DEVO ESCLARECER, de início, que não obedeço literalmente ao tema que me foi proposto. Ao plural "processos da educação democrática nos diversos graus do ensino e na vida extra-escolar" prefiro o singular "processo democrático de educação", como tese geral, que doutrina e orienta todas as atividades escolares "nos diversos graus de ensino e na vida extra-classe".
1. O postulado democrático
O ideal, a aspiração da democracia pressupõe um postulado fundamental ou básico, que liga indissoluvelmente educação e democracia.
Esse postulado é o de que todos os homens são suficientemente educáveis, para conduzir a vida em sociedade, de forma a cada um e todos dela partilharem como iguais, a despeito das diferenças das respectivas histórias pessoais e das diferenças propriamente individuais.
Tal postulado foi e é, antes de tudo, uma afirmação política. Não foi, de princípio, e não será ainda, talvez, uma afirmação científica... Funda-se na observação comum, esta, confirmada pela ciência, de que o homem é um animal extremamente educável, quiçá o mais educável ou o único verdadeiramente educável, podendo, assim, atingir níveis ainda não atingidos, o que basta para justificar a sua aspiração de organizar a vida de modo a todos poderem dela participar, como indivíduos autônomos e iguais.
(1) Tema "C" da XII Conferκncia Nacional de Educaηγo. Rio de Janeiro, 1956.
A democracia é, pois, todo um programa evolutivo de vida humana, que, apenas há cerca de uns cento e oitenta anos, começou a ser tentado e, de algum modo, desenvolvido; mas está longe de ter completa consagração. Muito pelo contrário, ainda não conseguiu de todo vencer sequer a fase de controvérsia e negação, por que passa toda grande transformação histórica.
Digo isto para tomarmos posição sem ilusões sobre a dificuldade do tema e conscientes do caráter iniludivelmente experimental de todos os esforços, até hoje ensaiados, para a realização plena da democracia.
O postulado da democracia, acentuo, liga o programa de vida que representa a um programa de educação, sem o qual, uma organização democrática não poderia sequer ser sonhada. Deixada a si mesma, a vida humana não produz democracia, mas, como nos confirma toda a História, regimes de afirmação das desigualdades humanas, não somente das desigualdades individuais, reais e intransponíveis, mas, fundadas mais ou menos nelas, de desigualdades artificiais profundas e, do ponto de vista democrático, consideradas iníquas.
A educação nas democracias, a educação intencional e organizada, não é apenas uma das necessidades desse tipo de vida social, mas a condição mesma de sua realização. Ou a educação se faz o processo das modificações necessárias na formação do homem para que se opere a democracia, ou o modo democrático de viver não se poderá efetivar.
Daí ser a educação um dos fundamentos da crença democrática e, ao mesmo tempo, uma das razões de se descrer da democracia, por isto mesmo que não vem a escola sendo o desejado instrumento de sua realização, mas, tantas vezes, um outro meio de se confirmarem e se preservarem as desigualdades sociais. É que não é qualquer educação que produz democracia, mas, somente, insisto, aquela que for intencionalmente e lucidamente planejada para produzir esse regime político e social.
2. Origem histórica da democracia
Não percamos de vista que a democracia surgiu, na evolução histórica, como uma reivindicação política e reivindicação, sobretudo, de ideais individualistas, em face da opressão da organização social ainda vigente no século dezoito. Tais reivindicações encontraram sua formulação teórica no liberalismo econômico, quanto à organização do trabalho ou da produção; no liberalismo político, para a organização do Estado, e o liberalismo ético-estético, nome que à falta de outro daria a uma teoria de libertarismo pessoal, em que, à base de certo rousseauísmo, se concebeu o indivíduo como algo que, deixado a si mesmo, se desenvolveria, se exprimiria em harmonia, bondade e beleza.
As três teorias revelaram-se, devemos reconhecê-lo, úteis às forças sociais emergentes no século dezoito e permitiram ao indivíduo, expressão dessas novas forças sociais, usar os conhecimentos que lhe vinha proporcionando a ciência da época, para ensaiar, empreender e realizar, em condições desimpedidas, como jamais o estiveram, no campo econômico, e, de certo modo, também no campo político e no campo pessoal, a imensa obra da cultura material e espiritual do século dezenove, ou que nesse século se desenvolveu e culminou.
A falha da teoria individualista era, porém, não ser suficientemente individualista. No extremado de sua formulação, esquecia-se de que o indivíduo, só por si, é impotente; de que sua força decorre do seu poder de realizar, e que este seu poder de realizar decorre do grau de educação e do volume dos seus meios econômicos. O individualismo na realidade apenas de alguns e não de todos os indivíduos da teoria individualista permitiu a ascensão dos que tinham os meios econômicos, isto é, posses, terras e bens, e que, deste modo, dispunham também dos meios de se apropriarem dos novos conhecimentos, a fim de aplicá-los livremente em seu proveito.
Os esplêndidos triunfos do século dezenove até às catástrofes do século vinte foram o resultado desse período de libertarismo econômico, político e estético-moral, em que se restabeleceu para a espécie humana e na vida humana a luta biológica, que Darwin viera a descobrir na vida das espécies, particularmente entre as espécies animais. Foi, de fato, a famosa struggle-for-life o estabelecimento da lei da floresta entre os homens.
Nada haveria a admirar que desse os resultados que deu. De mim, espanto-me é de que não tenha sido pior. Afinal, chegamos a poder lembrar, sem forçar a comparação, o grande período dos répteis, antes do aparecimento dos mamíferos na face da Terra, em que os pequenos brontossauros dominavam a cena da vida, com liberdade e violência, ao lado da pacata estupidez dos gigantescos dinossauros.
O fato, porém, é que evoluímos, ou estamos evoluindo, desse individualismo, na realidade apenas para alguns, para o novo individualismo para todos, reconhecendo que a vida social precisa institucionalizar-se de forma a permitir que não somente alguns, mas todos os indivíduos encontrem, ao lado de condições favoráveis para desenvolver as qualidades comuns e particulares, condições também favoráveis para aplicar estas qualidades comuns e particulares, isto é, que o que foi dado somente a alguns e no excesso que decorria de serem só eles os beneficiários, contando com os demais para servi-los seja a todos estendido, com as limitações inevitáveis da participação geral.
São estas as mudanças em curso na vida presente, e que produzem os atritos e desajustamentos que todos vemos e que ainda têm muito de explosivo, a despeito do real amadurecimento social que se vem processando para a conquista definitiva da justiça social, mediante a revolução por consentimento.
Corrigido o equívoco das teorias individualistas nascidas no século dezoito e que importava, acima de tudo, na suposição de que o indivíduo possuía um conjunto de qualidades inatas capazes de, por si, levá-lo à ordenada felicidade na vida social e industrial, e não apenas uma extrema educabilidade que tanto pode levá-lo ao desastre como à ordem e à harmonia, vimos chegando aos dias mais graves de hoje, começando a perceber não só a necessidade de planejar muito mais rigorosamente a vida econômica e política da sociedade, como, sobretudo, a necessidade de educar muito melhor o indivíduo, para que lhe seja possível exercer o seu papel de participante da vida social complexa e organizada de uma sociedade avançada, e também o de modificador de sua rotina e organização, pela independência e liberdade de pensamento e de crítica.
Não faltou aos ensaios democráticos, que se realizaram nas últimas quinze décadas, o propósito de educar o indivíduo. Mas, infelizmente, as experiências ditatoriais se revelaram muito mais conscientes dessa necessidade de educar intencionalmente, do que as democracias individualistas.
Somente agora estamos despertando para a necessidade de completar a obra democrática, com um esforço educativo paralelo ao dos que, sensíveis aos aspectos de organização, vieram intensificar o trabalho das escolas mas o fizeram, sem o devido acento no papel único que continua a caber ao indivíduo, de ser a força de revisão e mudança, pelo pensamento livre, da extrema e complicada máquina organizativa da sociedade moderna.
3. Sociedade democrática
A sociedade não é um todo único, mas, de fato, e sobretudo a moderna sociedade, uma constelação de "sociedades". Além da estratificação social, que nos dá as classes, há toda sorte de sociedades menores dentro da grande sociedade. A família, os amigos, companheiros de escola, companheiros de trabalho, de clubes, são outras tantas sociedades dentro da sociedade. E como tais micro-sociedades existem até mesmo dentro de cada classe temos, pelo menos, um múltiplo de todas elas.
A sociedade democrática é a sociedade em que haja o máximo de comum entre todos os grupos e, por isto, todos se entrelacem com idêntico respeito mútuo e idêntico interesse. As relações entre todos os grupos e o sentimento de que todos têm algo a receber e algo a dar emprestam à grande sociedade o sentido democrático e lhe permitem fazer-se o meio do desenvolvimento de cada um e de todos.
"Uma sociedade que consagre a participação em seus benefícios de todos os membros em termos iguais e que assegure o flexível reajustamento de suas instituições pela interação das diferentes formas de vida associada é, nessa medida, democrática", afirma Dewey (Democracy and Education, p. 115, ed. 1926).
A escola democrática é, por sua vez, a escola que põe em prática esse ideal democrático e procura torná-lo a atitude fundamental do professor, do aluno e da administração.
À luz desse critério deveremos julgar cada um dos fatores da escola: currículo, métodos, organização, ou sejam, atividades, processos e relações entre os três grupos de trabalho da escola, alunos, professores, administradores.
A escola é uma comunidade com seus membros, seus interesses, seu governo. Se esse governo não for um modelo de governo democrático, está claro que a escola não formará para a democracia. Diretores, professores e alunos devem organizar-se de forma a que todos participem da tarefa de governo, com a divisão de trabalho que se revelar mais recomendável. A participação de todos, o sentimento de interesse comum é essencial ao feliz desempenho da missão educativa da escola.
4. Educação e processo democrático
Com estas idéias iniciais, poderemos começar a analisar o tipo de processo educativo necessário à escola democrática. Esclarecidos de que o indivíduo não é o ser mítico dos "direitos naturais", saído puro das mãos de Deus e corrompido pelo pecado ou pela sociedade, mas o animal altamente evoluído, irrecorrivelmente candidato a homem, graças, justamente à sua educabilidade estamos a procurar, sem romantismo, ver como devemos educá-lo para fazê-lo homem na plena significação social da palavra, ou seja homem democrático.
Esta experiência não tem sido e não é ainda fácil, porque a própria escola não surgiu com a democracia, mas com e para a aristocracia, e está (ainda está) muito mais apta a formar aristocratas do que democratas. Além disto, a escola nunca assumiu senão uma função parcial na educação, deixando a real formação do homem para outras instituições, sobretudo a família. E como a família era, por excelência, uma instituição inigualitária na organização social anterior à democracia, a família realmente capaz de educar era somente a família de posses, ou seja, a família aristocrática, no sentido amplo em que estou usando as palavras aristocracia e aristocrático.
Com efeito, a educação escolar de nível superior e médio foi, em todo o passado, a educação da classe dominante ou a educação de especialistas, com privilégios semelhantes aos das classes dominantes e, como tal, a educação de indivíduos para formarem a chamada elite social ou de espírito. Não será, pois, aí que iremos encontrar os métodos da formação democrática.
Somente a escola primária, de constituição muito mais recente, buscou a formação do cidadão comum e orientou-se para a educação democrática.
Como, porém, nenhuma instituição pode desprender-se do contexto social geral em que realmente se insere, a própria escola primária sofreu duas deformações: uma social, outra pedagógica.
Socialmente, fez-se uma escola paternalista, destinada a educar os governados, os que iriam obedecer e fazer, em oposição aos que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao conceito democrático, que a deveria orientar, de escola de formação do povo, isto é, do soberano, numa democracia.
Por outro lado, a escola primária na falta de outros modelos, copiou a pedagogia das demais escolas, que a precederam, fazendo-se, apesar de todos os bons esforços em contrário, uma escola intelectualista, vale dizer, de preparação de algum modo "especializada", cuja utilidade somente se fazia, assim, efetiva, com a continuação dos estudos nos graus posteriores ao primário.
Por isto mesmo, a própria escola primária nem sempre conseguiu os seus objetivos de escola democrática, embora tudo que tenhamos de real democracia na vida moderna ainda venha dessa primeira instituição de educação para todos, que o movimento democrático, já no século passado, logrou criar nos países desenvolvidos.
Hoje, esta escola está se ampliando até ao nível médio e renovando intensamente a sua pedagogia, para se fazer uma escola de formação humana, em que o indivíduo aprenda a afirmar a sua individualidade numa sociedade de classes abertas, em que a aptidão e o êxito lhe determinem o status mais dependente de condições pessoais, do que propriamente de hierarquia social pré-estabelecida.
Ao contrário das escolas do passado, todas destinadas à educação especial, suplementar à educação comum, que, esta, seria ministrada diretamente pela sociedade ou pela classe a escola democrática ou para todos não se destina a oferecer uma educação suplementar e especializada, mas a própria educação comum que antes a vida espontaneamente oferecia, pela família, pela classe e pela participação na vida social.
Não é só que essa educação comum, dada a complexidade social, tenha ficado difícil de ser haurida no seio das famílias e das classes, em mudança; mesmo que a família e a classe fossem, hoje, as instituições seguras ou incontrastáveis do passado, mesmo assim, seria necessário que a escola comum e democrática refizesse a educação, proporcionando ao indivíduo um meio apropriado à revisão e integração de suas experiências, no sentido de fazê-lo participante inteligente e ajustado de uma sociedade de todos e para todos, em que o respeito e o interesse pelos outros se estendam além das estratificações sociais e de grupo e se impregnem do espírito de que, antes de membro da família, do grupo ou da classe, o indivíduo é membro de sua comunidade, do seu país e de toda a humanidade.
Tal escola tem assim de se fazer uma escola de vida, em que as matérias sejam as experiências e atividades da própria vida, conduzidas com o propósito de extrair delas todas as conseqüências educativas, por meio da reflexão e da formulação do que assim for aprendido. Nessa nova comunidade, que a própria escola já é, não se levam em conta as diferenças individuais ou da história de cada um, para o efeito de reconstruí-Ias e integrá-las em uma experiência mais larga, em que se destruam os isolamentos artificiais e as prevenções segregadoras, visando o estabelecimento de uma verdadeira fraternidade humana.
Não se pense que tal escola não ensine. Tão arraigadas são as concepções que a instrução é algo de especial, que só as escolas produzem, que falar-se em aprender por experiência parece, às vezes, negar os aspectos instrutivos da escola.
A concepção atual não é esta. Há um saber das coisas e um saber sobre as coisas. A escola tradicional julgava que lhe competia ministrar o segundo o saber sobre as coisas, isto é, um saber que permitisse ao aluno, no melhor dos casos, falar sobre as coisas, revelar-se informado, emitir comentários inteligentes, etc. As raízes deste tipo de educação são, como se pode bem sentir, aristocráticas. Era a educação da elite, destinada a formar uma classe de lazer ou de mando, gentil, autoritária e, se possível, transigente... O saber que levava a fazer não era, dizia-se, de cultura geral. Seria quando muito de cultura prática e profissional, de que só especializadamente e à parte se cuidava.
Pois esta educação de fazer é a que será dada pela escola democrática, cujo programa consiste nas atividades comuns de crianças e adolescentes, de acordo com as suas diferentes idades. Assim como antes da escola a criança aprendeu a andar, a falar, a brincar e a conviver, assim irá aprender, na classe, o comando da sua língua, falando-a, lendo-a e escrevendo-a e iniciar-se nas novas linguagens do desenho, do número, da ciência e nas combinações mais complexas da vida em grupo, participando do trabalho de aula, do recreio, das múltiplas organizações da vida extra-classe, em que a atividade escolar se distribuirá, para o fim de constituir-se a escola em uma comunidade integrada e completa.
Como a escola visa formar o homem para o modo de vida democrático, toda ela deve procurar, desde o início, mostrar que o indivíduo, em si e por si, é somente necessidades e impotências; que só existe em função dos outros e por causa dos outros; que a sua ação é sempre uma trans-ação com as coisas e as pessoas e que saber é um conjunto de conceitos e operações destinados a atender àquelas necessidades, pela manipulação acertada e adequada das coisas e pela cooperação com os outros no trabalho que, hoje, é sempre de grupo, cada um dependendo de todos e todos dependendo de cada um.
Fazendo compreender ao aluno que o saber não é, assim, algo de acumulado e inútil que tem ele de aprender, mas a própria arte de fazer as coisas, resolver os problemas humanos e tornar o indivíduo aquela expectativa de homem em um homem verdadeiro, a escola depressa o conquistará para a participação na sua admirável experiência de fazer dele o cidadão de uma democracia, eficiente em sua parcela de trabalho e no grande trabalho coletivo de todos, eficiente no comando de si próprio, dos seus desejos e impulsos, para coordená-los com os desejos e impulsos dos outros, e eficiente, assim, como bom parceiro, no jogo da vida, seja no pequeno grupo íntimo da família e dos amigos, seja no grande grupo regional, nacional, universal.
A idéia fundamental de que toda ação humana é uma ação associada, começará a dar-lhe a consciência de que a individualidade não é algo a opor aos outros, mas a realizar-se pelos outros, tendo apenas um sentido que é o da medida de sua responsabilidade para com o grupo e para consigo mesmo. Este conceito, pelo qual o indivíduo não se opõe à sociedade e às instituições, mas se realiza por meio delas, que são os instrumentos de sua liberdade, como o saber, o conhecimento e a ciência são, por outro lado, novos instrumentos desta sua crescente liberdade fará com que o aluno perceba a necessidade de sua lealdade às instituições e ao saber, que aprenderá a amar como condições do seu crescimento e de sua força.
Desde que toda ação é um ato partilhado, a idéia de participação faz-se a matriz de toda atividade humana e a criança na escola deve poder sentir quanto o seu desenvolvimento é um desenvolvimento em conjunto, não podendo ela própria realizar-se a si mesma senão na medida em que se faz útil aos outros e os outros úteis a ela, medindo a sua capacidade peIo grau em que melhor realiza aquela parcela de atividade que lhe cabe, em virtude de suas aptidões particulares. Assim, mesmo o que é peculiar e próprio de cada um não se realiza senão em razão dos outros, sendo cada um devedor aos outros do que é, e credor dos outros do que os outros sejam. Esse existir em sociedade deve ser o quadro geral da escola, que, por isto mesmo, se organiza em comunidade de professores, alunos e pais, desenvolvendo o seu programa de atividades, em decorrência de tal viver associado, que marca toda a experiência escolar, transformada, assim, na experiência democrática por excelência.
Com efeito, sem diferenças econômicas e sem conflitos outros de interesse dentro dela, a escola se faz um pequeno ideal de vida comunitária, com um plano de atividades em que o rigor exato do trabalho, a doce intimidade da família e a alegre animação do clube se casam, para produzir um ambiente capaz de conduzir com êxito a aventura do saber, do progresso social e da igualdade humana, que é a própria aventura da democracia.
Nessa comunidade escolar, indivíduo e grupo trabalharão, distribuindo as suas funções, constituindo as suas associações, desde a da classe até a da sociedade de toda a escola, podendo a criança fazer as experiências de membro social em todos os níveis e graus, sendo aqui o companheiro de trabalho, ali o companheiro social, acolá o companheiro de jogo e de gostos, ou ainda o companheiro de política, no governo da escola, participando assim de todos os tipos de atividade e aprendendo o jogo da vida democrática nesta comunidade em miniatura que é a escola.
A democracia, assim, não é algo especial que se acrescenta à vida, mas um modo próprio de viver que a escola lhe vai ensinar, fazendo-o um socius mais que um puro indivíduo, em sua experiência de vida, de sorte a que estudar, aprender, trabalhar, divertir-se, conviver, sejam aspectos diversos de participação, graças aos quais o indivíduo vai conquistar aquela autonomia e liberdade progressivas, que farão dele o cidadão útil e inteligente de uma sociedade realmente democrática.
Tal atmosfera de participação fará com que nenhuma atividade escolar tenha aquele velho espírito de segregação e isolamento, que tanto dificulta depois a verdadeira formação democrática. Na escola tradicional, a segregação, que isola e aliena, manifesta-se de todas as formas, pelo ensino de culturas passadas sem articulação com o presente, pelo ensino abstrato sem ligação com os fatos, pelo ensino oral e livresco sem relação com a vida, pelo ensino de letras, sem referência com a existência, enfim por todos aqueles exercícios que rompem a continuidade entre o mundo e a experiência do aluno e a sua aprendizagem.
A experiência do aluno é um todo continuo que se amplia com os novos interesses e novas aprendizagens, mantida, entretanto, a unidade nos novos desdobramentos a que o levam a instrução e o saber. O ensino de coisas ou noções alheias à experiência de aluno corre sempre o perigo de constituir algo de inútil ou de prejudicial ao seu desenvolvimento. A experiência educativa é sempre uma experiência pessoal, em que o passado se liga ao presente e se projeta no futuro, aumentando o poder de compreensão ou de operação do indivíduo em seu crescimento emocional, intelectual e moral.
A cultura que isola, que "especializa", tende a estimular a formação de castas fechadas e é, em essência, aristocrática ou aristocratizante. A velha escola sempre teve essa tendência. Quando, porém, a sociedade é democrática, toda cultura deve conduzir à maior participação, e neste sentido é que é humana e geral. O saber e o trabalho ensinados como forma de comunicação e de participação do homem em algo de comum, em que todos se associam e por que todos se realizam, não isolam nem segregam, mas aproximam, unem e integram os homens na real fraternidade da vida, que só existe em função de todos e de cada um no controle social.
Pelo saber e pela razão o indivíduo se faz humano entre humanos, conquistando o poder e a eficácia de pensamento e de ação, que são, por excelência, formas de interação, de socialização, de sua inserção no contexto social, que lhe irá nutrir e dirigir a existência.
5. Processo democrático de educação
Tudo que temos dito até aqui são, entretanto, considerações abstratas, que podem valer como princípios, mas não indicam concretamente o que deve ser feito para que a educação se faça efetivamente democrática.
Vamos, agora, entrar na escola. Se tomarmos a sua organização tradicional, veremos que a instituição é uma das mais especializadas de nossa sociedade, radicalmente diferente de qualquer outra em que também admitimos ocorrerem os processos educativos. Sobretudo, diferente do lar. Uma sala de aula, "matérias" para aprender, horários, notas, regras especiais de disciplinas... A sua "organização" é algo de distinto não só do lar, mas da oficina, do escritório, do quartel, da igreja, de tudo que existe na sociedade.
A filosofia dessa escola é a de que é uma instituição especial para ensinar aos jovens certos conjuntos de conhecimentos, de técnicas e de regras morais, formuladas pela sabedoria humana e de que a criança precisará no futuro. O modo de aprender é artificial, a disciplina da escola é artificial e artificial ainda é o modo de julgar o progresso de cada um. Impossível evitar nessa organização o elemento autocrático. Toda ordem é externa e imposta, pois as crianças e jovens estão submetidos a um processo tão estranho aos interesses e necessidades reais da idade que somente completa docilidade por parte do aluno ou dura imposição por parte da escola poderão produzir a "ordem" escolar.
Não julgo necessária maior análise para concluir que tal escola não poderá formar democratas. Só mesmo por milagre é que, depois dessa experiência escolar, alguém não sairá ou um perfeito e resignado conformista ou um perfeito e acabado rebelde. Nenhuma das duas disposições é útil para a democracia.
Imaginemos, entretanto, que a organização da escola já seja a que se vem chamando hoje de escola progressiva. Aí o programa dos alunos é de atividades estreitamente correlacionadas com os seus interesses e necessidades, o professor, um guia experimentado e amadurecido nas artes necessárias à vida, o horário, uma distribuição de tempo entre observar, procurar informações, debater, escolher, planejar, distribuir tarefas, realizar e julgar os resultados. Está claro, que esta nova escola mais não está do que recuperando as boas condições educativas, que possuem as instituições naturais, digamos assim, de educação: as da família, da oficina, do escritório de trabalho, do clube e da igreja. As atividades já não são impostas ao aluno, mas oferecidas à sua participação; possuem interesse em si mesmas e não são algo que se deva fazer apenas por obrigação; o trabalho será julgado pela sua eficácia e não por meio de regras artificiais de mérito.
Não direi que tal escola se faça somente pela sua nova organização uma escola democrática. Creio, porém, poder afirmar que meio caminho foi andado. As condições da escola são de ordem a permitir o jogo de experiências necessário para a formação democrática.
O lado bom da democracia é o que se resume na afirmação: "eu sou tão bom quanto você". E o lado mau, diz Bertrand Russell, é o que diz: "você não é melhor do que eu". Pela primeira, afirmo o meu amor-próprio, meu respeito por mim mesmo. Pela segunda, afirmo minha inveja, minha insegurança e daí a possível tirania contra os melhores.
Se a escola transformada cria as condições necessárias para um trabalho real e eficaz e este trabalho se vai fazer em comum, com divisão de tarefas, participação de todos, sentido de responsabilidade e cooperação; e se a sua organização, isto é, as relações entre alunos, professores e administração é a de um time, em que todos se sintam "tão bons quanto os outros" então, a formação democrática será quase inevitável.
Se a atitude "Você não é melhor do que eu" surgir, não haverá como não ser corrigida pelo grupo. As condições de prova se apresentarão na primeira oportunidade e a afirmaçãozinha tirânica depressa passará a ser um estímulo para o "sou tão bom quanto você" ou para um sadio reconhecimento da superioridade alheia, superioridade que nunca será tão universal que não permita ao menos dotado aceitá-la sem destruição do seu amor-próprio.
Os processos democráticos de educação requerem, assim, antes de tudo, a transformação da escola em uma instituição educativa onde existam condições reais para as experiências formadoras. A escola somente de informação e de disciplina imposta, como a dos quartéis, pode adestrar e ensinar, mas não educa. Nesta escola, a democracia, se houver, será a dos corredores, do recreio, dos intervalos de aula, desordenada, ruidosa e deformadora.
Mas, não basta a transformação da escola. É necessário que professores, diretores e toda a administração escolar aceitem o princípio democrático, que consiste no postulado de que cada um dos participantes da experiência escolar tem mérito pessoal bastante para ter voz no capítulo. Ninguém é tão desprovido que possa ser apenas mandado. Também ele deve saber o que está fazendo e porque está fazendo. Algo ficará mais difícil; nem tudo será tão bem feito mas a grande experiência de participação, como igual, nas atividades, esforços, durezas e alegrias do trabalho escolar, se estará fazendo, e, com ela, a aquisição das disposições fundamentais de cooperação, de responsabilidade, de reconhecimento dos méritos de cada um, de participação integradora na vida comum e de sentimento de sua utilidade no conjunto.
O processo democrático de educação surgirá, naturalmente, nessa nova organização escolar, como algo de intrínseco à própria atividade do aluno: em classe ou fora de classe, sugerindo, analisando, decidindo, estudando ou buscando informações e conhecimento, planejando, realizando, julgando, corrigindo, refazendo e tornando a planejar estará ele crescendo, como crescia antes da escola, em capacidade física, intelectual e moral e formando as disposições fundamentais necessárias à vida democrática: iniciativa, cooperação, espírito de equipe, isto é, de reconhecimento do próprio mérito e do mérito dos outros.
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A ligeira análise que acabamos de fazer da educação para a democracia importou em reformular a tese que me foi proposta: "os processos de educação democrática nos diversos graus de ensino e na vida extra-escolar" fizeram-se "o processo de educação democrática".
Havia no plural da primeira formulação e na discriminação dos graus de ensino e da vida extra-escolar, uma sugestão de que os processos de educação democrática seriam algo que se acrescentaria a esses dois campos. Se se tratasse de "informação" democrática estaria muito bem, mas, educação democrática não é, repetimos, mais uma atividade a acrescentar aos graus de ensino ou à vida extra-classe, mas uma "qualidade", um "modo" de conduzir as atividades do ensino e da vida extra-classe para a formação do indivíduo na sociedade democrática.
6. Súmula
A sociedade democrática é uma sociedade de pares, em que os indivíduos, a despeito de diferenças individuais de talento, aptidão, ocupação, dinheiro, raça, religião e, mesmo, posição social, se encontrem associados, como seres humanos fundamentalmente iguais, independentes mas solidários.
De tal modo, a sociedade democrática não é algo que exista ou tenha existido, nem algo a que tenda o homem por evolução natural; vale dizer que a democracia não é um fato histórico pretérito, que estejamos a procurar repetir, nem uma previsão rigorosamente científica a que possamos chegar com fatal exatidão determinística, mas, antes de tudo, uma afirmação política, uma aspiração, um ideal ou, talvez, uma profecia...
A profecia distingue-se da predição, porque esta, quando científica, importa em certeza ou alta probabilidade, enquanto a profecia é um misto de desejo e de predição, o que a torna condicional... A predição é previsão de acontecimentos. A profecia é programa de ação. A profecia democrática é um programa de sociedade igualitária, fundado na afirmação política de que os homens, a despeito de suas diferenças individuais, se adequadamente educados, adquirirão uma capacidade básica comum de entendimento e ação, suscetível de levá-los a uma vida associada, de que todos partilhem igualmente.
Historicamente, nunca houve essa sociedade. E, deixados a si mesmos, os homens desenvolverão as suas diferenças individuais e se distribuirão por classes, senão por castas, cada grupo tendendo a segregar-se e explorar ou deixar-se explorar pelos demais.
A sociedade democrática não pode, por natureza, ser espontânea. Nenhuma organização social o é... Foi e é uma opção, e só se realiza, se é que chegará um dia a realizar-se, por um tremendo esforço educativo. Por isto é que se afirma que a relação entre democracia e educação é intrínseca e não extrínseca, como sucede em outras formas de sociedade. A aristocracia, a autocracia, o regime de castas, etc., todos podem existir sem educação intencional para todos. Ao contrário, não só prescindem dela, como precisam que ela não haja e velam por impedi-Ia. A democracia não pode existir sem educação para todos e cada um, pois importa em transformar, não alguns homens, mas todos os homens para contra tendências hereditárias, sociais, se não biológicas rematar, por evolução consciente, a obra que as sucessivas civilizações, desde o começo dos séculos vêm realizando pela injustiça e conseqüente violência. Todas as outras formas de sociedade precisam de alguma educação, mas só a democracia precisa de educação para todos e na maior quantidade possível...
A opção democrática que os povos do mundo vêm fazendo desde o século dezoito tem encontrado em cada país as resistências maiores ou menores do seu passado histórico. Embora a revolução industrial e, sobretudo, a tecnológica concorressem, por um lado, para tornar a democracia possível, sabemos hoje que nenhuma das duas revoluções nos trouxe, de presente, a democracia. Muito pelo contrário, tanto facilitarão elas uma civilização de térmitas para os homens e isto é que vêm, de certo modo, realmente promovendo como poderão facilitar a civilização democrática, se lograr o homem se convencer da tremenda importância da educação intencional para a construção da democracia.
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Buscando fazer da escola, como instituição voluntária e intencional, essa comunidade ainda meio utopia e meio profecia que é a comunidade democrática, teremos criado para as crianças e os adolescentes, vale dizer para os futuros homens, não só o mais eficiente instrumento de educação, como o melhor presságio de uma possível verdadeira sociedade democrática.