História da Educação Brasileira: novas abordagens de velhos objetos
Clarice Nunes
Na apresentação dos três volumes que compõem a obra
coletiva Faire L’histoire
(1974), Jacques Le Goff
e Pierre Nora marcam a intenção de divulgar um novo tipo de história. A
novidade anunciada expressa-se nos problemas, nas
abordagens e nos objetos. Alguns motivos são apresentados como justificativa
para a elaboração dessa nova história: a tomada de consciência dos
historiadores no que diz respeito ao relativismo da ciência histórica; a
agressão de outras ciências que invadiram o campo do historiador numa tentativa
de diluí-lo e absorvê-lo e uma nova concepção de história contemporânea que
questiona incisivamente a tradição da história como ciência do passado.1
Consciente da sua sujeição
às condições em que vêm sendo produzida, a nova
história se apresenta através de uma multiplicidade de objetos antes
impensados: os objetos aparentemente intemporais, como o corpo e o clima; os
objetos que se inclinam para uma espécie de história oculta, como a
mentalidade; os objetos "desviantes" da história, tais como a imagem
cinematográfica e o inconsciente da psicanálise; os objetos triviais que
finalmente se instalaram na "dignidade acadêmica", como a cozinha, e
os objetos que, a partir de uma reviravolta na forma como são olhados, revivem.
O livro, neste caso, é um bom exemplo.2 Ao
tratá-lo na sua materialidade, a história cultural - uma das versões da nova
história - tem feito sua arqueologia, além de oferecer uma contribuição
original e instigante sobre os processos de produção e reprodução cultural.3
Nosso intuito, neste texto,
inspirado nessa nova forma de praticar a história, é justamente mostrar a
possibilidade de recriação de um dos objetos mais focalizados e paradoxalmente
pouco conhecidos da história da educação brasileira: a instituição escolar.
Este velho objeto de investigação pode tornar-se novo aos nossos olhos na
medida em que soubermos trazer à tona, na travessia da pesquisa, aspectos antes
ignorados ou secundarizados. Como já chamamos atenção
em artigo recente, a retomada de velhos objetos na
história da educação, sob uma nova ótica, coloca em relevo uma questão de
fundo: a demarcação de fronteiras entre a história da educação e a história
cultural.4 Aliás, o interesse pela escola e sua investigação como
"instituição mediadora" de práticas culturais é o exemplo mais claro
da invasão da produção da nova história cultural sobre um campo
tradicionalmente ocupado pela história da educação.
A nossa história da
educação tem primado por focalizar a escola seja sob a lente da legislação e
organização escolar, seja sob a lente das demandas de escolarização da
sociedade brasileira, seja sob a perspectiva do pensamento pedagógico ou do
ideário. Muito pouco sabemos, no entanto, sobre as suas
práticas: como elas se materializavam? quais os seus
efeitos? como traduziram o movimento de modernização
da sociedade, movimento este que também ajudaram a construir? Estas questões
crescem em importância se considerarmos que elas operam um deslocamento de
enfoque dos modelos dominantes de escolarização (a Escola Tradicional, a Escola
Nova, por exemplo) para as múltiplas e diferenciadas práticas de apropriação
desses modelos nas quais a ênfase da problematização
recai sobre os usos diversos que os agentes escolares fazem da própria
instituição escolar, sobre a prática de apropriação de práticas não escolares
no espaço escolar e os múltiplos usos não escolares dos saberes pedagógicos.
A recriação de um objeto no
processo de pesquisa é mais complexo do que parece à
primeira vista, antes de mais nada, porque é um problema de concepção
que enfrenta os mais diversos obstáculos: o da cristalização das matrizes
interpretativas e de sua necessária crítica, o das fontes de pesquisa, o da
reconstrução das categorias analíticas, o da sua narração. O espaço da criação
de um novo objeto é menos um campo delimitado com precisão, embora estejamos a todo momento procurando defini-lo, e mais a tessitura de
uma estratégia de desvio que permita elaborar ângulos múltiplos de construção
do próprio objeto.
Como salienta lucidamente
Antonio Candido, a atividade da inteligência nessa construção é o esforço
lógico e político de distinguir. As generalizações desfiguram, correm o risco de encobrir aspectos significativos para a
compreensão das questões estudadas. Por este motivo, um dos feitos mais
difíceis para o pesquisador é alterar as noções dominantes e transformar em
problema o que era tomado como fato estabelecido. A renovação do problema leva
à atitude profundamente indagadora que é pensar simultaneamente os seus
diversos lados. Graças a esta atitude ampliamos consideravelmente nosso poder
de visão.5
Dentro dos limites deste
texto faremos uma exposição do nosso empenho de reconstrução da escola pública
carioca, procurando não cair na armadilha da generalização indevida ou da
rotulação impertinente. Trabalharemos nossa temática em duas dimensões: a do
processo de pesquisa e a dos seus resultados. Nossa ênfase recairá sobre estes
últimos, embora não abarquem a totalidade da nossa investigação.6
Esta ênfase nos resultados se justifica na medida em que
eles encarnam o trabalho teórico realizado enquanto apropriação e reconstrução
de referenciais que não se esgotam em sua enunciação, mas se prolongam e, de
acordo com certas necessidades, se metamorfoseiam na prática da pesquisa,
aceitando o desafio do objeto que resiste ao nosso saber. Julgamos
oportuno, no entanto, oferecer certas indicações metodológicas que
consideramos cruciais no exercício de recriar a escola como objeto de estudo.
Não se trata, assim o imaginamos, de produzir uma exemplaridade, mas tão
somente mostrar alternativas possíveis de renovação no âmbito da pesquisa
histórica em educação.
O senso dos matizes
O primeiro passo do
pesquisador em seu trabalho é a revisão bibliográfica do tema. Nesta revisão
ele opera como o crítico literário que se esmera na construção de um espaço
intelectual, espaço este que é ponto de encontro de diversas obras com toda a
possibilidade de diálogo entre elas, o que pressupõe o jogo das afinidades e
das oposições. Ao negar determinadas heranças no campo que estuda esse crítico
precisa, antes de mais nada, conhecê-las. Sua tarefa primordial é dispor as
obras escolhidas, descobrindo não só a posição de cada uma dentro de um
conjunto mas, obviamente, as peculiaridades que cada
uma carrega. Cabe a ele menos transmitir informações e mais filtrá-las. Opera
por negações e associações: define, isola e, finalmente, relaciona.7
A crítica da literatura
pedagógica exige, portanto, rigor e imaginação. É um exercício no qual o
pesquisador busca entender não só o que as palavras dizem, mas o que se diz
entre elas. É a garimpagem do texto na qual dirigimos nossa atenção não apenas
para o que quer dizer o autor lido, mas principalmente para o que efetivamente
diz sua escrita, ou o que ela não diz. Ler é, portanto, praticar uma
problemática. Ao procurar focalizar a prática da escola pública carioca
acabamos também focalizando as transformações do papel do educador num dos
maiores centros urbanos brasileiros. Dessa forma, o espaço (cidade do Rio de
Janeiro) e o tempo (décadas de vinte e trinta), implícitos na prática que
elegemos para estudo, constituíram o paradigma de um problema: a construção de
uma identidade profissional que privilegiou o campo educativo, campo este, que
contribuiu na configuração do paradigma moderno na sociedade brasileira através
de uma proposta em ação, proposta esta identificada no bojo do movimento da
Escola Nova. Esta formulação emergiu paulatinamente da avaliação dos argumentos
recorrentes e das lacunas explicativas na historiografia da educação
brasileira.
A literatura pedagógica tem
comumente associado ampliação da escolaridade e processo de urbanização, mas
não tem feito a mesma relação entre Escola Nova e ampliação das oportunidades
educativas ou, mais amplamente, entre Escola Nova e, democratização da
educação.
No primeiro caso, a relação apontada fica num nível muito
geral. Nesta generalidade as práticas culturais específicas do espaço urbano
permanecem completamente ignoradas. O desconhecimento dos traços particulares
do processo de urbanização tem aberto o caminho para a repetição argumentativa
que nivela todas as práticas culturais e empurra as práticas escolares para a
penumbra. De fato, não temos ainda uma ampla e apurada pesquisa sobre o papel
da escola e dos educadores na construção de estilos, de comportamentos, de
formas urbanas de sentir e viver. Neste sentido, o resgate da problemática da
cidade como signo, que já mereceu análises refinadas de cientistas sociais e
historiadores, é fundamental para revermos certas representações cristalizadas
da escola, da sociedade, dos educadores e da própria história da educação.8
A ausência de uma tradição
no tratamento das cidades brasileiras como signos tem seus efeitos perniciosos.9 Acaba levando os pesquisadores não
só a entremear o senso comum sobre a cultura urbana com o pensamento
educacional aí gestado, mas também reforçando
argumentos que tomam São Paulo como modelo da modernização da sociedade e
educação brasileiras. Isto não acontece por acaso. No plano da produção
acadêmica é esta cidade que aparece como locus por
excelência da afirmação dos interesses e da hegemonia do mercado, da superação
do antigo impasse já sinalizado pelas elites brasileiras desde o século XIX, o
de "liberalizar a sociedade pelo Estado". A partir do modelo paulista
de cidade, as explicações correntes fazem a crítica à escola nova brasileira e
cometem uma dupla e infeliz generalização: tomam São Paulo como o protótipo da
cidade brasileira e embaralham no mesmo feixe versões diferentes da Escola Nova
em nosso país.
Estamos convencidos de que,
apesar da ciência, do industrialismo e da democracia
serem as "idéias-força" do movimento da renovação da escola, elas
foram encarnadas de modo peculiar pelas iniciativas dos intelectuais na prática
urbana, de modo que, em nossa perspectiva, uma avaliação mais consistente dessa
temática só poderá ser feita a partir de monografias que, dirigindo o olhar
sobre a cultura urbana possam, ao iluminar a singularidade desse espaço, jogar
luz sobre a especificidade das experiências escolares vividas nos grandes
centros do país, nas décadas de vinte e trinta. Nesse sentido, nosso artigo
aponta um caminho que pode alargar a compreensão de questões tidas como
referências obrigatórias na análise da educação brasileira, mas de fato pouco
pesquisadas no âmbito da historiografia. Entendemos que as obras existentes
praticamente não exploraram as fontes dos arquivos disponíveis, limitando-se a
compilar - a partir de determinados referenciais teóricos - informações já
conhecidas de estudos mais divulgados.
Ao assumir o modelo
paulista de cidade fechamos a compreensão do movimento contraditório de
gestação do moderno, homogeneizamos violentamente o espaço social e cultural,
esmagamos tempos e experiências históricas diferentes num país plural como o
nosso. A nossa estratégia de desvio, obrigando-nos a operar um deslocamento
inicial da escola para a cidade trouxe à tona o Rio de Janeiro, como
contraponto instigante a São Paulo, na medida em que os estudos sobre a cidade
carioca mostram a prevalência de valores e práticas que não têm na lógica do
mercado o seu princípio organizador. Por isso, o estudo da escola pública
carioca necessitou de um acompanhamento crítico das imagens da cidade forjadas
desde o começo do século quando a construção de uma civilização urbana foi o
principal desafio da nossa vanguarda pedagógica, dos nossos intelectuais da
cidade.
Aliás, é impossível
examinar a trajetória da escola sem mencionar os intelectuais que a forjaram. E
como estes intelectuais têm sido maltratados pela descaracterização que sofrem
na nossa historiografia da educação! Nela, a escassez de reflexões sobre a sua
atuação concreta é brutal. Evidentemente não faltam obras de caráter laudatório
que desfilam aos nossos olhos vários retratos escritos. Não faltam também
trabalhos de exegese do pensamento pedagógico, pensamento este que aparece um
tanto pasteurizado, expurgado das motivações efetivas do cotidiano da sua
produção, particularmente da experiência vivida nas
Diretorias de Instrução Pública dos maiores e mais importantes centros
urbanos do país, onde estes educadores viveram impasses e propuseram
alternativas que implicaram visões diferenciadas das relações Estado e
Sociedade e Estado e Educação.
Reconstituir a trajetória
desses intelectuais educadores, sua prática e seus fundamentos no espaço da
cidade, suas articulações com outros grupos numa espécie de cartografia
histórica, pode nos oferecer uma visão menos estereotipada das relações
entre a sua atuação social e a sua produção intelectual.10
O esforço maior dessa tarefa seria perseguir não só as aproximações dentro
desse grupo, mas os afastamentos, as descontinuidades e as rupturas que
constroem opções diversas, dentro de uma constelação que vem sendo apresentada,
na historiografia da educação, de um modo homogêneo e onde as diferenças,
quando são apontadas, permanecem ainda num nível superficial de análise.
Examinemos o segundo caso,
ao qual nos referimos anteriormente, isto é, o corte de qualquer relação
significativa entre Escola Nova e democratização da educação. Esta ausência de
relação é explicável, em parte, pela matriz explicativa inaugurada com a tese
de livre docência de Jorge Nagle, transformada em
livro no ano de 1974: Educação e Sociedade na Primeira República. Neste
livro, Jorge Nagle defende a idéia de que o movimento
da Escola Nova se encarnou numa espécie de otimismo pedagógico que acarretou a tecnificação do campo educacional. Esta tecnificação
teria permitido, segundo ele, a emergência de uma escola mais preocupada com a
qualidade do que com a sua democratização e de educadores que, por oposição aos
políticos, tornaram-se técnicos. Incorporada por diversos autores, com maiores
ou menores distinções, esta matriz explicativa tornou-se hegemônica.11
A tese da tecnificação e o quadro explicativo no qual Nagle a arma reforçou um movimento dual de percepção da
realidade: sistema agrário-comercial x sistema urbano-industrial; sociedade
fechada x sociedade aberta; regionalismo x cosmopolitismo; escola nova x escola
tradicional; entusiasmo pela educação x otimismo pedagógico; perspectiva
interna x perspectiva externa; inovação x tradição; políticos x técnicos. Este
movimento tem sua raiz no atrelamento que Nagle faz das modificações ocorridas no campo educacional
às mudanças decorrentes da crise do sistema oligárquico e à expansão das
atividades industriais, que culminariam numa revolução de caráter
democrático-burguês no país. Tal visão o leva a enxergar as etapas que marcaram
nosso desenvolvimento capitalista de forma mecânica e a assinalar polarizações
onde a complexidade da situação e as novas interpretações sugerem que é
necessário e possível romper com a visão corrente do caráter liberal e
democrático associado à Revolução de Trinta.
Os nossos livros de
história da educação brasileira criaram a tradição de apresentar a Revolução de
Trinta como um marco para a periodização da evolução pedagógica do país. Se
este procedimento traz vantagens óbvias por condensar uma série de fenômenos em
torno do evento político, carrega também, como aponta
A tese da tecnificação
acarretou, como conseqüência, a estereotipagem do papel da burguesia e o
fechamento da discussão sobre a atuação dos educadores profissionais.
Enquadrados como técnicos, no que se segue a própria versão dos protagonistas
em questão, a matriz explicativa de Nagle
homogeneizou um grupo de tendências políticas heterogêneas e práticas
singulares que resistem à imposição de rótulos. Restringiu-os, ainda, àqueles
que ocuparam postos-chaves na gestão pública da educação, deixando de lado o
fato de que as reformas da instrução, na conjuntura de vinte e trinta,
impulsionaram a profissionalização dos professores das escolas públicas e
particulares formados pelas escolas normais, dos diretores, dos inspetores escolares,
dos médicos escolares e de outros especialistas (nas áreas de Psicologia,
Educação Física, Educação Musical, Didática, por exemplo) forjados nos cursos
de aperfeiçoamento promovidos pelo próprio Estado ou no exterior e através de
uma literatura pedagógica que passou a ser difundida. Tomou os educadores
profissionais como categoria já instituída no momento mesmo em que se
instituíam, apagando assim o percurso dessa instituição.
Para o autor citado, a ênfase na "qualidade do
ensino" levou a Escola Nova a cumprir uma dupla função: manter a expansão
da escola nos limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um
tipo de ensino adequado a esses interesses. Com isso, a Escola Nova, ao mesmo tempo que aprimorou a qualidade de ensino destinado
às elites, forçou a baixa qualidade do ensino destinado às camadas populares,
já que sua influência provocou o afrouxamento da disciplina e das exigências de
qualificação nas escolas convencionais.
A tese da tecnificação, reposta e endossada a partir do aporte gramsciano, levou outros autores, como Dermeval
Saviani, a defender a tese de que a Escola Nova serviu como mecanismo de
recomposição da hegemonia da classe dominante. Esta é, sem dúvida, uma meia
verdade. Ao superestimar o papel da burguesia na condução do Estado brasileiro
alguns autores, como o citado, passaram por cima dos resultados diferentes
daqueles programados pelos agentes históricos
Salientamos que a defesa de algumas teses tem levado não só
à manipulação de certos conceitos, mas criado sérios obstáculos a uma
compreensão mais criativa do problema estudado. Até que ponto a vitória da
burguesia não foi a outra face da derrota? Não apenas
a derrota de possíveis projetos das camadas populares diante da proposta
burguesa, mas também a derrota de projetos alternativos dentro dela mesma.
Sucesso e Insucesso. Eliminar a análise dessa possibilidade é fechar a discussão
a aspectos substantivos que podem ser considerados potencialmente críticos da
própria matriz liberal dentro do pensamento burguês, espicaçado pela
"rebeldia" das classes populares.14
Sacudir e rever a imobilidade das interpretações correntes
remete à constituição das fontes da pesquisa. Temos trabalhado esta questão em
vários textos.15 Desta forma, vamos apenas
focalizar o principal problema que encontramos quando buscamos estudar as
práticas escolares da cidade carioca nas décadas de vinte e trinta: a
abundância de material inédito. Geralmente o historiador da educação queixa-se
da escassez das fontes e o paradoxal é que justamente o deslocamento do enfoque
ampliou, neste caso, as rotas de percurso que focalizaram a escola no seu em
torno.
A consequência teórica do
deslocamento inicial e da expansão das fontes foi descentramento
da escola. Em outras palavras, não olhamos a escola exclusivamente de dentro,
mas principalmente de fora, o que nos fez enxergar o caráter multifacetado do
processo pedagógico em seu trabalho multidimensional de articulação, isto é, no
plano do conhecimento, no plano das pessoas e das instituições. A tentativa de
olhar a escola a partir do seu em torno nos fez mergulhar num processo em que múltiplos níveis de realidade e de imagens
da sociedade e da instituição escolar ora convergiram ora se chocaram graças a
especificidade das formas de interação social e de variadas ordens de
representações. Como torná-las inteligíveis?
A ampliação das fontes trouxe dificuldades ao seu exame, já
que o seu manuseio não é uma tarefa que se esgota em cada documento localizado
nos arquivos. A construção do seu entendimento exige a relação entre os vários
documentos consultados, o que amplia o próprio sentido de cada peça isolada. Se
ela tem uma referência precisa (seja pela origem, pela autoria ou pela
finalidade), múltiplos podem ser os seus níveis explicativos tanto ao nível da
explicação manifesta, quanto no que diz respeito às significações implícitas
que o historiador vai procurar desvendar. Estas últimas também são produto de um intenso trabalho de relações que cruzam as
informações dos documentos analisados com informações e análises conjunturais.
Em todo o processo de investigação, o historiador, ao mapear
os arquivos em função dos seus problemas, já está construindo campos de
significado. Esta construção resulta da tensão crescente entre a teoria e a
empiria, que leva à interação dos dados extraídos de
ambas as experiências, ao refinamento da análise e à imersão nos dilemas
existenciais da construção intelectual. O historiador dispende
enorme esforço para "calcular" a força especificadora das condições
históricas sem, no entanto, cair no particularismo que compromete o
entendimento pertinente do objeto focalizado, já que este impede o retorno
crítico aos conceitos. É desta forma que vai tecendo o seu modus
interpretandi e penetrando em diversos textos e
nos problemas por eles colocados. As fontes escritas, orais ou iconográficas,
enquanto marcas transitórias de comportamento modelado, mostram-se estranhas,
elípticas, incoerentes, suspeitas, tendenciosas, contaminadas, vivas.16 A motivação para o seu deciframento passa pelo pensamento que, por aproximações
sucessivas, se ensaia.
O que dá inteligibilidade ao texto histórico são as perguntas
que o orientam. A narrativa coloca como questão crucial a urdidura da nossa
escrita e das falas e escritas alheias. Como encadear informações que se situam
em planos distintos quanto à preocupação, conteúdo descritivo, nível de
abstração? Os grandes mestres da historiografia nos ensinam que a riqueza, a
precisão e a originalidade do texto têm duas exigências: direção e movimento. O
manejo das palavras na narrativa histórica é uma obra de arte
pois solicita um adentramento na rede de
significados que está sendo construída para além da evidência de qualquer dado,
seja ele econômico, político ou pedagógico. A unidade textual vem a ser,
portanto, uma organicidade complexa de diversos e às vêzes contraditórios elementos, onde a interpretação, por
não ser unívoca, explode a rigidez dos códigos disciplinares e a separação
entre o racional e o imaginário.
A narrativa vai emergindo da navegação do conhecimento, na
oscilação dos encontros e dispersões dos pensamentos, embora não se confunda
com o seu processo. É no avesso que ela prenuncia uma nova textura,
transformando referências em sentidos e a decepção com o aprendido em objeto de
elaboração. Elaboração que se cola por inteiro à escritura, como trabalho que
oculta outro trabalho. Estas indicações metodológicas têm o objetivo de chamar
a atenção para este patamar submerso da carnalidade
do texto que enfeixa alguns resultados da pesquisa realizada.
No caso específico das práticas escolares que nos interessam
elucidar, a narrativa coloca em foco a cidade do Rio de Janeiro, procurando
resgatar as representações do espaço urbano dentro do espaço escolar. É dessa
perspectiva que empreendemos o estudo da Reforma da Instrução Pública no
Distrito Federal, entre 1931 e 1935. Esta reforma, liderada por Anísio Teixeira
(1900-1971), criou a possibilidade de estruturar um campo de identificação dos
educadores pelas interferências que atingiram a ordenação simbólica da cidade.
A gestão de Anísio teve a base do movimento de modernização
escolar iniciado por Antonio Carneiro Leão (1922-1926) e Fernando de Azevedo
(1928-1931). Sobre ela criou uma estratégia que a aprofundou e a modificou
qualitativamente. Privilegiou uma ação diferenciada, que procurou atrair
gradativamente as escolas na direção de um modelo liberal e provocou a ruptura
da rotina estabelecida. Anísio mexeu, ao mesmo tempo, em pontos decisivos da
vida escolar e, diante das respostas obtidas (fossem de resistência ou não),
redefiniu as políticas perseguidas de extensão e melhoria da qualidade do
ensino.
A maior diferença de Anísio para seus antecessores é que,
efetivamente, ele criou uma rede municipal da escola primária à Universidade e
fez dela, junto com seus colaboradores, um poderoso campo cultural que
interferiu sobre a vida urbana e, ao mesmo tempo, produziu conhecimento sobre
ela. Dessa forma, ele ampliou o seu olhar sobre a cidade e precisou suas formas
de intervenção, atingindo em cheio códigos culturais inscritos nas relações
pessoais e estremecendo representações cristalizadas da realidade.
No entanto, o que parecia ser a inspiração de uma
consciência esclarecida foi só em parte vivida como tal. Apesar das certezas
que a sua formação cultural lhe assentou, ele experienciou
a gestão, em parte, como aposta arriscada na direção de um projeto que tinha
uma direção, mas não estava acabado dentro da concepção que o orientava. Os
inevitáveis contornos diante dos obstáculos e resistências da realidade
obrigaram Anísio e sua equipe a redefinições sucessivas no sentido de articular
serviços e repensar alvos, abandonando certas iniciativas e abraçando
perspectivas que, se de um lado, foram mais modestas ao nível das metas
estabelecidas a priori, tiveram, de outro lado, um alcance triplicado
quando comparado aos efeitos das gestões anteriores sobre a rede escolar pública.17
Através de uma larga varredura sobre o conjunto das
realizações empreendidas, buscamos surpreender seus pontos de tensão e a
especificidade de cada elemento nessa totalidade analítica. Procuramos,
sobretudo, apreender o encontro dessa obra com um campo de possibilidades que
ela ajudou a criar, mas que, ao mesmo tempo, ultrapassou. Na tentativa de
desenhar este campo usamos nossas categorias como constructos
flutuantes. Um exemplo oportuno que podemos oferecer para tornar
compreensível esta expressão é a questão do tempo. Apesar de nossa análise
estar delimitada cronologicamente, operamos com a mobilidade necessária à
investigação dos diferentes pontos de tensão do nosso objeto.
Assim, se o exame dos efeitos da homogeneização escolar pela
padronização das classes primárias exigiu, para uma avaliação pertinente, não
só o retorno às décadas de dez e vinte, mas o avanço até o final da década de
quarenta, a análise do papel da Universidade foi localizada entre 1935, momento
da sua criação e 1939, quando foi decretada a transferência dos seus
estabelecimentos de ensino para a Universidade do Brasil, com os desdobramentos
daí decorrentes. Em certas situações, a construção da relação entre conjuntura
política e pedagógica exigiu a precisão de datas. Em outras, esta mesma
construção obrigou ao relaxamento da cronologia. Estas indicações apenas
sugerem a possibilidade, inscrita no trabalho de investigação, de operar com
várias medidas de temporalidade, dependendo das necessidades que o próprio
objeto impõe e que nos leva a distendê-lo e a retraí-lo, tornando-o maleável,
plástico.
As imagens da escola nas imagens da cidade detonaram a
inversão da mão explicativa, ou seja, as imagens da cidade emergiram nas
imagens da escola. Trabalhamos estas imagens como um jogo de espelhos
procurando perceber não só relações de antagonismo entre as classes, mas
também, e ao mesmo tempo, de complementariedade entre
elas. Buscamos também distinguir expectativas de comportamentos (políticos,
sociais, culturais ou pedagógicos) de desempenhos efetivos. Refizemos
associações e revimos as hierarquizações impositivas dos eventos. Conseguimos,
desta forma, recuperar indícios das práticas escolares, trabalhando a reforma
da instrução pública menos pelo eixo da organização escolar e mais pelo eixo de
problematização do espaço urbano.
Em camadas explicativas, a simultaneidade dos processos
culturais e pedagógicos foi delineando um projeto que nunca escondeu sua
intenção racionalizadora. Parece-nos que, neste
aspecto, cabe lembrar Angel Rama quando afirma, sobre a cidade
latino-americana, que a inteligência pariu um novo espaço urbano e, dentro
dele, um novo espaço escolar que se pretendia mais amplo, mais homogêneo e de
interferência mais profunda e duradoura.18
Além da expectativa de organizar a população dentro das escolas, os educadores
comprometidos com a organização do aparelho escolar pretendiam moldá-la com a
expectativa de um futuro, de um sonho que exigia árduo esforço ideologizador.
Muitos intelectuais de renome colaboraram na Reforma de Educação
do Distrito Federal, sob o comando de Anísio Teixeira, quando este assumiu o
Departamento de Educação do governo Pedro Ernesto Batista, no começo da década
de trinta. Basta lembrar, dentre tantos, Arthur Ramos, Cândido Portinari,
Cecília Meireles, Heitor Villa-Lobos, Jônathas
Serrano, Roquete Pinto, Lourenço Filho, Paschoal Lemme.
Recrutados nos mais diferentes matizes de uma intelectualidade em processo de
construção, esses educadores encarnavam a aspiração pela mudança nem sempre
claramente definida ao final da República Velha.
Ao catalizar o desejo generalizado
de renovação presente ao imaginário desses intelectuais e canalizá-lo para os
serviços escolares oferecidos pelo governo municipal, Anísio Teixeira não só
sintetizou as "idéias-força" da modernidade, mas levou a escola,
através da sua gestão, a tornar-se um centro de ressonância e amplificação
dessa vontade de mudar. No entanto, frisamos, a direção imaginada para a
mudança não era consensual, muito menos se apresentava com o mesmo grau de consciência
ou se expressava com a mesma capacidade de coerência nos sujeitos desse
processo e apenas à medida que a reforma amadureceu certas tendências ganharam
contornos mais definidos.
A rebeldia do diverso
A representação da cidade do Rio de Janeiro, na conjuntura
de trinta, pode ser apreendida pelo modo como as relações humanas recortavam,
dentro dela, áreas de contato e isolamento, de atividades de trabalho e lazer e
pela maneira como separavam os moradores dos bairros daqueles instalados nas
áreas limítrofes do social: as favelas, os morros, a periferia. Com um
crescimento industrial limitado, a fábrica não ocupava, de fato, o espaço
físico da cidade carioca nem tinha a força simbólica necessária para dominar o
seu espaço cultural.19
Os cariocas eram vistos no imaginário social como
personagens do país da malandragem: boêmios, vagabundos, biscateiros ou
parasitas. Já na década de vinte, a voz desses personagens do cotidiano carioca
e o retrato desse universo desagregado foram descritos pelos cronistas sociais
da cidade. Em Histórias de gente alegre, os contos de João do Rio,
particularmente "A fome negra", "A galeria superior",
"A peste" e "As crianças que matam" nos descerram um penoso
quadro de mazelas: a exploração do trabalhador imigrante, as batidas policiais,
as epidemias contagiosas, os pivetes assassinos, o analfabetismo.20
A cidade do Rio de Janeiro, centro de destacada importância
política, convivia com a situação de penúria e abandono das classes mais pobres
e com o empreguismo das classes médias que temiam a proletarização
enfrentando, como os outros, a carestia de vida, os baixos salários, as más
condições de habitação e saúde, as crises políticas.21
À medida que o Estado progressivamente se centralizava, inchando seus aparelhos
com um funcionalismo público que absorvia um amplo setor dessas classes, o
"parasitismo consciente e organizado", na qualificação de Monteiro
Lobato, crescia.22
Essas circunstâncias ajudavam a construir, nas conversas
informais ou nas disputas acadêmicas dos intelectuais dessa hora, uma imagem do
Rio de Janeiro contraposta à de São Paulo. Enquanto esta última era apresentada
como modelo de cidade que havia sido capaz de superar tradições culturais arcaicas
e se homogeneizar culturalmente pela modernização que acompanhou a implantação
da industrialização e a lógica dominante do mercado, o Rio de Janeiro era
apresentado como foco de resistência ao amadurecimento capitalista, como a
negação do trabalho, do espírito científico, do progresso material.23
Os "malandros" e
"parasitas" do Rio formavam uma espécie de consciência das
ruas que, na década de trinta, ainda eram, para muitos, a extensão da casa: o
ponto de encontro das famílias locais, da "fezinha no bicho", do jogo
de pôquer, dominó ou baralho na calçada acompanhado de tremoços e cerveja, das
brincadeiras infantis, do carnaval e das festas religiosas. Também local de
trabalho dos carroceiros com seu comércio ambulante, dos feirantes, dos condutores
de bonde, de troleys puxados a cavalo, de táxis.
Ainda, o lugar das manifestações políticas e da repressão policial. A vida
dessas ruas expressava um universo múltiplo de eventos e interações, de
contradição entre o tradicional e o moderno, entre o aconchego e a luta. Espaço
de folia e de passeatas, de inocentes brincadeiras infantis e tiroteios, de
namoros e prisões.
A presença incômoda de pobres e miseráveis acentuou-se no
centro da cidade com o crescimento populacional e forçou, já nas décadas
anteriores, o seu progressivo deslocamento para a zona suburbana e rural. Este
deslocamento, fruto de uma política de higienização
do espaço urbano com suas obras de saneamento básico e demolição dos cortiços,
não foi suficiente para "limpar" a pobreza da cidade. Permitiu, no
entanto, redimensioná-la. A pobreza foi enquadrada nas favelas e confinada nos
chamados bairros operários. O efeito mais sutil e eficaz da política reurbanizadora foi o estabelecimento de fronteiras não só
entre os bairros de modo a demarcar, no recorte espacial, a sua identidade, mas
também dentro de cada bairro, de modo a marcar posições de classe.
Bangu, assim como São Cristóvão, eram definidos pela
presença dos operários e Botafogo pelas suas famílias tradicionais. Realengo
agrupava funcionários públicos e militares e a Tijuca concentrava os
profissionais liberais (médicos, professores e dentistas), pequenos e grandes
industriais e comerciantes. No Catumbi, os ciganos e os imigrantes espanhóis e
portugueses davam a cor local. Essa diferenciação, produto e expressão de um
processo discriminatório de circulação e uso do espaço, poderia
ser notada de muitas formas: em certos hábitos de lazer (o banhista
pobre frequentava a praia do Caju e o rico as areias
de Copacabana), no tipo de habitação (os cortiços, as pensões, as casas de
cômodos, as grandes casas de centro de terreno), no transporte (o taioba era o
bonde de segunda classe), nas roupas e até nas escolas frequentadas.
Esses sinais de classe eram lidos como heterogeneidade
criada pelo processo de urbanização. A fragmentação social nela impressa
lembrava a metamorfose pela qual a Europa passara no século XIX e que havia
provocado testemunhos de encantamento e pavor. Encantamento, pela possibilidade
de superação das barreiras hierárquicas até então impingidas pela aristocracia
e pelo triunfo da indústria, sugerindo a vitória do homem sobre a natureza.
Pavor, pela novidade desse processo, pelo crescimento demográfico e econômico,
pela possibilidade da desordem e da miséria. Ao contrário dos intelectuais
paulistas, mais preocupados com a defesa e a valorização do café, os
intelectuais cariocas voltavam suas inquietações para a seleção das elites e as
composições exigidas pela dança do poder na capital da República.
A modernização do Rio de Janeiro foi atravessada por essas
questões cruciais da elite local. Como o mundo da produção não era tão preciso
no universo carioca, o que marcou simbolicamente seu espaço cultural foi, como
salienta Maria Alice Rezende de Carvalho, a ponderação do peso que, no processo
de urbanização, tiveram o público e o privado.24
Dentro dessa perspectiva, a elite carioca defendia um
projeto repartido de educação, cujos alvos eram, de um lado, ela própria e, de
outro, as classes populares. Caberia à escola trabalhar sobre a fragmentação
social. A pobreza, enquistada nos morros, assustava essa elite que se sentia
crescentemente ameaçada. Um novo significado emergia na topografia da cidade.
As favelas, que iriam se multiplicar no espaço urbano e corporificar problemas
explosivos nas décadas seguintes, rotulados sob a expressão de banditismo,
foram, na década de trinta, vistas como focos e "irracionalidade", de
resistência à aspiração de ordenamento e homogeneização da cidade.
As crianças faveladas e, por extensão, todas as crianças pobres
eram facilmente reconhecidas pelos educadores nas escolas públicas: doentes
(sífilis, verminoses, adenopatias, anemias), anti-sociais no
comportamento por fatores hereditários e culturais (seu herói era o do morro,
que tocava violão e se embriagava, dormia durante o dia e "à noite caía na
malandragem"), indiferentes à instrução. Eram
a negação, no presente já passado, do trabalhador produtivo no futuro. Elas
constituíam um desafio e um problema.
Desafio, na medida em que para "indigentes",
"pobres" e até "remediados" o contato com a cultura escrita
estava ausente ou era desprovido de sentido.25
Problema, porque a história e as condições de vida dessas crianças se
interpunham entre elas e a escola, criando mecanismos de resistência a uma nova
visão de si mesmas e da sociedade que mudava. As "sequelas"
da pobreza sobre o acesso, a permanência e o rendimento do estudante eram
traduzidas em eloquentes dados de evasão e repetência.26 A escola, na década de trinta, não
conseguia levar as crianças a interiorizarem e transferirem para a vida
cotidiana os hábitos e atitudes que procurava ensinar:
A escola preconiza normas de higiene: é
indispensável tomar banho diariamente! Mas... no morro
não há água: é preciso palmilhar, descendo e subindo, tão extenso caminho, por
vezes difícil também, sob a chuva ou sob o sol ardente, para conseguir (quando
se consegue!) uma lata, com que se vai fazer o café, o feijão, e reservar um
pouco para beber. Como desperdiçá-la em banhos?
A escola exige honestidade: não fiques nem
com um tostão, se não te pertence! Mas... com 20
centavos se compra pão; não será tolice entregar o dinheiro, quando será tão
fácil guardá-lo e matar a fome?
A escola aconselha as boas maneiras,
procura difundir bons hábitos sociais de polidez. Mas... no
morro, na casa de cômodos, isso nada exprime e até se torna ridículo empregar:
com licença, desculpe, muito obrigado! São expressões impróprias para o
ambiente, completamente deslocadas ali, tão deslocadas como um personagem de
casaca e cartola, a passear, a meio dia, na cidade. Se
a professora ensaia transplantar para o barracão as fórmulas de polidez, a
tentativa redunda em fracasso e a expressão, embora grosseira, mas corrente no
meio, põe remate ao assunto:
- Deixe de se besta menino!27
A resistência das crianças à aprendizagem escolar não era
lida pela maioria dos educadores sob o ângulo das dificuldades econômicas ou da
diferença de práticas culturais. Era focalizada sob a ótica da ampla gama de
distinções existentes nos indivíduos. Essa leitura foi reforçada pelo legado
das representações políticas instituídas na Primeira República e cuja
capacidade de sobrevivência se estendeu muito além dela.
Esse legado foi construído tanto pelo pensamento autoritário
quanto pelo pensamento político de esquerda. Em que pesem as diferenças dessas
duas vertentes, os traços fundamentais que elaboraram das classes populares
urbanas forjaram uma imagem que apresenta, pelo menos, três características
básicas: a heterogeneidade da sua composição, fator impeditivo de qualquer
construção ordenadora sobre sua identidade (seja do ponto de vista da nação ou
da revolução); o efeito nefasto dessa heterogeneidade sobre a capacidade de
ação prática coletiva popular, a exigir uma intervenção de fora, que
organizasse a sua dispersão e, finalmente, a falta crônica de aptidão deste
povo para a coletivização, já que os grupos que o compunham eram não só
carentes de integração entre si como também com outros grupos da sociedade.
Esta reflexão marcou uma forma de perceber as classes populares urbanas e suas
práticas culturais, que apareceram como obstáculos sociais e políticos.28
O discurso produzido e apropriado pelos profissionais da
educação das décadas de vinte e trinta sobre as classes populares urbanas,
embora não fosse elaborado no âmbito dos ensaios políticos, convergia na mesma
direção. A Psicologia e o suporte biológico e estatístico que lhe acompanhava
na análise das questões educativas constituíram a matriz forjadora da concepção
de heterogeneidade como carência de atributos positivos diante da tarefa de
construção de um país.29
Dos estudos biológicos resultou a visão de que existia uma
herança de determinadas condições vitais que podiam agir, dependendo de como
estivessem combinadas, como fatores impulsionadores ou refreadores da
aprendizagem. Dos estudos psicológicos, apoiados na observação e experimentação
de crianças (ao invés de animais, como ocorreu inicialmente), veio o reforço da
noção de variabilidade dos diversos indivíduos e, neles, das suas diversas
capacidades. O desenvolvimento do estudo do problema das variações individuais
já havia ganho impulso fora do nosso país quando, na
segunda metade do século XIX, foram criados testes para a medida psicológica e
o tratamento estatístico dos problemas biológicos e psicológicos. A estatística
tornou-se, então, instrumento de descrição e explicação das diferenças
individuais em torno de uma abstração denominada média.
O advento de uma Biologia, de uma Psicologia e Estatística
aplicadas à educação confundiu-se com a necessidade que a ciência, no século
XIX, exprimiu de controlar pela seleção e orientação escolar (embora não apenas
escolar) as massas urbanas em plena emergência de novas condições de trabalho
geradas pela sociedade industrial. Foram duas as idéias diretrizes que marcaram
o próprio movimento das ciências e em decorrência, uma nova organização da
escola nesse momento. A primeira é a noção de indivíduo como
unidade básica de análise, prerrogativa não apenas das ciências citadas, mas de
todas aquelas que, nesse momento histórico, elegiam como método o estudo das
unidades ou agentes isolados que as compunham, para em seguida apreciar seu
funcionamento e finalmente elaborar uma teoria total do comportamento
científico, no sentido de aglutinar o comportamento dessas mesmas unidades ou
agentes. A segunda é o procedimento de classificação dos indivíduos, que
ganhou, com o tempo, um refinamento crescente e foi aplicada particularmente
dentro das escolas primárias em dois níveis de abrangência: um, mais amplo, o
da graduação da escola em diversos níveis ou séries de ensino; e outro, mais
restrito, o da organização de classes homogêneas que procuravam agrupar
crianças com a mesma capacidade de aprendizagem.
As contribuições da Biologia, da Psicologia e da Estatística
criaram uma visão científica da escola que se apoiou na mensuração das
faculdades mentais via testes psicológicos de inteligência, aptidão e
personalidade. A legitimação desses testes passava pelo argumento da
racionalidade do comportamento humano com o objetivo de maximizar a
produtividade. Eles endossavam, portanto, as demandas da organização do
trabalho industrial.
O que importa ressaltar é que os testes passaram a ser o
instrumento de trabalho dos educadores também no Brasil e toda uma extensa
bibliografia nacional e internacional foi sendo gradativamente vulgarizada
junto aos professores por um intenso trabalho das Diretorias de Instrução
Pública dos maiores centros urbanos do país.
Na década de vinte, no Distrito Federal, a heterogeneidade
da rede escolar era percebida pela convivência de diferentes tipos de
estabelecimentos de ensino primário, dando mostras de discriminação da sua
própria organização. Eram escolas isoladas, isto é, pequenas
escolas dispersas funcionando em uma só sala sob a regência de um só
professor, escolas reunidas, funcionando agrupadas num só prédio e alguns,
poucos, grupos isolados. Ainda, dentro dessa diversidade, outras variações se
impunham: escolas diurnas e noturnas, ou ainda escolas para o sexo masculino, feminino e mistas.
Nesse momento, as modificações introduzidas para
homogeneizar o diverso incluiram a uniformização do
método em cada distrito escolar, a definição de lugares (escolas e/ou salas)
para atividades determinadas, a padronização do equipamento escolar e a
distribuição de alunos na rede escolar conforme os resultados dos exames
impressos em fichas médicas, fichas pedagógicas, testes psicológicos e de
escolaridade. A classificação das crianças, recortada a partir do suposto
potencial "selvagem e irracional" das classes populares, justificaria
o poder regulador do Estado sobre cada uma delas e de suas famílias. Foram,
dessa forma, criados espaços para as crianças normais, para as crianças débeis
(frágeis de saúde), para as crianças inteligentes e para as crianças
retardadas.
Na década de trinta, quando Anísio
Teixeira assumiu o Departamento de Educação, mais tarde denominado
Secretaria de Educação, também estabeleceu uma forma de lidar com a
heterogeneidade. Também nesse momento, a presença dos pobres no interior da
escola era, como já assinalamos, um desafio, pela imposição da diferença, da
irregularidade (nas condições orgânicas, nas reações psicológicas, no
aproveitamento dos estudos, na distribuição caótica da idade por ano letivo, na
permanência durante o curso, na flutuação escolar), do descrédito e dos
problemas.
Como um intelectual que partilhou as preocupações e as
leituras do seu tempo e, até certo ponto, endossou a visão científica de
escola, ele não desprezou os testes, mas forjou uma concepção própria, que o
distinguiu dos seus contemporâneos. A verificação dos efeitos
das medidas de aferição aplicadas no cotidiano escolar forçaram-no a
rever o ímpeto entusiástico (mas tumultuário e profundamente conservador) da
crença na efetividade desses instrumentos classificadores de modo que a ênfase
do processo homogeneizador recaísse sobre o trabalho
da escola e não propriamente sobre a capacidade individual.
Na gestão de Anísio, o Departamento de Educação acompanhou o
trabalho das escolas que eram obrigadas a encaminhar seus planos de atividades,
definindo objetivos de aprendizagem, especificando turmas e, nelas, os
diferentes grupos, o meio social das crianças, os métodos empregados e os
resultados que iam sendo conseguidos.30 O
Departamento elaborava, ainda, uma aferição anual que classificava as escolas
do ponto de vista do seu rendimento. Ao final do ano, as provas impressas,
preparadas na sua sede por professores da rede escolar previamente escolhidos,
eram aplicadas, corrigidas e os resultados serviam para orientar o trabalho das
escolas e do próprio Departamento.
O que importa ressaltar é que essa intervenção ordenadora
mudou as relações entre professores, alunos e direção dentro da escola, levando
a direção a assumir a supervisão do trabalho pedagógico e ferindo não só o
sentimento de "propriedade" que certos diretores e inspetores
escolares tinham sobre a escola, mas também o sentimento de autonomia didática
dos professores. As medidas de aferição colocaram em xeque as fronteiras entre
as escolas e obrigaram-nas, através dos seus resultados, a se olharem
mutuamente.
A maioria das escolas isoladas cariocas eram
conhecidas pelos alunos e suas famílias pelos nomes dos seus respectivos
diretores: a escola da "Dona Olímpia", a do "Professor Teófilo",
a da "Dona Isabel Mendes". O diretor, uma espécie de líder, ao lado
do padre, do político influente, do fiscal, do delegado e do inspetor escolar
exercitava sobre a escola uma liderança que não admitia concorrência ou
discussão. Os professores, por sua vez, ao serem obrigados a exercerem toda uma
escrituração escolar (diários de classe, planos de aula, fichas diversas) se
insurgiam contra o que era, na sua vivência, experimentado como um atentado ao
direito de autonomia.
Quando a centralização dos serviços educativos pelo
Departamento e a construção do que se chamava um "sistema escolar"
foi acontecendo, diretores e professores "gritaram". No fundo das
resistências e conflitos o que saía arranhada era a mentalidade privada da coisa
pública e, obviamente, o conjunto de hábitos arraigados de uma rotina
estabelecida. O processo de classificação das instituições de ensino era um
exercício de poder que introduzia categorias estranhas ao cotidiano, forçando a
reinvenção da prática.
O fundamental a destacar é que o movimento em torno dos
testes e a criação dos instrumentos pedagógicos de controle do trabalho docente
tinham como finalidade banir a improvisação do cotidiano escolar e exercitar,
nos professores, a preponderância de um "espírito objetivo" sobre o
"espírito subjetivo". A resistência docente revela que, no espaço
escolar, era travada a luta pela mudança de uma mentalidade urbana ainda
arraigada à esfera pessoal do ponto de vista do seu conteúdo (tipo de
discriminação da realidade, interesses, ritmo), mas que ia sendo puxada para a
esfera impessoalizada através de mecanismos que
nivelavam e uniformizavam as atividades individuais via resultados escolares.31
Ao mesmo tempo que a gestão de Anísio
cobrava o envolvimento docente com o trabalho pedagógico, procurava demonstrar
as vantagens dessa exigência e valorizar a mudança de conduta nessa direção.
Diversas medidas apontavam para essa valorização: a inserção do curso de
formação de professores no nível universitário, a redefinição da carreira
docente com um escalonamento pertinente, a construção de novos prédios
escolares, a divulgação de novas teorias pedagógicas e a participação dos
professores numa dramaturgia vigorosa da força simbólica que ganhava a escola
pública: o canto orfeônico, os espetáculos esportivos e folclóricos nas praças,
nos estádios e nos teatros; as palestras na rádio e no cinema educativos e nos
encontros das associações docentes; as possibilidades de viagem de estudo ao
exterior e a manifestação política a favor da escola pública nas lutas em torno
da aprovação de certas propostas na nova Constituição. Dessa forma, a exigência
da disciplina docente era compensada por sinais visíveis que reforçavam o calor
das convicções e criavam um clima de comunhão de responsabilidades, através do
qual a tarefa educativa era assumida primordialmente como formação de
consciência e através da qual a escola se afastava da casa e se aproximava das
ruas.
Como a cidade, a escola era algo mais do que uma aglomeração
de pessoas, conveniências sociais e equipamentos materiais. Era um estado de
espírito. Era a construção de um espaço que, na gestão de Anísio, foi aberto de
diversas maneiras. Se nas escolas primárias destacaram-se procedimentos como os
citados, nas escolas secundárias e na universidade outros mecanismos foram
acionados como, por exemplo, as festas e exposições. Para além da materialidade
do espaço e do processo de sua utilização, o que estava em jogo era a dimensão
simbólica de representação do urbano. Neste sentido, a escola, como espaço construído,
fechado e, nesse momento, com elevado grau de privatização, foi manipulada de
várias formas para se abrir e interferir de forma incisiva sobre a "vida
comunitária" que a cercava.
A abertura das escolas para o mundo urbano tornou-as palcos
de conflitos e disputas. Em algumas escolas secundárias, o regime de self-government através do qual a gestão escolar era
realizada pelos próprios alunos, organizados em
conselhos, nos quais decidiam sobre sanções disciplinares, estímulos aos
colegas retardatários, apoio aos menos ajustados, programas e estudos
supletivos, atividades curriculares e extra-curriculares, etc. foi lido como
exercício de "anarquia" que, sem sólidas raízes no círculo familiar
dos alunos, invertia a hierarquia da autoridade escolar, promovendo a desordem.32
A nova organização do espaço escolar ao nível dessas escolas
trabalhava a heterogeneldade através de uma política
de ampliação das elites. Ao reunir alunos "abastados" e
"remediados" debaixo do mesmo teto colocava em questão categorias socialmente
instituídas e borrava fronteiras sociais, afetando a demarcação de espaços
freqüentados por sujeitos de diferentes classes. Um texto sem assinatura e
incompleto, encontrado no arquivo Anísio Teixeira, no CPDOC, faz as seguintes
referências ao ambiente da Escola Técnica Secundária Amaro Cavalcanti:
... É a Amaro Cavalcanti uma escola
secundária com perto de mil alunos, heterogênea com seus três turnos de
programas diferentes, freqüentadas por meninas, meninos, pubescentes:
adolescentes e adultos; heterogeníssima porque
pessimamente colocada (e instalada) para um curso de finalidade comercial, nela
se refletem amplamente os contrastes de classe da sociedade, vindo a menina e a mocinha de pai rico de Copacabana e Botafogo
(...) com a menina e a mocinha paupérrimas, a quem o diretor, fazendo ginástica
de aproveitamento de verbas e da boa vontade dos fornecedores, teve de fornecer
roupa e calçado. Nesse ambiente salada de frutas-pot-pourri os fatos só podiam
mostrar a impraticabilidade, não tinham outra coisa em fazer senão atestar o
ridículo do self-government.33
Ricos e pobres. Ao destinar a ambos os mesmos serviços
educativos, as Escolas Técnicas Secundárias quebravam um código cultural
inscrito nas relações informais dos moradores da cidade. A experiência do self-government confundiu, ao nível do senso comum,
as noções de igualdade e identidade. Obrigava os adultos e educadores a olharem
para os alunos numa outra ótica que não a da hierarquia sócio-cultural.
Obrigava-os a verem indivíduos numa totalidade coletiva. O que se colocava em
questão era a noção de uma desigualdade inevitável e residual presente, naquele
momento, na visão da própria sociedade e que se expressava no projeto repartido
de educação do governo federal (para as massas e para as elites). As Escolas
Técnicas Secundárias ameaçavam pela contundência com que, na prática, feriam a
necessidade de hierarquizar idéias, pessoas e lugares. Por esse motivo, a
distribuição do poder escolar foi vivida como um grande risco para a autoridade
pedagógica.
Essa "subversão" adolescente tornou-se
insuportável à medida que material de propaganda política, proveniente da
Federação Vermelha dos Estudantes, passou a ser distribuído e encontrado dentro
das escolas ou mesmo quando, nas festas de fim de ano, o uso de roupas
"não apropriadas" nos bailados das meninas chocava os "bons
costumes" das famílias presentes.34 A
mobilização da juventude através de eventos culturais ou a filiação a
determinadas entidades e agremiações, no entanto, apontava para um movimento
mais amplo da sociedade civil, que gradativamente parecia entrar num processo
de articulação. Essa niobilização não era só dos
estudantes secundaristas. Ela atingia também os alunos dos cursos de
continuação e aperfeiçoamento de adultos, conduzidos por Paschoal Lemme.
A vida das ruas passava a penetrar nas escolas de muitas
formas e a provocar acusações caluniosas dos católicos que apontavam Anísio
Teixeira e seus colaboradores como comunistas e que viam até nas instalações
sanitárias comuns às crianças de ambos os sexos, dentro dos novos prédios
escolares primários, a corporificação do
"comunismo ateu", em seu afã de dissolver a família e perverter
moralmente as crianças. A força dessa vida que se estendia além dos muros
escolares acabou abalando, inclusive, a produção acadêmica da recém-inaugurada
Universidade do Distrito Federal. O seu curso de pintura mural e cavalete,
conduzido por Portinari, para citar um exemplo, acabou servindo como mais urna
peça de acusação contra a gestão de Anísio Teixeira.
Do pincel redondo até a bucha de pano e do dedo até a escova
de dentes, a imaginação dos estudantes, viajando na forma e na cor, produzia
imagens da cidade e de suas classes mais pobres: gente carregando água na
cabeça, operário arrebentando calçamentos, operários comendo marmita, mendigos
da rua. As deformações do expressionismo também intimidavam as elites. Afinal,
muitas dessas imagens eram desconfortáveis para o governo que havia feito a
Revolução de Trinta. Agora, os problemas saltavam das telas!
As escolas primárias e secundárias, os cursos de extensão e
aperfeiçoamento de adultos, a própria Universidade do Distrito Federal constituiram um campo cultural que evidenciava a ampliação
da interferência do governo municipal sobre as instituições pedagógicas. Mas a
façanha maior era fazer com que as pautas educativas produzidas por essa
interferência se prolongassem para fora dessas e de outras instituições
fechadas e criadas com finalidades especificamente pedagógicas como, por
exemplo, as bibliotecas. Nesse sentido, as ruas, os teatros, os estádios
esportivos e mesmo as moradias seriam afetados pela pedagogia institucional que
os manipulou enquanto espaços de sociabilidade, meios de construção da
cidadania e da civilidade.
A cidade como methodos
Saberes e poderes foram acionados para construir uma
política educativa desdobrada no cotidiano da cidade. Como unificar um espaço
tão fragmentado? De muitas maneiras. Os educadores profissionais criaram, no
momento estudado, um olhar específico sobre a vida social e escolar, apoiados
em determinadas áreas do conhecimento como a Estatística, a Psicologia, a
Sociologia, o Direito, a Música, a Educação Física e a Arquitetura Escolar.
Este saber gerou poder, pois permitiu que eles se afirmassem socialmente como
elaboradores de representações que reforçaram a secularização da cultura, e
politicamente, pela reorganização do Estado e dos serviços que ele prestava.35
A Estatística diagnosticou e formulou as políticas públicas
com relação aos fenômenos tipicamente coletivos e, associada à Psicologia
Educacional, serviu como suporte à classificação dos alunos, detendo-se na
descrição das "variações" e "desvios" no grupo. Permitiu,
portanto, captar a questão pedagógica na sua dimensão mais ampla, oferecendo
instrumentos para pensar a educação como problema nacional e, ao mesmo tempo,
descer à intimidade do processo pedagógico. Os pequenos, médios e grandes
diagnósticos possibilitaram a projeção do futuro e criaram a ilusão de uma
falsa segurança diante da dispersão da realidade. Serviram para mapear a vida
escolar e interferir nas escolas não só pela cobrança direta dos registros
necessários à operacionalização da política (censo, organização de turmas,
previsão de matrículas, controle de matrícula e freqüência, distribuição de
professores, medidas de aproveitamento
escolar), mas também pela introdução de rotinas novas e criação de perfis e
tipologias no campo da saúde, da conduta social e da aprendizagem.
A validade e importância da Estatística foi
ensinada aos professores através de exposições, comunicados à imprensa,
cursos especializados e publicações específicas. Em última instância, a
Estatística funcionou simbolicamente como instrumento de unificação do universo
social, que foi submetido aos mesmos códigos e, em consequência,
de imposição de uma concepção de nacional que não questionou a lógica da
desigualdade regional dos dados que produziu. Ao nível do Departamento de
Educação carioca, a Estatística contribuiu para instituir uma política de
conjunto da rede e, associada à Psicologia aplicada, aferir o trabalho
realizado nas escolas primárias modificando-o nos aspectos considerados
substanciais. os modelos de inquéritos e pesquisas
aplicados nas escolas penetraram em várias instituições além delas. Ao final da
década de trinta já eram fartamente utilizadas pelos aparelhos de repressão que
investigavam desde a indústria do livro até as forças religiosas no país.
As propostas dos técnicos estatísticos pareciam não ter
limites: a produção de uma política sistemática e nacional de educação, a
oficialização de um sistema ortográfico comum, a criação de exposições
estatísticas permanentes nos municípios mais longínquos, a melhoria dos
registros públicos em geral (registro civil, registro da propriedade imóvel,
registro industrial), a organização de dicionários geográficos, a elaboração de
legislação para o amparo da família, a elaboração de garantias protetoras do
trabalhador e até a criação de um "exército do trabalho".36
Observar, perguntar, apurar, descrever, contabilizar, agrupar,
classificar. Em outras palavras: controlar e hierarquizar. Estes procedimentos
fariam parte de toda atividade educadora e exigiriam investimento em horas de
trabalho na elaboração de fichas, boletins, quadros e mapas. A Estatística
aplicada ao campo cultural funcionou simbolicamente como instrumento de
unificação do universo social que foi submetido aos mesmos códigos.
Associada à Psicologia e à nascente Antropologia, a
Estatística tornou-se instrumento privilegiado para a elaboração de normas
preventivas e corretivas que foram gradativamente deslocadas da escola para a
família. Pela seção chefiada por Arthur Ramos, o Departamento de Educação do
Distrito Federal passou a divulgar noções de Higiene Mental aos pais e
responsáveis, além dos professores, com o objetivo de prevenir, no pré-escolar,
a eclosão de falhas de personalidade que poderiam determinar, no futuro, maus
rendimentos ou defeitos mais graves na escola, ou até uma ruptura da função
social na vida adulta. O Serviço de Higiene Mental passou a investigar
sistematicamente a atitude dos pais e docentes para com as crianças, a esmiuçar
de que forma eram castigadas, de que forma adquiriam "maus hábitos". Foi Arthur Ramos quem iniciou um largo inquérito sobre as
"modalidades de pensamento pré-lógico" e das "representações
coletivas", quem propôs a criação de Círculos de pais e mães e quem se
encarregou, ao lado dos seus colaboradores, de trabalhar na promoção de
conferências públicas e de divulgação das suas pesquisas em cursos para
profissionais da educação ou pelo cinema e rádio educativos.
A Estatística, tanto quanto a Psicologia e a Antropologia, criou um campo de representação da "cidade real" e
da "escola real" que, gradativamente, se autononizou.
A sua aparência de neutralidade carregava a autorização para o exercício de
urna série de operações intelectuais, cujas marcas se entranharam na realidade
e nela permaneceram por um longo tempo. O número e o adjetivo tornaram-se
substantivos da nomenclatura urbana e escolar embora respondessem, de um modo vago,
a aspectos particulares e concretos do cotidiano. Surgiam como significações
pensadas a partir das necessidades de modernização da cidade e só depois
buscavam significantes que os pudessem expressar. Teciam, como afirma Rama, uma
espécie de rede da inteligência raciocinante, capaz
de decifrar signos e de obligá-los a predominar sobre
a realidade.37
Este trabalho de predomínio dos signos sobre a realidade
também foi realizado pelas vozes educadoras. Elas partiam da Rádio Municipal
PRD 5, num momento em que as ondas Hertz impactavam a sociedade brasileira e
transformavam o que era até então erudito em lazer e diversão. Pelo microfone
dessa rádio-escola tais vozes transpuseram distâncias e atravessaram as paredes
dos lares cariocas, explicando aos pais como e porque se educavam as crianças
em novos caminhos. Continuaram e reforçaram as atividades escolares. Catalizaram interesses. Excitaram e orientaram divulgando
os serviços públicos e convocando a população a utilizá-los. A radio-difusão educativa interferia diretamente na cultura
popular que era, sobretudo, oral.
Essas vozes educadoras, no entanto, não estavam apenas no
"éter". Estavam também nas bocas dos Coros Orfeônicos de professores
e alunos do Distrito Federal, que a intuição genial de Villa-Lobos transformou
numa grande obra de demonstração, cuja feição mais espetacular seria assumida
nas praças, nas ruas e nas grandes concentrações do Estádio de São Januário, no
Campo do Vasco, onde chegaram a se reunir até 40.000
vozes infantis. Essas vozes conseguiram efeitos melódicos surpreendentes:
ondas, coqueiros se embalando ao vento, terror irônico. Vozes concentradas,
vozes distribuídas, vozes alinhadas, vozes orquestradas. Vozes que por segundos
se calavam no mais absoluto silêncio, exemplo vivo e eloquente
de disciplina e eficiência. O Estado Novo não esqueceria essa lição.
A Música e a Educação Física instituíram uma nova forma de
socialização do corpo, que procurava plasmar, sob um novo modelo, a plástica
dos corpos populares expandida no gingado astucioso da malandragem e na volúpia
e sensualidade dos ritmos africanos. O sucesso desse saber era garantido pelo
menos por três aspectos: usava de forma direta o corpo como instrumento
simbólico, tinha um formidável efeito demonstrativo e a capacidade de se conjugar
às outras matérias do currículo, aderindo-se a elas e alargando o seu potencial
educativo e disciplinar.
A potencialidade disciplinar da música foi acompanhada de
outras iniciativas na obra de "desbravamento
moral e intelectual" que a geração de educadores reformadores acreditava
realizar, como a arquitetura escolar e o trabalho das bibliotecas. No que diz
respeito à primeira, sua principal característica foi o jogo de cheios e
claros, tecido pela composição entre vidro e parede. No relatório da gestão de
Anísio podemos acompanhar o registro de uma câmara fotográfica que vai
mostrando ambientes móveis e a predominância de vidros aproveitando a luz
natural e convidando o olhar de quem está dentro a se projetar para fora. Em
todo o conjunto escolar aparece inscrito um sentido preciso: a escola tem uma
finalidade própria, distinta da moradia.
Mais uma vez, percebe-se a necessidade da construção de um
espaço público, a ousadia de libertação de velhas formas mentais e o arrojo de
usar a técnica e a imaginação a serviço dos objetivos da consciência pedagógica
que estava sendo construída. Essas edificações escolares podem ser
interpretadas, também nesse momento, como gesto intencional que pretendeu criar
novos comportamentos e sentimentos diante da escola, expandindo-a para fora e
além dela. A arquitetura escolar era uma evidência da inventividade que se
inscrevia no movimento urbano.
Na gestão de Anísio, essa arquitetura serviu como palco para
a expansão regulada das atividades corporais, incorporando à escola, além das
salas de aula, os anfiteatros, a biblioteca, as salas de leitura, o refeitório,
osjardins, as "áreas livres". Na leitura de
quem frequentou essas instalações escolares, particulartnente as crianças mais pobres, a existência
desses locais funcionou não como um código de confinamento, mas de reapropriação de espaços de sociabilidade crescentemente
sonegados às classes trabalhadoras pelas reformas urbanas que lhes empurravam
para os morros ou a periferia da cidade.
Uma nova leitura do urbano era paulatinamente construída
pelo esforço ideologizador de toda uma geração de
educadores. Se o rádio, o orfeão e a arquitetura escolar eram chaves dessa
leitura, a obra das bibliotecas buscava também elaborar, através da palavra
escrita, uma nova visão de mundo. Os livros também estavam repletos de vozes
que contavam a vida. Era preciso escutá-los. Havia uma cultura urbana em
processo de transformação a ser decifrada e cabia à escola ensinar hábitos que
ajudassem às crianças mais pobres a interpretar a realidade. Interessante notar
que essa introjeção de hábitos de leitura
multiplicou, do ponto de vista pedagógico, as possibilidades do ato de ler: ler
com direção, ler espontaneamente, ler para recrear-se, ler para estudar e
pesquisar, ler oralmente, ler em coro, ler silenciosamente, ler de um modo
dramatizado, ler incidentalmente. Ler a escola e os amigos. Ler a cidade.
Ler a cidade exigia da escola o seu crescente afastamento da
casa e sua aproximação tensa com as ruas. Dentro da dimensão simbólica da
representação do urbano, a presença da "multidão" nas festas
escolares, bastante apreciadas principalmente nos bairros mais pobres onde as
alternativas de lazer eram limitadas, inquietou mais do que o movimento
contrário, de ocupação dos espaços públicos pelos professores e alunos do
aparelho escolar, que se esmeravam na demonstração de que era possível
disciplinar o uso de tempos e espaços vistos como focos de libertinagem e/ou
revolta.
O intenso trabalho racionalizador
dos intelectuais da cidade encontrou no Direito o seu instrumento por
excelência. Neste sentido, o Departamento de Educação, dentro da prefeitura,
configurou-se como o locus de definição do
direito escolar, criando um conjunto de textos predominantemente normatizadores (os decretos), justificadores (as exposições
de motivos) operacionais (as instruções, os regulamentos, as portarias, os
editais, os ofícios) das modificações pretendidas. Este trabalho foi contínuo e
contou com a colaboração de profissionais com larga experiência no campo
pedagógico e, mais especificamente, na rede escolar da cidade e do estado. A
legislação escolar, com conteúdos práticos, codificou espaços, saberes,
poderes, definindo o que era considerado justo e, ao mesmo tempo, delimitando
um conjunto de soluções jurídicas para problemas postos pelo contexto
pedagógico.
Um estudo cuidadoso das modificações de decretos,
instruções, editais poderia elucidar não só o dinamismo desse processo, tão
pouco aparente, já que permanece oculto no caráter formal do texto divulgado,
mas também as lutas travadas para manter ou interferir no poder de legislar.
Todo esforço racionalizador convivia com uma
avalanche de pedidos e intrigas cujo móvel era a ocupação de certos lugares e a
obtenção de determinados privilégios daí decorrentes, um sintoma de que a
resistência à racionalização foi ativa e permanente.
As respostas do Departamento a esses pedidos tiveram a
finalidade pedagógica, quando possível, de tomar a norma visível e ensinar que
qualquer situação fora dela era um desvio e como tal deveria ser tratado, o que
garantia certa previsibilidade quanto à ação do Departamento para casos
semelhantes. Esse trabalho pedagógico surtiu algum efeito, pois diversas cartas
passaram a denunciar irregularidades, como acúmulo de cargos, exorbitância de
horário de trabalho e vendas de rifas e subscrições em escolas públicas
municipais. Havia, ainda, nesse processo de racionalização, um mecanismo sutil
de ilusão que procurava não só isolar a norma de quem a produziu, mas também
erigi-la acima do próprio poder de decisão da autoridade a quem se recorria.
O saber jurídico, com sua retórica neutra e impessoal,
definiu instâncias, hierarquias, prioridades e uma linguagem comum. Foi veículo
para a afirmação de uma determinada mentalidade, que estava sendo formada, de
fato, nas lutas sociais do período. Foi a argamassa da identidade do educador
profissional, já que garantiu a delimitação das exigências de ingresso na
profissão, as condições de trabalho, a regulamentação da carreira, os
incentivos, as penalidades, os espaços de atuação e o seu valor social.
Através do seu poder nomeador e
sancionador, os instrumentos jurídicos criados e utilizados pelo Departamento
de Educação produziram, como efeito, a ampliação e valorização do poder
simbólico dos educadores profissionais e de suas lideranças nesse momento
histórico. Criaram e consolidaram grupos profissionais, mas principalmente
criaram a imagem das instituições instituídas. Todo nosso esforço, ao iniciar a
pesquisa, foi justamente atravessar esta barreira simbólica que teve no Direito
um dos seus principais suportes.
Como lembra Rama, a sacrallzação
da escritura levou a um desencontro entre a minúcia da prescrição reguladora e
a confusão da prática social sobre a qual legislava. Toda a tentativa de
desafiar esses novos códigos passava também, obrigatoriamente, por ela. Na
cidade modernizada, a letra aparecia como alavanca de ascensão social, da
respeitabilidade pública e da incorporação dos centros de poder.38
Por sua vez, o poder do direito expresso no campo pedagógico veio
predominantemente do Estado que, nesse momento de construção da realidade
social, catalizou a colaboração de grupos
reconhecidos por sua competência e já organizados anteriormente fora dele. A
mesma fonte desse poder catalizador, no entanto, ao
atualizar-se na conjuntura política da década de trinta, expulsou-os quando
outras forças ganharam, dentro da máquina governamental, a hegemonia na
condução do processo político. Existe, portanto, uma íntima relação entre as
fórmulas jurídicas e as relações de poder implícitas no conjunto do movimento
social, cujas oscilações traduziram (e traduzem) uma multiplicidade não só de
visões de mundo, mas também de interesses em disputa.
Os interesses em disputa estavam dentro da escola. Se ela
transfigurava a rua, através de shows de arrebatamento emocional via música, e
ensinava novas formas de utilização do espaço público, também fazia crítica à
vida urbana que se modificava, devolvendo à cidade, mesmo que indiretamente,
como vimos no caso da Escolas Técnicas Secundárias e
da Universidade, as imagens desse espaço recusadas pelas elites: a violência da
exploração das classes trabalhadoras; a diluição das fronteiras sociais entre
os bairros e, por homologia, entre as classes; a extensão do saber erudito fora
do circuito das elites e a tentativa de organização política da juventude por
grupos que se articulavam à margem do âmbito do Estado.
Essa pedagogia urbana que identificou a cidade como methodos foi elaborada por educadores que arduamente
lutaram pela profissionalização pedagógica. Portadores de uma cultura clássica
temperada pela cultura moderna, pertencentes a uma associação específica - a
Associação Brasileira de Educação - foram também criadores de definições sobre
o exercício da educação como profissão nas próprias escolas da rede e no
aparelho administrativo.
A marca desses novos profissionais foi certa cultura
pedagógica disseminada através de uma literatura produzida no âmbito da
docência, da tradução didática e da administração pública, que construiu sua
identidade e demarcou uma área de atuação específica e em expansão na década de
trinta. Essa identidade, nesse momento, foi mais que profissional. Foi
existencial. Daí sua excepcional força mobilizadora.
Esses indivíduos e grupos que trabalharam ativamente na reforma da instrução
pública de
A cultura pedagógica que permeou os objetos da sua produção
forjou uma mentalidade mais aberta aos inquéritos sociais e escolares, às
necessidades biológicas, psicológicas e culturais dos alunos, ao governo da
escola e à direção da sociedade. Essa nova mentalidade era, portanto, diferente
da mentalidade humanista clássica, mas também não se identificava simplesmente
com a do industrial trainer ou a mentalidade
do "educador público" na sua versão alemã ou francesa. O Instituto de
Educação e o Instituto de Pesquisas Educacionais foram órgãos privilegiados de
produção e reprodução dessa cultura pedagógica da qual nasceram as ciências sociais no país e que exigiram uma formação
técnica com o aporte de novos conhecimentos capazes de forjar, uma consciência
que conjugasse o bom senso a uma teoria sobre educação e a interiorizasse na
prática cotidiana da vida escolar.
Esses educadores criaram um olhar específico sobre a escola
e a cidade, gerador de saberes e poderes. Afirrnaram-se
socialmente como elaboradores de representações que reforçaram a secularização
da cultura e a reorganização do Estado e dos serviços que ele prestava. Os
saberes por eles partilhados, no entanto, embora ampliassem o exercício do seu
poder para além do fechado território político partidário, não lhes garantiram
a vitória política nas lutas concretas que travaram com seus opositores num
campo de possibilidades historicamente construído.
Esses opositores também tinham projetos, tentavam abrir e
consolidar espaços de interferência, faziam ou não
alianças com o poder constituído. Essa disputa entre os educadores
profissionais e seus concorrentes exige a demarcação dos projetos de sociedade
e de educação presentes, nesse momento, no movimento da cidade que, dentro da
sua peculiaridade, sinaliza questões cuja importância ultrapassa o seu próprio
espaço geográfico e remete a uma reflexão sobre a identidade social e cultural
do país.
O retrato da cidade carioca através da escola revela, a seu
modo, alguns dos grandes temas tratados a fundo na discussão da
intelectualidade brasileira no momento em que busca institucionalizar um
projeto moderno de sociedade. A raça e a sexualidade, por exemplo, são
preocupações presentes nos trabalhos do Serviço de Higiene Mental e Ortofrenia do Instituto de Pesquisas Educacionais e do
próprio Instituto de Educação, cujos debates pedagógicos traziam em seu bojo a
concepção de que a marca moral do país era a degenerescêncla.
Como o país, a marca da cidade do Rio de Janeiro, na visão de intelectuais da
mais diversa formação, era a erotização, a mestiçagem
e a preguiça das classes populares. Essas eram as fon-nas
comuns de seu enquadramento.
A maneira de enfrentar essa degenerescência e tomar o país
produtivo e moderno foi alvo de um debate que definiu propostas de setores da
sociedade em luta de forma explícita dentro da escola e, particularmente,
dentro das associações que congregavam educadores. Na Associação Brasileira de
Educação, os católicos defendiam a unidade doutrinária e pretendiam tomar o
Brasil uma grande pátria eucarística, fazendo da escola uma cruzada moral
dirigida para a disciplinarização da população.
Interessava-lhes o erguimento de barreiras para
livrar as "elites cariocas" da miséria. Esta proposta foi endossada
pelo governo federal, que defendia o jà mencionado
projeto repartido de educação.
Os intelectuais ligados à Escola Politecnica
do Rio de Janeiro e simpatizantes dos movimentos tenentistas defendiam um
conjunto de medidas de integração nacional como forma de construir a unidade
pretendida. Nesse projeto, a comunicação era a principal dimensão do moderno,
pois a transmissão de mensagens era avaliada em seu potencial modificador da face
da cidade. Daí a importância do rádio, do cinema e dos meios de transportes.
Nas refregas do processo constituinte armou-se um novo campo
discursivo que, em oposição ao projeto repartido, defendia a escola única. Essa
defesa tornou-se uma bandeira para os educadores profissionais, levando-os a
apresentar um manifesto à nação, levar a cabo medidas
de reorganização da Associação Brasileira de Educação que culminaram com o
afastamento dos católicos e realizar todo um trabalho de debate das propostas
em atrito no congresso se entricheirando em torno da
emenda 1845, consagradora de alguns princípios
básicos pelos quais se batiam: a co-educação, a escola única, laica e gratuita.
39
O jogo das forças políticas no movimento da história
desenhou a vitória do projeto de modernização autoritária, que não só
consolidava - apesar dos integralistas - a aproximação crescente entre Estado e
Igreja, mas também expropriava dos outros projetos algumas de suas propostas e
práticas, criando nesse amálgama uma escola nova para um Estado Novo. Assim, o
rádio e o cinema educativos, o canto orfeônico, a prática classificatória dos
alunos nas escolas primárias foram mantidas, entre outros aspectos.
À medida que a modernização autoritária se afirmou, a gestão
de Anísio Teixeira foi avaliada como uma estratégia de oposição dentro da
estratégia oficial e, como tal, foi combatida e interrompida. A reforma por ele
conduzida empurrou a escola para fora de si mesma, ampliando sua área de
influência na cidade. Atravessou o espelho da cultura européia e
norte-americana para elaborar um conhecimento instrumental da realidade,
articulando o saber popular e o acadêmico. Retirou o problema do governo da
educação da tutela da Igreja e do governo federal. Todos esses aspectos marcam
o caráter polêmico da sua gestão, graças à sucessão de conflitos que se criaram
em vários níveis: no nível governamental, no nível ideológíco
e no interior da própria escola.
A Reforma do Distrito Federal corporificou, em nossa
perspectiva, um projeto de modernização cuja principal característica foi a ambiguidade emergente da tensão entre inflexões que a
empurravam para uma abertura real das chances educativas, como a expansão e a
melhoria efetiva da qualidade da escola primária; a abertura da escola
secundária, numa estratégia de introduzir a cultura geral aos cursos técnicos
profissionais existentes a nível primário e valorizar os seus diplomas, o
trabalho das bibliotecas e da rádio-educativa dentre outros exemplos; e, ao
mesmo tempo, para a formulação de concepções autoritárias das classes
populares, corporificadas no bojo das pesquisas produzidas pelo Instituto de
Pesquisas Educacionais, pelos testes classificatórios dentro das escolas
primárias e por todas as medidas que não escapavam à pretensão de ordenar a
diferença dentro das certezas de uma cultura que opôs a "razão" das
elites à "irracionalidade" das massas.
Como intelectual latino-americano, nesse momento histórico,
Anísio Teixeira participou da mentalidade da sua época e endossou o papel dlsciplinador da escola sobre a cidade, ao lidar com a
heterogeneidade das classes populares e de suas crianças dentro delas, mas não
o fez, como alguns de seus colaboradores, de forma a identificar a
heterogeneidade como carência de atributos intrínsecos do sujeito pobre. Ele deslocou
a carência do indivíduo para a omissão dos governos na direção da reconstrução
das condições sociais e escolares.
A peculiaridade dessa perspectiva o levou a considerar, como
seus pares, o efeito nefasto da heterogeneidade sobre a capacidade da ação prática
coletiva popular e a importância de uma intervenção educativa exemplar que
organizasse a dispersão. Ele se afastou deles, no entanto, por não considerar
como característica intrínseca das classes populares a falta de aptidão para a
coletivização. Essa inflexão relativizou, em sua
postura, a visão das classes populares urbanas como obstáculos sociais e
políticos e reforçou-lhe a concepção de que a educação é o intrumento
de superação de uma carência que não é do indivíduo, mas da cultura erudita e modema que lhe faz falta. Foi capaz de dialogar com a
multiplicidade de posturas presentes na equipe que reuniu. O liberalismo deweyano forneceu-lhe um guia teórico que combateu a
improvisação e o autodidatismo, além de abrir a possibilidade de operacionalizar
uma política e criar a pesquisa educacional no país.
Anísio respondeu aos desafios colocados na prática política
agindo, segundo as situações, com lógicas diferentes, o que muitas vezes
confunde seus interlocutores e comentaristas, que ficam surpresos ou chocados
com sua incoerência. Esta incoerência é, no entanto, coerente com a sua
biografia. Sem dúvida, ele parece assumir o estilo jesuíta quando, por exemplo,
luta obstinadamente para alterar as rotinas da escola pública, procura
controlar e medir as atividades escolares, realizar um trabalho de demonstração
e organizar operacionalmente a luta pela defesa da sua obra. No entanto, ele se
identifica com o estilo do coronel nordestino na sua política palaciana, que
ganha crescente influência junto ao interventor no governo municipal e na
fidelidade ao grupo regional ao qual se mantém ligado, ou ainda quando faz
certas concessões ao nível da indicação de nomes para ocupar certos cargos, sem
nunca esquecer, no entanto, os interesses da proposta educativa que conduz.
Encarna, ainda, o pensador liberal quando define os princípios de seu projeto
educativo, quando ativa a teoria para criar as condições de gestão e os objetos
que surgem do trabalho aí desenvolvido, ou mesmo quando elabora o programa do
Partido Autonomista do Distrito Federal, num momento em que a ABE, atravessada
pela dissensão ideológica e por disputas regionais, não tinha condições de ser
o suporte de sustentação política que lhe era indispensável.
No movimento de uma interlocução plural, criada graças ao
trabalho de um grande número de colaboradores (católicos, liberais, comunistas,
pensadores autoritários de direita e esquerda), a
cidade invadiu a escola, mas também foi impregnada pelo papel disciplinador da
instituição escolar que construiu alternativas para lidar com a desigualdade
social e cultural. As linhas gerais deste processo foi o que procuramos
demonstrar. A nossa exposição pode dar margem a diversas leituras e questões.
Afinal, entendemos que a construção de wn estilo de
vida urbano moderno na sociedade brasileira, pela ótica da escola, ainda é uma
história a ser escrita a muitas cabeças e mãos que resgatem a peculiaridade das
práticas urbanas e do papel da escola dentro delas.