Os Teixeiras e os Spínolas
ascido em ltuaçu a 11 de novembro de 1844, o dr. Deocleciano Pires Teixeira, filho de Antonio José Teixeira e Maria Madalena Pires da Silva Teixeira, originava-se de família estabelecida em Minas do Rio de Contas, descendência do Capitão-Mor Manoel Severino da Silva. Da prole de Antonio Teixeira, de doze rebentos, só quatro vingaram: Maria, Antonio, Rogociano e Deocleciano.
Dedicado ao comércio de pedras preciosas, agenciador de negócios inclusive para o exterior numa atividade comissária e por conta própria que o levou à Europa, Antonio José Teixeira retorna empobrecido pela súbita queda do preço de diamantes em razão da guerra franco-prussiana de 1870.
Os filhos trilhariam caminhos diversos. O primeiro, Antonio, tentou a sorte no São Francisco, administrador de fazendas de criação. Pelo casamento aliou-se à família Pires de Oliveira e só teve descendência feminina, três filhas uma das quais, Virginia, viria a contrair núpcias com o primo Mario, filho do primeiro consórcio do tio Deocleciano.
A Rogociano destinava o pai a carreira comercial. Envia-o a estudar inglês e contabilidade em Liverpool, mas, irrompida a guerra franco-prussiana, teve de regressar. O desastre dos diamantes lhe modificaria o destino, sem lhe quebrar a fibra. Empreendeu, então, com o pai a extraordinária façanha de comprar em Sorocaba, maior mercado de animais gaúchos no sul do país, nutrida ponta de bestas de sela, mulas e burros que conduziu, vendendo-os, através de Minas, Bahia até Sergipe. Ganhou dinheiro bastante para adquirir a chácara do Cabral, no bairro de Nazaré, na capital baiana. Mudou-se para o Rio, onde logrou a nomeação de conferente da Alfândega, cargo em que se aposentou.
Conheci e freqüentei em 22, no Rio de Janeiro do centenário, o velho Rogociano. Bonita estampa de homem, ar grave e acolhedor, presença acatada nos círculos políticos e sociais baianos do Rio, espírito de formação liberal, cujo republicanismo ainda se tingia de intransigências antimonarquicas, e só chamava Pedro segundo de Pedro dois. Morava há trinta anos na Pensão Schray, no Catete, e, se bem me recordo, disse-me que no mesmo quarto. Cumprindo o prometido, por sua mão visitei Rui Barbosa em São Clemente, onde a acolhida que lhe reservaram, desde a entrada pelo mordomo Antonio, até Da. Maria Augusta e o Conselheiro, foi espontânea e afetuosa.
Unindo ao seu o desejo do pai, Deocleciano estudou medicina, diplomando-se em 1870. No segundo ano do curso partiu juntamente com toda a turma a servir por dois anos nos hospitais de sangue do Paraguai. Aos doutorandos propuzera-se a diplomação desde que tomassem o mesmo destino. Diante da recusa, os alunos do segundo ano, liderados por Deocleciano, ofereceram-se para seguir, desde que lhes fosse assegurada a promoção automática à série seguinte, que seria a terceira.
De seu primeiro e único cargo oficial, nomeado em 1873, o de segundo Cirurgião do Corpo de Saúde da Marinha, exonerou-se quase em seguida. Estabeleceu-se em Grão Mogol, zona tradicional de mineração, onde clinicou e participou da política. Era já decadente por essa época a mineração naquela área como na do Tijuco. Permaneceu ali pouco tempo, transferindo-se para Lençóis nas Lavras Diamantinas e, depois, para Monte Alto, até que, em 1885, fixou-se em Caetité onde viveu 45 anos. Faleceu a 9 de janeiro de 1930, aos 89 de sua idade.
Por três vezes na família Spínola, tronco prestigioso das Lavras, consorciou-se o dr. Deocleciano com três irmãs - Mariana, Maria Rita e Ana (esta a mãe de Anísio), filhas de Antonio de Souza Spínola e Constança Teixeira de Araújo.
Esses Teixeira de Araújo possuíam imensos latifúndios no São Francisco, talvez uns sessenta quilômetros ao longo rio, campos da tradicional, largada criação extensiva. Um deles, major Francisco Teixeira de Araújo, casado sem descendência, legou fazendas aos sobrinhos, sendo esta a origem das propriedades da família Spínola Teixeira, de Caetité.
Fazendas de pouca despesa e renda rotineira, os donos abstinham-se de aplicações inovadoras, atentos no correr dos trabalhos aos caprichos do tempo, secas e enchentes, poupando nos "serviços perdidos", como o dr. Deocleciano gostava de chamar as novidades que mais consumiam que ajudavam.
Lembro-me dele. De porte pequeno, magro de corpo, de cortesia sóbria e natural, Anísio lhe herdara os olhos expressivos. Correligionário do partido liberal, abandonou a clínica, elegeu-se deputado provincial de 1888 a 1889 e candidatara-se à legislatura seguinte quando se proclamou a república. Não participara da propaganda, mas tinha fé abolicionista. Consolidando sua liderança, presidiu o Conselho Municipal e, na legislatura de 1893 a 98, figurou entre os senadores estaduais, mandato que se renova para a seguinte de 1899 a 1904. Às sessões de 1901 a 1902 não compareceu e, recebendo os subsídios, destinou-os ao abastecimento de água da cidade. Renunciou em 1903.
Pela tarde, reunia-se aos amigos na farmácia do dr. Cleofano Meirelles e, nessa assembléia vespertina, larga era a prosa, conversava-se um pouco de tudo, e jogava-se gamão. A direção superior do partido formavam-na, com ele, Monsenhor Luis Pinto Bastos, vigário local, homem de vigorosa atuação política e o dr. Ovidio Teixeira que, suplente de senador, encontrei em 1963, em Brasília, no exercício do mandato.
Ao aproximar-se a sucessão do Conselheiro Luiz Viana, cogitou-se seriamente de seu nome. Na escolha do primeiro governador republicano, dr. Manoel Joaquim Rodrigues Lima, sua participação muito pesara. Afinal, prevaleceu Severino Vieira, então Ministro de Campos Sales, que, não tardando a dissentir de Luiz Viana, atirou ao ostracismo Deocleciano e correligionários. Ao tempo da campanha presidencial de Arthur Bernardes em que o situacionismo baiano se engajou na dissidência denominada "Reação Republicana", sustentando Nilo Peçanha à Presidência e J.J. Seabra, Governador da Bahia, à vice-Presidência, Deocleciano e seus amigos apoiaram Bernardes, atendendo aos apelos de Aurelino Leal.
Na antiga feição das chefias sertanejas, a estabilidade da posição econômica assentada na posse da terra constituía a primeira fonte de prestígio. Examinem-se os chefes de Caetité. Os Rodrigues Lima possuíam fazendas nos Baixios de Monte Alto, os Tanajuras em Guanambi e em Paratinga às margens do São Francisco e em Formoso do outro lado do grande rio, Monsenhor Bastos em Parateca e o dr. Deocleciano três ou quatro no São Francisco. Donos de latifúndios a 60 até 150 quilômetros da cidade, largas extensões de terras destinadas à criação de gado solto, os fazendeiros controlavam e manipulavam o poder político na região. Despojos burocráticos remunerados a conquistar não havia, a influência política dependia da disponibilidade de recursos privados. O que contava era o mando, o prestígio, a influência, a coordenação de nomes significativos na preservação da ordem tradicional, conservadora. Investir-se no poder significava segurar o fiel da balança, deter a autoridade no uso legal de suas atribuições. Onde há gente, produção, interesses, há matéria que só o poder preserva.
Sem dúvida, em Caetité outras famílias gradas, os Gumes, os Neves, os Silveiras, os Publios, os Ladeias, os Ledos, sem referir os Fragas e Farias que emigraram para S. Paulo, ornavam o panorama social, mas a influência política residia nos grandes proprietários.
A liderança do dr. Deocleciano fortalecia-se por um conjunto de virtudes pessoais qualificadoras de sua presença na cena pública. Seu nome possuía ressonância mais vasta que a local. A imagem do cidadão expressava-se na totalidade de sua figura e a vocação política lhe avigorava o perfil do líder. Apreciador da leitura, conhecia Zola, Vitor Hugo, Alexandre Dumas, porém nenhum livro lhe proporcionava maior prazer que o Dom Quixote. O pensamento moldado em termos civis, republicanos, abrangia área mais ampla que a dos interesses municipais do mando político. A preocupação pelos negócios do Estado e do país excedia os limites da visão paroquial.
Não era católico, talvez deísta. Freqüentava a missa aos domingos, preito de reverência ao sentimento do povo e respeito à própria imagem de chefe político. A falta de assistência religiosa nos duros dias da guerra e dos hospitais de sangue do Paraguai lhe parecera cruel. Não se agradava da presença de outros credos disputando ao católico a preferência dos brasileiros. Mas, quando o Padre Cabral, que acompanhou Anísio a Caetité, lhe sugeriu a confissão, espécie de ajuste final de contas de sua recusa em permitir ao filho o ingresso na Companhia, reagiu entre irônico e mal humorado.
A única irmã do dr. Deocleciano desposou, mocinha ainda, o Barão de Sincorá e morreu prematuramente, de parto.
Das filhas, sobrevivem quatro: Celsina, Leontina, Angelina e Carmem. Dona Celsina residente em Caetité no sobrado da família dedica-se à benemérita atividade assistencial e preside a Associação de Caridade. Carmem, professora, pôs a funcionar com firme tino administrativo a famosa Escola Parque do Centro Educacional "Carneiro Ribeiro" em Pau Miúdo, Salvador, como sua primeira diretora.
O irmão mais velho de Anísio, Celso Spínola Teixeira, já falecido ocupou-se da administração das fazendas do São Francisco e foi coletor federal em Caetité.
Na política distinguiram-se dois filhos: o engenheiro Mario Spínola Teixeira, já falecido, que assumindo o controle da nascente vila de Guanambi, vizinha de Caetité, desempenhou ali uma chefia tumultuosa; Oscar Spínola Teixeira, também engenheiro, laureado pela Escola de Engenharia de S. Paulo com viagem de estudos à América do Norte, deputado estadual em várias legislaturas, morto por acidente de automóvel em 1954 entre Salvador e Milagres, muito dotado para a vida pública, praticante de um fino tipo de liderança parecido ao do pai. Foi o responsável pela instalação dos serviços de águas e de luz elétrica em sua cidade natal, Caetité.
Anísio consorciou-se em São Paulo, em 1932, com Emília Teles Ferreira, de família baiana. Do casal nasceram quatro filhos: Martha Maria casada com Mario Celso da Gama Lima, Anna Christina casada com Paulo Alberto Monteiro de Barros, Carlos Antonio casado com Márcia Maria Neves e José Maurício, falecido aos 19 anos, em novembro de 1962, num acidente de automóvel.
Formados em engenharia civil são também Jayme Spínola Teixeira e Nelson Spínola Teixeira. Ambos residem no Rio. Jayme exerceu com brilho a profissão. Nelson aos 24 anos, no governo Goes Calmon, ocupou a Secretaria da Agricultura e da Viação. Lecionou Estatística, Economia Política e Análise Econômica na Faculdade de Ciências Econômicas. Espírito penetrante e culto.
Dizem dos Spínolas, o outro ramo da família de Anísio, serem originários de Gênova onde participaram do governo no decorrer do século XVII. Expulsos da Liguria, eram judeus, refugiaram-se em Portugal, na Madeira e na Holanda e, neste país, variaram o nome para Spinoza. O filósofo e matemático Baruch Spinoza, de pai e mãe portugueses, seria assim um Spínola.
Dos primeiros Spínolas chegados ao Brasil sabe-se que percorreram os sertões como dizimeiros da Fazenda Real. Três irmãos Joseph, Francisco e Timóteo estabeleceram-se no centro sul da Bahia, em Vila Velha, hoje Livramento do Brumado, Lagoa Real e Lagoa do Timóteo, do nome de seu colonizador. Manifestado ouro na localidade de Minas do Rio de Contas, situada no cimo da Serra das Almas, outrora vivo centro artesanal de objetos de ouro, prata e apetrechos de montaria, é fama que Timóteo Spínola enriqueceu tanto que chegou a remeter para Londres quatro arrobas do metal.
Proprietário do sítio da Pedra Redonda, nas proximidades de Caetité, de Joseph de Souza Spínola, apelido Cazé, nasceram três filhos: Antonio de Souza Spínola, Adelina de Souza Spínola e Rita de Souza Spínola. Ao iniciar-se a década de 1850, transferiram-se para Lençóis, capital da mineração nas Lavras Diamantinas, derradeiro florão da corrida mineradora que, praticamente durante um século, transformou as Lavras Baianas numa das zonas mais procuradas, tumultuosas e propícias à aventura de enriquecer.
Em 1945, celebrou-se o centenário da fundação da cidade, cuja denominação derivaria do fato de se haver cobrido de grossos panos brancos de algodão, que à distância semelhavam lençóis, o teto do casario dos tempos iniciais pela falta de material adequado. Outra versão pretende que o nome se originaria da aparência de lençóis estendidos apresentada pelas corredeiras do rio, que corta a cidade, no ponto em que descambam serra abaixo, a cavaleiro da povoação.
Viveu Lençóis longa hora de prosperidade e euforia, transfigurada em polo atrativo de vida comercial, social e política, onde reinava o luxo e muita festa, cidade de belas moradias adornadas de mobiliário até de procedência estrangeira, em que pianos punham sua nota aristocrática e enxovais de noivas ricas se recebiam da Europa.
Além dos diamantes brancos, garimpavam-se diamantes negros chamados carbonatos, matéria-prima industrial de grande procura, cuja produção anual, da segunda metade do século passado até a primeira década deste, estimava-se em trinta mil quilates. A renda, ao câmbio de passadas épocas, atingia a média anual de quatro mil e duzentos contos.
Não eram mineradores os Spínolas. Na fazenda de Boa-Vista, onde a família residia, plantava-se café. Ao se estabelecerem em Lençóis, para onde transportaram seus bens de fortuna, fundaram uma dinastia intelectual e política, prolongando forte linha de inteligência que tanto os distinguiria.
Essa dinastia inicia-se por Antonio de Souza Spínola, avô de Anísio, representante de seu distrito por três vezes na Assembléia provincial e no Parlamento monárquico. Era cognominado o Pedro II de Lençóis, tamanho o valimento de seu nome e a tradição confirma que o Imperador o distinguia. Em 1864 e 1867, informa Afrânio Peixoto no Livro de Horas, figurou na lista tríplice para o Senado, quando os escolhidos foram Zacarias e Saraiva.
Desposando Constança Teixeira de Araújo, filha do capitão Anacleto Teixeira de Araújo que, em 1821, oficiou como delegado de polícia em Caetité (e já vimos que a família Teixeira de Araújo possuía um despotismo de terras no São Francisco) desse matrimônio nasceram dez filhos, dentre eles as três irmãs, Mariana, Maria Rita e Ana com quem viria a contrair núpcias o dr. Deocleciano. E ainda dois irmãos de destacada projeção no Estado e no país, Joaquim Antônio de Souza Spínola e Aristides de Souza Spínola.
Embora o pai tenha morrido na pobreza dourada de sua respeitabilidade, que a fortuna dissipou-a na política, ambos os filhos, Joaquim Antonio e Aristides, favorecidos pelos recursos paternos, estudaram no Recife onde concluíram cursos brilhantes.
Joaquim Antônio, nascido em 1848, cumpriu toda a carreira da magistratura de sua terra, Juíz Municipal, Juíz de Direito, Desembargador, Presidente do Tribunal de Apelação. Faleceu em 1906. De sua descendência de sete filhos há que destacar Celso e Clovis Spínola, nomes de relevo na advocacia e na sociedade baiana, Gambeta Spínola, alto funcionário do Estado, Colombo Spínola, médico de renome, Cyro Spínola, engenheiro, Carlos e Caio Spínola e as filhas Otília, Clotildes e Alice. A família reside na Bahia.
Do outro irmão, Aristides, nascido em 1850, considerado pelos contemporâneos "homem de grande saber", lembra Dunshee de Abranches em Governos e Congressos da República, a trajetória política iniciada na monarquia prolongou-se até a república.
No antigo regime, além de presidir a província de Goiás, foi deputado provincial e geral em três legislaturas, a primeira em 1881, quando da eleição direta, reelegendo-se nas de 1885, 1886 e 1889 e achava-se diplomado ao cair a monarquia. Num desses pleitos, largando-se a cavalo de Goiás até o interior da Bahia, venceu a Rui Barbosa, seu correligionário liberal, mas estranho ao sertão onde eram profundas as raízes familiares de Aristides. Excursionou pelo vale do São Francisco e reuniu em volume, publicado em 1879, as narrativas dessa jornada sob o título de Presidência do Barão Homem de Melo na Bahia. Redigiu em 1889 a memória Estudos sobre os índios do rio Araguaia. Na República, elegeu-se deputado federal de 1909 a 1911.
Advogado militante, conquistou lugar eminente na profissão. Nos derradeiros anos, abrasado pela fé espírita, voltado ao recolhimento e à caridade, embora continuasse a participar de um escritório, eram os colegas que assinavam seus trabalhos.
Em 22, ano do centenário, visitamo-lo Anísio e eu, uma tarde, na modesta casa da Ladeira do Ascurra. Ele infundia esse tom de bondade que vem da alma, do coração. Distribuía, pequenos vidros cheios de água transfigurada pelos seus dons mediúnicos em virtudes curativas. Presidiu a Federação Espírita Brasileira. Fundou em 1915 o Centro Espírita de Caetité, que tem seu nome.
Dessa gente Spínola, destacar-se-ia também, nos últimos trinta anos da monarquia, a personalidade de Aristides Cesar Spínola Zama, o famoso Cesar Zama, jornalista, escritor, parlamentar, tribuno que riscou com talento não conformista a fechada atmosfera do antigo regime. Nascera em Caetité em 1837, filho único das segundas núpcias de Rita de Souza Spínola e do médico italiano Cesar Zama, que agitou com sua fama de radical e conquistador a sociedade local.
Helena Lima Santos, professora da Escola Normal, que dirigiu, estudiosa da história e costumes da cidade, a que dedicou vivo e informativo livro, denominado "Caetité, Pequinina e ilustre", de uma frase de Anísio sobre sua cidade natal, extraiu da tradição escrita e oral estas notas que passo a transcrever. "Em princípios do século passado, mais ou menos em 1930, chegou o médico italiano dr. Cesar Zama, natural de Faenza, Itália, perseguido em seu país como conspirador; veio foragido e à procura de um lugar tranqüilo e discreto; estabeleceu-se na cidade. Logo ao chegar passou a exercer a medicina; entre seus doentes estava o marido de Da. Rita de Souza Spínola que morreu pouco depois, pois estava tuberculoso no último grau e o dr. Zama casou-se com a viúva. Da. Rita, filha de Joseph Antonio de Souza Spínola (Cazé) foi casada com um descendente dos Soriano, de Brejinho das Ametistas, hoje um dos distritos do município; teve sete filhos e todos morreram tuberculosos e, por último, o marido. Segundo consta, a sociedade local não viu com bons olhos este segundo casamento. O dr. Zama era bom médico mas muito atrabiliário e colérico e ainda diziam coisas piores como escreveu João Gumes resumindo o que se falava em toda parte: "como médico achava meio de se intrometer em certos lares onde praticava cousas que naquela época não se admitia".
Em 1837 nasceu um menino que viria ser o parlamentar Aristides Cesar Spínola Zama, geralmente chamado Cesar Zama. Residiam na vila, na praça de Santana e tinham um sítio no Lameirão onde o dr. Zama gostava de ir diariamente, à tarde, à cavalo. O dr. Zama deve ter vivido aqui uns oito a dez anos. Quando o menino tinha dois anos o pai levava-o no passeio diário. Não era querido dos escravos de sua mulher, um dos quais jurou matá-lo ("atraiu o rancor dos escravos de sua mulher").
"Após poucos anos de casamento, três ou quatro", (de modo que não se sabe exatamente quantos anos viveu em Caetité; penso que esta última versão é mais correta) foi assassinado pelo escravo inimigo numa emboscada, quando ia visitar o sítio. Neste dia, não levava o filhinho de dois anos e foi alvejado com um tiro pelo escravo que o tocaiou várias vezes esperando o dia em que não levasse a criança. O escravo não fugiu; foi condenado ao enforcamento (dizem que o último que se realizou aqui) e teria declarado, segundo uma versão: "Morro satisfeito porque tirei uma onça do pasto". Também consta que tendo o cadáver ficado exposto, Da. Rita mandou, durante a noite, um escravo arrancar-lhe o coração que mordeu, atirando depois aos cães, versão que segundo pessoas que conheceram seus sentimentos cristãos, inclusive Da. Celsina parente da Da. Rita, reputam inteiramente inverídicas pela sua piedade e devoção durante toda a sua vida. Não quis mais casar-se e viveu com o filho que também não se casou - falecendo aos 90 anos em Salvador, onde até o fim, vestida com muito apuro, "frequentava as igrejas".
Cesar Zama cresceu numa Lençóis opulenta, tocada pelo espírito de aventura pessoal. Formado em medicina em 1858, serviu nos hospitais de sangue do Paraguai.
Pertenceu ao Parlamento como deputado por vinte e quatro anos e obteve sempre o mandato, declarou-o perante a Câmara em 1883, sem devê-lo "à intervenção oficial de meu partido ou à proteção de qualquer chefe político por mais poderoso que seja, ou pareça ser". Era liberal, porém "manobrava fora de forma". Alegando fidelidade aos princípios do programa liberal de 1869, seu ideário político abrangia a abolição do Conselho de Estado "a capa que envolve o absurdo e o arbítrio dos ministros; a reforma do Senado que queria temporário e eletivo, ou pelo menos vitalício sem subsídio; reinvindicava para a Câmara a presidência dos Gabinetes; propugnava a descentralização administrativa; propôs a abolição da pena de morte; de castigos corporais aos escravos e repugnava a escravidão.
Pelos seus discursos infere-se que lhe escasseava a respeitabilidade formal típica da ambiência monárquica. Nas orações de 1883 e 1888 rebate a pecha de praticar "irreflexões e leviandades", repele a balda de loquacidade; contesta a atoarda de que o Imperador nem lhe podia ouvir o nome e queixase que seus projetos não recebiam sequer encaminhamento regimental. Ideologicamente monarquista, afirma que se o Imperador não fosse grande espírito liberal, sincero e patriota, "teria se quisesse implantado neste país o regime despótico sem que ninguém lhe fosse às mãos."
Em suas bem conduzidas orações parlamentares, o raciocínio fluía com clareza, possuía boas humanidades, gozava da reputação de consumado latinista. Ao discutir na Assembléia Provincial, em 1883, ambicioso projeto de ensino obrigatório, apoia a idéia da intervenção do poder público, embora, em tese, fosse "pela anulação do estado porque sociedade instruída dispensa tutores podendo dirigir-se a si própria". Mas onde estavam os recursos, de onde retirá-los se o município vegetava, a província continuava espoliada? O Estado prometia, as massas populares se impacientavam e o risco de agitações poderia turvar o horizonte político.
Regressando à Bahia logo após a proclamação da República, que lhe conferiu honras de Coronel honorário, (servira como voluntário no Corpo de Saúde no Paraguai) e de cuja Constituinte fizera parte como deputado, a tentação política jamais o abandonou. Montou jornal, e combateu asperamente Manoel Vitorino, governador nomeado pelo Marechal Deodoro. A pretexto da promoção do general Hermes Ernesto da Fonseca, comandante das armas e irmão do Presidente, instigou manifestações populares ao chefe militar, acirrando incompatibilidade entre as duas mais altas autoridades locais. Reagiu Manoel Vitorino protestando perante Deodoro que lhe replica não se achar no âmbito de sua autoridade impedir demonstrações do povo. Estava armada a pendência, que desfechou na renúncia do governador e entrega do governo ao general.
Sobrevem por esse tempo a eleição de senador e Cesar Zama lança-se a disputar a cadeira a Rui Barbosa, grande amigo de Manoel Vitorino. Desse episódio decorreu a animada aversão entre os dois candidatos de que perdura, em resposta a Zama, o célebre discurso de Rui sobre o jogo.
De fato, a Cesar Zama fascinava essa luta corpo a corpo com o destino, como do jogo já disseram. Ouvi de Homero Pires, ouvido por sua vez de fonte veraz, que, chegado à Corte, Zama relatou para a Bahia: "a viagem foi horrível, o navio jogava tanto que não deixou ninguém jogar".
Esse traço pessoal de conduta não o impediu, inspirado em razões sociais, de apresentar projeto propondo a abolição de loterias no Império. Recebeu parecer contrário porque o Tesoureiro não podia dispensar tal fonte de renda. Nosso país mudou muito, porém a fome do Tesouro não mudou de paladar.
No Teatro São João, em 1890, convidado pelo chefe de polícia, pronunciou uma conferência no Clube Republicano, fazia aí 52 anos e achava-se velho. Oração pálida, muito longa, arrastada, em que dedicou toda a extensa primeira parte a analisar sua vida pública. Da monarquia nunca fora idólatra, esperava-lhe o fim pela morte do Imperador, recordou em citações e mais citações suas críticas a instituições do antigo regime e concluiu: "Seria quase um crime que com as idéias e princípios que sempre professei, eu me estendesse ao lado do féretro da monarquia como o cão fiel sobre o cadáver de seu dono. Chorar esterilmente sobre as ruínas do passado, como Mario sobre as ruínas de Cartago, seria quando muito ato de probidade pessoal, mas de imperdoável fraqueza política".
Fez uma pausa solene e pediu ao auditório que proferisse o veredicto, se podia ou não continuar. Ovacionado, entrou na segunda parte a analisar os rumos da política republicana. Tomou parte ativa no motim contra o fechamento do Congresso Federal, de que resultou a renúncia do Governador José Gonçalves. Era um espírito lutador e o Forum de Caetité tem hoje seu nome.
Do excelente latim que sabia, deixou Cesar Zama admiráveis e duradouros testemunhos. Talvez, nenhum latinista brasileiro haja aplicado o conhecimento da língua de Cícero num plano histórico, literário e informativo com a abundância, vivacidade e interesse de suas obras. Duas delas evidenciam superiormente a extensão das pesquisas feitas e o trabalho que custaram. Na primeira recordou a História dos três grandes Capitães da Antigüidade (Aníbal, Cesar e Alexandre) editada em 1893, lamentando-se no prefácio: "Já que como político nada posso fazer por minha pátria, que não é feliz, procuro serví-la em outro terreno".
Versa a segunda, editada em 1896 sobre Os três grandes Oradores da Antigüidade (Demostenes, Perícles e Cícero) e da meditação do passado buscava tirar lições para o presente: "A corrupção da sociedade antiga foi grande, menor todavia do que a que lavra entre nós".
Vê-se bem o espírito com que mergulhou no passado, sem que a narrativa perdesse nem o fio dos acontecimentos, nem o inesperado dos episódios, nem a grandeza e a brutalidade das almas. Publicou em 1901 Prosadores e Poetas Latinos, informativo e erudito, classificados os autores em quadros relativos à idade de ouro, de prata e de bronze da literatura romana. Produziu Os Reis de Roma, puro exercício de pesquisa erudita sobre as origens do poder político, em que semeou passagens alusivas a figuras e acontecimentos da hora que estava vivendo.
Sob o pseudônimo de Wolsey lançou o Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a campanha de Canudos, fato por ele classificado como "único e inconcebível de atroz incapacidade de um governo". Também pertencem à sua autoria, sob o mesmo pseudônimo, uns Apontamentos históricos para a biografia do Marechal Floriano repletos de finas reflexões sobre a psicologia do Marechal de ferro.
Cesar Zama faleceu em 1906. Há informação de que se casara nos últimos anos de vida.