GILBERTO FREYRE, MESTRE E CRIADOR DE

SOCIOLOGIA *

 

 Gilberto Freyre é o marco mais significativo no longo esfôrço de introspecção que vimos fazendo para tomar consciência de nosso país, de nossa história, de nossa cultura. Ficamos todos mais brasileiros com sua obra. Em outra época, seria o pensador de sua geração; neste século vinte, é seu maior sociólogo.

Mas, a sociologia em suas mãos torna-se uma como ciência das ciências, no sentido de se nutrir de todos os conhecimentos humanos, para depois reelaborar o conhecimento da realidade no seu mais alto nível: o social. O físico, o biológico, o mental contribuem, sem romper a sua continuidade, como "graus de associação ou de realidade", para integrar "o social", ou seja, a realidade mais ampla e complexa, aquela em que as associações atingem a sua mais alta ordem de potencialidades.

Tal ciência constitui, com efeito, não apenas uma ciência, mas todo um nôvo mundo científico, uma nova família de ciências, desdobrando-se em ramos e especialidades, que buscam alcançar a categoria do "social" em tôda a vastidão, complexidade e variedade.

Precisamos, assim, ver êste livro como uma introdução ao mundo das ciências sociais, de que a sociologia seria a expressão mais geral, nem por isto, entretanto, menos diversificada, para compreender a variedade e a riqueza de material com que Gilberto Freyre julgou dever jogar para iniciar o estudante ou acompanhar o professor em suas explorações no imenso universo recém-descortinado.

Só um Autor,  simultaneamente pensador, escritor e sábio, poderia escrever esta Introdução à Sociologia, sem incorrer no vício fundamental do suposto livro didático, que é o de não conseguir ser útil, por assim dizer, senão aos que já conheçam totalmente o assunto.

Chama-se, com efeito, de livro didático, um tratado em que se apresentam as noções, os princípios e as leis de qualquer ciência, expostos sistemática e tècnicamente, como um corpo ordenado de conhecimentos. Ora, nenhum conhecimento científico é suscetível de ser assim ensinado em sua forma lógica final. É êle produto do engenho humano. E engenho aí deve ser entendido literalmente como mecanismo que elabora, segundo processos demorados e ultrameticulosos, o produto acabado e refinado que é o conhecimento científico, devidamente formulado. Sua apresentação direta assim lògicamente formulada é de profunda utilidade e indispensável mesmo - não porém para o aprendiz, mas, para quem já sabe, que aí encontrará, nesse tratado, o corpo sistemático de conhecimentos descobertos, para os manipular nas suas diversas aplicações ou para os utilizar em novas descobertas.

O aprendiz, entretanto, precisa de algo diferente. Precisa de saber como tais conhecimentos foram descobertos e porque vieram a ser assim formulados. Os dados iniciais são a experiência humana, em sua forma bruta, e os problemas práticos que essa experiência suscita. O livro deve mostrar-lhe como êsses problemas chegaram a ser sentidos, como vieram a ser analisados e formulados, como se levantaram as hipóteses que os pretendem resolver, como se processaram as comprovações acaso já feitas, e como hão de continuar a observação, a análise e a elaboração de métodos cada vez mais apropriados, até que se possam formular os "fatos", "princípios" e "leis" que constituem o saber científico.

Cada universo - seja o matemático, seja o físico, seja o orgânico, seja o mental, seja, agora, o social - sofre com o tratamento científico, bem o sabemos, um processo de abstração, isto é, um processo pelo qual se abstraem do mundo das experiências de simples bom-senso aquêles elementos que irão permitir a formulação do problema, na sua mais alta generalidade, e, dêste modo, a sua solução teórica. Essa teoria é que, por sua vez, irá permitir o raciocínio científico, de natureza sistemática no qual se joga com "fatos", "princípios" e "leis" que representam "abstrações extremamente refinadas, indispensáveis para a interpretação do universo existencial e para o seu contrôle ou modificação em beneficio do homem. O conhecimento científico tem, assim, a sua origem nos problemas práticos, dêles se distancia pela abstração teórica e a êles volta pela aplicação científica. Como abstração teórica, o conhecimento científico é, desta sorte, um instrumento intermediário, suscetível de ser compreendido e usado pelo especialista, que dêle se utiliza para o raciocínio científico ou para novas descobertas. Para o leigo, porém, é, em si mesmo, algo de hermético e de essencialmente incompreensível. Para que sua compreensão se torne possível há que se reconstruir o conhecimento, há que mostrar como se originou e como foi elaborado até se tornar o produto refinado ou teòricamente formulado que é o fato científico, ou o princípio científico, ou a lei científica, cuja verdade ou, melhor, eficácia, entretanto, só se comprova, em última análise, pela aplicação, isto é, por um julgamento de ordem prática e não de ordem teórica. A ciência, assim, em seu curso completo, não é hermética nem ininteligível. Origina-se de um problema prático, de todos entendido, faz-se, pela indispensável abstração, um problema teórico e difícil, mas volta, pela aplicação, a se fazer prática e até de simples bom-senso. Para que seja, portanto, plenamente inteligível para o leigo, e, com maior razão, para que possa ser ensinado ao aluno, é indispensável fazer regredir o conhecimento científico à sua origem, indicar as transformações que lhe imprimiu a elaboração lógica ou teórica e, em verdade, reconstituí-lo para o aluno, levando êste a formulá-lo, êle próprio, dentro do sistema ad hoc, para usar a expressão de Whitehead, a que possa haver chegado em seu progresso intelectual.

Se algum dia as ciências sociais chegarem à maturidade das ciências físicas, mesmo então a leitura do livro de Gilberto Freyre constituirá uma iniciação indispensável, pois ainda nesse dia longínquo, senão impossível, nenhum outro livro poderá dar ao estreante uma revelação mais excitante e ao mesmo tempo mais exata da extrema complexidade e extrema variedade de métodos, com que a mente humana terá tido de lutar para poder dominar êsse nôvo universo.