Antecedentes Políticos da Revolução
de 1930. Novas Correntes Ideológicas.
O Levante de 1935. Afastamento
de Anísio.
REVOLUÇÃO de 1930 desmoronara o fechado sistema político brasileiro alicerçado no controle das máquinas eleitorais pelos governos dos Estados. Desde a monarquia, eleições sempre foram o calcanhar de Aquiles do nosso regime representativo. Em 1922, Capistrano de Abreu perguntava: "serão compatíveis com a índole brasileira eleições honestas"? Não era questão de índole, mas de condições sociais e educação política. Ao proclamar-se a República, o país continuava muito isolado no interior, a população somava apenas vinte milhões, a economia agrária em sua feição mais típica - o latifúndio - dominava as relações produtivas. Só por volta de 1927, a produção industrial ameaçou a agrária. Da minoria dos grandes proprietários saíam os líderes e os chamados "coronéis". Em torno destes, no isolamento do interior, paupérrimo de comunicações, pouco povoado, gente iletrada e dispersa, nucleava-se um tecido de relações de dependência pessoal. Possuíam esses homens espontânea representatividade local. Alheios a comportamento cívico abstrato, estavam engajados nas realidades da vivência local.
Havia na legislação eleitoral dispositivos precisos de como organizar o processo da votação, de como organizar mesas e apurar votos, porém, na prática, tudo funcionava à feição do situacionismo. Servia-se à política e não à moral cívica dos pleitos. É conhecida a história atribuída a Pinheiro Machado ao advertir jovem correligionário de fidelidade em observação: "Menino, tu não serás reconhecido por três razões, a terceira é que não foste eleito".
A oficialização dos prestígios locais colocava à disposição dos mesmos a polícia, as pequenas autoridades, inspetores de quarteirão, fiscais, professores, até a justiça. Fora do alcance da lei estava mudar o clima social, promover a mobilização cívica. Tudo convidava ao "bico da pena", que dispensava a presença de votantes. Os pleitos decidiam-se em recintos fechados onde voluntários enchiam de nomes, vivos e mortos, as listas de comparecimento. Até no Rio, capital da República, praticava-se o "bico da pena". Tecnicamente, era a fraude. Sociologicamente, a composição mais fácil diante da impraticabilidade de convocar eleitores dispersos, desinteressados, de qualificação episódica e voluntária, figurantes de um contexto social em que predominavam analfabetos. Lembravam as eleições uma pantomima, não propriamente um embuste, desde que se representava cena exigida pela Constituição. Tanto na monarquia como na república buscou-se com magros resultados permanentes modificar essa situação. Na monarquia, a lei Saraiva da eleição direta, na república, a lei Rosa e Silva seguida, em 1916, pela reforma Bueno de Paiva, foram passos importantes no esforço legal saneador dos pleitos.
A política dos Governadores, ou política dos Estados, como preferiu denominá-la Campos Salles, seu inventor, consolidou-se exatamente no quatriênio que presidiu. O país vinha do tumulto da guerra civil, financeiramente desorganizado. Tocado pela fria avaliação das condições em que iria governar, precisava de estabilidade e divisou no apoio a situações estaduais, também estáveis, o concurso indispensável. Queria governar com a Constituição e na autonomia dos Estados, ele próprio dissera, estava o coração da República.
Abriu, dentro das circunstâncias, no leito da Carta Magna, o caminho que lhe pareceu exeqüível. Institucionalizou a política dos Estados, amoldou aos interesses das políticas situacionistas, em cada Casa do Congresso, a Comissão de Verificação de Poderes, chave do reconhecimento dos diplomas. Receber apoio do Congresso constituía exigência da ideologia republicana de que nenhum Presidente quereria abrir mão.
Na presidência de São Paulo, explicou Rodrigues Alves à bancada o novo critério, reputando-o "o mais seguro para a verificação" e esclareceu ser intenção de Campos Salles apoiar os Governadores, aceitar como candidatos legítimos os candidatos que fizeram parte das chapas oficiais dos Estados. Oposição passou a significar puro ostracismo, uma "espiga" como advertia a jovens dissidentes o experimentado Francisco Glycério. Estavam criadas as oligarquias. No clima delas, cresceu a figura caudilhesca, um pouco cesárea, de Pinheiro Machado.
A política dos Governadores prolongou-se por bons trinta anos. Durante toda ela, formalmente funcionou a Constituição. Nunca deixou de haver Congresso, o Judiciário jamais perdeu os predicamentos constitucionais. Afinal, o respeito aos símbolos exprimia uma mentalidade.
Em 1910, Rui Barbosa empreendeu a primeira campanha de nível nacional denunciadora do sistema político. O significado histórico da campanha é indisputável.
O escol político da República velha compunham-no figuras, via de regra, idôneas. Na República velha situa-se a fase da nossa vida pública menos comprometida pela corrupção. E durou quarenta anos. A tradição monárquica ainda pesava, a aura positivista arejava a convivência política, limitada a margem de negócios pelo atraso industrial. Os advogados administrativos, no Congresso segundo o Embaixador Raul Fernandes, ouvido pelo Ministro Oswaldo Trigueiro, eram conhecidos, identificados, e não chegavam a ocupar os dedos de uma das mãos.
Embora comungassem na pureza da ideologia republicana, aos líderes, mesmo os melhores, não repugnava o expediente das atas falsas. Em 12.12.912, de Ouro Preto escrevia Calógeras a Arthur Bernardes: "O resultado do pleito (faltando Grotta. Poderam, Santo Apolinário, Rio do Peixe, Cuieté, Floresta, Santo Antonio de Manhuassu, Taramirim, Resplendor é - José Bonifácio, 22.502; lrineu Machado, 17.282; J. Luís, 17.128; Calógeras, 16.999; Landulpho, 16.500; Sales, 16.200. Note V. que, no dia 23, mandei tirar mais 2 mil votos meus em Caratinga para dar ao João Luís e ao Sales que ahi deviam ter apenas um voto em cada cédula. Affectuoso abraço do Calógeras".
João Pandiá Calógeras foi um dos verdadeiros homens de Estado do regime republicano. O cartão dirigido ao Presidente Bernardes, então ocupando a Secretaria da Fazenda do governo mineiro, ofertou-o ao Arquivo Nacional Alinio de Salles que lhe confirmou a autenticidade também pelos resultados oficiais publicados no Minas Gerais.
Os líderes desconfiavam da capacidade política do povo, desconfiança que tisna até hoje a mentalidade de nossos dirigentes. Eles consideravam-se pessoalmente responsáveis pelo adiantamento do país. Preferiam a tática de tomar conta do povo, impedindo que o "explorassem" com demagogias, ou temiam que o povo praticasse alguma "asneira". Achavam acertado ditarem-se as soluções políticas de cima para baixo e a participação popular processar-se simbolicamente. A disputa do poder ordenava-se pela trama das personalidades. Não se originará daí a frase atribuída a Octávio Mangabeira segundo a qual "política é conversa"? Firmes no controle da máquina, os dirigentes só perdiam essa vantagem pela perda do poder. Perda condicionada a uma técnica - duplicatas de assembléias, lutas armadas locais, intervenções federais - que a mão forte do Presidente da República decidiria.
Era difícil, portanto, a reforma substancial desse estilo, político pela via das urnas. Pobre de flexibilidade para incorporar ao teor da vida constitucional representativa energias novas, novas posições, novas perspectivas, o sistema enrijeceu entrincheirado num conceito que teimosamente identificava em acontecimentos e opiniões, surgidos fora dos meios oficiais, somente desafios ao exercício da autoridade constituída. A admissibilidade de revisão e reformas anunciava-se em ritmo gradualista tão lento que não se dava conta o situacionismo do real estado da opinião pública. A pré-história da Revolução de 30 toda se situa nesse passado da primeira República.
Circula lembrança saudosista, muito espalhada, dos Congressos Legislativos da República velha, pois argumentam que, se as eleições eram falsas, a representatividade era boa. Em ganhando as eleições mais autenticidade, o nível do Congresso baixou. Até porque as eleições ficaram mais caras.
Ora, antes de 30, o país, material e politicamente menos complexo, era mais fácil de liderar. O sistema das máquinas permitia aos governantes controle seguro de posições e decisões. Podiam escolher, naturalmente dentro do contexto de suas raízes políticas. Atentos à vida local, incluíam na representação nomes consagrados no direito, na literatura, na vida intelectual. Um Coelho Neto, um Gilberto Amado, um Xavier Marques, um Afrânio Peixoto, historiador como Braz do Amaral, um professor como Homero Pires, um homem de Estado como Pandiá Calógeras. Outros nomes ilustres, que coloriam de um traço consagrador a imagem do Congresso e do situacionismo estadual, ocorrem à lembrança: Anibal Freire, Sebastião do Rego Barros, Gastão da Cunha, Coelho Lisboa, Roberto Moreira, Edmundo da Luz Pinto.
Todavia, a presença dessas figuras não modificava o teor político do Congresso, nem desmentia que elas fossem produto das máquinas eleitorais. A ambiência congressual repetia a do sistema todo. Há um episódio curioso. Velho chefe catarinense vindo ao Rio logo depois de 30, aturdido pela confusão daqueles dias, lamentava ao Ministro Luiz Gallotti, então jovem promotor: "Doutor Luiz, foi uma pena a revolução. O Brasil ainda precisava de uns vinte anos de bico de pena".
No atribulado quatriênio do Marechal Hermes da Fonseca, ministro popular do governo Afonso Pena, reorganizador do Exército, sofreu o sistema oligárquico intensa crise interna. Foi o período das "salvações", espécie de cruzada político-militar contra as oligarquias acusadas de nepotismo, de patronato político e favoritismo administrativo. As "salvações" visavam exatamente libertar os Estados daqueles males que manchavam o ideal republicano. Que obteve a cruzada anteoligárquica conduzida por intervenções da força armada e, na Bahia, até a tiros de canhão? Em que teria mudado a qualidade política dos situacionismos estaduais emergentes das "salvações"? "Há, talvez, um estudo crítico a fazer desse período da vida republicana, menos descritivo de episódios e mais analítico de razões e resultados no plano da vida federativa. Desde logo, enfraqueceu-se o respeito reverencial pela autonomia dos Estados nascido do novo regime. A intervenção passou a constituir recurso político de que se usou e abusou. Das administrações estaduais oriundas das "salvações", algumas delas preocuparam-se com a modernização das respectivas capitais, à imagem do que vinha de suceder no Rio de Janeiro.
Na realidade, continuou o espírito oligárquico, porque as máquinas eleitorais, a diplomação cantarolada dos eleitos, o processo de verificação de poderes permaneceram. Eleições verdadeiras, se viessem a acontecer, traziam o perigo de desmanchar as situações de poder alimentadas pelas máquinas. Foi assim ganhando força o pensamento de que reformas políticas só se alcançariam por via extra-legal.
Contudo, o balanço administrativo da chamada República velha longe esteve de negativo. Sanearam-se grandes cidades, delas erradicou-se a febre amarela, condições gerais de sanidade urbana melhoraram. Construíram-se portos e estradas de ferro. Reaparelharam-se Exército e Marinha. Liquidaram-se questões de fronteira. Uma delas era muito séria. Nossa vizinha Argentina disputava área que abrangia praticamente metade do Paraná.
Depois da conflagração de 1914, o surto industrial ganhou impulso. A produção de energia elétrica aumentou notavelmente. Na verdade, o parque industrial montara-se dominantemenle para atender a procura de bens de consumo. Nas indústrias de base, apesar da riqueza em minério de ferro, a usina siderúrgica pioneira de alguma importância - a Belgo Mineira - queimava lenha. Nesse setor, o atraso acumulou-se e até hoje não foi compensado. Em 1930, dispunhamos de onze fornos à lenha com produção de 36 mil toneladas destinadas a necessidades que já somavam 300 mil toneladas.
Sem dúvida, o país progredira. Poderia ter progredido mais no longo consulado da República velha? Certamente. O desenvolvimento da economia capitalista deparava na mentalidade conservadora da burguesia agrária, no muito limitado mercado interno, na baixa capacidade aquisitiva da população, nas deficiências do ensino popular e da saúde pública, graves obstáculos. A economia brasileira não gerava, de suas próprias forças, fatores favoráveis ao progresso capitalista, como seria uma acumulação de renda independente de empréstimos externos.
Esse quadro ampliou-se pela penetração do imperialismo inglês no âmago de nossa economia. Os países desenvolvidos passavam a exportar, além de mercadorias, capitais. Foi todo um processo. Busca de novos mercados, domínio de fontes de matérias-primas, investimentos em países dependentes.
Em 1824, iniciou-se a série de nossos empréstimos externos garantidos pelas rendas aduaneiras, com os quais a monarquia costumeiramente enfrentava déficits orçamentários. Perseverou a República na mesma prática e, em 1908, sob Campos Salles, os ingleses assentiram no primeiro funding-loan consolidador de empréstimos de 1883, 1888, 1889 e 1895 no total de £ 37.735,820, prazo longo de pagamento e garantia especificada da Alfândega do Rio. Novos empréstimos se seguiram e novo funding tem lugar em 1914. É de 1921 o primeiro empréstimo norte-americano, repetido em 1922, destinado este à valorização do café, e, a seguir, os de 26, 27 e o último de 1930.
Em 1931, obrigados a novo funding, segundo o relatório do técnico inglês Niemayer, que andou por aqui fazendo contas, devíamos à Inglaterra £ 110.569,751 e US$ 143.336,998 aos Estados Unidos. Nas palavras do historiador J. F. Normano, "toda a receita ouro do país não era suficiente para fazer face ao serviço da dívida externa".
Esse dinheirão estrangeiro sugou a cambaleante economia brasileira, determinando que, em lugar da atividade produtiva processar-se em função de fatores internos, de necessidades da população, dominantemente subordinou-se a interesses dos monopólios. A barateza da força de trabalho, as riquezas minerais, o consumo potencial atraíram investimentos, cujo objetivo primeiro foi colocar a economia brasileira, fornecedora de matérias-primas, na posição complementar das economias de que tais investimentos se originaram.
O drama do imperialismo jogava em nosso país uma de suas partidas. O imperialismo opera em termos dialéticos de sua própria atividade. Para ganhar, é de seu negócio ajudar a construir. Se não estimular a economia, se não aparelhar de novas técnicas o trabalho, se não fomentar o espírito de iniciativa, se não financiar portos, estradas, serviços urbanos, como retirar da área de sua influência resultados compensadores?
O imperialismo é desnacionalizante e corruptor. Mas, gera fatores que permitem, primeiro conviver criticamente com a dependência; depois, aliviar a dependência, abrindo espaço à colaboração reciproca e já não tanto subordinante.
A evasão de rendas produzidas pelo nosso trabalho era coisa antiga, reconhecida e proclamada. Rui Barbosa censurou "o monopólio de exportação de nossos produtos exercida privativamente pelas casas estrangeiras filiadas a essas matrizes situadas nos mercados europeus e americanos, os quais exploram o comércio dos frutos de nossa cultura a preços ditados pelo arbítrio dos interesses de uma especulação sem corretivos".
Conviver com capital estrangeiro exige esquema legal e político, coibitivo da mão livre nas manobras de sua conveniência. Na primeira República, esse esquema legal e político não existiu, nem praticamente se falava dele. No fundo, nossa própria ilustração voltada para fontes peregrinas facilitava o alheiamento do pensamento nacional ao problema do imperialismo. A crise da República velha decorreu toda formalmente em termos políticos internos. Escondia, sem dúvida, o mal estar econômico e financeiro, que quebrava a dura crosta da legalidade oligárquica através de perturbações e erupções de natureza militar.
Essas erupções numerosas, iniciaram-se num espírito nacional, pela dos 18 do Forte de Copacabana. Uma delas teve importância singular, a de julho de 1924, que redundou na ocupação da cidade de São Paulo. Que reivindicava? Voto secreto e censo alto, justiça gratuita e reforma radical no sistema de nomeação e recrutamento de magistrados, reforma de métodos da educação pública de modo que à escola primária competisse a formação do caráter e da mentalidade do jovem brasileiro. No mais, externava repúdio "a governos de nepotismo, de advocacia administrativa e de incompetência técnica na alta administração". Não desfraldava bandeira de reformismo social.
Outro levante foi o de outubro de 1924, no Rio Grande, chefiado por Honório de Lemos. O Manifesto de São Borja batia-se por medidas políticas e administrativas, voto secreto, unificação do regime eleitoral, do ensino e do fisco.
A famosa Coluna de Miguel Costa - Luiz Carlos Prestes, que percorreu boa parte do interior, de 1925 a fevereiro de 1927, declarava "como limite mínimo de suas aspirações liberais", a revogação da lei de imprensa, adoção do voto secreto, anistia, suspensão do estado de sítio.
Nenhum propósito, pelo menos ostensivo, de transformação social animava esses rebeldes contestadores de um sistema político combatido originariamente por desamparado de autenticidade popular. O voto secreto tinha honras de reivindicação básica. O lema da Aliança - representação e justiça - não punha em causa a estrutura dominante.
Quem jogou e propagou no cenário político, aberto no país pela vitória da revolução, o pensamento de revolução social foi Luiz Carlos Prestes. É de maio de 1930 o famoso Manifesto de rompimento com o tenentismo. Dizia ele: "a revolução brasileira não pode ser feita com o programa da Aliança Liberal. Uma simples mudança de homens, o voto secreto, promessas de liberdade eleitoral, de honestidade administrativa, de respeito à Constituição, de moeda estável e outras panacéias nada resolvem, nem podem de maneira alguma interessar à grande maioria de nossa população, sem o apoio da qual qualquer revolução que se faça terá o caráter de uma simples luta entre as oligarquias dominantes. Não nos enganemos. Somos governados por uma minoria que, proprietária das fazendas e latifúndios e senhora dos meios de produção e apoiada nos imperialismos estrangeiros que nos exploram e nos dividem, só será dominada pela verdadeira insurreição generalizada, pelo levantamento consciente das mais vastas massas de nossas populações dos sertões e das cidades".
Surgia um revolucionário que se propunha a quebrar o padrão da estrutura econômica e social do país. Os indicadores teóricos do radicalismo prestista reivindicavam a transformação fundamental da antiga ordem.
Juarez Távora respondeu a Prestes duas vezes e, depois de sugerir que, pelo menos, antes de publicar, submetesse o Manifesto aos antigos camaradas, contestou-lhe a nova posição. Segundo Juarez, o remédio prático para os nossos males seria "nacionalizar a constituição - isto é, torná-la capaz de ser bem executada pela elite deficiente que possuímos", Repelia a posição ideológica do antigo companheiro: "O fato positivo, certo, incontestável, é que essa repugnância do nosso povo pelo comunismo, existe". Colocava-se "contra a adoção, entre nós, do regime soviético, que você preconiza".
Informado que "a maioria de nossos companheiros discorda de minhas idéias", admitiu Prestes sua exclusão de entre os antigos revolucionários de 22 e 24. Prestes jogava fora, desse modo, as altas chances de uma carreira de revolucionário aliancista. Escrevia-lhe Juarez: "Você era, então, o chefe sabido e prestigiado da revolução; e, em torno de seu nome, nós, seus auxiliares de imediata confiança, estávamos preparando um movimento de larga envergadura, cuja explosão era esperada e cujos intuitos eu, pelo menos, nunca suspeitei que fossem a implantação, entre nós, de um regime político baseado em conselhos de operários e soldados".
Luiz Carlos Prestes viajou, então, à Rússia onde trabalhou e se capacitou na teologia da nova opção política escolhida. Dois anos depois, em 1934, ingressa no Partido Comunista Brasileiro a cuja chefia não demora a alçar-se. Que tê-lo-ia conduzido a tal engajamento? A força moral da convicção. Estava do outro lado o sucesso. Poderia ter fingido? Esse estratagema, com certeza, lhe repugnaria. Abrasado por uma fé política, pertencia ao número dos predestinados que, além de acreditar, querem nutrir da realidade da conduta a própria fé. São significativos. Mesmo quando erram, deixam exemplo.
Vencedora a revolução, abriu-se vivo debate ideológico mais confuso e diluído que arregimentador, posições conflitantes, rivalidades que faziam as personalidades subir e descer ao sabor dos acontecimentos. Problemas internos e externos não os conduzia um pensamento político cuja coerência se alicerçasse em corrente expressiva e organizada da opinião pública. Muito palpite, muita improvisação, muita sede pessoal de poder destituída da capacidade de tomar corpo e forma em arregimentação partidária de rumos definidos.
Em São Paulo, a "Legião Revolucionária" lançou, em março de 31, seu Programa Partidário num Manifesto muito político e muito literário em que se podiam distinguir traços das posições em que, a partir da Semana de Arte Moderna de 22, a opção nacionalista se desenvolvera. Ideologicamente, o Manifesto insurgia-se contra todos os imperialismos, apelidava a República de 89 de República dos industriais e grandes latifundiários, dos trustes e dos sindicatos (sindicato aqui significava agremiação de interesses colonizadores estrangeiros). Concluía, depois de afirmar a unidade da pátria, de abordar o problema da raça, citando o mexicano José de Vasconcelos, o sociólogo da "quinta raça", pela necessidade de situar o Brasil nos problemas do mundo. Estávamos afogados em instituições, leis, medidas e providências copiadas de fora, inaclimatáveis no país. Diagnosticava a origem do mal: " mal do brasileiro é saber demais: saber tudo, menos a sua realidade".
As duas primeiras assinaturas pertenciam a Miguel Costa e João de Mendonça Lima. Lá estava a de Plínio Salgado, provavelmente o redator. A Legião não se entrosou com a opinião paulista, parecia vinda de fora. Era tida como esquerdista no círculo dos moderados e comunista entre conservadores. São Paulo queria mudar de governantes, basicamente, embora os novos candidatos saíssem da mesma dominante classe social. A mais próspera unidade federativa começou a sentir-se objeto de disputas entre prestígios revolucionários pouco afeitos aos interesses de sua economia abalada pela crise do café. Explodiu a revolução de 32, reivindicadora da constitucionalização do país.
No Rio, o órgão político mais falado denominava-se Clube 3 de Outubro, e destinava-se a "congregar e harmonizar os cooperadores de outubro na obra urgente de consolidar a revolução", como se proclamava, após a elaboração de novos estatutos, no Manifesto de abril de 33. A ideologia do Clube frisava sua quota moralizante: "o prometido saneamento da Pátria".
Ele teve bem definidos dois planos de atividade: um doutrinário, outro político-prático. No primeiro externou idéias, reivindicações programáticas, tudo animado de um doutrinarismo perfeccionista em que, colocando-se "como fiel intérprete da esquerda revolucionária e das massas populares", pregava e sugeria posições e medidas administrativas e constitucionais. Entre estas, aprovadas pelo Congresso Revolucionário de 1932 convocado pelo Clube, figuravam o governo parlamentar, eleição indireta por 6 anos do Presidente da República, sistema bicameral - a Câmara eleita por sufrágio universal direto e outra eleita pelas classes profissionais mediante censo indireto, criação do Conselho Federal incumbido de superintender a vida econômica, financeira e administrativa da União e dos Estados.
Além das teses políticas, enumeravam-se teses sociais entre elas a do "júri constituído por um médico, um jurista e cinco .juizes de fato", e teses econômicas como "nacionalização das grandes quedas d'água e jazidas minerais", estímulo ao desenvolvimento da siderurgia e à exploração de minas de petróleo. No conjunto, as teses econômicas do Congresso revolucionário possuíam sentido ideológico adequado às exigências do desenvolvimento nacional.
Desse Congresso revolucionário nasceu a idéia da formação de um partido nacional e, em dezembro de 1932, fundou-se o Partido Socialista Brasileiro pela congregação dos "elementos que animaram e realizaram a insurreição de 1930". Realmente, a esse Partido aderiram a Legião 5 de Julho, a Legião Paranaense, a Ação Integralista Brasileira, o Partido Liberal Socialista de São Paulo, o Partido Popular Progressista e o Clube 3 de Outubro. Os integralistas, discordantes de certas teses, retiram-se logo em seguida. A seu turno, o Partido não se integrou, permanecerá até morrer mera aspiração. No breve manifesto em que se anuncia, enfatizou que "sindicalização e representação profissional de classes no Parlamento são, portanto, as duas teses fundamentais que apresentamos como bandeira e como base ao seguro encaminhamento dos demais problemas que tanto nos afligem".
Do Clube 3 de Outubro é lícito afirmar que, de 33 em diante, vai definhando mais do que vivendo. No Manifesto de abril de 33 lançou uma sonda crítica no relacionamento de associados com o poder: "Se nem todos os seus membros souberam manter imperturbável o espírito de sacrifício, se a vertigem das alturas desvairou a muito barro humano", do Clube ninguém esperaria senão fidelidade à revolução brasileira. A mobilização pela Constituinte encarnada na Frente Única paulista só lhe arrancou crítica e reprovação. Uma Constituição não resolverá as dificuldades enraizadas "na desorganização social imperante em todo o universo", porque "o mal tem raízes mais profundas, ele vem da crise que assoberbou o sistema capitalista". Finalmente, o Clube dissolveu-se em abril de 1935.
Esquerda e direita acabaram absorvendo-se, ao desdobrar do debate político, na Ação Integralista e na Aliança Nacional Libertadora, os núcleos ideológicos organizados que sobreviveram e condensaram as duas filosofias. O integralismo captava a confiança de meios militares, clericais e capitalistas como barreira ao esquerdismo.
Nesse contexto, surge a Aliança. O Partido Comunista estava dentro dela, embora a Aliança não fosse obra exclusiva dele. Por si só, o P.C. não teria capacidade de fundar a Aliança. Se seu presidente de honra foi Prestes, seu presidente executivo era o comandante Hercolino Cascardo, aliancista puro. Cresceu a Aliança na cena política, bem sucedida na conquista do favor público, provocando vivo receio nos círculos oficiais e conservadores, que, entretanto, não se consideravam ameaçados pelo integralismo. Ao desdobrar perante o povo seu ideário reivindicante de reforma agrária, cancelamento da dívida externa, nacionalização de empresas estrangeiras, a Aliança entrou a perturbar o relacionamento social e político dominante. O governo popular revolucionário, que advogava, prometia respeitar a propriedade privada, o controle privado das fábricas e empresas nacionais, afastando a socialização da produção industrial e agrícola. Desapropriaria, contudo, e nacionalizaria as empresas estrangeiras que dominassem pontos estratégicos da produção nacional, nacionalizaria os bancos, lutaria pela legislação social. No campo, respeitaria aqueles não praticantes da "exploração feudal".
Desde que se propunha programa de Governo, revestia-se a Aliança do caráter de partido, o que, de imediato, forçava uma ambigüidade de situação, pois dentro dela operava o Partido Comunista. Essa ambigüidade comportava o perigo de converter-se a Aliança em massa de manobra dos comunistas. O grosso da Aliança insurger-se-ia contra tal eventualidade e, tomando posição nesse sentido, seu presidente, o comandante Hercolino Cascardo, decidiu transformá-la com feição própria, independente, em agremiação partidária. Decorreu daí luta interna pelo controle da direção e, coincidentemente, em palavras de Cascardo, "a obra de provocação para lhe determinar o fechamento".
O crescimento da Aliança espalhara milhares de núcleos e, definitivamente, nos meios oficiais e conservadores, firmou-se sua condenação. A primeira medida defensiva e punitiva foi a Lei de Segurança sancionada a 4 de abril. Reagiu a Aliança. Em 5 de julho de 1935, no comício comemorativo do levante do Forte de Copacabana, Prestes discursou e lançou a palavra provocativa: "Todo poder à Aliança"! Respondeu o Governo decretando-lhe a 10 de Julho, o fechamento por seis meses.
lniciou-se, então, o obscuro processo conspirativo que desfecharia no levante militar do Rio, Natal e Recife. É no correr de abril, vindo de Buenos Aires, onde iniciara sua formação marxista, que Prestes chega ao Rio. A partir daí a presença da Aliança ganhou contundência objetiva. A Prestes deveu-se seguramente a parte efetiva no aliciamento de militares. O fechamento da Aliança trancara a via legal a movimento que respondia a anseios, mesmo vagos, mas poderosos, na revisão da ordem econômica e social. O caminho do levante, por mais perigoso, exigia detida reflexão da conjuntura. Pesava sobre ele a possibilidade de desfechos que o amesquinhariam.
Encontrando-se há muito fora do país, faltou cabeça política a Prestes na liderança desse momento histórico. Porque depois do fechamento não encaminhar a substância popular da Aliança a diferente posicionamento, já que o essencial era reforçar a luta antifascista e refreiar a tendência governamental em direção ao autoritarismo? A concepção de frentes populares excluía o apelo a golpes de força.
A vulnerabilidade da frente popular estava exatamente no perigo de golpes lhe desmancharem a unidade pela superposição de um segmento sobre os demais. Além disso, vigorava a Constituição de 34, abrira-se uma via à atividade pluralista da vida política, a agitação reinante não revelava feição caótica e o próprio fechamento a Aliança poderia absorvê-lo. Era mais avisado tentá-lo do que partir para o golpe.
Ficou perdido um detalhe curioso. Conta Hélio Silva no volume do Ciclo de Vargas dedicado a 35: "Às vésperas do levante, o cel. Muniz de Farias veio ao Rio receber instruções. E as levou no sentido de que não fizessem o movimento. Quando o herói de 1930 chegou a Recife já começara a rebelião em Natal".
Eu não sei, ninguém saberá jamais toda a trama interna urdida em torno do levante de 35. Incontestavelmente, a avaliação da conjuntura, dos prós e contras, abusou da fantasia. Esse levantamento fantasioso quem sabe se não motivou a presença no Rio de categorizados ativistas do Partido como Harry Berger, Leon Vallée e Rodolfo Ghioldi? Essa presença denunciava extravagâncias táticas difíceis de serem tomadas a sério. Por que vieram? Para controle da imaturidade do Partido?
Hélio Silva recorda o primeiro depoimento de Berger. Trazia a missão especial de estabelecer a ligação do Partido com "a grande massa, isto é, o proletariado, com os camponeses e com a pequena burguesia", missão que lhe entupia a cabeça sectária de entes de razão e só deixou memória através da negra odisséia carcerária a que o submeteram. Leon Vallée, encarregado do financiamento da revolta, sumiu. Ghioldi, conheci-o na prisão. Professor secundário, secretário geral do Partido argentino, se a comparação entre ele e o secretário geral do Partido brasileiro, o pobre Bonfim, permite concluir-se alguma coisa é que o nível de capacitação dos comunistas argentinos superava enormemente o dos brasileiros.
Afinal, a imaturidade culminou nos levantes do Rio, Recife e Natal. Larga que fosse a trama conluiada, não passaria de insignificante detalhe em face das forças, sentimentos e recursos do país. O golpismo significava falsa saída para uma situação que pedia tratamento político diferente do tentado por explosão de caudilhismo militar.
Erro profundo, o levante de 35. Envenenou a ambiência política não se sabe até quando. Reduziu o conceito de segurança nacional à segurança contra o comunismo. À feição do baixo pragmatismo das jogadas políticas, erigiu o fantasma do comunismo em pretexto para manobras autoritárias. A acusação de comunista passou a ecoar como a de feiticeiro na Idade Média. A suspeita ideológica intoxicou o comportamento político governamental. O atestado de ideologia converteu-se em complemento da cidadania prestante. Todo pensamento social caiu sob a suspeitosa vigilância de órgãos especializados de investigação. Ora, o pensamento comunista organizado e militante, realidade do universo ideológico contemporâneo, força a política a conviver com ele. Terá de fazê-lo de dois modos: ou pela repressão pura e simples ou pelo enquadramento na legislação eleitoral.
O levante despertou indignação, perplexidade. Espantou a violência programada de que se revestiu, embora a acusação tantas vezes repetida de oficiais assassinados quando dormiam, jamais tenha sido comprovada. Certamente, sobressaltou a natureza da motivação ideológica, a possibilidade de sua irradiação pelas corporações militares da América Latina, onde sempre se temeu, por força da precariedade das condições reinantes, que o ânimo popular se incendeie aquecido pelas reivindicações do reformismo social. Visão catastrófica baseada mais na má consciência que na realidade.
Preço alto pagaram os comunistas, caro pagou o pensamento democrático pelo erro cometido. Na extinção dos mandatos comunistas no Congresso, que aí se comportavam normalmente, pesou basicamente o levante de 35, desdobrado num horror ideológico sincero, mas cultivado, promovido até o irracionalismo.
Começara a nascer no golpe de 35 a Constituição do Estado Novo, declarou Getúlio Vargas. Em mãos da reação caíra oportunidade de ouro. O cínico estado de guerra em face da "emergência da insurreição armada" proporcionaria a preparação do Estado Novo, proclamado em noite de tranqüilas efusões no Palácio Guanabara, um show pelo microfone, pois só havia rádio, findo o qual, de sua iniciativa, o Presidente saiu a jantar na Embaixada da Argentina. Criou-se a justiça especial do Tribunal de Segurança. A censura abateu-se sobre a nação.
Pedro Ernesto Baptista, antes Prefeito nomeado, agora eleito, logo se viu discriminado. Embora resguardando o cargo, acompanhara com simpatia a Aliança Nacional Libertadora. Que outra atitude podia-se esperar de político de seus sentimentos e de seu passado? Estava marcado. Provavelmente, ocorreu-lhe a ilusão de manter-se no cargo. Era vasto seu relacionamento na área política oficial.
Certo, havia, antes de tudo, um sacrifício ritual a executar: o afastamento de Anísio Teixeira. Nesse ano de 35, ele estivera sob o fogo concentrado do clero e da liderança católica na discussão sobre a escola pública e na campanha pela Universidade do Distrito Federal. Apesar de tôdas as pressões, o Prefeito mantivera-o por quatro anos à frente da Secretaria da Educação e quem viveu aquele tempo sabe como isto pesa a favor de Pedro Ernesto. O sacrifício de Anísio correspondia à prioridade da política clerical longamente mobilizada contra sua presença na liderança do sistema educativo carioca. No contexto dos acontecimentos, pura ilusão pensar que esse sacrifício salvaria o Prefeito. Assoalharam que Anísio era conselheiro político de Pedro Ernesto. Nos domínios da Secretaria da Educação jamais se abrigou qualquer atitude participante de conspiração golpista. Pedro Ernesto jamais consultou Anísio sobre suas preocupações políticas. Nunca ocorreu a Anísio a iniciativa de debater com ele problemas de organização política. Havia uma Constituição em vigor e conduzir-se dentro de seus parâmetros era o caminho que a todos enlaçaria no exercício do poder. Em Anísio nada estaria mais longe de sua concepção da vida pública que a cumplicidade conspirativa.
Do encontro de Anísio com o Prefeito resultaram as duas cartas a seguir transcritas.
"Ex. sr. Prefeito:
Pela conversa que tive, hontem, com vossa excellencia, pude perceber que a minha permanência na Secretaria de Educação e Cultura do Districto Federal constituia embaraço político para o governo de vossa excellencia. Reiterei, immediatamente, o meu pedido de demissão, que esteve sempre formulado, porque nunca occupei incondicionalmente esse cargo, nem nenhum outro, mas o exerci, como os demais, em caracter rigorosamente technico, subordinando a minha permanência nelles à possibilidade de realizar os programmas que a minha consciencia profissional houvesse traçado.
Renovo a declaração, porque não me é possível acceitar agora a minha exoneração sem a ressalva de que ella não envolve, de modo algum, a confissão, que se poderia suppôr implicita, de participação, por qualquer modo, nos ultimos movimentos de insurreição occorridos no paiz. Não sendo político e sim educador, sou, por doutrina, adverso a movimentos de violencia, cuja efficacia contesto e sempre contestei. Toda a minha obra, de pensamento e de acção, ahi está para ser examinada e investigada, exame e investigação que solicito, para que se lhe descubram outras tendencias e outra significação, senão as de reconhecer que o progresso entre os homens provém de uma acção intelligente e energica, mas pacifica.
Sou, por convicção, contrario a essa tragica confiança na violencia que se vem espalhando no mundo, em virtude de um conflicto de interesses que só póde ser resolvido, a meu ver, pela educação, no sentido largo do termo. Por isso mesmo, constrange-me, nesta hora, ver suspeitada a minha acção de educador e toda a obra de esforço e sacrifício realizada no Districto Federal, obra que possuia a intenção profunda e permanente de indicar o rumo a seguir para se resolverem as tremendas perplexidades do momento historico que vivemos.
Lavro contra tal suspeição o meu protesto mais vehemente, parecendo-me que tem ella mais largo alcance que a minha pessoa, porque importaria em não se reconhecer que progredir por educação é exactamente o modo adequado de se evitarem as revoluções. Se, porém, os educadores, os que descrêm da violencia e acreditam que só as idéias e o seu livre cultivo e debate, é que operam, pacificamente, as transformações necessarias, se até esses são supeitados e feridos e malsinados nos seus esforços - que outra alternativa se abre para a pacificação e conciliação dos espiritos?
Conservo, em meio de toda a confusão momentanea, as minhas convicções democraticas, as mesmas que dirigiram e orientaram todo o meu esforço, em quatro annos de trabalhos e lutas incessantes, pelo progresso educativo do Districto Federal, e reivindico, mais uma vez, para essa obra que é do magistério do Districto Federal, e não somente minha, o seu caracter absolutamente republicano e constitucional e a sua intransigente imparcialidade democratica e doutrinaria.
Cumpre-me, neste momento, exmo. sr. Prefeito, apresentar a vossa excellencia a expressão do meu constante reconhecimento pelas attenções e, sobretudo, pela resistencia offerecida por vossa excellencia a todos que se oppuzeram, por ignorancia ou má fé, ao desenvolvimento dessa obra, até o momento actual. Possam outros, com mais intelligencia e valor, retomal-a e conduzil-a, pelos mesmos rumos liberaes e republicanos, para o seu constante progresso.
Apresento a vossa excellencia as expressões de meu devido reconhecimento e os meus votos pela sua felicidade pessoal e a felicidade do seu governo. - (a.) Anísio S. Teixeira".
"Rio de Janeiro, 2 de Dezembro de 1935.
Meu prezado amigo Dr. Anísio Teixeira - Cordiaes abraços.
No momento em que me vejo privado da sua collaboração em meu governo, após quatro annos de uma dedicação inexcedivel, cumpre-me deixar bem claro o alto apreço em que o tenho como educador exemplar e culto, como cidadão probo e patriota, como administrador de segura visão e de rara envergadura. Dou o meu testemunho da veracidade de quanto affirma em sua carta, pois do nosso convivio pude perceber que o Secretario de Educação e Cultura do Districto Federal foi sempre adverso aos movimentos de violencias e foi sempre um apaixonado apologista da verdadeira democracia. Sou suspeito para fazer o elogio da sua obra e das suas fecundas realizações. Mas o povo da Capital da Republica, na sua serenidade e na sua imparcialidade, já julgou a sua obra e a sua personalidade, sentindo e apreciando o seu grande esforço pelo progresso educativo do Districto Federal. Homens de responsabilidade e de projecção no continente sul-americano, altas autoridades de governo, não puderam occultar o enthusiasmo e a admiração por tudo quanto viram e observaram no sector da administração entregue à sua incontestada competencia.
Ainda recentemente uma embaixada constituida de professores e de technicos de renome, examinando detida e minuciosamente a Secretaria de Educação e Cultura e demorando-se nas visitas às escolas e aos diversos departamentos, proferiu um julgamento sereno e autorizado, confessando de publico a magnífica impressão recebida. Esses testemunhos eloqüentes e decisivos valem por uma consagração e o collocam na posição de credor da benemerencia do povo carioca. Creio firmemente na justiça dos homens de bôa fé e tenho a certeza que ella não faltará no julgamento da sua obra de pensamento e de acção.
Apresentando os meus agradecimentos pela sua magnifica e brilhante collaboração, faço os melhores votos pela sua felicidade pessoal. Do amigo e patricio muito grato - (a.) Pedro Ernesto".
Logo sentiu Anísio a impossibilidade de permanecer no Rio. Por cerca de um mês, obteve asilo familiar em casa do dr. Carlos Sá, professor do Instituto de Educação, filho do dr. Francisco Sá, senador por Minas, ministro da Viação no governo do Presidente Arthur Bernardes. Agravando-se a caça aos bodes expiatórios em quem a embriaguez da vitória se desforra das impraticabilidades e frustrações do entusiasmo revolucionário, decidiu Anísio abrigar-se no sertão baiano. Em casa do cunhado, Cel. Francisco Pires de Oliveira, casado com sua irmã e madrinha Evangelina, residiu até meados de 37, na fazenda Gurutuba, município de ltuassú. Aí traduziu livros de H. G. Wells e William Durant para a Editora Nacional de seu amigo Octales Marcondes.
Aberta a campanha presidencial de 1937, viajou para Salvador, onde lhe nasceu a primeira filha, e para onde também se mudava o casal Francisco Pires. Sobrevém o golpe de 10 de novembro. Anísio regressa ao sertão, abrigando-se em Guanambi, município vizinho de Caetité. Meses depois, passa pelo Rio, hospeda-se com Nelson Teixeira na Urca, onde foram realmente numerosas as pessoas que o procuraram.
Do Rio segue para São Paulo a trabalhar com Octalles, a grande figura da Editora Nacional, onde se ocupa em traduzir e selecionar livros merecedores de publicação. Na Editora havia um lugar permanentemente à disposição de Anísio, que o ocupou por algumas vezes. Construtor de uma das maiores e mais prósperas editoras nacionais, à qual se deve, entre outras iniciativas, a criação da Brasiliana, Octalles Marcondes Ferreira dedicava-lhe amizade, admiração e respeito.
De família aumentada, voltou a Salvador onde se associa ao irmão Jayme na organização de uma firma, a Simel, importadora de material ferroviário e exportadora de manganês. A guerra favoreceu o negócio. Estava-se aí pelas alturas de 1940 e, dessa data até 1945, Anísio ocupou-se em atividades comerciais com o mesmo fervor e dedicação com que dirigira serviços de ensino. Reiniciaram-se as minerações de Miguel Calmon, nordeste da Bahia, controladas por dois franceses, Delport e Debrutelles. Em Santo Antônio de Jesus, cidade ao longo da ferrovia de Nazaré à Amargosa, abriram-se as jazidas da Companhia Minas da Bahia. Áreas de pesquisas de calcáreo proveniente de conchas submarinas, defronte da ilha de Maré no interior da baía de Todos os Santos, requereu-as Anísio para abastecimento da fábrica de cimento Aratú, em Salvador. Nessas atividades ganhou algum dinheiro.
Surgiu-lhe nessa altura a perspectiva de obter do governo do Amapá concessão de pesquisa de minério de manganês da Serra do Navio. Governador do Amapá era Janary Nunes. Seu irmão Coracy Nunes, deputado, relacionado aos Teixeiras, apontava a possibilidade da Simel, já experiente no negócio, iniciar-se na exploração da jazida. Um americano de Michigan, Linton, explorador de minério de cromo em Miguel Calmon, entre Bonfim e Jacobina, interessou certo engenheiro canadense no estudo das jazidas da Serra do Navio e a conclusão confirmava a boa qualidade da matéria-prima.
Ao termo da guerra em 1945, as atividades mineradoras perderam o ritmo. Em 1946, Paulo Carneiro solicitou a colaboração de Anísio nos serviços de implantação da Unesco, onde ele, por mais de ano, exerceu as funções de Conselheiro para o Ensino Superior. A vida em Londres, sem calefação, refazendo-se da guerra, era dura.
Em 1947, viaja ao Amapá. O manganês da Serra do Navio o atraía. Tratava-se de viagem meramente exploratória conducente a um plano a ser articulado, pois a Simel não dispunha de condições financeiras exigidas pelo negócio. Aí recebeu o telegrama de Octavio Mangabeira, que acabava de empossar-se, convidando-o para Secretário da Educação. Aceitou. O país, iluminado pelo facho da vitória democrática, saía do Túnel do estadonovista. Achou de seu dever contribuir.