TEIXEIRA, Anísio. A educação comum do homem moderno. Arte e Educação. Rio de Janeiro, v.1, n.3, mar. 1971. p.13.

A educação comum do homem moderno

ANÍSIO TEIXEIRA

            Desde que a humanidade iniciou sua luta de ajustamento às condições do mundo foram sempre raros os períodos criadores e merece ser observado que tais períodos não coincidiram com os períodos de "civilização". Tanto quanto sabemos, quando nos deparamos com a humanidade chamada "civilizada", encontramos o homem como criatura extremamente conservadora, mais ciosa de guardar os conhecimentos do que de desenvolvê-los.

            Entretanto, antes dessa fase, fôra a humanidade altamente criadora, havendo conseguido a domesticação dos animais e tôdas as invenções fundamentais de ajustamento à vida, sem falar na linguagem, cuja descoberta gradual se perdia no tempo.

            É com a "civilização" que se mergulha na grande estagnação. A grande criação que tornou possível a "civilização" – mesmo ela de certo modo, anterior à "civilização" – foi a da escrita. Mas é curioso que mesmo essa descoberta não tenha aumentado a capacidade de descobrimento da humanidade. Pelo contrário, assim que foi descoberta a escrita, o trabalho dos escribas, com a utilização do nôvo instrumento revolucionário, fêz-se um trabalho ultra-especial, é certo, mas de conservação e não de renovação. O escriba fêz-se não um dos elementos de criação da civilização, mas o do registro do que existia na civilização, constituindo-se o trabalhador especialíssimo de sua conservação. O período entre 400 ou 300 anos antes de Cristo e o século XVI, de nossa era, não registra nenhuma invenção, nenhuma revolucionária invenção. A civilização faz-se suntuária, espetacular mesmo, desenvolve grandes confortos materiais, certas atividades artesanais se expandem e se aperfeiçoam, certo número de pessoas chega à riqueza, mas nenhuma grande descoberta revolucionária ocorreu durante êste longo período de civilização, que, entretanto, se inicia com a maior de tôdas as descobertas, a descoberta pròpriamente, do pensamento humano, da arte de pensar racionalmente que nos trouxeram os gregos. Mas a arte de pensar não nos deslumbrou com a invenção, senão com a revelação, a contemplação e quiçá, a compreensão do que já o senso comum nos trouxera. A arte de pensar, a princípio, foi mais apologia do que descoberta, buscando, como já disse, antes a compreensão do mundo e o prazer de sua contemplação do que descobrir-lhe as molas de sua transformação. Desta sorte, as escolas nunca foram feitas para ensinar sequer a descobrir o conhecimento, mas para conservá-lo pelo ensino fiel e exato.

            É preciso ter isto sempre presente para compreendermos quanto, desde o início, a escola se fêz uma instituição particular e especializada, destinada a formar um grupo particular e especializado a quem se confiasse a guarda e conservação da cultura humana. Sòmente no século XVI, quando se renova o método e a arte de pensar, é que passamos dêsse estrito conservar e guardar da cultura para a descoberta, primeiro do que outros tinham pensado e acabara por se perder e, finalmente, para a descoberta do conhecimento novo pròpriamente dito.

O método experimental de pensar abria, com efeito, uma era nova no pensamento humano. A escola, já agora, quando perfeita, não ensinaria apenas o sabido, mas ensinaria a pesquisar e, pela pesquisa, a descoberta do nôvo. Se o progresso humano fôsse algo de fácil e sincrônico, tôdas as escolas se teriam, desde então, de se transformar. Mas assim não aconteceu. Tomadas do deslumbramento da redescoberta do saber clássico, as escolas se fizeram, a despeito da nova atitude científica, zelosas transmissoras daquele saber. Até o século XIX, e neste, ainda em sua segunda metade, mal podemos falar da ciência experimental nas universidades e nas escolas. Até então a Universidade guarda o saber, mas não o renova nem o descobre. Nenhuma grande descoberta científica se registra, entre as atividades da escola ou da universidade até o nosso século. A escola é por excelência a guardiã, a conservadora, a estabilizadora, a consolidadora da cultura.

O método experimental, entretanto, criado no século XVI fêz-se um transformador da cultura. Esta se fêz mutável e dinâmica. E dentro de algum tempo alterou as próprias formas do trabalho humano. Introduziu a máquina e com a máquina a divisão do trabalho. Com a divisão do trabalho, sua organização em forma cada vez mais complexa e mais impessoal, daí sobrevindo duas mudanças fundamentais: a primeira, a necessidade de inteligência altamente treinada para organizar o trabalho; e a segunda, a relativa simplicidade do treino para o operário.

A civilização anterior operava na base de um artesão altamente qualificado. Nos seus primórdios, a nova civilização industrial operava na base de alta organização e operário reduzido a "mão-de-obra". É evidente que tal processo produziu mecanização excessiva do esfôrço humano, não faltando mesmo alguns aspectos desagregadores no hoje fracionadíssimo trabalho humano.