O Prof. Afrânio Coutinho, consagrada figura das letras brasileiras, também escreveu sobre Anísio, intitulando-se o seu capítulo "Pensando com a cabeça e as mãos". São doze páginas do melhor estilo, analisando a personalidade de Anísio Teixeira.
Logo de início afirma: "Espírito
livre por excelência, nenhuma fronteira o pode conter."
Vejamos adiante alguns trechos selecionados do trabalho que escreveu
o seu conterrâneo, o imortal Afrânio Coutinho:
Um Homem em Debate Consigo Mesmo:
"... Para ele não há impenetráveis ou impermeáveis à razão humana, daí que lhe apareça pacífico o poderio universal da ciência e a ampliação crescente do seu domínio até o final dos tempos. E a sua aparente negação do mundo dos invisíveis, dos impalpáveis, dos incalculáveis, dos imensuráveis, todo esse mundo de mistério insondável pela razão humana.
Disse aparente negação de
propósito. Porque a fulguração dessa
inteligência, a flamejante inquietação desse
espírito não disfarçam, a meu ver, as suas
essências profundamente religiosas. Ser permanentemente
em debate, - com idéias, com princípios, com imagens,
- com emoções, na sua aparente, também, secura
de sentimentos - o maior debate em que ele se debate é
consigo mesmo."
Espírito Eminentemente Religioso
"Espírito eminentemente religioso ele o é.
Poucos homens mais dotados de fé: fé
nas causas em que se empenha, fé nos princípios,
fé na humanidade, fé no ideal. Fé, "tout
court". Uma fé ardente, envolvente, comunicativa,
que arrasta, que conquista, que arrebanha, que comanda. Fé
dos generais, dos guerreiros, dos líderes, dos santos,
dos homens que costumam vencer, criar, inventar, mobilizar, conduzir,
remover montanhas. Fé dinâmica, que irradia centelhas,
como a dos grandes místicos. . . "
No seu importante depoimento o Prof. Afrânio
Coutinho assinala dois aspectos importantes da personalidade de
Anísio, a sua conduta moral e a sua generosidade. Voltemos
ao seu comentário:
"Anísio é, assim, um espírito moderno, voltado para o futuro, esforçando-se dramaticamente por construí-lo, por infundir-lhe idéias construtivas, princípios de ordem e vida.
Ao ascetismo intelectual alia-se um severo
ascetismo moral. Se a vida moral for uma luta pela repressão
de todos os prazeres humanos, ninguém oferece maior exemplo
de ascetismo moral, resultado de uma vigilância rígida
sobre si mesmo, sem deixar qualquer folga aos demônios terrenos.
Aqui está nítida a influência de sua formação
jesuítica. Não escapará ao observador perspicaz
a visão, por detrás do homem Anísio, da sombra
jesuítica e a que ele deve muitos traços de sua
personalidade, sobretudo esse ascetismo que chega quase à
autoflagelação, na boa escola de repressão
corporal e da renúncia aos prazeres mundanos e da retidão
pessoal. Desde os tempos de adolescente destacava-se Anísio
entre os companheiros pela sizudez, compostura, correção
de atitudes, decência, decoro, retidão, gravidade."
Um Homem Generoso
"Na base da personalidade de Anísio
está uma profunda generosidade humana. Só é
rigoroso com as idéias. Com os homens é generoso
e tolerante, mesmo com os adversários, que, para ele, são
instrumentos úteis do próprio aperfeiçoamento,
ao apuramento das idéias e programas próprios.
Está em constante revisão de suas idéias
por um permanente debate interior e exterior. Está sempre
a confrontar os seus pontos de vista com os dos adversários
ou a submetê-los à discussão com os auxiliares
e amigos. É a negação do magister dixit."
Outro aspecto importante, abordado com muita
propriedade pelo ilustre Prof. Afrânio Coutinho, é
o que se refere à coragem do Prof. Anísio, sempre
disposto a dizer o que realmente pensava, sem se preocupar com
os efeitos causados por seus pronunciamentos ou pela exposição
das suas idéias. Sincero e honesto, com tranqüilidade
defendia os seus pontos de vista. Não resistimos ao desejo
de transcrever o trecho seguinte, do depoimento feito pelo Prof.
Afrânio Coutinho:
Um Homem de Coragem
"Uma inteligência lúcida que seja, ao mesmo tempo, corajosa, não é comum. O geral é a pusilanimidade e o conformismo. Os estudos de Anísio revelam, ainda mais, esse aspecto do seu espírito: a coragem intelectual e moral. Dificilmente, encontraremos quem aborde de modo frontal e com maior firmeza os nossos mais sérios problemas, e, ademais, tenha a bravura de fazê-lo de público, desacatando o nosso ufanismo e nossa irresponsabilidade. Entre nós, o comum é a complacência com as mazelas, o conformismo com o "status quo", a mentira e a empulhação ante as nossas farsas. O geral é calarmos de público aquilo que à boca pequena não temos pejo de incriminar. Arrostar, porém, a ingênua ou intencional aceitação das mistificações e do faz-de-conta que correm mundo como grandezas, só para espíritos antecipados pela meditação e observação honestas, e enrijecidos pelo desejo sincero de melhorar as condições da vida brasileira, e não de aproveitar-se e tirar partido das suas inferioridades.
Anísio é desses pensadores que não temem ser desagradáveis e não titubeiam em esposar as causas impopulares. Jamais se pode esperar dele a intenção de lisonjear as nossas fraquezas. É duro, impenitente, desassombrado, o símbolo do homem que poderá parecer desagradável à nossa leviana superficialidade, justa porque ela não encontrará nele a hipócrita complacência, que a muitos poderá parecer impolítica, mas que é, no fundo, uma atitude altamente construtiva. Não estaria o nosso país preso, talvez incorrigivelmente a essa mentalidade de fraude e da mentira, militasse na sua vida pública maior número de homens dotados da capacidade e da coragem de dizer verdades e de cauterizar as nossas feridas como esse intimorato e incômodo educador de cidadania e democracia."