ou de disciplina, ou
administradores – não são, repitamos, cientistas, mas, artistas, profissionais,
práticos (no sentido do practioner inglês), excercendo, com métodos e
técnicas tão científicas quanto possível, a sua grande arte, o seu grande
ministério. Serão cientistas, como são cientistas os clínicos; mas sabemos que
só em linguagem lata podemos efetivamente chamar o clínico de cientista.
Acreditamos que esse
encontro entre cientistas sociais e educadores "científicos" – usemos
o termo – será da maior fertilidade e, sobretudo, que evitará os equívocos
ainda tão recentes da aplicação precipitada de certos resultados de pesquisas
científicas nas escolas, sem levar em conta o caráter próprio da obra
educativa. Com os dados que lhe fornecerá a escola, o cientista irá colocar o problema
muito mais acertadamente e submeter os resultados à prova da prática escolar,
aceitando com maior compreensão este teste final.
Tenho confiança de que bem
esclarecida e estudada essa posição, de que estou a tentar aqui os fundamentos
teóricos, ser-nos-á possível ver surgir o sociólogo estudioso da escola, o
antropólogo estudioso da escola, o psicólogo estudioso do escolar, não já como
esses híbridos que são, tantas vezes, os psicólogos, sociólogos e
antropologistas educacionais, nem bem cientistas nem também educadores, mas
como cientistas especializados, fazendo verdadeiramente ciência, isto é,
sociologia, antropologia e psicologia, e ajudando os educadores, ou sejam os
clínicos de educação, assim como os cientistas da biologia ajudam os clínicos
da medicina.
Parece-me não ser uma
simples nuance a distinção. Por outro lado, isto é o que já se faz, sempre que
se distingue o conhecimento teórico, objeto da ciência, da regra prática,
produto da tecnologia e da arte. A confusão entre os dois campos é que é
prejudicial. É preciso que o cientista trabalhe com o desprendimento e o
"desinteresse" do cientista, que não se julgue ele um educador
espicaçado a resolver problemas práticos, mas o investigador que vai pesquisar
pelo interesse da pesquisa. O seu problema originou-se de uma situação de
prática educacional, mas é um problema de ciência, no sentido de estar
desligado de qualquer interesse imediato e visar estabelecer uma teoria, isto
é, o problema é um problema abstrato, pois abstração é essencial para o estudo
científico que vise a formulação de princípios e leis de um sistema coerente e
integrado de relações. Os chamados estudos "desinteressados" ou
"puros" não são mais do que isto. São estudos das coisas em si
mesmas, isto é, nas suas mais amplas relações possíveis. As teorias científicas
do calor, da luz, da cor ou da eletricidade são resultados do estudo desses
fenômenos em si mesmos, desligados de qualquer interesse ou uso imediato. No
fim de contas, a teoria é, como se diz, a mais prática das coisas, porque,
tendo sido o resultado do estudo das coisas no aspecto mais geral possível,
acaba por se tornar de utilidade universal.
Assim terão de ser e nem
poderão deixar de ser os estudos dos cientistas sociais destinados a contribuir
para o progresso das práticas educativas, pois, do contrário, estariam os
cientistas aplicando conhecimentos e não buscando descobri-los. Armados que
sejam os problemas, originários da prática educacional mas não de
prática educacional, deve o pesquisador despreocupar-se de qualquer interesse
imediato e alargar os seus estudos até os mais amplos limites, visando descobrir
os "fatos" e as suas relações, dentro dos mais amplos contextos, para
a eventual formulação dos "princípios" e "leis" que os
rejam.
Tais "fatos",
"princípios" e "leis" não irão, porém, fornecer ao
educador, repitamos, nenhuma regra de ação ou de prática, mas idéias,
conceitos, instrumentos intelectuais para lidar com a experiência educacional
em sua complexidade e variedade e permitir-lhe elaborar, por sua vez, as
técnicas flexíveis e elásticas de operação e os modos de proceder inteligentes
e plásticos, indispensáveis à condução da difícil e suprema arte humana – a de
ensinar e educar.
Cientistas e educadores
trabalharão juntos, mas, uns e outros, respeitando o campo de ação de cada um
dos respectivos grupos profissionais e mutuamente se auxiliando na obra comum
de descobrir o conhecimento e descobrir as possibilidades de sua aplicação. O
método geral de ação de uns e outros será o mesmo, isto é, o método
"científico" e, nesse sentido, é que todos se podem considerar homens
de ciência. O educador, com efeito, estudando e resolvendo os problemas da
prática educacional, obedecerá às regras do método científico, do mesmo modo
que o médico resolve, com disciplina científica, os problemas práticos da
medicina: observando com inteligência e precisão, registrando essas
observações, descrevendo os procedimentos seguidos e os resultados obtidos,
para que possam ser apreciados por outrem e repetidos, confirmados ou negados,
de modo que a sua própria prática da medicina se faça também pesquisa e os
resultados se acumulem e multipliquem.
Os registros escolares de
professores e administradores, as fichas de alunos, as histórias de casos
educativos, ou descrições de situações e de pessoas constituirão o estoque,
sempre em crescimento, de dados, devidamente observados e anotados. Tais
dados irão permitir o desenvolvimento das práticas educacionais e, conforme já
dissemos, suscitar os problemas para os cientistas, que aí escolherão aqueles
suscetíveis de tratamento científico, para a elaboração das futuras teorias
destinadas a dar à educação o status de prática e arte científicas como
já são hoje a medicina e a engenharia. No curso destas considerações,
insistimos – pela necessidade de demonstração de nossa posição -, na analogia
entre medicina e educação. Não sirva isto, contudo, para que se pense que a
prática educativa possa alcançar a segurança científica da prática médica: não
creio que jamais se chegue a tanto. A situação educativa é muito mais complexa
do que a médica. O número de variáveis da primeira ainda é mais vasto do que o
da segunda. Embora já haja médicos com o sentimento de que o doente é um todo
único e, mais, que esse todo compreende não só o doente mas o doente e o
"meio", ou o seu "mundo", o que os aproxima dos educadores,
a situação educativa ainda é mais permanentemente ampla, envolvendo o indivíduo
em sua totalidade, com todas as variáveis dele próprio e de sua história e de
sua cultura e da história dessa cultura, e mais as da situação concreta, com os
seus contemporâneos e os seus pares, seu professor e sua família. A prática
educativa exige que o educador leve em conta um tão vasto e diverso grupo de
variáveis, que, provavelmente, nenhum procedimento científico poderá jamais ser
rigorosamente nela aplicado.
Ainda o mais perfeito método
de aquisição, digamos, de uma habilidade, não poderá ser aplicado rigidamente.
O educador terá de levar em conta que o aluno não aprende nunca uma habilidade
isolada; que, simultaneamente, estará aprendendo outras coisas no gênero de
gostos, aversões, desejos, inibições, inabilidades, enfim que toda a situação é
um complexo de "radiações, expansões e contrações", na linguagem de
Dewey, não permitindo nem comportamento uniforme nem rígido.
É importante conhecer todos
os métodos e recursos já experimentados e provados de ensinar a ler, mas a sua
aplicação envolve tanta coisa a mais, que o mestre, nas situações concretas, é
que irá saber até que ponto poderá aplicar o que a ciência lhe recomenda, não
no sentido de negá-la, mas, no sentido de coordená-la e articulá-la com o outro
mundo de fatores que entram na situação educativa.
Sendo assim, podemos ver
quanto a função do educador é mais ampla do que toda a ciência de que se possa
utilizar. É que o processo educativo identifica-se com um processo de
vida, não tendo outro fim, como insiste Dewey, senão o próprio crescimento
do indivíduo, entendido esse crescimento como um desenvolvimento, um
refinamento ou uma modificação no seu comportamento, como ser humano. Em rigor,
pois, o processo educativo não pode ter fins elaborados fora dele próprio. Os
seus objetivos se contêm dentro do processo e são eles que o fazem educativo.
Não podem, portanto, ser elaborados senão pelas próprias pessoas que participam
do processo. O educador, o mestre é uma delas. A sua participação na elaboração
desses objetivos não é um privilégio, mas a conseqüência de ser, naquele
processo educativo, o participante mais experimentado, e, esperemos, mais
sábio.
Desse modo, a educação não é
uma ciência autônoma, pois não existe um conhecimento autônomo de
educação, mas é autônoma ela própria, como autônomas são as artes e, sobretudo,
as belas-artes, uma delas podendo ser, ouso dizer e mesmo pretender – a
educação.
A "ciência" da
educação, usando o termo com todas as reservas já referidas, será constituída,
na frase de Dewey, de toda e qualquer porção de conhecimento científico e
seguro que entre no coração, na cabeça e nas mãos dos educadores e, assim
assimilada, torne o exercício da função educacional mais esclarecido, mais
humano, mais verdadeiramente educativo do que antes.
Os Centros de Pesquisas
Educacionais foram criados para ajudar a aumentar os conhecimentos científicos
que assim possam ser utilizados pelos educadores – isto é, pelos mestres,
especialistas e administradores educacionais – para melhor realizarem a sua
tarefa de guiar a formação humana, na espiral sem fim do seu indefinido
desenvolvimento.
O Seminário que ora se
encerra foi um primeiro contacto entre os professores e mestres que trabalham
nas classes e os que trabalham no Centro. Esta aproximação tem um sentido: o de
associar à pesquisa educacional o mestre de classe. Na classe é que se realiza
a função educativa. E dentro da classe, na cabeça, no coração e nas mãos do
aluno. Todo o trabalho do Centro visa, em última análíse, tornar mais rica,
mais lúcida e mais eficaz essa ação educativa. Nada podemos fazer sem o
professor e a pesquisa educacional não pode prescindir do seu concurso.
Se o trabalho do mestre se
libertar do caráter de trabalho de rotina, de acidente ou de capricho e começar
ele a registrar por escrito o seu esforço, a manter fichas cumulativas,
descritivas e inteligentes dos alunos, casos-história de experiências
educativas, todo esse material poderá ser nos Centros estudado, para tornar
possível ajudar aos mestres em sua tarefa que continuará autônoma e, além
disto, mais consciente, mais controlada e mais suscetível de ser repetida e,
deste modo, de se acumular e progredir. Não será de desejar que sejam os
pesquisadores no Centro um estado-maior a elaborar planos para serem cumpridos
por autômatos ou semi-autômatos, rnas um grupo de colegas a estudar com os
mestres os problemas escolares, com o objetivo de conseguir conhecimentos para
que todo o magistério possa conduzir com mais autonomia a sua grande tarefa.
Não terá o Centro regras nem receitas a oferecer mas buscará ajudá-lo no
instrumental intelectual indispensável à execução de uma das belas-artes e a
maior: a de educar.