A Cidade de Caetité. Os Primeiros

Anos de Anísio

 

 

 

M Caetité, cidade sertaneja, localizada na Micro-Região da Serra Geral, também chamada Chapada Diamantina e das Almas, na zona de transição entre o planalto e a depressão do São Francisco a 827 metros de altitude e a 800 quilômetros de Salvador, nasceu a 12 de julho de 1900 o menino Anísio, nono filho de Ana de Souza Spínola (Donana) e décimo quarto de Deocleciano Pires Teixeira, que três vezes se casara com três irmãs da família Spínola, estirpe patrícia das Lavras Diamantinas. Nascera muito miúdo causando preocupação.

Princesa do sertão chamada, antiga Vila do Príncipe, tricentenária, privilegiada pelo clima ameno, temperatura média anual de 20 graus, firmou-se Caetité como pouso obrigatório de descanso e abastecimento dos que, vindos do governo colonial da Bahia, demandavam a Vila-Boa de Goiás, onde abundava ouro de aluvião, e daqueles que, partindo de Ouro Preto, contrabandeavam ouro e diamantes.

Quem primeiro a povoou foram fazendeiros de gado das margens do São Francisco, atraídos pela temperatura e pelos lacrimais permanentes de água potável do alto da serra. Procede assim da geografia o contraste essencial entre a cidade e a região circunvizinha. Esta singulariza-se pelos cerrados escassamente produtivos, aqui e além capões de mato espalhados em sítios úmidos, do norte de Minas à Chapada Diamantina. Pelo lado oeste, descendo a serrania, o vale do São Francisco marcado, di-lo Nelson Spínola Teixeira neste traço vigoroso de conhecedor da região, "pela inclemência do sol, o mormaço e a solina dos grandes silêncios do meio-dia, quando pássaros e animais emudecem na sonolência das sestas imperiosas".

O belo clima, os invernos exigentes de agasalhos, a sociedade mais policiada, seu papel de "ponto de passagem" (até hoje distingue-se na cidade o morador do "forasteiro"), a população flutuante das escolas que, no passado e no presente, imprime um toque de juvenilidade à fisionomia urbana, certo formalismo e mesmo distinção na convivência, ausência de lutas e rivalidades sangrentas, são fatores caracterizantes da ambiência citadina, que lhe valeu o apelido de "Corte do Sertão" e lhe conferiu os aspectos peculiares de seu comportamento social.

A perseguição política desencadeada ao tempo da Inconfidência repercutiu em Caetité pela chegada de famílias mineiras que transportaram bens e seu modo social recatado de viver propício à formação de clãs de parentesco e clãs políticos.

Em pontos da serra do Espinhaço houve afloração abundante de ametistas, pedra semipreciosa que, no passado, gozou até de certo apreço suntuário e deu lugar à atividade mineradora nomeadamente de um núcleo de alemães localizado em Brejinho das Ametistas, distrito de Caetité. Desses alemães dizem que chegaram a influir no mercado de tais pedras na Europa e escondiam a procedência delas, exportando-as como originárias de países vizinhos dos nossos. Todavia, a mineração não amoldou a fisionomia econômica da zona.

Ouro não havia naquelas paragens. Baseou-se a economia na agricultura de subsistência e na pecuária extensiva localizada às margens do São Francisco e no Baixio de Monte Alto. A escravaria concentrava-se nos canaviais do Recôncavo. Porém, se não dominava o relacionamento o antagonismo entre servos e homens livres, dele repontava a distância social entre as famílias urbanas e os habitantes da zona rural, os tabaréus, os "bruaqueiros" que traziam das roças os gêneros de sua produção e os colocavam à venda nas feiras semanais, conglomerados vivos de gente, animais e mercadorias, a coisa típica colorida mais bonita oferecida pelo sertão aos nossos olhos. A feira era negócio e festa de homens. Donas de casa, moças da sociedade não saíam à rua senão a visitas, para reuniões familiares ou freqüentar a igreja.

Havia mesmo o costume de enviarem os comerciantes às residências, para escolha, das novidades e tecidos chegados da capital. Pelas tropas, conjunto de animais de carga que cortavam o interior de ponta a ponta, abastecia-se o sertão. Havia lojas, até bonitas, de grande sortimento, hoje desaparecidas dada a facilidade de comunicações.

Oito dias de viagem a cavalo gastavam-se de Caetité a Machado Portela, a estação mais próxima de estrada de ferro. A duração da travessia entre Caetité e Bahia durava quase tanto como a travessia marítima entre Salvador e Lisboa.

A cidade situada a tal distância absorveu das condições naturais e humanas, localização, qualidade da gente, a seiva de um centro em que a importância urbana e política de seu papel se foi desdobrando na aquisição da instrumentalidade indispensável ao exercício de atividades relevantes. O correio inaugura-se oficialmente em 1832. Instala-se em 1855 a sede da Comarca. O telégrafo começou a operar em 1896. Expede-se em 1913 a bula da criação do Bispado, que se completa em 1915. Dispõe de água encanada desde 1919. Em 1922 inaugurou, embora precária, iluminação elétrica. Hoje, recebe energia da hidroelétrica de Correntina.

A esse equipamento burocrático, eclesiástico e administrativo, somou-se a contribuição cultural representada, a partir dos derradeiros anos do século, pela Escola Normal e pela Escola Complementar. Um sopro de curiosidade e iniciativa intelectual estimulante de oradores e poetas encontrou expressão jornalística em A Pena, quinzenário de bastante repercussão local e regional, fundado em 1897 por João Gumes (João Antonio dos Santos Gumes), advogado provisionado, funcionário da Intendência. Nele publicou o romance Os Sampauleiros, espécie de saga dos baianos que partiam a buscar em São Paulo trabalho e melhor salário.

Toda a área sertaneja, que em Caetité possuía sua sede política, começara a perder já para o fim do Império, a partir de 1870, não só escravos (na cidade havia uma igreja de São Benedito) como trabalhadores para as derrubadas e cafezais paulistas. Nelson Teixeira lembra que a população rural foi intensamente desfalcada pela emigração com destino a São Paulo, onde o nome de Caetité soava familiar em cidades como Jaú, São José do Rio Preto e Cravinhos.

O quinzenário A Pena mantinha-se mais com assinaturas oriundas de São Paulo que da região. Jornal de noticiário sertanejo, apreciado pelos trabalhadores emigrados, que se lançavam a pé, de alpercatas, rumo aos cafezais paulistas, obviamente os homens mais sadios, os proprietários rurais alarmavam-se com a fuga de braços.

Agências do correio em Caetité, Vila Velha, hoje Livramento do Brumado, recebiam constantes remessas de dinheiro enviadas pelos baianos emigrantes.

Um pouco a abolição, mas sobretudo o surto do café desmantelaram a economia agrícola e mineradora que vai de Minas do Rio de Contas a Condeúba. O "sampauleiro", produto típico desses fatores e também das estiagens locais e da pobreza tradicional da economia, ajudou a prosperidade das fazendas paulistas.

Embora cidade de população pequena, hoje não mais de dez mil almas, graças aos nomes tradicionais diretamente vinculados às fontes de poder e prestígio na Capital - os Teixeiras, os Rodrigues Lima, os Tanajuras - montara ali a política um quartel-general cuja autoridade cobria diversos municípios da região. À liderança local coubera a honra histórica de dar o primeiro governador eleito da Bahia, o dr. Joaquim Manoel Rodrigues Lima. A presidência do Senado e, portanto, o titular da vice-governadoria, recaía num dirigente sertanejo, o dr. José de Aquino Tanajura, de Vila Velha, hoje Livramento do Brumado. Nome ilustre da inteligência e da vida administrativa do país, explicava Adroaldo Junqueira Ayres essa preponderância sertaneja na seleção de candidatos à investidura inicial republicana na Bahia, pela necessidade de afastar do ninho de monarquistas da capital e do recôncavo as figuras mais salientes.

A sugestão do nome de Joaquim Manoel Rodrigues Lima partiu de Severino Vieira que, urgindo as articulações necessárias, dirigiu-se a Deocleciano Pires Teixeira cuja carreira política, deputado provincial ainda na monarquia, já o destacava na liderança do sertão. Coube a Deocleciano vencer a resistência de Rodrigues Lima, médico afamado em toda a região. Ele, Luiz Viana da cidade da Barra no São Francisco e José Gonçalves da cidade de Bonfim puseram no processo da eleição a autoridade de suas chefias. Nesse pleito os três se elegeram senadores.

Caetité recebera com a república duas instituições de ensino de nível médio, a Escola Complementar e a Escola Normal, que ilustravam a moldura da cidade. Mas, ali por 1904, então na governança do Estado, o dr. Severino Vieira rompeu com seu antecessor, o Conselheiro Luiz Viana a quem o dr. Deocleciano se achava ligado por laços de amizade e partidarismo. Dizem que, solicitado a definir-se, respondera ao Governador: "erraste o endereço". Logo perdeu as posições, fecharam a Escola Normal e, em seguida, a Complementar. Caetité murchou.

Parece que Severino, pretendente à sucessão de Rodrigues Lima, não perdoou a Luiz Viana tê-lo derrotado nesse lance partidário. De tudo ficou uma mágoa política que Anísio por vezes recordou.

A reviravolta transferiu o bastão da chefia às mãos dos Rodrigues Lima, família prestigiada, oriunda de Mucugê que mandava à Câmara Federal, em mandatos sucessivos, o dr. Antonio Rodrigues Lima, professor da Faculdade de Medicina do Rio, ginecologista famoso, especializado em Viena, pai do professor Octavio Rodrigues Lima que prolonga no prestígio social e profissional a fama paterna.

Estaria reservada ao ano de 1912 a transfiguração da vida de Caetité numa primavera escolar. De fato, nesse ano, o missionário Henrique Mac-Cauly, que estudara medicina em sua terra pouco faltando para formar-se, vocação de educador e de proselitista, andou pelo sertão à procura de cidade que oferecesse condições à fundação de um colégio. Não pedia dinheiro. Buscava apoio moral, tanto mais indispensável quanto o colégio era de inspiração protestante. Além das vantagens de localização, clima e tradição social, esse apoio encontrou-o em Caetité onde o acolheu o coronel Cazuzinha (José Rodrigues Lima), intendente e chefe da grei situacionista. Mostraram os Rodrigues Lima nesse episódio, além de atilamento político, abertura de espírito honrosa aos foros da cidade. Eram católicos como todo mundo. Logo perceberam que nem a confissão do professor irlandês nem a mera fachada protestante do colégio abalariam a rocha católica do povo. Antes de missão para converter, seria missão para educar. Cometer sobre o adversário, nas barbas do adversário, a proeza de dotar a cidade, pobre de instituições de ensino, de colégio novo e promissor, gerava uma perspectiva de confiança na ação dos responsáveis pela administração.

De fato, a inauguração do colégio de Mac-Cauly não alvoroçou sentimentos religiosos, mas a rivalidade partidária. A oposição identificou na nova escola antes desafio político que confessional. Precisamente, um dos chefes da oposição era Monsenhor Bastos, Luis Pinto Bastos, pertencente a prestigiosa família da região, os Bastos, fazendeiros no São Francisco, ele próprio dono da fazenda Parateca. Vocação irresistível de político, mostrou-lhe a lucidez que o caminho a seguir naquele lance não seria o de atiçar desconfianças entre crentes, mas o de procurar resposta à altura da iniciativa dos adversários.

Ora, dentre em pouco Caetité seria sede de Bispado, sinal de nova dimensão de sua importância no corpo do Estado, pois, naquela época, os bispados se contavam pelos dedos da mão e praticamente se localizavam no litoral ou próximo a ele.

Homem de ação, lançou-se Monsenhor Bastos à iniciativa de atrair para Caetité um grupo de jesuítas que, em 1910, vinham de ser expulsos de Portugal e colônias. Vizinha da fronteira de Minas Gerais, não muito distante do vale do São Francisco onde se situavam as fazendas dos chefes políticos, sobranceando as cidades próximas, coisa de sua tradição social e política, Caetité que já reunira esses títulos para conquistar o Bispado, agora novamente deles fazia credencial no esforço de abrir à Companhia mais um espaço à sua ação apostólica e educadora.

Foi feliz Monsenhor Bastos. Os inacianos procedentes de Campolide, o celebre colégio lisboeta, haviam fundado, há pouco, em Salvador, o "Antonio Vieira", onde todos os professores eram padres e irmãos, excetuados os de piano e violino. Certamente, os padres oriundos de Moçambique e Macau, integrantes da província portuguesa, excediam a lotação do "Antonio Vieira". Terá isto facilitado que vigoroso núcleo de jesuítas fundasse, em Caetité também em 1912, o "Instituto São Luis Gonzaga". Eram cerca de 15 padres e irmãos, na maioria portugueses e também franceses, alemães, suíços e irlandeses, gente adestrada em seu ofício e sua missão. Entusiasmado pelo acontecimento, o dr. Deocleciano prestou apoio decisivo ao "São Luis", cedendo gratuitamente o prédio de instalação e construindo o dormitório do internato.

Desse modo, lembrava realmente uma primavera escolar a presença de dois estabelecimentos de ensino no âmago do sertão sem estradas, isolados, dignos de figurar entre os melhores da capital. Primavera que durou muito, o "São Luis" até 1924 e o "Colégio Americano" até 1925. De ambos guarda-se memória inolvidável pelos serviços extraordinários que prestaram. Estaria na cabeça de padres e protestantes a mira suprema de conquistar almas e prosélitos. Entretanto, nos dois colégios os sertanejos viram só instrumentos de bom ensino e de níveis mais apurados de educação pessoal. É possível que alguma réstia de opção partidária aflorasse na preferência por um ou por outro da parte de famílias mais engajadas na intransigência personalista das parcialidades. Contudo, jamais se noticiou qualquer tensão confessional no seio da população.

Evoluímos ao contato de três religiões diversas: do colonizador, do índio e do negro. Ao revés de colidir, tenderam ao sincretismo. Devem achar-se aí algumas fortes raízes da tolerância religiosa brasileira. Desde 1915, Caetité possuía o "Centro Espírita Aristides Spínola" do nome ilustre de um tio de Anísio. Todavia, de espiritismo no sertão era raro se ouvir falar.

Conduziam os jesuítas o "São Luis" na acepção clássica de ginásio de preparatórios. O internato chegou a acolher setenta rapazes e superava em número o externato. Havia mais alunos vindos da região circunvizinha que da cidade. O "Colégio Americano" parecia preferido pelos filhos da cidade e, sendo misto, era muito procurado pelas moças e trouxe inovações nos métodos pedagógicos.

A formação desse centro de ensino secundário, a primavera escolar que floresceu em 1912, teve lugar em período crítico da economia rural da região, sofrendo a cidade os reflexos do esvaziamento determinado pela emigração e pelo fechamento em 1904, por questões políticas, da Escola Normal e da Escola Complementar. Os dois colégios, o "Instituto São Luis" e o "Colégio Americano" reinstalavam em Caetité um tipo de valorização do trabalho pelo estudo, o que bem quadrava às condições naturais e à vocação civil e política da cidade.

Residiam o dr. Deoclesiano e família em mansão assobradada na Praça de Santana, até hoje habitada por descendentes diretos, espaçosa edificação de mais de vinte comodos, além de seis salas, mobiliadas com peças austríacas e vários retratos de antepassados. Ambiente familiar numeroso, irrequieto e aberto à conversação, preferentemente nas refeições se repassavam acontecimentos, leituras e episódios. Por vezes, iluminavam as opiniões rompantes de veemência verbal. Em Anísio patenteava-se a tendência a discernir, a explicar, predominando a nota de judiciosidade e atilamento iluminativo de sua palavra. Dedicava-lhe o dr. Deoclesiano verdadeira admiração pelo senso de equilíbrio dos conceitos e julgamentos. Considerava-o um magistrado nato.

Iniciou o curso primário na escola de Da. Maria Teodolina das Neves Lobão, a primeira professora municipal a lecionar em Caetité classe de homens. Dele guardou a impressão que não era uma criança comum. Transferiu-se para a escola de sua tia a professora Prescila Spínola onde deixara a imagem de garoto "pequenino e conversador". Ele e os irmãos quase não participavam das brincadeiras dos outros meninos na rua. A camaradagem era só na escola. A lembrança na cidade dava as moças da família Teixeira como "orgulhosas".

A infância alegre, a adolescência feliz, a esplêndida saúde apesar do corpo franzino dotaram Anísio de gênio comunicativo e ameno. Gostava de caçar perdizes e codornas durante as férias na fazenda Santa Bárbara ou na dos Campos, bom atirador que era.

Dentre os primeiros matriculados no "São Luis" estavam os três mais jovens Teixeiras: Anísio, Jayme e Nelson, estudantes excepcionais, temperamentos diferentes. Destacou-se logo Anísio pelas lições, pelo rigor nos deveres e, de modo especial, pela viveza do espírito. Campeão de prêmios do colégio, os padres sentiram a qualidade do jovem que tinham nas mãos.

No "São Luis" desponta em Anísio a atração admirativa pela Companhia. Marcar-se-ia sua conduta, existência afora, pela fascinação de entregar-se a alguma coisa que lhe absorvesse inteligência e vontade na missão de realizar a meta da vida. Tinha alma de missionário. Permaneceu missionário a vida inteira. Sua incoercível propensão ao debate intelectual, o dom de compreender e fazer lhe deparariam na tradição apostólica da Companhia de Jesus o campo eleito de uma vocação a serviço do ideal. Anísio nada tinha de místico. Místicos os jesuítas não são, mas homens de combate, como soldados. Pelo ascetismo e pelo treinamento intelectual, eles compõem um tipo de vivência na qual a fé em sua inteireza revelada não se guarda apenas pela razão mas, igualmente, pelas obras para a maior gloria de Deus.

A seriedade de pensamento, a pureza de costumes talhavam Anísio para um destino que bem podia ser sacerdotal. Ele não chega do "São Luis" ao "Antonio Vieira" completamente conquistado pela Companhia. Mas de todas as perspectivas abertas, era a Companhia a que mais o seduzia. Desdobrar-se-ia nos anos seguintes o processo dessa conquista, que haveria de conflitar-se entre o que ele próprio discerniu como o "deísmo austero, revolucionário e republicano" bebido da tradição familiar, especialmente do exemplo e das idéias do pai (aquele vago deísmo voltairiano de "arquiteto do universo") e o "catolicismo ultramontano e reacionário que a Companhia de Jesus, ainda sob a candência do golpe sofrido, trazia para o Brasil".

Em 1915 aportou ao internato do "Antonio Vieira" a completar o secundário um grupo de rapazes sertanejos, diversos deles preparados no "São Luis" entre os quais Anísio e Jayme. Nelson chegaria no ano seguinte. Era o mais moço. Eu participava desse grupo, saído da escola primária do professor Alfredo José da Silva, em Livramento do Brumado, que me permitiu acesso direto ao primeiro ano ginasial. Aí conheci Anísio já envolto em auréola de estudante excepcional. Estou a vê-lo, pequeno de estatura, magro, no rosto seco uns olhos irrequietos e brilhantes, comunicativo e sério. No fim do ano, o sólido preparo permitiu-lhe prestar oito exames finais, ocorrência muito pouco comum e, talvez única, naquele regime de exames parcelados, no severo Ginásio da Bahia.

Anísio ganhou no colégio, além da admiração dos companheiros, os primeiros devotos, núcleo inicial de dedicados e colaboradores que nunca cessou de conquistar através dos longos anos da atividade de educador. Consolidou o conhecimento, a admiração e o respeito do Padre Cabral (Luis Gonzaga Cabral) que o elegeu a maior recompensa da nova vinda dos Jesuítas à Bahia. Conferencista exímio, atraente na conversa, humanista, estrategista da ação apostólica, alguma vez professando a Apologética aos alunos em fim de curso, o Padre Cabral incandesceu a formação intelectual e religiosa pelos padres proporcionada a Anísio. Ele era, nos termos do testemunho de Anísio, um "jesuíta da velha escola que dividia seu fervor pelas duas paixões da Companhia: a da inteligência e a do ascetismo". Passou Anísio então, a viver seu sonho ardente de loyoliano, durante todo o curso de direito, iniciado na Bahia, concluído no Rio, em que foi destacado congregado mariano.

No período acadêmico, não o empolgou o estudo do direito. No primeiro ano da Faculdade na Bahia, encontrou lecionando Filosofia do Direito o professor Virgilio de Lemos. Foi sem dúvida seu contato inicial com um pensamento baseado nas linhas do racionalismo científico tão oposto ao teologismo filosófico de sua formação católico-jesuítica.

No Rio, pouco assíduo às aulas da Faculdade da Rua do Catete, não se ligara em camaradagem mais ativa aos colegas, embora entre eles circulasse discreto e cortês. Seu "sonho loyoliano" levava-o a curtir o noviciado ainda que fora dos muros do Seminário.

Residia na Pensão Schray, onde morava também seu tio Rogociano, bem defronte do Palácio do Catete, perto da igreja dos maristas, que freqüentava. Raramente ia ao centro da cidade. Era-lhe curto o tempo para estudos e leituras prediletas. Lia muito Santo Tomaz. Vivia como perfeito seminarista sem batina, preocupado em lançar na escorregadia razão a âncora da fé, nele sempre intranqüila e até polêmica.

Companheiros e colegas cercavam-no de respeito e afeição. Ele gostava desse convívio em que sua presença logo elevava a natureza e o tema das conversas. A gente às vezes troçava, mas a pureza de sua conduta comovia. A desenvoltura de seu raciocínio encantava. Gostava de debater. Seu forte era equacionar problemas, levantar situações, partir ao encontro de argumentos e punha calor humano nas relações pessoais.

Colou grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais em 1922, ano do centenário, ano de festas no Rio de Janeiro de um milhão de habitantes, Rio quase lírico, fácil de morar, de andar, em que a entrada da Baía da Guanabara continuava ainda a mais bela do mundo.

Ele e o Padre Cabral viajaram do Rio para Caetité, via Pirapora. O jesuíta ali se deteve um mês e não logrou demover a oposição do pai e da mãe à iniciação do filho nas hostes de Santo Inácio. O dr. Deocleciano Pires Teixeira depositava em Anísio a esperança de um destino político. Não lhe augurava o sacerdócio, mas a vida pública, coroada pelos louros correspondentes ao ideal cívico republicano de sua mocidade. Havia conotações típicas no contexto brasileiro desse ideal republicano: autonomia dos Estados, separação da Igreja e do Estado, laicidade do ensino público, liberdade religiosa e de pensamento, temporariedade dos cargos eletivos e garantias individuais. Laivos de anticlericalismo cruzavam-se no pensamento político que não morria de amores pela Igreja, aliada passiva da monarquia. Enfim, um governo das leis e não dos homens. Tenaz nota de rebeldia voltaireana, recordou o próprio Anísio, repontava da posição ideológica do dr. Deocleciano, "encarnação das virtudes patriarcais enriquecidas ou modificadas pelos ideais republicanos".

Já não se ouvem mais na linguagem política as palavras república e republicano. A republicanidade da vida servida por uma ética leiga na condução dos negócios políticos caracterizava a orientação dos pioneiros da abolição e da propaganda. Anísio respirou na ambiência familiar esse "deísmo austero, revolucionário e republicano" que tornara suspeito ao velho Deocleciano o "catolicismo ultramontano e reacionário dos jesuítas". Ele não cedeu, não concordou, e nessa recusa teve sempre a mais firme solidariedade da mulher.

Anísio, ele próprio é quem depõe, "estava longe de ser o católico convencional dos hábitos brasileiros. As retortas da Companhia de Jesus haviam feito de mim o servidor ardente do que minha mãe chamava a "religião nova", pela qual os filhos estavam convidados a deixar pai e mãe e seguir o Mestre. Tanto eu como uma irmã andávamos, então, inclinados a seguir o conselho do Evangelho, com o que muito escandalizávamos o catolicismo materno saturado de brandura brasileira".

Anísio passou praticamente o ano de 23 em Caetité depois do fracasso da missão do Padre Cabral. Problemas políticos locais em Guanamby, onde um de seus irmãos mantinha uma liderança agitada, ocuparam-lhe a atenção.

É de 18 de maio de 23 a carta que a seguir se transcreve dirigida ao irmão Nelson no Rio. Documento importante, por ele pode-se avaliar o estado de ânimo de Anísio, ansioso por ingressar na Companhia, condescendente com a oposição do pai e da mãe, sentindo-se perdido no sertão, pronto ao combate que também aconselha ao irmão.

 

Caetité, 18 de maio de 1923.

 

Nelson.

Esta seguirá com Jayme que parte hoje, levando, penso, as maiores saudades do sertão.

Tenho em minha mesa uma cartinha sua de 4 do P. a que ainda não dei resposta. Este Caetité também nos toma tempo. Ultimamente os acontecimentos de Guanamby absorveram nossas atenções. Apenas no dia 15 voltei de lá, onde estive funcionando como promotor interino. Tenho tido assim estes quatro meses e meio de sertão ocupados com estes vaivéns ou com toda uma sorte de pequenos nadas que, afinal, não nos deixam no espírito senão um desgosto invencível por este inútil vivejar. Estou convencido que sou um desenraizado, déraciné, neste nosso querido torrão natal. Terra ideal para um mês, dois meses de repouso, mas, para viver e viver com o grande depósito que é a vida, é a terra mais ingrata que se pode imaginar. O sertão é o desperdício de nossa energia interior. Eu, porém, continuo como sempre em luta. Por um lado uma condescendência com a família, que não tenho querido negar; por outro as exigências do meu dever e de minha consciência. A solução para adiar, é a de mais provável realização. No entanto o que irei perder com isto? Este meio de aldeia com seu poder sutil de trazer tudo na mesma temperatura (é a própria teoria do calor um pouco modificada, porque aqui o mais frio é que dirige o nível) não fará de mim também um sertanejo de horizonte acanhado e nenhum ideal? Tilinha (era a irmã Hercília que professaria no Bom Pastor) segue no dia 22, tendo dado provas de uma tenacidade de energia que me edificou.

Aí no Rio, como vai V.? E os colegas e amigos? O Maximo?

Acostume-se a estar sempre combatendo por alguma cousa. É um erro fechar a vida de estudante como se faz aí no Rio, dentro deste parênteses de privação social. Nós temos sempre uma missão a cumprir, e toda missão dos homens é social. Devemos, porém, saber confundir e harmonizar o nosso trabalho, a nossa missão e o nosso prazer como diz Barrés o que é no fim de contas, encontrar sua vocação. Aqui todos bem enviando-lhe saudades e saudades. Sou o mano sempre aff. e ded. Anísio.

Em verdade, não encontrou Anísio na família apoio algum a seu desígnio de professar a regra de Santo Inácio. Nem ele, nem a irmã Hercília. Ademais, a formação católica da família já por esse tempo apresentava fendas, por ela circulavam espíritas e até uma outra irmã nutria indiferença por crenças sobrenaturais. Da parte do dr. Deocleciano e de Donana sempre partiu firme oposição. Há um episódio interessante da contrariedade materna quando Hercília insistiu e professou no Bom Pastor, onde permaneceu seis anos. A mãe como protesto deixou de freqüentar a missa, só voltando a fazê-lo quando a filha retornou à casa.

O sonho loyoliano de Anísio, não tinha mesmo como prosperar. Acabaria esvaindo-se.