Posição Política
NíSIO TEIXEIRA nunca militou em partidos. Fez durante certo tempo política sertaneja, coadjuvando a liderança paterna. Alimentou-se da atmosfera republicana em que se inspiraram os fundamentos do novo regime: soberania do povo, laicidade do Estado, federação política, direitos e garantias do cidadão. Ouvido do pai, guardou "como encerrando todo o código da dignidade humana" o conselho: "Meu filho não se obedece a homem algum, obedece-se à lei".
Na verdade, o grupo de moços baianos que, nos anos da década de 20, iniciou a vida pública com Anísio, foi muito trabalhado pelas inquietações, dúvidas e perspectivas daquele após-guerra. Como conduzir, como governar eram questões que empolgavam. O valor da liberdade, o senso da autoridade, a imagem do país eram tópicos predominantes em nossas leituras e conversas. Daquele grupo não me recordo de alguém que haja sentado praça no integralismo. Éramos racionalistas demais para nos sujeitarmos a chefias carismáticas.
A imagem da democracia encontrada nos Estados Unidos foi-lhe inspiradora. Nas fontes americanas, escreveu, restaurou a confiança "nesses familiares ideais democráticos de liberdade, igualdade e fraternidade, que, desacompanhados de realizações práticas, "nossa eloqüente demagogia latina" estivera a pique de os entendiar.
No fundo, ele concebe democracia antes como concepção humanista do que como critério de organização política. É medida para julgamento das instituições que, em seu curso evolutivo, apresentem maior ou menor possibilidade de participação dos indivíduos conviventes, sem nenhuma distinção, nos interesses comuns gerados pela cooperação no trabalho. A definição de Kilpatrick exprimia, a seu sentir, o fundamental na concepção democrática: respeito pelo homem. É esse "ato de fé no homem comum" propiciatório de nova base para a direção da sociedade que Anísio identifica, entre manchas, imperfeições e incertezas, no devir da idéia democrática nos Estados Unidos. Essa idéia percorria ali a aventura de sua maturação em um mundo permeado pelo espírito de igualdade, otimismo e iniciativa, espírito que gerou, escreveu Anísio, este princípio de idealismo singelo e formidável: "todo homem tem um direito natural à vida, à liberdade e à conquista da felicidade". Nesse lúcido, nesse enorme "virginal humanismo" cresceu a América, concluía. Definitivamente, desenvolveu-se ali uma sociedade diferente da européia por mais que a estrutura material acabasse consolidando pelo mesmo padrão capitalista a sociedade americana. Todavia, não secaram as fontes de idealismo, de iniciativa responsável, de circulação social liberta de preconceitos aristocráticos. País continente, fruto da revolução industrial, embora sem identidade racial nem identidade de tradições, já sofreu vitoriosamente unido a ordália da guerra da independência, de uma guerra civil de quatro anos e de duas conflagrações mundiais. Será lícito, a essa altura, perguntar se a unidade nacional americana é uma causa concluída ou ainda aberta?
Os Estados Unidos representam também imensa empresa comercial e, à esta luz, indagava Anísio: "Como explicar, por exemplo, o fato de que o "grande comércio" é o verdadeiro poder oculto ou ostensivo que governa a república norte-americana?" Anísio tinha consciência dos aspectos contrastantes do grande país. Afigurava-se-lhe que a originalidade dessa grandeza estava no sistema educativo ali movido pela confiança na capacidade do homem comum em abrir por seu próprio esforço, num sistema de iguais oportunidades, lugar para a abundância e a liberdade. Isto era novo na América e no mundo. Anísio respirou fundo o otimismo educacional americano, dimensão nova do otimismo científico intelectualmente aristocrático dos europeus.
Na visão total de Anísio, os Estados Unidos representam muito mais que "a maior fábrica do mundo" ou "mero triunfo espetacular da máquina" e sua decantada tendência a esmagar o indivíduo. Aquilo tudo era mais produto de um método culminante na tendência de que os valores devem ser aferidos pelos resultados, que de uma doutrina. Atrás dessa idéia da pessoa humana esmagada pela invasão da máquina, ele lobrigava a nostalgia da velha civilização que, originária de uma limitada produção para certo consumo selecionado, exaltava o triunfo de alguns indivíduos por ela privilegiados. Hoje, porém, era este seu argumento, a civilização não se destina ao indivíduo excepcional mas a todos os indivíduos.
O mesmo dirá da expansão industrial, do industrialismo como chamava, que, constituindo estádio necessário à participação geral no trabalho produtivo, deflagrará o processo de integração social pelos laços de interdependência anunciadores da "grande sociedade". Ao público, ao povo da "grande sociedade" caberá a tarefa de reconstruir o Estado e de libertar a forma democrática de vida das oligarquias comprometedoras de seu humanismo.
Na verdade, a era social moderna nasceu das invenções industriais e, com ela, a concepção do homem dotado de direitos "naturais", unidade básica da organização política. A Revolução Francesa visava mais que mudar o governo, visava transformar a sociedade. Urgia a dissolução dos costumes feudais em que governo, igreja, classes e corporações determinavam tiranicamente a posição do indivíduo. Pelo sufrágio universal, continua Anísio, o cidadão escolhia livremente os governos. Em economia os reformadores descobriram as "leis naturais" em contraposição às "leis artificiais" do Estado. Os reformadores eram, porém, menos radicais do que imaginavam, prosseguia o raciocínio anisiano. Instituições como propriedade e família continuaram erguidas à categoria privilegiada de "naturais".
Atacou-se e defendeu-se com furor a democracia política. Ora, observou Anísio, uma das particularidades das teorias é criar amigos e inimigos, como se tratassem de interesses a defender e não de fatos a explicar. Os adversários temiam que a democracia política terminasse em anarquia com a invasão dos "instintos predatórios da populaça". Mas a idéia da democracia continuou viva e deter-lhe a marcha seria deter, imaginava Anísio, a marcha das estrelas. Todavia, o sufrágio universal não dava conta das questões da sociedade contemporânea. Esta a razão pela qual as formas revestidas pelo Estado, e por intermédio das quais funciona, se alteram.
Praticamente, Anísio chegava à conclusão que permanente no conceito de Estado é a autoridade, o controle do uso legal da força. Restaria o delicado problema de como organizar, segundo sugeria Walter Lippmann, um serviço de inteligência na máquina política dos governos. Serviço que não podendo ser absorvido pela opinião pública, teria de encontrar canais por onde alimentasse a racionalidade da administração. Na educação do povo, assim esperava Anísio, estaria a base desse serviço.
Falando aos concluintes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia em 1967, numa oração denominada "A longa revolução de nosso tempo", discorreu Anísio sobre o que representou a modificação operada pelo surto democrático e industrial. Verdadeiramente o que aconteceu foi a revolução do saber e do poder humano sobre as condições materiais de existência. Reforçou-se a luta pela Justiça Social na nova estrutura, cujo imenso grau de riqueza concentrada sob formas maciças de urbanização, dotada de meios de comunicação impessoais e extensos, produziu uma sociedade de massa, civilização de massa, homem de massa, comunicação de massa. Norteado pelos processos do método científico, desenvolveu o industrialismo extraordinária capacitação organizatória, gerando um coletivismo que apenas se disfarça nas formas de um capitalismo homogeneizante, porém ao mesmo tempo impessoal e insuscetível de fazer-se consciente, ao passo que os sistemas políticos se atrasavam ou não acompanhavam as transformações ocorridas.
Humanismo democrático e humanismo socialista coincidem no pensamento político de Anísio. O segundo gerou, na esteira do desenvolvimento científico e industrial moderno, as grandes correntes utópicas sobre a organização social e econômica. Entretanto, os movimentos ideológicos sucessivos ao pensamento utópico, a este deformaram e inquinaram de inexeqüível e irrealista.
Na oração de paraninfo aos licenciados e bacharelandos da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1957, destacou Anísio o contraste entre pensamento utópico e pensamento ideológico, sem dúvida ponto importante e definidor no seu ideário político.
Ele tomou de David Riesman, publicista americano, os conceitos de utopia e ideologia. Utopia, define Riesman "como conjunto de crenças racionais, de interesse no fim de contas da pessoa que as alimenta, numa realidade potencial embora não existente; tais crenças não devem violar nada que saibamos sobre a natureza, inclusive a natureza humana, embora possam extrapolar a presente tecnologia e devam transcender a presente organização social". Já ideologia ou pensamento ideológico caracteriza-se como "sistema irracional de crenças, alheias no fundo ao interesse da pessoa que as aceita, mas a que esta pessoa adere sob a influência de algum grupo em virtude de suas próprias necessidades irracionais, inclusive o desejo de submeter-se ao poder do grupo doutrinador".
Germes de erro na utopia, suscetíveis de desclassificá-la em ideologia, e germes de verdade na ideologia, a lhe emprestarem aparente plausibilidade, substancialmente motivaram Riesman a identificar na posição ideológica dos partidos políticos revolucionários, de direita ou de esquerda, a armadura intelectual-teórica com que eles partem ao exame e à conquista do poder político.
A essa agressividade organizada e militante do pensamento ideológico, contrastante com o pensamento utópico alimentado pela seiva da razão no afã de especular sobre as alternativas e possibilidades abertas pelos novos conhecimentos e as novas tecnologias, opõe Anísio a generosidade de pensar, o entusiasmo imaginativo, que rasgam à evolução política horizontes não comprometidos nem desfigurados pela inteligência condicionada a esquemas prévios de mudança social pela força.
Entretanto, não se há de confundir utopia com escapismo ou delírio imaginativo. Pensamento utópico não se identifica com pensamento impossível. Utopia gira em torno de plano científico de possibilidades verossímeis. O socialismo anterior a Lenine era de natureza utópica, já o marxismo-leninismo soava-lhe essencialmente ideológico, como ideológico se lhe afigurava o neocapitalismo. Da teoria da mudança pela força, advertia, provém o medo de mudar que contagia e alarma a perspectiva política do nosso tempo. Em Anísio, mudar é função eminente da inteligência e não da força. À inteligência cabe a missão, em face do perigo inevitável da rotina, de contrastar o que está nascendo com aquilo que está decaindo. Graças à liberdade do pensamento, a luta entre o sonho racional (utopia) e a realidade, encontrará, assim vaticinava, "as condições para progredir sem complacência, sonhar com eficácia e esperar com lucidez".
Esta concepção utópica do pensamento político afastou definitivamente Anísio da filosofia marxista. Embora reconhecendo que nessa filosofia o papel da inteligência opera qual fio condutor na análise e compreensão dos fenômenos sociais para inserir a razão no contexto da história, repugnava-lhe a viabilização sistemática da luta de classes como ponto nodal da ação revolucionária e criticava-lhe a ditadura do proletariado como etapa necessária da libertação social.
Sem dúvida, é no mundo da política que o fenômeno revolução eclode. O próprio pensamento utópico possui virtudes de ingrediente poderoso na gestação das revoluções. Utopicamente, seriam como tempestades: armam-se e desabam. Conduzi-las custa preço que a intoxicação pela violência e pelo radicalismo torna muito pesado. Anísio gostava de recordar a condição do homem como ente racional ainda que freqüentemente esteja a conduzir-se irracionalmente. Erigir a revolução em objetivo predeterminado desfigura o pensamento político e prende-o na camisa de força de preconceitos sectários e filosóficos. Era nisso que a posição ideológica, ao contrário, da utópica, se lhe antolhava limitativa da liberdade de pensar.
Algumas vezes proseamos sobre isto. Uma tese especulativa nos entretinha: se Lenine não se inspirara na Sociedade dos jesuítas para planear o Partido Comunista nos moldes de sua ortodoxia e disciplina. Só professa na Ordem quem tiver inteligência acima de medíocre e deve-se obedecer ao superior qual bastão em suas mãos. O horror à dissidência, o espírito inexorável de militança, a tendência à implacabilidade antes que à piedade, a primazia da ação e, secundariamente, da especulação teológica, o dogma da autoridade infalível, tudo compõe um contexto de onde, transposto para a ordem política, pode, quem sabe, ter emergido a concepção leninista do Partido Comunista.
O recrutamento é diferente, diversa a ambiência em que, soldados de Santo Inácio e soldados de Lenine vão servir. Pela primeira vez, mobilizou-se no plano político uma "companhia" (companhia aqui tem o sentido de subdivisão militar) permanentemente instruída para estimular a revolução, partir ao encontro dela e conquistá-la como fruto da força e da capacitação ideológica dos seus membros, subjetivamente condicionados aos sacrifícios, até o da entrega total. São esquemas diversos e, todavia, semelhantes. Talvez o espírito de disciplina e sacrifício e a esperança da bemaventurança, num caso religioso, noutro social, mais que qualquer outro, denuncie esse traço organizacional de semelhança. De modo particular, o que areja a disciplina jesuítica é o reconhecimento à inteligência para seguir a vocação. Os jesuítas são também uma universidade.
No ideário comunista, ao revés de eventualidade, a revolução desponta como acontecimento fatal a cujo encontro o partido (a "companhia"!) se atira pelos caminhos de sua filosofia e das práticas de seu catecismo político. Identificada ou amadurecida em contexto social adequado, algo deve interferir no processo revolucionário para se colher o fruto desejado.
No universo comunista, atribui-se à liderança o papel de instrumento que conduzirá, através da contextura conjuntural, até a desfechos nem lógicos nem mesmo previsíveis. A liderança funciona como bússola, se o líder, clarividente no surpreender a revolução por entre as brumas da comoção social, souber dirigi-Ia e organizá-la. "Se a revolução é inevitável, não é inevitável a forma que pode ela assumir", reconhecia Anísio. Do tumulto russo de 17 não era fatal que saísse o regime soviético *, nem da barafunda chinesa, pelas mãos de Mao, o sistema comunista.
Falávamos também das revoluções gordas e magras. Nas primeiras, já assentadas na rotina de sua normalidade, modera-se o radicalismo verbal, à intrepidez sucede a prudência na ação. É o caso da Rússia. Nas segundas, prepondera a face quixotesca. Arma formidável, a palavra compensa debilidades iniciais. É a China.
O nosso é um tempo de revolução social, dizia Anísio aos estudantes reunidos em congresso, em 1949, na Faculdade de Medicina da Bahia. Ele tinha por certo que a revolução irrompera incontida das entranhas da revolução tecno-industrial moderna e o problema era agora dirigi-la e orientá-la para o maior bem do homem e menor sofrimento possível da coletividade. Em 6 de janeiro de 1947, em mensagem irradiada de Paris, Anísio acentuava que "a tremenda aceleração das forças de nossa evolução histórica" gerara um "estado revolucionário permanente", de onde "o caráter doloroso e difícil de nosso tempo". Advertia: "Temos de pôr ordem em uma revolução permanente e esta ordem, por força mesmo das coisas, só pode provir da inteligência".
Observava, porém, haverem alguns países substituído "essa vontade inteligente por uma vontade mecânica e coatora e cortaram o nó górdio das nossas dificuldades por uma ditadura mais ou menos violenta. Outros encaminharam-se por algo idêntico, em sentido oposto, estabelecendo as bases de um possível reacionarismo também mecânico e coator". Perdia-se, contudo, a oportunidade de consolidar-se em França o "forum da humanidade" sonhado por Anísio ou o "parlamento do homem" de que falava Tennyson.
Saíamos, então, da ditadura do Estado Novo, condenados a aprender mais uma vez a viver constitucionalmente, como parece do nosso fadário político. A Constituição de 1946 mal saíra da fornalha legislativa e muitas idéias políticas cruzavam o céu do país tropical. O apelo às transformações estruturais da sociedade, emparedada no atraso acumulado de importantíssimos setores de sua existência nacional, como ensino, saúde, transportes, sistema de exploração agrária, ecoava na mentalidade dos partidos e da juventude.
Urgia mais que uma revolução política, advertia Anísio, porque "podemos ser capitalistas por contingência da evolução histórica, mas ninguém mais o é por convicção." Realmente, explanava Anísio, "a sociedade do lucro precisa de certas roupagens socialistas para se tornar segura". Viu-o com clareza, pelo fim do século passado, William Morris, escritor e crítico de arte inglês, ao indagar "se, em suma, a tremenda organização da sociedade comercial civilizada não está fazendo conosco socialistas o jogo do gato e do rato. Não será que a "Sociedade da Desigualdade" está aceitando a maquinaria (do socialismo) e pondo-a para funcionar no sentido de sustentar essa mesma sociedade em condições de algum modo, talvez remendadas, porém seguras"? Que sucedia? Morris diagnosticava: "Os operários mais bem organizados, ajudando-se a governarem a si mesmos, sem, no entanto, pretender mais a igualdade com os ricos, nem terem disto mais esperança do que a têm hoje". Aí estava, era a observação ocorrida a Anísio, "a visão profética de 'novo capitalismo' da América do Norte". E recordava, na Bahia do fim do século passado, a figura do industrial Luiz Tarquínio, "exemplo típico desse jogo do gato com o rato".
Afinal, os socialistas que se cuidem, é esse jogo que aspira a "humanizar" o socialismo colocando-o como a extrema esquerda do capitalismo.
Dos modelos oferecidos pelo após-guerra, democracias populares do Oriente, democracias representativas, socialistas ou pré-socialistas, do Ocidente, sua análise colhia que em ambos os métodos se discerniam perigos e virtudes. Nas
democracias populares, "o perigo está em poder a determinação de apressar a revolução social levá-la ao ponto de trair os seus fins, tornando-se, assim, insensivelmente totalitária sob o pretexto de guardar a unidade de ação". Nas democracias ocidentais "o perigo é o oposto, levando a conseqüências idênticas. Aí, sob o pretexto de salvar a liberdade individual, pode-se levar a revolução a se perder em anarquia e confusão que poderão gerar a contrapartida da ditadura totalitária".
As virtudes seriam a de eficiência entre as democracias populares e a da cooperação e participação voluntárias nas democracias ocidentais. Seus votos preferiam soluções "dentro da ordem democrática do Ocidente", cujos métodos podem ser velhos e clássicos no mundo anglo-saxônio, mas seriam novíssimos em nossas plagas.
Que via ele, entretanto, na cena brasileira? Primeiro, ausência de pensamento organizador, a agravar-se pela ambigüidade do pragmatismo político nas camadas dirigentes. "Não somos capitalistas, observava, nem temos livre iniciativa. Também não somos socialistas. Corrompemos ambos os regimes, criando no que resta de capitalismo a irresponsabilidade, e no que se faz de socialista a impressão de dádiva e suborno. As repressões sem sentido ao patrão desestimulam e geram o cinismo e a especulação e as concessões ao trabalho, longe de erguê-lo como o faria a conquista dessas vantagens, desmoralizam-no". Anísio frisava a impossibilidade de reproduzirmos os períodos históricos pelos quais passaram os países hoje na vanguarda da civilização industrial. Agravam-se assim os problemas a enfrentar pela contradição entre a nossa verdadeira situação material e aquela que a visão de nosso tempo aponta como a mais expressiva do moderno processo civilizatório. Seguir os modelos de cem anos atrás, não serve. E os modelos das nações evoluídas industrialmente acham-se muito além de nossa capacidade efetiva atual.
Era grato a Anísio o debate político em termos de revista de perspectivas, possibilidades, rumos e manifestações de ordem cultural. Terrenos dessa natureza ele percorria-os com as qualidades excepcionais de inteligência que Fernando de Azevedo tão bem discriminou: lucidez, agilidade dialética desenvolvida, às vezes, às expensas da firmeza objetiva, aptidão no encadeamento lógico das idéias, coragem em aceitar as conclusões ainda as mais audaciosas a que conduza o raciocínio, de onde o poder não raro explosivo de seu pensamento. Consciente, observou Fernando, da clareza e velocidade de seu pensamento, e parecendo, por vezes, em exercícios de virtuosidade menos para armar ao efeito do que pela alegria de uma constante aventura intelectual, Anísio vivia mais na surpresa e na criação, do que na monotonia e na rotina, atraído pelo risco, pelo "nunca pensado", pelo apetite do inexplorado e do novo, pelo impulso para as imagens do seu sonho, pelo pensamento, refletido sempre, mas inteiramente livre, no processo de elaboração. Fernando de Azevedo tinha razão: "Onde Anísio pousou o espírito, em um de seus mergulhos, pode-se estar certo de que vale a pena a gente deter-se, é um campo novo a explorar".
Ao cabo de contas, lembrava Anísio, a diferença real situa-se entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Porque, conquistado o desenvolvimento, a distinção técnica entre trabalho socialista e trabalho capitalista é mais aparente que real.
Entre os subdesenvolvidos anotava ele certos aspectos paradoxais característicos da situação social oriunda de economias meio estagnadas, como o fato de não proceder a resistência ao desenvolvimento apenas dos privilegiados. Numa estrutura subdesenvolvida, a conquista do status privilegiado deriva menos do esforço dinamizado pela energia individual do que de processos declaratórios geralmente estabelecidos por lei e decretados pelas autoridades do governo. A rigor, assim sendo, nem capitalismo nem socialismo conviriam, pois prefere-se obter o privilégio do grupo que já o detém. A versão socialista parece subversiva à contextura brasileira porque ameaça os privilégios. A capitalista amedronta porque seria demasiado penoso fazer-se privilegiado à maneira capitalista.
As reflexões anisianas abrangentes de linhas organizacionais da sociedade brasileira subdesenvolvida mostram que elas provêm de análise não tributária de posições de esquerda ou de direita. Realçam o tipicismo de uma sociedade em que os privilégios decorrem não somente de princípios capitalistas, mas principalmente do tipo de capitalismo inserido em sua estrutura por forças tradicionais retrógradas como o latifúndio, o elitismo do sistema educacional, a improvisação do pensamento organizador. Ele indagava, finalmente, dos estudantes de 1967 da Faculdade Federal de Filosofia da Bahia: "Costuma-se dizer que a esquerda brasileira é uma esquerda festiva. Poderemos nós também fazer um capitalismo festivo"?
A sociedade democrática de padrão ideal, dizia Anísio, seria uma sociedade de pares, resultante de uma opção nunca espontânea e jamais saída do campo das aspirações do pensamento político e, talvez, nele ocupando papel de uma profecia. Certa é a impossibilidade de realizar-se qualquer versão de sociedade democrática sem educação intencional para todos. Aristocracia, autocracia, regime de castas, quaisquer formas políticas de sociedade, embora necessitem de alguma educação, só a democracia exige educação para todos e na maior quantidade possível, pois importa educar não alguns homens, mas todos os homens visando uma existência associada pela capacidade básica comum de entendimento.
A sociedade democrática é chamada a coexistir com uma característica fundamental da civilização contemporânea, que é o "processo de inventar" a cada passo, desafiante de instituições e rotinas. Invenções e inventores sempre houve, porém o "processo de inventar" adquiriu importância nova e máxima porque aplica sistematicamente conhecimentos adquiridos pelo método experimental, convertendo-se em agente de modificações antes acidentais e, agora, estudadas e dirigidas.
Na base do processo assenta-se o ato de pensar, matriz das invenções, exatamente o ato mais vigiado de todos entre os homens, advertiu Anísio ao paraninfar em 1959 os professorandos da Faculdade Nacional de Filosofia. "Os grandes violadores do pensamento convencional, escreveu, todos os grandes inovadores foram sacrificados pelos "guardiães" do rebanho. Sócrates morreu porque julgou possível a dúvida, o problema, a questão, a pergunta. Jesus morreu porque deseja substituir a "resposta" convencional por outra mais generosa. No sentido religioso e político até hoje não se escreveram documentos mais revolucionários que os Evangelhos". Porém, ao sentir-se a Igreja Católica abalada nos alicerces porque um de seus fiéis decidiu iniciar movimento de leitura e interpretação independente dos Evangelhos, desencadeou-se longa guerra civil. Cessada a guerra, protestantes e católicos restabelecem a tradição de defender suas verdades protegidos pelo "braço secular" do Estado, que manejava a espada, símbolo da autoridade dos guardiães.
De novo rompe da pena de Anísio a eterna questão: quem guarda os guardiães? Eles próprios e seus interesses na conservação do statu quo, responde, porque nunca nenhum ateou qualquer fagulha revolucionária e, quando alguém, dentre eles, nisso pensou, prontamente o silenciaram ou destruíram. Portanto, a pergunta correta seria: quem despertará os guardiães, o governante, o sacerdote, o erudito, quem os impedirá de, guardando demais o que lhes foi confiado, interceptar e reprimir o impulso humano de rebeldia?
Para assegurar permanência e voz a esse impulso de rebeldia na atividade do pensamento, tão grato à atitude mental de Anísio, uma condição impõe-se como imperativa. É a liberdade de pensar. Não se adaptou o homem à razão por meio de progresso biológico da espécie, adverte Anísio, mas por aprendizado de vivências, e que só lentamente se traduziam em vias e esquemas de organização social. O palco desse milagre foi a Grécia ao formalizar e colocar na raiz da tradição ocidental a arte de pensar, abrindo à inteligência a possibilidade de reformular objetivos humanos, criticar-lhes as premissas, especular sobre os pressupostos em que estas se apoiavam e deduzir conclusões. Estava assim criada a tecnologia das tecnologias - a arte de pensar voluntária e deliberadamente. Surgiria um novo tipo de homem, lembra Anísio, o intelectual, o analista, o criador do pensamento e do saber, como algo distinto do estudioso do saber já feito. Ele recordava um contraste. Na Suméria, no Egito, na Babilônia, ou mais para o Oriente, o homem não sabia se era livre ou tiranizado, aceitando a "organização" imposta à vida, do mesmo modo que aceitava o sol ou a lua.
O fator intelectual introduzido pelos gregos, esclarece Anísio, exerce sobre o despotismo dos costumes e da tradição o papel de solvente que os torna mais plásticos e flexíveis, proporcionando fonte autônoma de direção para o comportamento humano em face da tirania dos hábitos e da natureza.
Atuante no contexto da ação e estabelecendo novos modos de comportamento e de solução dos problemas, a análise racional na história da liberdade humana tende a oscilar entre dois pólos extremos: ou reivindicações puramente inviduais ou o radicalismo das reformas sociais operadas com a supressão da liberdade individual. Entretanto, em dois valores essencialíssimos a liberdade não pode deixar de desdobrar-se: na liberdade de pensar, condição organizatória do pensamento teórico e especulativo; e na liberdade de organização, possibilidade de os homens disporem de seus objetivos de vida de forma autônoma e pluralista. No entender de Anísio, não há como alimentar ilusões sobre liberdade individual absoluta, pois "a vida humana é uma série de servidões, desde as biológicas até as sociais, dominadas todas elas pela servidão das servidões, que é a real impraticabilidade das nossas mais caras aspirações num mundo dominado por alternativas e escolhas, cada uma das quais destruindo a metade de nossos desejos e frustando-nos na outra metade".
Tudo isto evidencia a relatividade da liberdade individual, cujas restrições, todavia, quanto mais provierem do saber humano, do conhecimento humano tanto mais consentidas serão. Há, contudo, limitações não-originárias do poder compulsório do Estado, porque se enraízam em preconceitos e interesses criados, esse cipoal daninho enroscado nos sistemas sociais e que promovem e alimentam o arbítrio. A liberdade, conceituou Anísio na pequena mas tensa oração com que solenemente inaugurou os cursos da recém-instalada Universidade do Distrito Federal, em 31 de julho de 1935, "é uma conquista que está sempre por fazer. Desejamo-la para nós, mas nem sempre a queremos para os outros. Há na liberdade qualquer coisa de indeterminado e de imprevisível, o que faz com que só a possam amar os que realmente tiverem provado até o fundo a insignificância da vida humana sem o acre sabor desse perigo".